Lion: uma jornada para casa (2016)

Título original: Lion

Países: Reino Unidos, Austrália, Estados Unidos

Duração: 1 h e 58 min

Gêneros: Biografia, drama

Diretor: Garth Davis

IMDB: www.imdb.com/title/tt3741834/


Segundo o filme, 80.000 crianças desaparecem todos os anos na Índia. Uma triste mazela social que tem relação direta com a superpopulação do país e a situação miserável da maioria de seu povo. Em “Lion“, um filme adaptado da biografia de Saroo Brierley chamada “Uma longa jornada para casa“, é mostrado apenas mais um desses casos reais que assola o país dos elefantes.

Saroo é um garoto indiano pobre, com 5 anos de idade, cheio de vida, ativo e imaginativo. Pela condição financeira de sua família, ele ajuda sua mãe carregando pedras e, um certo dia, sai com seu irmão, Guddu, para ajudá-lo em um trabalho. Saroo dorme na estação ferroviária de Kandwa e se perde do seu irmão, indo parar a 1600 km de distância, em Calcutá. Após passar meses morando na rua, vai para um orfanato e acaba adotado por uma família australiana. Vinte anos depois, Saroo resolve procurar sua família original baseando-se apenas nas poucas memórias que possui de sua infância e com a ajuda da tecnologia.

Posso revelar informações do enredo sem problemas pois o final do filme já é contado até no título em português e também no título do livro que foi adaptado. Didaticamente, podemos dividir o roteiro em 3 partes.  A primeira parte mostra a fase criança de Saroo e todos os acontecimentos até a adoção. A segunda passa-se 20 anos adiante e mostra Saroo já adaptado a seu novo mundo e a sua nova família porém em conflito consigo mesmo por conta de seu passado. A terceira mostra a busca por sua família biológica e o posterior regresso à Índia.

A primeira parte é uma obra-prima! A história envolve o espectador que fica fascinado com a enorme capacidade de resiliência do pequeno protagonista. Grande parte desse fascínio devemos à interpretação de Sunny Pawar que encarnou o pequeno Saroo. Ele deveria ter sido indicado ao Oscar. Foi uma atuação de gente grande! A magia da cena da sopa, apesar de dar um nó na garganta, mostra que a linguagem cinematográfica pode ser muito poderosa baseando-se apenas na simplicidade. Palavras nem são necessárias. Lembrou-me o maior diretor indiano, Satyajit Ray, e sua “Trilogia de Apu“.

Até este ponto, o Oscar já estava garantido porém, 20 anos mais tarde, a história recomeça e a intensidade emocional mostrada na primeira parte escapuliu como água entre os dedos.  A superficialidade é a marca desta segunda etapa do filme. Os fatos são mostrados de maneira muito rasa. Nem mesmo a relação de Saroo com sua família australiana foi colocada de uma maneira mais enfática e reveladora. Além disso, outros personagens importantes que aparecem na trama (e na biografia) não passam de meros coadjuvantes e não agregam qualquer valor à narrativa.

O desfecho do filme, apesar de não seguir os passos do início, é bastante satisfatório. Remete à reflexão sobre os motivos que levaram o protagonista, que naquele momento tinha amor e dinheiro, a buscar o seu passado pobre. Saroo, finalmente, definira seu conceito de felicidade o qual não necessariamente deveria seguir uma regra comum.  “Lion” termina e deixa saudades!

Como apreciador e fã do cinema indiano contemporâneo, posso dizer que “Lion” é um filme indiano dirigido e produzido por estrangeiros e, por este motivo, houve ganhos e perdas. Seguem abaixo alguns pontos comparativos:

  • O cinema indiano apela bastante para o lado emocional das pessoas e, por vezes, torna seus filmes piegas, ou seja, apela para aquela comoção um tanto quanto forçada. Posso comparar “Lion” ao excelente filme “Bajrangi Bhaijaan“, já comentado aqui no blog (clique aqui para ler a crítica). Ambos mostram crianças perdidas (com histórias diferentes), porém, em “Lion“, a abordagem narrativa no tocante às emoções é bem mais sutil.  Por tratar-se de uma história real, não há a necessidade daquele apelo exacerbado à emoção pois a história por si só já emociona o suficiente. Em “Bajrangi Bhaijaan” os fatos são mostrados da maneira “indiana pura”, se é que vocês me entendem. Desse modo “Lion” acaba tendo uma capilaridade maior no meio cinéfilo pois trata as emoções na medida certa, sem pieguice.
  • Lion mostra apenas o lado ruim da Índia. Até a paleta de cores das filmagens é composta por tons pastéis para evidenciar a sujeira, a lama, as condições precárias de vida das pessoas. Em um filme indiano típico, até as mais graves mazelas são camufladas com cenas alegres e coloridas que despertam um sentimento de esperança por dias melhores, até porque o povo indiano é alegre por natureza e isso passa para suas obras cinematográficas. “Lion” é mais cru, mais seco, mais real.
  • Apesar de Dev Patel, intérprete de Saroo em sua fase adulta, em um certo momento insinuar uma dança, o filme nem de longe remete à maneira indiana de fazer cinema pois a dança e a música, que são características marcantes, principalmente de Bollywood, estariam presentes nas mais diversas cenas. Por exemplo, a cena mostrada na parte central do poster, que é a cena final do filme, provavelmente teria tido uma coreografia bastante alegre em meio ao trilho do trem, apesar do viés dramático concedido à produção. Aliás, “Lion” não consegue caminhar entre gêneros diferentes de uma forma natural. Em seu roteiro, há cenas de romance que parecem deslocadas, desnecessárias e até forçadas. “Lion” é um filme eminentemente dramático e não faz questão de sair disso. Os indianos, ao contrário, inserem vários gêneros em seus roteiros com uma maestria impressionante. São os ditos filmes “masala“, ou seja, filmes multi-gênero.  “Lion” seria um “masala” magnífico.

No final das contas, o olhar de um diretor inglês sobre uma história indiana acabou sendo uma experiência bem interessante. Ocidentalizou uma história emocionante, concedendo a ela quantidades suficientes de sentimentos nas horas e lugares corretos. Apesar de algumas falhas na condução da narrativa, “Lion“, é, sem dúvida, um dos melhores filmes de 2016 e fez por merecer sua indicação ao Oscar de melhor filme.

Saroo foi realmente um leão!

Obs.: Os gritos por Guddu insistem em não sair da cabeça.

O trailer, legendado em português, segue abaixo.

Adriano Zumba


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