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Revolta em “Taxi Driver”

Atualizado: 12 de set. de 2019

Taxi Driver (1976) é o quinto filme do fantástico Martin Scorsese, que você certamente conhece graças a Os Bons Companheiros (Goodfellas, 1990), O Aviador (The Aviator, 2004) ou ainda O Lobo de Wall Street (The Wolf of Wall Street, 2013). O roteiro é escrito por Paul Schrader, que posteriormente colaborou com Scorsese em três outros filmes. Apesar de ser tido como um dos melhores filmes da história do cinema, talvez você ainda não tenha criado coragem para assistir essa ousada obra prima. Eis o enredo. Travis Bickle (Robert De Niro) é um veterano de guerra que torna-se taxista em Nova York. Solitário e instável, ele dirige pela ruas da cidade à noite, presenciando cenas de violência e sexo. Esse cenário instiga seu lado violento, o que o leva a planejar o assassinato de um candidato à presidência e ajudar uma prostituta menor de idade a fugir.


Taxi Driver e Camus

Desde a primeira cena percebemos que Travis é uma pessoa insatisfeita. O problema não é apenas a grande solidão que o aflige, mas uma busca constante por um sentido para sua vida. Ele explica logo no inicio “Os dias duram, duram e não acabam. O que eu precisava em minha vida era ter um lugar para onde ir. Não acredito que se deva dedicar a vida à morbidez do egocentrismo. Acredito que alguém deve tornar-se uma pessoa como as outras”. O seu interesse por Betsy pode ser interpretado, de certa forma, justamente como uma procura por este sentido. Ele mesmo afirma não ter qualquer interesse em política ou em música e não parece ter nenhum hobby (exceto assistir filmes pornográficos no cinema), de forma que sua relação com Betsy parece mais uma procura em preencher o vazio existencial de sua vida. Até sua atração por ela é explicada pelo fato de projetar nela a mesma solidão que vê em si mesmo. Quando a relação desmorona, eis que ele se encontra mais uma vez só consigo mesmo: “A solidão tem me seguido em toda parte, por toda a minha vida. Não consigo fugir. Sou o solitário de Deus”. Tudo o que resta à sua volta é um mundo de violência e sexo. Enquanto sua solidão é expressa pelos vários planos de Travis em seu táxi, à espera da mudança dos semáforos vermelhos que enchem a tela, a hostilidade do mundo à sua volta se manifesta no jazz ácido da trilha sonora e nos cenários "frios". Seu repúdio por este mundo parece aumentar gradualmente e ele é ate verbalmente expresso no diálogo entre Travis e seu colega taxista, “The Wizard”, no qual ele afirma sua ânsia por “realmente fazer alguma coisa”. Sem conseguir atribuir qualquer sentido à sua vida e em busca de mudanças concretas em um mundo que funciona de acordo com valores inaceitáveis por ele, Travis decide agir. Ele afirma “Escutem, sacanas nojentos. Aqui esta um homem que já não aguentava mais. Que fez frente à sujeira, aos fracassados, a todo este lixo. Aqui esta alguém que se opôs!”.



Como poderíamos explicar esse tipo de comportamento assumido por Travis? Eis o que o filósofo franco-algeriano Albert Camus (1913 - 1960) define como “revolta”. Pé na estrada porque é hora de voltar no túnel do tempo. O que é a revolta? Camus começa a abordar a questão em sua bela obra O Mito de Sísifo no qual o seu famoso conceito de “absurdo” também aparece (infelizmente a ideia de absurdo não vem ao caso aqui, mas não se desespere, tratarei de filmes que abordam essa questão em outro momento). Mas é em O Homem Revoltado que ele aprofunda a questão. Camus expõe o que define uma atitude rebelde e as características que levam o homem a se revoltar. O primeiro fato é que a revolta nasce de uma certa “perda de paciência”. O rebelde reconhece certos limites que definem segundo ele o que é o humano e decide que eles não podem ser infringidos: “O que é um homem revoltado? Um homem que diz não. Mas, se ele recusa, não renuncia: é também um homem que diz sim, desde o seu primeiro movimento. Um escravo, que recebeu ordens durante toda a sua vida, julga subitamente inaceitável um novo comando. Qual é o significado deste “não”? Em suma, este não afirma a existência de uma fronteira. Desta forma, o movimento de revolta se apóia ao mesmo tempo na recusa categórica de uma intromissão julgada intolerável e na certeza confusa de um direito efetivo ou, mais exatamente, na impressão do revoltado de que ele “tem o direito de...”” (O Homem Revoltado). O exemplo citado é o do escravo que um dia, ao chegar ao limite do seu sofrimento, se opõe ao seu mestre e afirma “até aí, sim; a partir daí, não”. A revolta começa portanto com o estabelecimento do que consideramos essencialmente humano e a decisão de que essa essência não deve ser violada em condição alguma. No caso do escravo, por exemplo, ele reconhece que a liberdade é um valor essencial a todo homem, ele incluso. Por isso seu mestre não tem mais o direito de privá-lo desse direito. A revolta pode parecer um ato individualista, egoísta mesmo, mas na verdade o rebelde age sempre de acordo com a crença de que existem direitos universais, que devem ser respeitados por todos. Ele age de acordo com o que ele acredita ser um bem superior e geral, maior que seu próprio destino e sua própria vida. Trata-se, assim, de uma oposição à ações ou valores que denigrem a dignidade humana. Essa oposição não se manifesta necessariamente como um ato político. Pelo contrário, a revolta começa justamente como um sentimento pessoal de ultraje e protesto contra aquilo que deteriora a existência humana. Trata-se de uma recusa em se deixar abater por uma condição degradante, mas esta recusa, seja ela um protesto solitário ou um manifesto polático, é motivada por um sentimento de injustiça geral. O rebelde acredita portanto no “certo”, no “bom”, no “justo” e ele se rebela justamente porque o mundo lá fora não respeita estas noções, por todo lado só se vê injustiça e mal. Neste sentido, diferente do revolucionário, o rebelde não tem necessariamente um plano ou agenda, ele simplesmente age, não se deixando abater pela direção trágica na qual a realidade tende a se direcionar constantemente.



Travis Bickle, um homem revoltado

Travis parece nos mostras traços do que poderíamos chamar de uma “atitude rebelde camusiana”. Como o homem revoltado de Camus, ele também “perda a paciência” e diz “não”. No caso de Travis a intrusão julgada intolerável é a propagação do que ele considera uma sujeira que degrada toda dignidade humana: a perversão, a violência, a prostituição. O comportamento de Travis é baseado num sistema segundo o qual há um certo e um errado e ele decide agir porque não consegue mais tolerar um mundo no qual o que ele considera “mal” se propaga por todos os lados e é mesmo representado literalmente no esperma e sangue que mancham o banco de trás de seu táxi. Do seu ponto de vista, Travis age em prol daquilo que ele considera ser um bem maior. Suas ações não são egoístas, como poderíamos pensar, ao contrário elas visam o que ele acredita ser o melhor para todos (por mais que o “todos” de Travis pareça excluir todo tipo de minoria, como veremos). A revolta de Travis culmina em uma das cenas finais, no qual ele mata o gigolô de Iris. O ato de Travis é puramente altruísta neste momento, pois ele procura simplesmente ajudar uma garota a se libertar de uma situação degradante, colocando si mesmo em risco. Como Camus aponta, nem todo ato rebelde é político e este é justamente o caso de Travis com relação à Iris. Sua ação é resultado de uma recusa em aceitar uma realidade na qual uma garota de 12 anos é explorada sexualmente. Sobretudo no diálogo com The Wizard torna-se evidente que Travis se recusa a se resignar diante de sua realidade. Ele sabe que seu destino é trágico, razão pela qual ele deixa uma nota consciente de sua futura morte. Ele também sabe que a sujeira à qual ele se refere não será “lavada das ruas” por autoridade alguma, razão pela qual ele faz justiça “com as próprias mãos” ao matar um assaltante sem grande remorso e aconselha Iris à fugir, ao invés de contatar a polícia. Ao final do filme, fica no entanto a pergunta: até que ponto a revolta é uma atitude positiva? Ao invés de ajudar Travis a viver melhor e mudar a realidade à sua volta, a revolta o leva a um caminho destrutivo de pura violência, violência que é sempre explicada como um “meio” que justifica um fim positivo, um bem maior: a “limpeza” das ruas de Nova York.



Como Camus explica, apesar de ser um sentimento essencialmente bom que nos faz levantar e lutar, a revolta nem sempre leva a mudanças positivas. Isso acontece porque existem revoltas que nascem da consciência de que a vida não tem sentido algum, não há Deus ou autoridade, não há uma verdade universal que nos diga quem somos ou o que é justo. Esse é o tipo de revolta que Camus chama de “niilística”, porque ela nasce de uma descrença. Diante da falta de sentido da vida, o rebelde niilístico cria uma verdade para si mesmo e justifica toda ação com essa verdade: “Derrubado o trono de Deus, o rebelde reconhecerá essa justiça, essa ordem, essa unidade que em vão buscava no âmbito de sua condição, cabendo agora criá-las com as próprias mãos e, com isso, justificar a perda da autoridade divina. Começa então o esforço desesperado para fundar, ainda que ao preço do crime, se for o caso, o império dos homens” (O Homem Revoltado). O rebelde niilista age então de acordo com a máxima “os fins justificam os meios” e ele não tem pudor algum na utilização de violência se isto for necessário para que a sua noção de justiça prevaleça. Por isso Camus considera destrutiva tal tipo de revolta. É alias justamente seguindo esse tipo de raciocínio que a maior parte dos regimes totalitários age, cometendo crimes em prol de um bem maior. Fun fact: não é à toa que Camus, apesar de socialista, se posicionou contra o regime totalitário comunista da antiga URSS, posição que aliás lhe custou a amizade com Sartre, que defendia o regime stalinista. Compreendemos assim que Travis é de fato um homem revoltado, mas sua revolta é niilista porque sua noção do que é bom, justo ou correto é baseada estritamente na verdade que ele elabora para si de acordo com sua visão preconceituosa do mundo. Aliás, como vimos acima, o próprio sentimento de revolta nasce em Travis por causa da apatia de uma vida sem sentido, comportamento que já é profundamente niilista. Mas afinal, Travis é então um herói ou apenas um psicopata? Bem que Betsy nos alertou: “Ele é um profeta e um traficante. Meio verdade, meio ficção. Uma contradição”.


Travis Bickle, o rebelde contraditório

Travis não nos parece realmente uma pessoa má, sobretudo na sua relação com Iris, com quem ele é carinhoso e respeitoso e ele decide ajudá-la apesar de todos os riscos. Travis é no entanto bastante ingênuo. Tal traço é claramente percebido na emblemática cena na qual, enquanto prepara o atentado à Palantine, ele conversa consigo no espelho, treinando falas e poses, como se fosse um grande herói. A cena da conversa no telefone público com Betsy também é um testemunho da sua ingenuidade. A sua esperança em recuperá-la, depois de levá-la à um filme pornográfico – o que mostra aliás sua total falta de sincronia com a realidade na qual vive – torna-se humilhante, até mesmo para a câmera de Scorsese que faz um curto travelling lateral, se esquivando de Travis, quase que envergonhada por ele. Esses traços da personalidade de Travis nos fazem desenvolver uma certa empatia pelo personagem, entendemos melhor suas motivações e sua insatisfação com o mundo que o rodeia. Mas sua insatisfação não é expressa como uma simples constatação do que está errado. Travis trata os outros à sua volta com repúdio e arrogância, o que percebemos no racismo, misoginia e homofobia manifestos em seus diálogos internos: “Os animais saem todos à noite. Putas, sodomitas, bichas, tarados, maricas, drogados. Perverso, corrupto. Um dia uma chuva de verdade ira lavar essas porcarias da ruas”. A violência e prostituição que ele testemunha não vistos por ele como resultado de uma sociedade que está doente. O preconceito que ele sente por negros e drogados não é percebido por ele como consequência do mesmo sistema “sujo” contra o qual ele luta. Ao contrário, ele julga tais indivíduos como inferiores, “the garbage and the trash”, enquanto refere sempre a si como alguém moralmente superior, com a “consciência bem limpa”, como ele afirma em sua primeira cena. Ele se permite levar qualquer pessoa em seu táxi justamente porque ele se vê como superior à todos eles. Travis se torna assim uma verdadeira contradição. Sua intenção de melhorar a realidade à sua volta é globalmente boa. Sua alma é de herói. Mas os valores que motivam suas intenções são arbitrários. A sua revolta se limita a uma parte dos seres humanos que ele acredita serem dignos de salvação e os “meios” utilizados por ele são violentos e mesmo hipócritas. Suas ações tendem a psicopatia.



É justamente contra o tipo de revolta niilista expresso por Travis que Camus escreve. Para o filósofo o verdadeiro rebelde reconhece valores que se aplicam a toda a sociedade e tenta defendê-los em prol da solidariedade, da liberdade individual e de uma harmonia geral: “Se os homens não conseguem referir-se a um valor comum, reconhecido por todos em cada um deles, então o homem se torna incompreensível para o próprio homem” (O Homem Revoltado). Esse reconhecimento acontece no momento em que o rebelde se dá conta de que “estamos todos no mesmo barco”, vivemos todos sem saber qual é o sentido de nossa existência e estamos todos tragicamente destinados a viver com essa dúvida. A revolta de cada um de nós com relação à tragédia da existência é o que nos unifica: “Eu me revolto, logo existimos”, proclama Camus. A revolta não fornece uma resposta ao que é o sentido da vida, mas ela nos ajuda a instaurar direitos que garantem a dignidade de todos, constituindo assim uma existência mais harmoniosa. Por isso a verdadeira revolta é incompatível com a violência, porque defender a liberdade de todos é também defender o fato de que não temos direito de tirar a liberdade e a vida do outro: “O revoltado exige sem dúvida uma certa liberdade para si mesmo; mas em nenhum caso, se for conseqüente, reivindicará o direito de destruir a existência e a liberdade do outro. Ele não humilha ninguém. A liberdade que reclama, ele a reivindica para todos; a que recusa, ele a proíbe para todos. Não se trata somente de escravo contra senhor, mas também de homem contra o mundo do senhor e do escravo” (O Homem Revoltado). No fundo, o rebelde não se revolta contra um outro humano, mas contra uma situação que é injusta e inumana. A revolta do escravo não é com o mestre, mas contra a relação “mestre/escravo” perpetuada pela sociedade na qual ele vive.



Taxi Driver é uma obra prima porque Scorsese consegue fazer o público sentir empatia por um herói psicopático, por mais que racionalmente não queiramos consentir com essa simpatia. Travis é o típico “cidadão de bem” ingênuo que todos conhecemos. Ele se recusa a aceitar a realidade degradante que o rodeia e age para defender aquilo que acredita ser digno. Mas por mais que ele vise um “bem geral”, ele limita o termo “geral” apenas aos indivíduos que preenchem os requisitos do que ele define como alguém “bom”. Quando esse “cidadão de bem” utiliza meios psicopáticos em defesa da sua verdade, ele se torna justamente aquilo que ele rejeita. Travis se revolta contra um mundo sujo, mas paradoxalmente para limpar esse mundo ele o suja ainda mais de sangue, sem perceber que como os drogados, prostitutas, homossexuais, negros que ele tanto julga, ele também se torna vítima de um sistema que impede seus indivíduos de viver em condições mais humanas e que os instiga a agir com violência. Assim, por um lado nós nos identificamos com Travis porque, como Camus nos explica, o sentimento de revolta que o motiva é algo humano e fundamentalmente bom. Todos entendemos a frustração de viver em um mundo injusto. Mas por outro lado as ações que resultam da revolta de Travis são más porque elas não levam em conta a existência humana como um todo. Eliminar todo homem que age indignamente não torna a realidade “menos suja”. Não apenas porque tal ação engendra ainda mais “sujeira”. Mas sobretudo porque este homem morto também é determinado por esta mesma “realidade suja” que tentamos limpar, ele é certamente vítima, como todos nós, de uma realidade que o priva também de certos direitos essenciais (o que não justifica suas ações erradas, mas explica sua origem). O erro de Travis é acreditar que sua revolta tem mais valor que a vida de qualquer outro homem, afinal fazemos todos parte da mesma existência trágica. Matar outro homem em nome de uma noção de “bem” arbitrária e parcial torna-se uma atitude hipócrita. E portanto, sejamos honestos, neste sentido temos todos um pouco de Travis em nós. A exaltação dele como herói no final do filme nos serve justamente como um alerta à nossa tendência a nos revoltar niilisticamente, como Camus critica, colocando o nosso conceito de “bem” acima dos outros e raramente agindo de acordo com o que é bom para todos. Tendemos considerar toda revolta como algo necessariamente nobre, razão pela qual parte de nós quer ver Travis como um grande herói que salvou uma garotinha de 12 anos da prostituição. Mas em que medida o resultado da sua revolta pode ser visto como positivo se o meio utilizado para tal fim desconsidera a existência de outros humanos ? Uma revolta que luta pela dignidade humana mas que negligencia a dignidade de certos humanos é contraditória. É preciso sim revoltar-se e afirmar com Travis “Aqui esta alguém que se opôs!”. Mas que essa revolta não seja manchada pelo pingos de sangue de outro homem, como os que tombam do dedo de Travis.

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