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De antena ligada nas HQs, cinema-pipoca, RPG e afins

Estreia consagradora para o diretor Guilherme Weber com 'Deserto'

Por Rodrigo Fonseca
Atualização:
Numa atuação transcendente, Lima Duarte lidera a trupe de circo-teatro de "Deserto": 22h no Canal Brasil, esta terça  Foto: Estadão

RODRIGO FONSECA

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Quiçá o mais político de todos os filmes do 49º Festival de Brasília, em um ano no qual o evento fez da frase "Fora Temer!" seu hino e seu grito de guerra, Deserto escancara a sua vocação demolidora em relação ao Poder ao utilizar como sua fundição um olhar investigativo sobre ocupação de cidades, usando como ambiente uma vila fantasma. É numa espécie de aldeia descarnada que o ator e diretor teatral Guilherme Weber, em um primeiro (e avassalador) exercício de longa metragem como cineasta, concentra sua autoral reflexão sobre a descartabilidade, tema já perseguido em sua prestigiada peça Os Realistas. Ali, no teatro, o assunto-fetiche de Weber era perseguido sob um viés existencialista, num diálogo com a dramaturgia de Will Eno. Mas, no cinema, em um filme capaz de evocar - na aparência - o mítico As Proezas de Satanás na Vila do Leva-e-Traz (1967), a toada é menos existencial e mais marxista, quase gramsciana. O palco aqui é para o espetáculo da dominação do fraco pelo forte, da luta de classes dentro da classe artística. Mas, acima (e antes) de tudo, Weber fez uma declaração de amor à Arte.

Parente distante de A Viagem dos Comediantes (1975), do grego Theo Angeolopoulos, Deserto toma emprestado a trama de Santa Maria do Circo, um romance do mexicano David Toscana, para, a partir dela, narrar a errância de uma maltrapilha trupe de circo-teatro pelos confins de um país com um Sertão de esturricada paisagem. O grupo tem um líder (vivido por Lima Duarte, numa participação curta, mas devastadora), que só professa amor por uma porquinha esquálida e por seu cântaro de cachaça. Os demais, sobretudo as mulheres mais velhas (Cida Moreira e Magali Biff, desconjuntantes) e uma jovem (Pietra Pan), amargam a fome e o autoritarismo do patrão Lima.

 Foto: Estadão

Tudo parece mudar quando eles chegam a uma cidadezinha esvaziada. Cansados de tanta andança, eles enxergam ali mais do que um pouso: uma pátria. Artistas, eles enxergam na aridez um país (mais Brasil de hoje, impossível!) e decidem fundá-lo. E, para isso, cada ator deve virar um "ator social", e assumir um papel, a ser definido por uma rifa de bilhetinhos sorteados a esmo. A menina, por exemplo, tira um papel nada adequado a seu corpo: "caçador". Já o homem forte do circo (Márcio Rosário, a maior surpresa do elenco, numa interpretação de dilacerar) fisga o papel de "prostituta", o que o leva a se feminilizar, cena após cena. Já a mulher careca e morfética (Magali) se torna a médica, curando feridas a lambidas, numa perversão erótica de um filme  carregado de uma exótica sensualidade.

No esmaecimento da fotografia de Rui Poças, sempre ocre, o universo daqueles atores vai caminhando para a decadência, para a doença, como se a corrupção fosse um destino inevitável para uma nação que se funda do degredo, assim como o Brasil. Aquela pátria se funda, nos primeiros minutos do longa, com a morte do líder (depois de um comovente monólogo de Lima), abrindo deixa para novos empoderamentos, que caminham para a falência, para o tal deserto do título: deserto de esperanças.

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Com um roteiro escrito a quatro mãos com a romancista Ana Paula Maia (de Carvão Animal), Weber faz de sua estreia um gesto de resistência expressa como um filme seminal, de ousadias mesmo em seus instantes de maior classicismo. Que a Sorte o contemple hoje, no encerramento do Festival de Brasília.

 

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