Forever Pure: quando o racismo venceu o futebol

O documentário Forever Pure, dirigido por Maya Zinshtein e lançado mundialmente em julho de 2016, relata os acontecimentos da temporada 2012-13 no clube de futebol israelense Beitar Jerusalém, um dos mais populares do país. Antes de chegar no racismo, o documentário mostra como um clube de futebol, sua história e torcida podem fabricar momentos de felicidade e fascinar até mesmo quem está do outro lado do mundo. Torcedores mais antigos falam sobre quando o clube foi fundado, em 1936, como parte do movimento sionista revisionista e uma das primeiras entidades israelenses de direita. Depois disso, é mostrada a parte que encanta: cerca de dois mil torcedores presentes no primeiro treino do time na temporada. Eles tem permissão para entrar no centro de treinamento e veneram o goleiro da equipe, Ariel Harush, que é torcedor e símbolo do clube.

Kadiyev, Eli Cohen (técnico) e Sadaev (Foto: Times Of Israel)

A primeira parte da temporada foi de sucesso para o Beitar, que se mantém na parte de cima da tabela brigando por uma vaga na Europa League. O time vai bem dentro de campo, mas a torcida protesta contra o dono do clube, o oligarca russo-israelense Arcadi Gaydamak, que comprou a equipe para promover sua carreira política e perdeu as eleições para a prefeitura de Jerusalém. Desde então, ele não investe e o Beitar faz campanhas medíocres. A repulsa dos torcedores com Gaydamak se justifica nas entrevistas do oligarca. Dono de um dos times mais tradicionais do país, e sem titubear, ele diz sorrindo que nunca viu o futebol como algo fascinante e que investiu por causa do engajamento das pessoas, como se fosse uma guerra. Pois bem, no meio da temporada, Gaydamak resolveu levar o Beitar para disputar um amistoso contra o Terek Grozny, clube checheno, na república separatista ao norte do caucaso. A partida, apesar da tensão em volta do jogo por se tratar de um clube de judeus jogando em uma república de maioria esmagadora muçulmana, foi amistosa. Arcadi, que não custa nada lembrar ao leitor, responde a crimes e é procurado na França, anunciou no início de 2013 que trouxe dois jogadores do Terek para compor o elenco do Beitar. Os jogadores em questão, o atacante Zaur Sadaev, de pouco mais de vinte anos, e o zagueiro Dzhabrail Kadiyev, de dezenove, foram tratados como “Dois muçulmanos”, pela imprensa de Jerusalém, e não como jogadores. Nos treinos, não só os jogadores foram alvo de cânticos ofensivos, mas também o goleiro Ariel Harush, que a pedido do clube acolheu os recém-chegados, e Itzik Korenfine, ex-goleiro, ídolo e diretor.

Em fevereiro de 2014, todos os troféus históricos do clube, fotos e livros foram reduzidos a cinzas. Quase 80 anos de história guardados desapareceram por causa da ira da torcida (Foto: NY Daily News)

La Família

A grande transformação entre os torcedores do Beitar começou em 2005, com a criação dos Ultras, a torcida La Família. Inspirado nos ultras italianos, La Família absorveu sua ideologia dos movimentos de extrema direita em Israel. A diferença entre La Família e os outros ultras israelenses foi o fato deles terem sido reconhecidos oficialmente pelo clube. O perfil do típico torcedor do Beitar mudou. Não era mais o jovem trabalhador de direita de Israel, mas agora uma juventude judaica radical de direita, de qualquer lugar do país. A guinada da torcida deste clube coincidiu com a chegada de Arcadi Gaydamak, o oligarca russo-israelense que investiu no clube e até financiou a La Família, fornecendo equipamentos, dinheiro e local fixo no estádio. Em contrapartida, os membros da La Família elogiaram Arcadi durante os jogos, a fim de calar as objeções ao grande chefe que pudessem surgir na multidão. Antes dessa mudança de perfil dos torcedores, o Beitar já teve em seu plantel dois jogadores muçulmanos, o tadijique Goram Ajoyev em 1989 e o albanês Viktor Paço em 1999. As crenças religiosas desses dois jogadores, porém, não eram problema para os torcedores e nem discutidas pela mídia. O primeiro jogador a sofrer com o racismo de La Família e o novo perfil dos torcedores foi o nigeriano Ibrahim Ndala. Cânticos racistas foram entoados e banana jogadas no campo, até que Ndala deixou o clube depois de disputar apenas cinco partidas. “Eu não sugeriria que nenhum jogador muçulmano ou negro deveria jogar lá”, disse o jogador ao sair.

Torcedores do Beitar levam faixa ao estádio com dizeres “Beitar puro para sempre” (Foto: AFP)

Iniciada a segunda parte da temporada para o Beitar, a torcida organizada que fica no setor leste do Estádio Teddy, segue insultando Kadiyev, Sadaev e o antes venerado Harush. Os episódios foram acontecendo e complicando o andamento do campeonato para o Beitar. Kadiyev foi expulso depois de revidar insultos de um torcedor e Sadaev chegou até a marcar um gol, que foi comemorado pelos torcedores, mas depois os mesmos deixaram o estádio em protesto. O time não se encontrava em campo e ‘La Família’ emitiu comunicado anunciando um boicote aos jogos do clube por causa dos muçulmanos. De postulante a vaga nas competições europeias, o Beitar chegou na última rodada tendo que empatar para não ser rebaixado. O adversário da rodada decisiva? Bnei Sakhnin, clube mais bem sucedido do país, formado por árabes-israelenses. Antes da decisão, La Família anunciou que apoiaria o clube no Estádio Doha, mas que mantinha sua posição em relação aos muçulmanos. O jogo entre Sakhnin e Beitar foi violento, teve a expulsão de Sadaev e com Harush defendendo, terminou sem gols. Beitar se salvou e rebaixou o adversário árabe.

Arcadi Gaydamak (Foto: Anna Kaplan)

Ao final do documentário, é mostrado o desfecho da confusão criada por Gaydamak. Os dois jogadores retornam ao Terek, o treinador Eli Cohen e o diretor Itzik são demitidos pelos novos donos do Beitar. Gaydamak é preso na França, cumpre quatro meses e consegue liberdade condicional. Harush deixou Beitar e foi para o maior rival, Hapoel Tel Aviv. La Família intensificou sua participação na política e aumentou seu poder na extrema direita conservadora em Israel.

Beitar Nordia Jerusalém atualmente disputa a quarta divisão israelense (Foto: Jerusalém Post)

Insatisfeitos com o rumo tomado pelo Beitar, um grupo de torcedores fundou o Beitar Nordia Jerusalém, que oficialmente não pode ser chamado de Beitar, pois não está filiado à associação esportiva Beitar. O Agudat Nordia Sport Jerusalém, nome oficial, foi fundado em 2014 e jogou sua primeira partida em 17 de outubro do mesmo ano, na quinta divisão de Israel. O clube é gerenciado de forma democrática, organiza atividades comunitárias e culturais e, o mais importante, tem em seu elenco jogadores árabes jogando e fazendo gols com o uniforme amarelo e preto.

Reconhecida oficialmente pelo clube, a torcida La Família fez da vida de dois jovens jogadores um caos em 2013 (Foto: NY Daily News)

O título desta postagem “Quando o racismo venceu o futebol”, se deve pelas faixas e cânticos da La Família. Faixas com os dizeres “Beitar puro para sempre” foram levadas ao estádio por torcedores judeus. Os mesmos cantaram que o Beitar era o “Clube mais racista do país”. Quando falo que o futebol foi derrotado, é porque o considero muito maior do que qualquer discriminação. Não foram “só” jogadores muçulmanos que não conseguiram fazer seu trabalho em Jerusalém. Ariel Harush deixou o Beitar após sete anos no clube e 170 partidas disputadas. Sua posição em relação aos dois jovens muçulmanos não foi apenas por pedido da diretoria, ele realmente não é um racista como a maioria dos torcedores. Itzik Korenfine é (ou era – não sei como posso dizer depois desses acontecimentos), mais ídolo do que Harush. Itzik defendeu as cores preta e amarela do Beitar por doze anos, tendo disputado 372 partidas e se tornado símbolo para os torcedores. Além disso, foi capitão nos últimos seis anos da carreira. Todos esses ídolos, cujos números mostram o quanto já fizeram pelo clube, não foram maiores do que o racismo sem pudor demonstrado pela torcida La Família e respaldado pela extrema direita israelense.

Pesquisa e Texto: Gabriel Torres

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