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Amor em “Moonrise Kingdom”

Atualizado: 12 de set. de 2019

Moonrise Kingdom (2012) é o sétimo filme do excêntrico Wes Anderson conhecido por filmes como Os Excêntricos Tenenbaums (The Royal Tenenbaums, 2001), Viagem a Darjeeling (The Darjeeling Limited, 2007) e O Grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest Hotel, 2014). O filme é co-escrito por Roman Coppola, colaborador frequente de Wes Anderson. Caso o estilo original de Wes Anderson ainda não tenha te conquistado, eis o enredo. Dois jovens solitários, Sam (Jared Gilman) e Suzy (Kara Hayward), se apaixonam e decidem fugir juntos da ilha onde se encontram. Uma equipe de busca é organizada pelo capitão de polícia Sharp (Bruce Willis). Ela inclui os pais de Suzy, Laura (Frances McDormand) e Walt (Bill Murray), e o grupo de escoteiros do qual Sam faz parte, liderados pelo Mestre Escoteiro Ward (Edward Norton).


Moonrise Kingdom e Sartre

A narrativa se concentra primordialmente na relação amorosa dos dois personagens principais, os pré-adolescentes Sam e Suzy. Ambos nos são apresentados como pessoas inteligentes e sensíveis, mas conturbadas. Sam é órfão e tem dificuldade em fazer amigos, enquanto Suzy não se sente aceita em casa e tem acessos de raiva. Em parte graças à uma identificação de caráter, eles parecem encontrar uma espécie de porto-seguro um no outro e desenvolvem rapidamente uma relação de confiança e honestidade. Conforme a narrativa avança, a relação construída por Sam e Suzy nos parece especial, o que é expresso pela estética de Wes Anderson, que mais uma vez coloca seu toque peculiar em cada imagem, movimento e montagem. Com sua paleta de cores colorida, transições fluidas e uma montagem alegre (recheada de mapas animados e split screens), o mundo de Moonrise Kingdom nos parece leve e descontraído, saindo de um livro para crianças. Além disso, os cenários e mesmo alguns traços dos personagens são caricaturais, o que confere uma certa infantilidade à história. Neste caso o termo “caricatura”, longe de ter uma conotação negativa, manifesta algo de extremamente positivo. Compreendemos os personagens e os problemas com grande facilidade, justamente graças a simplicidade da forma como eles são mostrados (e como espero mostrar, “simplicidade” é o termo-chave neste filme).



Mas afinal, que forma de amor Wes Anderson parece manifestar através da relação de Sam e Suzy? Acredito que o filósofo francês Jean-Paul Sartre (1905 – 1980) – que aliás é também uma caricatura do intelectual dos anos 60 (vide abaixo) – possa nos ajudar a responder essa questão. Você já sabe: hora de fazer uma pipoquinha e dar uma espiada na filosofia do Sartre. No que toca à questão do amor, a pergunta para Sartre é de saber em que medida é possível amar sem perder a liberdade, tanto a de si mesmo quanto a do ser amado. A grande crítica de Sartre é que nos acostumamos a pensar que amar significa “atar” o outro aos nossos sentimentos, o que leva a uma total perda da liberdade. Queremos nos fundir com o outro, de forma que o outro precise de nós acima de tudo. Vemos os personagens nos filmes que dizem “não posso viver sem você” e pensamos “aah, isso é amor!”. O problema é que visto desta forma, o amor parece como algo que sofremos e não que escolhemos. Procuramos o outro por necessidade, por um desejo inexplicável e incontrolável, o que leva muitos a interpretar frases como “fomos destinados um ao outro” como expressão de amor. Mas o amor, segundo esta perspectiva, seria então manifestação de uma simples dependência. Se este for o caso, se isto for amor, não existe então, de fato, conciliação possível entre amor e liberdade. O amor é apenas uma determinação aleatória.



Amor, liberdade e determinismo

Para Sartre o amor não pode se resumir à essa pura necessidade, mas ele também não é tão simples quanto gostaríamos. Em um texto da sua grande obra, O Ser e o Nada, ele explica a situação paradoxal na qual o amor nos coloca, entre a liberdade e o que ele chama de “determinismo”. Por um lado, para Sartre o amor passional, aquele que tanto vemos em comédias românticas, é mais uma desordem hormonal incontrolável do que uma expressão do que deveríamos chamar de amor. Não podemos definir o amor como um simples desejo passional da qual somos escravos porque uma parte do amor depende de uma escolha. Queremos que o outro nos ame livremente e não por mera necessidade hormonal, da mesma forma que nós mesmos escolhemos nos engajar em uma relação amorosa porque consentimos construir algo com aquela pessoa. Como Sartre afirma: “Aquele que quer ser amado não deseja a servidão do amado. Não quer converter-se em objeto de uma paixão transbordante e mecânica. Não quer possuir um automatismo, e, se pretendemos humilhá-lo, basta descrever-lhe a paixão do amado como sendo o resultado de um determinismo psicológico: o amante sentir-se-á desvalorizado em seu amor e em seu ser” (O Ser e o Nada, “A primeira atitude para com o outro: o amor, a linguagem, o masoquismo”). Se o amor fosse pura necessidade, não se trataria de amor então, mas de uma obrigação qualquer, como comer ou beber. Claro que mesmo quando o amor é uma escolha deliberada, uma parte da liberdade é de qualquer forma perdida, porque escolher estar com o outro requer sacrificar certas coisas para acomodar a existência do outro em nossas vidas. Por exemplo, sacrificamos parte do tempo no buteco com amigos, aceitamos ver séries que não gostamos na Netflix, fazemos concessões sobre a disposição dos móveis na casa, etc. Mas mesmo nestes casos, essas renúncias são feitas conscientemente e perdemos parte de nossa liberdade por escolha. Dito de forma poética, “a liberdade do outro aceita perder-se”. Ninguém nos obriga a fazer esses sacrifícios (que as vezes são pequenos, como a escolha do filme para assistir, mas as vezes são grandes, como a escolha de ter filhos ou não) e podemos a todo momento simplesmente terminar a relação. Alias é por esta razão que tantos relacionamentos não dão certo, o fardo da responsabilidade dessas escolhas se tornam as vezes demasiadamente pesado. Contudo, por outro lado, o amor também não pode ser fruto de uma simples decisão voluntária, porque ele depende de vários aspectos que fogem do nosso controle, que escapam nossa liberdade e nossa racionalidade. Não queremos ser amados por simples escolha, como se se tratasse de um simples contrato, mas é preciso que aja uma verdadeira vontade: “Mas, por outro lado, o amante não poderia satisfazer-se com esta forma eminente de liberdade que é o compromisso livre e voluntário. Quem iria contentar-se com um amor que se desse como pura fidelidade juramentada? Quem iria satisfazer-se se lhe dissessem: "Eu te amo porque me comprometi livremente a te amar e não quero me desdizer; eu te amo por fidelidade a mim mesmo"?” (O Ser e o Nada, “A primeira atitude para com o outro: o amor, a linguagem, o masoquismo”). Assim, para o pessimista Sartre o amor se torna em sua própria essência uma impossibilidade, pois ele implica tanto o determinismo da paixão, que não podemos controlar, quanto a liberdade da razão, que podemos escolher. Como as duas partes dessa equação se encontram constantemente em conflito, o amor se torna uma luta. Um exemplo dessa luta acontece quando, em nome da paixão, escolhemos nos tornar o que o acreditamos que o outro deseja, o que leva à perda da nossa identidade e nos transforma em simples “objeto” daquele que amamos (perde-se toda subjetividade). O que é paradoxal é que queremos tanto ser amados que mudamos para satisfazer o outro, fazendo com que o outro ame alguém que na verdade não é quem somos.


Me parece que é justamente este conflito entre determinismo e liberdade do qual Sartre nos fala que se encontra em jogo em Moonrise Kingdom. Se por um lado há um desejo instantâneo que se instala entre Suzy e Sam desde o primeiro momento em que se vêem, por outro lado, eles escolhem efetivamente estar juntos, apesar das dificuldades desta escolha. Isso demanda algo mais do que o simples desejo, mas organização, esforço, sacrifício. Se para Sartre relações amorosas estão fadadas ao fracasso porque o amor é um paradoxo, Sam e Suzy nos provam que é possível sim estabelecer um equilíbrio entre o determinismo do sentimento que sentem um pelo outro e a liberdade da forma como eles se engajam nessa relação. O desejo pelo outro não impede, por exemplo, que eles se permitam ser eles mesmos, compartilhando suas angústias e personalidades próprias. Sam e Suzy não abdicam de serem quem são para estarem juntos. Por exemplo, Suzy não tem vergonha em revelar seu lado agressivo a Sam e Sam compartilha seu passado complicado no lar adotivo com Suzy. Há algo de libertador na relação estabelecida entre eles, porque pela primeira vez em suas respectivas vidas eles parecem poder agir excentricamente, tal como são, e serem aceitos assim. A cena na qual eles dançam semi-pelados na praia retrata justamente essa entrega livre da parte de ambos. A relação de Sam e Suzy não é, portanto, uma relação de necessidade, até porque ambos poderiam ter fugido sem o auxilio do outro (Sam através de suas habilidades e Suzy através da sua esperteza). Eles fogem juntos não por precisarem um do outro, mas por adquirirem coragem para partir graças ao outro. Trata-se mais de uma relação de cumplicidade, onde a vida de cada um é enriquecida pela presença do outro. O amor que é estabelecido entre Sam e Suzy incarna, desta forma, um amor que poderíamos chamar de “sartriano”, já que razão e paixão se equilibram em uma espécie de paradoxo: um conflito harmonioso. Enquanto para Sartre o amor autêntico é uma impossibilidade, em Moonrise Kingdom ele se manifesta em toda sua simplicidade.



O amor racional de Laura e Walt

Oposto à esta relação nascente e inocente, Wes Anderson nos apresenta o casamento dos pais de Suzy, que vivem uma fase instável. Se os sentimentos de Sam e Suzy parecem simples e genuínos, a relação de Laura e Walt nos parece complexa e desgastada, algo que nos permite compreender o "affair" entre Laura e o capitão Sharp. Walt e Laura dormem em camas separadas e não têm muito diálogo, diferente de Sam e Suzy que se tocam um ao outro sem grande timidez e falam abertamente dos seus sentimentos. Se a relação de Sam e Suzy nos oferece um amor sartriano, encontramos na relação entre Laura e Walt uma espécie de amor “ponderado”, já que eles agem como se o desejo não fosse um componente da relação. A escolha é, no caso deles, limitada ao âmbito racional: pelo bem da família que criaram e da história que construíram, é mais lógico persistir na relação. Eles agem de acordo com a ideia de um “dever” que força eles a ficarem juntos, por mais que ambos estejam infelizes e não parecem se sentir atraídos um pelo outro. É interessante notar que, neste contexto, a relação de Walt e Laura nos mostra o completo oposto das relações puramente passionais que Sartre critica. De toda forma, o problema é o mesmo em ambos os casos: encontramos uma absolutização de um dos lados da equação, ou a paixão desmesurada ou a razão calculada.



Segundo esta perspectiva, a desarmonia no casamento de Walt e Laura pode ser entendida em grande medida pelo fato da relação deles ser baseada estritamente na dimensão deliberativa do amor, já que eles negligenciam completamente o âmbito passional. Da mesma forma que relações por demais passionais tendem a ignorar toda racionalidade. Oposto a estas posições extremas, para Sartre o verdadeiro amor é resultado de uma interação complexa entre estas duas dimensões. Ele depende de uma liberdade de escolha, mas essa escolha depende, por sua vez, de um sentimento que “recai” sobre nós. Em outras palavras, amar alguém é algo que escolhemos, pois temos sempre a possibilidade de agir de acordo com o que sentimos ou não. Mas mesmo essa liberdade é determinada em primeiro lugar por um sentimento que nos é imposto por nossos desejos, algo que normalmente nem conseguimos explicar ou racionalizar. Por isso para Sartre o amor se torna uma espécie de jogo entre uma liberdade que é determinada e uma determinação que é livre. Jogo que, dado sua complexidade, não parece jamais poder ser vencido. Porque quando amamos desejamos “ter” o outro, mas queremos que esse desejo seja aceito livremente pelo outro também. A liberdade de escolha do outro implica, contudo, que a qualquer momento ele pode escolher não mais nos amar. Eis porque escolhemos acreditar que o amor é uma pura necessidade, tentamos nos convencer de que “fomos feitos um para o outro”, garantindo que não é apenas a frágil contingência da escolha que nos mantêm unidos. Enquanto batemos nossas cabeças tentando resolver o paradoxo do amor, Suzy e Sam vencem o jogo sem grande dificuldade, assumindo simplesmente a escolha de estarem juntos.



Em Moonrise Kingdom Wes Anderson nos apresenta o retrato de um amor jovem e a estética colorida e caricatural aparece então como uma perfeita forma de expressão do tom de ingenuidade e simplicidade que caracterizam um primeiro amor. A apresentação de um casal de pré-adolescentes através desse visual divertido e singelo manifesta uma concepção do amor como algo simples, na qual ele não precisa se igualar nem à uma pura necessidade, nem à uma mera escolha. Isso porque os jovens, com o olhar ainda inocente, não sentem necessidade de problematizar a relação. Ao contrário, eles simplesmente vivem o que quer que advêm a eles, lidando com o complexo conflito entre paixão e razão sem nem se darem conta. Essa maneira jovial de amar talvez nos pareça ingênua, quase boba. E portanto ela consegue administrar perfeitamente um paradoxo que faz parte de toda relação amorosa, mas que a maior parte de nós não consegue manipular. No caso de Suzy e Sam, como tudo é visto de forma mais simples e natural, o ajuste entre as duas dimensões acontece espontaneamente. Nós, adultos, ao contrário, com nossas frustrações pessoais e bagagens emocionais, tendemos a adotar posicionamentos extremos. Há aqueles que simplesmente abdicam desse tipo de contato humano, pois as decepções que se encadeiam os tornam céticos. A palavra se torna apenas um nome para uma experiencia que é complexa demais para ser vivida. Outros radicalizam seu sentido, igualando-no à uma paixão arrebatadora que nunca viverão (quem nunca pensou “isso só acontece nos filmes”) ou reduzindo-no à uma decisão racional que parece mais um encarceramento. A relação de Walt e Laura representa justamente essa segunda tendência. Talvez o problema seja que nós adultos sentimos necessidade de reforçar constantemente o aspecto paradoxal do amor, falhando em contrabalancear a liberdade de nossa escolha e o determinismo de nossos sentimentos. A relação de Sam e Suzy funciona tao bem justamente pela simplicidade com a qual eles lidam com os dois lados dessa equação. Não há uma necessidade nem de racionalizar o desejo, nem de diminuir a importância da escolha. A inocência do olhar deles nos mostra que quando o sentimento é necessário (inelutável), a responsabilidade da escolha é assumida facilmente. Por isso a relação de Sam e Suzy se torna um alento, nos fazendo acreditar que é possível viver o paradoxo do amor sartriano. Talvez a lição que Sam e Suzy nos deixam é que o amor deveria ser o lugar em que poderíamos nos permitir de ainda sermos crianças ingênuas, amando livremente, apaixonadamente mas, acima de tudo, simplesmente. Afinal, se o amor é um jogo, nada melhor do que um pouco de "infantilidade" para nos tornarmos bons jogadores.

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