Garota Exemplar

Quando soube que David Fincher seria o diretor da adaptação de Garota Exemplar, livro de Gillian Flynn, fiquei muito animado, pois, além de gostar muito do livro, tinha certeza que ele conseguiria transportar a atmosfera, o clima de suspense, a personalidade dos personagens e adaptar a narrativa de um modo perfeito para o cinema. Sua carreira mostra que trabalhar com personagens multifacetados, tramas intrincadas e narrativas que envolvem o espectador no suspense, são artifícios que ele domina e formam parte de sua assinatura como diretor. Qual não foi minha surpresa, Fincher retorna com um filme metódico com personagens racionais e problemáticos que se encontram em situações desesperadoras e que, é claro, nos fazem participar de tudo.

Garota Exemplar conta a história da destruição do casamento entre Nick Dunne (Ben Affleck) e Amy Dunne (Rosamund Pike). Os dois são escritores nova-iorquinos que vivem em Manhattan e levam uma vida tranquila em um casamento estável e feliz. Amy tem um passado curioso, pois seus pais, também escritores, construíram suas vidas através de um sucesso teen, Amy Exemplar, baseado inteiramente na sua vida. Com a chegada da recessão, o casal perde seus respectivos empregos nas revistas em que trabalham e Nick recebe a notícia de que sua mãe está muito doente. Para completar o cenário em que se encontram, os pais de Amy estão afundados em dívidas e pedem para utilizar as economias da filha, deixando-a sem condições de se manter sozinha com Nick. Vendo essa situação sem saída, Nick decide voltar para sua cidade natal, Missouri, e pegar o pouco dinheiro que sobrou de Amy para investir em um bar. Amy, contra sua vontade, não encontra outra opção a não ser acompanhar o marido, deixando para trás a vida que estava acostumada em Nova York.

Fica muito claro que Amy não nasceu para viver no interior do Missouri e levar uma vida monótona como dona de casa. O fato de Nick passar a maior parte do seu tempo no bar, saindo com seus amigos e dando aulas, coloca Amy em segundo plano. Ela se vê excluída e sozinha em uma cidade no meio do nada sem nenhuma ocupação. Em uma noite, Amy vê Nick beijando uma jovem universitária e, traída e abandonada pelo próprio marido, começa a tramar um plano para se vingar dele.

O plano de Amy começa com o próprio desaparecimento no dia de seu aniversário de casamento. A presença da mídia na pequena cidade para cobrir o sumiço da garota perfeita conhecida pelo país todo catapulta a imagem de Nick como possível culpado. A trama se desenvolve sem pressa, construindo a personalidade dos personagens e mostra a perspectiva de cada lado do casal. Os flashbacks e a narração do diário que ela escreve desde que moravam em Nova York tornam o roteiro claro e amarrado do início ao fim. Com o desenrolar da história somos apresentados aos verdadeiros Nick e Amy. Suas personalidades dúbias, egoístas e até psicóticas, no caso de Amy, fazem com que qualquer empatia que desenvolvemos por eles seja descartada sem muito esforço. O desejo por vingança de Amy mostra o seu pior lado (o verdadeiro) e suas atitudes frias e calculistas constroem um plano para destruir a vida de Nick e, dessa forma, ensinar uma lição de moral a ele. Garota Exemplar tem uma abordagem semelhante à De Olhos Bem Fechados, de Stanley Kubrick, onde os dois analisam o casamento de uma forma distorcida e mostram um casal problemático vivendo situações surreais em busca da restituição de seus relacionamentos, mas só conseguem alcançar seu objetivo através do sofrimento.

Amy coloca seu plano em prática através de uma brincadeira que fazia com Nick em todos os seus aniversários de casamento. Ela manipula o marido, a polícia e a mídia distribuindo várias pistas pela cidade que só o marido poderia descobrir e, dessa forma, o afundaria em vergonha e o condenaria a prisão.

Sentir desprezo pelo casal é a reação normal de qualquer pessoa que tenha o mínimo de decência e a saúde mental em ordem, mas, olhando os personagens secundários, vemos que quase todos também são dignos de desprezo e repúdio. Temos Andie (Emily Ratajkowski), a jovem universitária que se envolve conscientemente com um homem casado, Nick, e espera que ele termine o próprio casamento para ficar com ela. Ellen Abbott (Missi Pyle), a apresentadora de tv que distorce e explora cada acontecimento e imagem do desaparecimento de Amy utilizando um jornalismo sensacionalista e barato, dando importância apenas para o crescimento da audiência do seu programa, negligenciando os sentimentos dos envolvimentos. Desi Collins (Neil Patrick Harris), um ex-namorado fanático por Amy que faz tudo o que for preciso para alimentar sua paixão doentia por ela. Até mesmo os pais de Amy acabam encontrando uma forma de explorar a experiência traumática vivida pela filha para lucrar com mais livro. No entanto, Margo Dunne (Carrie Coon), irmã de Nick, mesmo sofrendo a pressão da mídia e se decepcionando com o irmão a cada nova pista revelada, serve como o lado são e honrado do filme.

O ótimo roteiro escrito pela Gillian Flynn é acompanhado pela excelente direção de fotografia de Jeff Cronenweth, colaborador frequente dos filmes de Fincher, como Clube da Luta, A Rede Social e Millenium: Os Homens que Não Amavam as Mulheres. Seu trabalho ao posicionar os personagens nas sombras, o modo como a casa de Nick é iluminada e parece que ele está em uma caverna tentando se isolar do mundo, o açúcar flutuando no ar na noite em que Nick e Amy se beijam pela primeira vez e como isso serve de rima visual para quando ele a trai enriquecem muito o resultado final do filme. Além da fotografia, outros colaboradores que voltaram a trabalhar com Fincher são Trent Reznor e Atticus Ross. A trilha sonora criada pela dupla funciona perfeitamente durante todo o filme. O clima de suspense e tensão crescente é ditado pelos barulhos, sintetizadores e batidas eletrônicas secas que combinam com as cores dessaturadas da fotografia de Cronenweth.

Garota Exemplar é um filme que explora o próprio modo como desenvolve sua narrativa e procura ficar um passo à frente de sua audiência sempre. Ele tenta brincar com nossas emoções e sentimentos utilizando o thriller, o horror, o suspense, mas sem fugir da nossa realidade, garantindo que as atitudes mostradas sejam plausíveis se realizadas por homens e mulheres que deixam o egoísmo e narcisismo ditar o rumo de suas ações.