O novíssimo testamento (2015)

Título original: Le tout nouveau testament

Título em inglês: The brand new testament

Países: Bélgica, França, Luxemburgo

Duração: 1 h e 54 min

Gêneros: Comédia, fantasia

Elenco Principal: Pili Groyne, Benoit Poelvoorde, Catherine Deneuve

Diretor: Jaco Van Dormael

IMDB: https://www.imdb.com/title/tt3792960/


Citação: “Não tenha ideias loucas como o seu irmão.”


Opinião: “Corajosa e fantasiosa abordagem sobre religião e vida.”


Antes de tudo, destaco que não vou emitir qualquer opinião particular em relação a temáticas de cunho religioso, e sim me ater apenas à discussão sobre os fatos e argumentos exibidos no filme em tela.

É indubitável que a criatividade, ou, quem sabe, insanidade, do diretor belga Jaco Van Dormael chegou a seu ápice em “Sr. Ninguém” (2009), mas já deixou bons rastros cintilantes em outras obras como “O oitavo dia” (1996) e seu realismo mágico. Nota-se o desenvolvimento de um estilo peculiar pelo cineasta, que mais uma vez gera um fruto bastante suculento chamado “O novíssimo testamento“. Trata-se de um filme estranho à primeira vista, pela distorção exagerada da realidade e o caráter bastante fantasioso de sua narrativa, no entanto, após a sua exibição, sobram motivos para uma boa reflexão acerca das temáticas abordadas pelo roteiro. Além disso, mexe com um assunto sempre polêmico, a religião, e, em boa parte de sua duração, entra na seara do gnosticismo, que é uma corrente filosófica até desconhecida do grande público, mas abordada através de uma linguagem simples, deveras irônica, bastante inteligível e sempre com muito bom humor – negro, diga-se de passagem. É bom salientar que uma nuvem carregada de blasfêmia paira o tempo todo sobre a história, entretanto, segundo li, a Igreja não teceu críticas quanto ao filme por julgar que as mensagens que ele transmite são pertinentes. Cada um que tire suas conclusões.

Eis a sinopse: “Deus é um senhor malvado que vive em Bruxelas. Revoltada com o pai, a filha de 10 anos de idade, Ea, decide revelar para todos os seres humanos a data e a hora de suas mortes, o que gera consequências inimagináveis. Após o seu ato, Ea, com a ajuda de seu irmão, J.C. – Jesus Cristo -, escapa da casa onde se encontrava reclusa desde o nascimento, e parte em busca de 6 apóstolos escolhidos aleatoriamente nos arquivos de seu pai para que eles, através de seus relatos, escrevam seus evangelhos para compor o chamado Novíssimo Testamento, que intitula o filme.”

A própria Bíblia, em alguns de seus livros, sugere que Deus não é o poço de bondade que todos acreditamos e aprendemos. Pelo contrário, ele é cruel e desumano. Seguem abaixo três passagens, dentre muitas que podemos destacar na Sagrada Escritura, para exemplificar essas características atribuídas a ele:

  • ÊXODO 21:20-21 Com a aprovação divina, um escravo pode ser surrado até a morte sem punição para o seu dono, desde que o escravo não morra imediatamente.
  • EZEQUIEL 9:4-6 Ordem do Senhor: “sem compaixão… matai velhos, mancebos, e virgens, e meninos, e mulheres, até exterminá-los….”
  • NÚMEROS 25:4 Disse Deus a Moisés: Toma todos os cabeças do povo e enforca-os ao Senhor diante do Sol, e o ardor da ira do Senhor se retirará de Israel.

É esse Deus que é o protagonista do filme em tela: o chamado Deus de Moisés ou Deus de Abraão ou Deus do Velho Testamento. Deus é retratado como um arrogante homem de meia-idade que produz regras para impor sofrimento e/ou dificuldades em seus mais variados graus para a humanidade, em nome simplesmente de sua satisfação e divertimento pessoais. As regras menos danosas que ele cria em seu obsoleto computador são espetaculares, como por exemplo a regra do pão sempre cair com o lado da geleia para baixo. Nesse contexto, a narrativa é desenvolvida com a ajuda de personagens pitorescos que perpetuam o tom anárquico imposto pelo Criador. O diretor, em sua viagem alegórica, coloca as mulheres sempre em primeiro plano, ao contrário da Bíblia. Alguns dizem que o filme é feminista. Julguem essa afirmação, mas o certo é que elas, representadas por Ea, a puxadora do fio condutor da história, e a mulher de Deus, simplesmente chamada de Deusa, uma pessoa subjugada diuturnamente pelo marido, mas que tem papel decisivo na trama, assumem uma posição de destaque nessa tentativa de reescrever as palavras sagradas, com uma consequente modificação da ordem social do mundo.

Sugere-se através do desenvolvimento do principal argumento do filme, que a crença em um ser superior advém do medo (da morte), para corroborar com o tipo de Deus (malvado) que é materializado no enredo. A revelação da data da morte, entre outras consequências (engraçadas), concede algo como um poder de gerência absoluto sobre a existência de cada um, extinguindo temores em relação ao divino e incentivando planejamentos (surreais) para o restante dos dias no plano terreno, isto é, Deus perde a razão de existir, Deus se torna desnecessário. Não é aleatória ou sem sentido a transformação de Deus em um homem comum, que passa a sofrer com as regras que ele mesmo criou. Em minha opinião resumida, que pode ser lida logo no início desse texto, considerei corajosa a abordagem – absurdamente corajosa – e dotada de uma ousadia extrema, por desconstruir conceitos religiosos tão arraigados na alma das pessoas. Posso supor que tudo isso mostrado numa conjuntura dramática com certeza renderia um mar de críticas, inclusive da Igreja, no entanto o viés jocoso e irreverente utilizado retira o peso da narrativa e proporciona uma tradução mais agradável e reflexiva aos espectadores, apesar de não conceder imunidade à narrativa e a seu diretor.

Nessa exaltação ao gnosticismo proporcionada por “O novíssimo testamento“, só posso encerrar esse texto com a palavra que define muito bem sua narrativa: conhecimento, pois modifica a governabilidade da vida ao ponto de transformar ideias pré-estabelecidas em lembranças e coloca Deus no patamar da fantasia.

Ufa! Graças a Deus que o filme é hilário!

O trailer segue abaixo.

Adriano Zumba


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