Por André Dick
Depois de alguns anos um pouco afastado do cinema, Paul Verhoeven regressa à cena aos 78 anos, com este Elle, cuja estreia se deu em grande estilo no Festival de Cannes. Verhoeven sempre será conhecido como um dos diretores europeus que conseguiram chegar a Hollywood e fazer sucessos, entre os quais estão RoboCop, O vingador do futuro e Instinto selvagem, assim como fracassos que lhe custaram anos de afastamento, a exemplo de Showgirls e Tropas estelares, além de O homem sem sombra. Dez anos depois do grande sucesso de crítica A espiã, ele regressa com esta produção feita em parceria entre França, Alemanha e Bélgica (e o filme foi indicado para representar a França no Oscar).
Isabelle Huppert interpreta Michèle Leblanc, chefe de uma empresa de jogos de vídeo bem-sucedida, que cria atritos com os empregados, principalmente Kurt (Lucas Prisor), e certo dia é atacada surpreendentemente por um homem com uma máscara de esqui em sua casa. Ao contrário do que se espera, ela não faz nenhuma reclamação nem procura a polícia, e ainda esconde o que aconteceu dos amigos, do ex-marido Richard (Charles Berling), um romancista desastrado, da sua mãe, Irène (Judith Magre), e do filho, Vincent (Jonas Bloquet). Pelo comportamento estranho dos personagens e do cenário de trabalho, este é o filme que Brian De Palma, uma das influências de Verhoeven aqui, gostaria de ter feito em Paixão.
Será que o intruso voltará a atacá-la? Quem ele é? Alguém que conhece ou um completo desconhecido? Ela tem problemas de relacionamento com a mãe, que está prestes a se casar com um homem muito mais novo, e não se dá bem com a nora, Josie (Alice Isaaz), ou seja, sua vida é repleta de conflitos não resolvidos. Bem, ela parece procurá-los: por que, por exemplo, ela bate de propósito no carro de seu amigo? O gato que há em sua casa age como se a conhecesse melhor do que os humanos.
Verhoeven sempre teve um interesse por mulheres que colocam os homens em situação de ameaçados sexualmente. Aqui, a mulher sofre abusos do mascarado, mas não entendemos suas reações a isso. Huppert faz uma das personagens mais intrigantes do universo feminino dos últimos anos justamente porque parece lhe faltar qualquer compromisso com o discurso em sua própria defesa – parece, pois, na verdade, o que ela faz é justamente empregar esse discurso por meio de atitudes enviesadas. Verhoeven desenha isso com muito talento, procurando, a certa altura, explicações psicológicas de notável desenvoltura para a narrativa. Deve-se dizer que a melhor amiga de Michèle é sua companheira de empresa, Anne (Anne Consigny), cujo marido é Robert (Christian Berkel). Também há um vizinho, Patrick (Laurent Lafitte), que se mostra um amigo acolhedor enquanto arruma figuras religiosas no pátio de sua casa.
Verhoeven obviamente transita entre um suspense influenciado por Hitchcock, cenários parisienses que lembram o melhor de Carax (por meio de um video game, uma referência em certo momento a Holy Motors é assustadora) e um humor sutil que supera aquele que introduz em cada um de seus filmes, sobretudo em Hollywood. Este aqui é um Verhoeven mais maduro: vejamos a relação de Michèle com a mãe e com o filho. Ela parece interpretar a todo momento uma personagem e acha também que os outros encarnam personagens (a noite em que se reúnem na sua casa para o Natal é definitiva disso). Sendo assim, parece apenas flutuar entre as pessoas, de forma inconsequente: seu comportamento parece tão banal que às vezes soa até correto.
Verhoeven provoca vários temas, como o feminismo e a religião, de forma que nunca chegamos a entender essa personagem. Também não entendemos as pessoas que a cercam, e são elas, por outro lado, que a explicam. Com roteiro adaptado por David Birke de um romance de Philippe Djian, Verhoeven trata algumas das figuras da narrativa como aquelas que apresenta, por exemplo, em Instinto selvagem e Showgirls: Michèle é dúbia em suas preferências e Alice Isaaz lembra claramente uma Sharon Stone mais nova. Há uma atmosfera de sexualidade ameaçada e ameaçadora em todos os cantos de Elle, mas de maneira mais reflexiva do que nos seus experimentos em Hollywood, em que havia sempre o clichê de terminar as histórias com uma decisão comercial. E uma sátira evidente por meio da relação entre o filho de Michèle e sua jovem esposa, que remete quase a uma comédia familiar de Woody Allen.
Nesse sentido, o design de produção desta obra é não menos do que excepcional, em sua reconstituição de atmosfera, por meio de elementos, assim como o figurino de Michèle representa sua própria personalidade para cada ocasião. Considerar que este é um filme, como alguns dizem, de uma mulher que gosta de ser abusada sexualmente é simplesmente não entender a proposta dele, muito mais complexa e que leva ao instinto enigmático de um indivíduo. A maneira como Verhoeven retrata a ligação entre Michèle e seu filho Vincent, que parece ingênuo e completamente desligado da realidade, faz o filme parecer uma peça quase de nonsense quando esconde, no subterrâneo (simbolizado pelo porão), a liberdade que cada um escolhe para enfrentar seu próprio medo. Esses personagens estão sempre numa posição de defesa ou ataque, ou de superioridade ou inferioridade, a julgar, por exemplo, pelas sequências em que Michèle caminha por sua agência (olhando para o comportamento de um de seus empregados no andar de cima) ou quando está em casa (quando olha para a casa que fica do outro lado da rua). Huppert entrega a personagem mais fascinante de sua trajetória extensa. Ela acaba também se mostrando por meio de sua casa, do portão e das janelas semiabertas, como se estivesse entre a liberdade e a prisão, e que a fotografia de Stéphane Fontaine apresenta com notável propriedade. Não se deve explicar por que Michèle se mostra desse modo e sim deixar para o espectador este mistério de filme, talvez a obra máxima de Verhoeven. Que Elle tenha saído sem prêmios de Cannes é mais espantoso do que a ousadia de sua temática.
Elle, FRA/ALE/BEL, 2016 Diretor: Paul Verhoeven Elenco: Isabelle Huppert, Laurent Lafitte, Anne Consigny, Charles Berling, Jonas Bloquet, Virginie Efira, Christian Berkel, Judith Magre, Alice Isaaz Roteiro: David Birke Fotografia: Stéphane Fontaine Trilha Sonora: Anne Dudley Duração: 130 min. Distribuidora: Sony Estúdio: Entre Chien et Loup / France 2 Cinéma / SBS Productions / Twenty Twenty Vision Filmproduktion GmbH