1976
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  • Foto do escritorMessias Adriano

1976

Atualizado: 15 de jun. de 2023



Chama a atenção como as cores exercem um papel simbólico muito importante no filme de Manuela Martelli. Logo no início, por exemplo, a protagonista Carmen pede para um funcionário mesclar tintas dizendo que a mistura precisa de “mais azul” para ficar ao seu gosto. Ela usa um vestido azul, assim como o funcionário veste um macacão da mesma cor. Mas aí vem o incômodo inevitável: enquanto uma vítima é levada pela brutalidade da ditadura, cai no sapato dela uma gota de tinta de tom mais puxado para o vermelho, ainda rosa, e o sapato, que também era azul, agora fica com a marca desagradável.

Em termos de semiótica das cores, o vermelho é associado a perigos: na legislação de praticamente todo país, a cor dos semáforos para parar é vermelha, por exemplo. Em quase todo o mundo, as cores políticas também possuem significados parecidos: o azul está mais associado ao conservadorismo, enquanto o vermelho é ligado, desde a Revolução Francesa, a ideias de esquerda (lembrem da “a ameaça vermelha”, do “exército vermelho”). Na bandeira chilena, o vermelho está lá como signo dos heróis que lutaram e morreram pela independência do Chile.


Simbolicamente, após a tinta manchar o sapato azul de Carmen, é como se uma chama fosse acesa dentro da cabeça da mulher, associada à violência que presenciou contra uma pessoa na rua. Não à toa, antes de ela entrar no carro, escutamos sinos tocando enquanto o título do filme aparece, indicando que ali foi o início de uma possível mudança de comportamento. Quando ela vai para o litoral e é convencida pelo padre a cuidar de um “delinquente comum” que está enfermo, Carmen ainda usa camisetas e suéteres azuis. Com o passar do tempo e ao conhecer melhor o garoto e tomar atitudes para ajudá-lo, nossa querida Carmen começa a usar blusinhas vermelhas. Inicialmente cobertas por casacos marrons, mas depois abertamente vermelhas.

Curiosamente, algumas pessoas que parecem ser um obstáculo para Carmen na sua nova empreitada usam cores azuis: quando ela vai pedir remédios para uma enfermeira dizendo que são para o seu cachorro de 50 quilos, a enfermeira usa azul. Quando desconfia que sua ligação está sendo grampeada, a recepcionista, única que sabe que Carmen está ao telefone, usa casaco azul. Essa “transição” de Carmen para o vermelho é permeada não só nas vestes: o telefone que ela utiliza para solicitar medicamentos é vermelho, a porta da cabine telefônica é vermelha e, se antes a mulher pedia para que mais azul fosse posto na mistura da tinta, na cobertura de bolo que ela faz ao fim, é um produto de cor vermelha que ela despeja.


Então chega uma passagem na qual Carmen terá que fazer um passeio de barco com seu marido e seus amigos privilegiados. O preto e branco que ela usa no vestido está lá como uma tentativa de fingir neutralidade naquele momento. Mas o desconforto da protagonista é tanto que ela vomita no barco e, ao chegar em casa e depois de ouvir tanta bobagem saída da boca daquelas pessoas, ela corta o vestido preto e branco com uma tesoura, como se dissesse adeus à vida alienada que vivia.

Mas o nome do filme não é “Argentina, 1985”, e sim “1976” e é no Chile. Levando em consideração que a ditadura chilena só veio ao fim em 1990, o prognóstico não é muito bom para os novos planos de Carmen. E quando de fato tudo dá errado, em um final arrebatador, o preto e branco daquele vestido vai agora para a fantasia da neta e para o cachecol do marido, indicando que, bem, o pesadelo não havia acabado, outras pessoas ganharam essa batalha e ainda restariam muitos anos para a ditadura chilena ter um fim. Nesse momento, Carmen chora enquanto carrega um bolo e usa um vestido… Vermelho.


Mesmo ignorado todo esse simbolismo, Manuela Martelli concebe uma obra que se equilibra muito bem entre os momentos de thriller e de sutileza, sem jamais abrir mão da força que a temática possui, sem jamais seguir caminhos que seriam os mais banais na tentativa de chocar e explicar o que aconteceu: não há choros copiosos, depoimentos emocionados ou discursos edificantes. Em vez disso, os sintetizadores e metais da trilha sonora de Mariá Portugal ajudam a construir tensão de paranoia sufocante (e até meio noir no cinismo), enquanto a narrativa constrói aos poucos um clímax calcado basicamente na preocupação humana: as cenas mais doces são de longos planos da protagonista observando pessoas queridas, dos netos com bastante futuro pela frente, à empregada doméstica idosa já próxima ao ocaso da vida.


"Quase morri de tanta humanidade" é o que Carmen diz ao enfermo após passar por uma espécie de “teste” para ter certeza que ela não seria alguém do governo infiltrado. Desconfio que é essa humanidade que, de fato, quase a matou, mas que é tão necessária para que evitemos que tragédias políticas ocorram.


 

Nota: 5/5


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