Anomalisa (2015)

por Gustavo Menezes

Foi-se o tempo em que os donos de locadoras podiam catalogar todas as animações de seu acervo na seção de filmes infantis sem pensar duas vezes. De umas décadas pra cá, está cada vez mais comum se deparar com filmes animados que tratam de temas adultos, discorrem sobre a natureza humana ou simplesmente trazem material impróprio para menores. Mesmo assim, alguns pais desavisados ainda se deixam enganar pelas aparências e acabam passando pelo vexame de expor seus pimpolhos a títulos como South Park: o Filme (Trey Parker, 1999), Waking Life (Richard Linklater, 2001) ou A Lenda de Beowulf (Robert Zemeckis, 2007).

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O protagonista de Anomalisa – a mais nova dessas animações que não são para crianças – comete um erro similar: a fim de comprar um presente para o filho, ele confunde uma sex shop com uma loja de brinquedos e acaba levando uma exótica boneca de gueixa que canta e solta um líquido emulando sêmen. Por mais bizarra que possa parecer, a situação não pretende causar riso, mas sim revelar certos aspectos das relações humanas. Esta frase, aliás, descreve perfeitamente o grosso da obra de Charlie Kaufman.

Mais conhecido por seus roteiros mirabolantes com toques de surrealismo como Quero Ser John Malkovich (Spike Jonze, 1998) e Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Michel Gondry, 2004), Kaufman divide com o animador Duke Johnson a direção – cargo que não ocupava desde o excelente Sinédoque, Nova Iorque (2008) -, para contar a história de Michael Stone, um homem de meia-idade infeliz e desconectado do mundo que se apaixona por uma moça chamada Lisa. O tema imediatamente evoca Brilho Eterno, que também examina um relacionamento amoroso a partir de uma premissa inusitada.

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O roteiro apresenta Michael chegando a uma cidade em que vai fazer uma palestra sobre métodos para ajudar empresários a aumentar a produtividade de seus funcionários. Esse tema, bem como o tom de seu discurso, já diz de cara que o sujeito vê as relações interpessoais não como uma necessidade básica humana, mas simplesmente como uma forma de se alcançar objetivos. Assim, quando dá a palestra – num misto de pânico e agressividade que lembra Howard Beale, de Rede de Intrigas (Sidney Lumet, 1976) -, ele apresenta fórmulas e técnicas de conversação que soam como comandos para aplicar a computadores.

É por isso que o jeito espontâneo e desengonçado de Lisa o cativa tanto. Acostumado a encontrar sempre o mesmo pragmatismo nas outras pessoas, Michael é surpreendido pela existência de alguém que não o vê como um sócio em potencial, mas como uma relação interpessoal que se justifica em si mesma. Desta forma, até as atitudes mais banais de Lisa são, para ele, instantes de puro fascínio. 

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Por se tratar de uma animação, Kaufman e Johnson têm toda uma gama de possibilidades que não funcionariam bem se o mesmo roteiro fosse feito em live action. Por exemplo: para comunicar o isolamento de Michael, todos os personagens além dele e Lisa são dublados pelo mesmo ator, independente de serem homens, mulheres ou crianças. Justamente por isso, a voz diferente é o que primeiro chama sua atenção para a moça.

Além disso, os outros personagens parecem propositalmente mais falsos dependendo do momento na trama, ocasionalmente mostrando até pequenas fendas nos rostos que denunciam que são bonecos. De início, pode-se pensar que isso se deve a um trabalho de animação mal-feito, mas tudo fica claro quando se constatam as sutilezas nas expressões faciais e nos pequenos gestos de Michael que traduzem claramente seu estado emocional.

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Essa atenção a detalhes impressiona também na caracterização dos ambientes, que variam das cores quentes do corredor e do quarto que hospeda os protagonistas aos tons cinzentos (do escritório abarrotado de funcionários) e sombrios (da sala do gerente) que, em determinado momento, prenunciam um pesadelo.

A confecção igualmente minuciosa dos bonecos, que pensa desde os figurinos até cicatrizes ou pneuzinhos de gordura, serve para aproximar, para além do aspecto emocional, aqueles personagens de pessoas reais. Não é à toa que o cartaz diz que este é “o filme mais humano do ano”. Porque, no fundo, esta é a essência do que faz Charlie Kaufman: a partir de personagens e situações totalmente desconectadas da realidade, nos revela verdades íntimas absolutamente humanas.