Crítica | Uma Mulher Fantástica

Com direção sensível, filme trata com bastante respeito sua protagonista transgênero

Felipe Storino
Cinema & Outras Drogas

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Quando escrevi sobre Meu Nome é Ray, comentei que o maior defeito do filme era abordar a questão das pessoas transgênero de maneira extremamente superficial, dedicando muito mais tempo à mãe de Ray do que ao próprio protagonista. A impressão era a de que o filme foi realizado apenas para aproveitar a popularidade de um assunto bastante atual e não para discutir a fundo a questão. Já o chileno Uma Mulher Fantástica faz exatamente o oposto, conseguindo passar para o espectador todas as dificuldades que uma pessoa trans precisa superar diante de uma sociedade ainda muito preconceituosa. E, graças à direção de Sebastián Lelio, o filme faz isso sem precisar chamar atenção o tempo todo para o fato de que a protagonista é uma mulher trans. Ela é mostrada sempre como uma mulher igual a qualquer outra, simples assim. Além disso, ele também acerta ao escalar a atriz transexual Daniela Vega como sua protagonista, já que ela, mais do que ninguém, conhece as dificuldades que precisou enfrentar.

É interessante notar o modo como Lelio (que também assina o roteiro) escolheu iniciar Uma Mulher Fantástica. Assim que o filme começa, acompanhamos Orlando (Francisco Reyes) terminando mais um dia e indo até uma boate na qual Marina Vidal (Daniela Vega) está cantando. A princípio, temos a sensação de que eles vão se conhecer naquela noite e ter um caso rápido, o que é reforçado por uma cena dos dois descendo um lance de escadas lado a lado, mas como se fossem dois completos estranhos. Porém não demora para que fique claro que ambos possuem um relacionamento estável, quando percebemos que estão indo comemorar o aniversário de Marina. A escolha por iniciar o filme com Orlando também é inteligente pois faz o espectador enxergar Marina pelos olhos dele, que a vê com admiração, o que faz com que nós também enxerguemos a protagonista dessa forma. Após este início no qual tudo parece um conto de fadas, Orlando acaba morrendo e Marina é arrastada de volta à realidade na qual precisa enfrentar olhares e comentários preconceituosos em todo canto.

Essa mudança de clima no filme é ressaltada também pela fotografia, que utiliza muitas cores nos primeiros quinze minutos e, após a morte de Orlando, passa a ter tons mais sóbrios e frios. Não é à toa que o primeiro ato de preconceito contra Marina aconteça no corredor nada amistoso de um hospital. Notem como, antes de dar a notícia da morte de Orlando, o médico olha para Marina com um certo ar de estranheza e logo pergunta se ela faz parte da família. Não satisfeito, ele finalmente pergunta se o nome dela é um pseudônimo e passa a tratá-la como se fosse suspeita de algo. Já o policial que conversa com a personagem no hospital não fica satisfeito até que ela mostre algum documento que comprove que o nome dela é Marina. Além disso, ele faz questão de tratá-la sempre com pronomes masculinos, numa clara demonstração de poder. Nestes momentos em que a protagonista é destratada, vale ressaltar a excelente atuação de Daniela Vega, que sempre aparece com uma expressão resignada, típica de alguém que já passou por esta situação tantas vezes que já nem consegue mais se indignar com tal fato. Aliás, quando Marina é tratada com naturalidade ela até parece não saber como agir. Percebam a expressão no rosto dela quando vai ao restaurante com Orlando logo no começo do filme.

Além da atuação de Daniela, o que mais chama atenção no filme é a forma extremamente respeitosa com que o diretor Sebastián Lelio trata sua protagonista. Em certo momento, o filho de Orlando pergunta se Marina é operada e, pela primeira vez, a vemos ficar realmente indignada. Isso é o suficiente para que o espectador entenda que esse é um assunto pessoal demais e que só diz respeito a ela. Desta forma, não é de se espantar que, em determinada cena, fiquemos apreensivos com a possibilidade de ver Marina sem roupa. Não por achar que será algo estranho, mas sim por não querer invadir a privacidade de uma personagem da qual gostamos. É uma cena que possui mais tensão do que muito filme de suspense por aí. E por falar em tensão, a cena da protagonista em uma sauna masculina é bastante claustrofóbica e nos deixa preocupados com a possibilidade de acontecer algo ruim, tudo marcado por uma fotografia repleta de cores vermelhas e roxas, que geralmente significam perigo e morte, respectivamente.

Porém, um dos momentos mais inspirados da direção de Sebastián Lelio fica por conta de uma cena que mostra Marina deitada na cama, sem roupa. Com um espelho que cobre a genitália da personagem, tudo o que o espectador consegue ver é justamente o rosto refletido da protagonista, que se enxerga como uma mulher como qualquer outra. Desta forma, o diretor deixa claro que é irrelevante se Marina fez ou não uma cirurgia de redesignação sexual e que o importante é como ela se sente. A cena acaba servindo também para mostrar que a personagem nunca teve dúvidas de quem realmente era e que sua luta durante o filme não era para ser aceita por pessoas que ela nem conhecia, mas sim pelo direito de chorar a morte do seu companheiro. Um companheiro que a amou incondicionalmente e sem preconceitos e que nunca teve dúvidas de que Marina é Uma Mulher Fantástica.

Uma Mulher Fantástica (Una Mujer Fantastica, Chile)

Ano de Lançamento: 2017

Duração: 1h 44min

Direção: Sebastián Lelio

Roteiro: Sebastián Lelio e Gonzalo Maza

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Felipe Storino
Cinema & Outras Drogas

Redator de cinema, gibis e games na Mob Ground. Quando não está jogando, está assistindo filmes, séries ou lendo gibizinhos.