Godzilla vs. Kong (2021) - Crítica

Os 32 filmes japoneses de Godzilla, especialmente os 29 em live-action, são um espetáculo à parte. Pertencentes ao gênero de nicho do Tokusatsu - que aqui no Brasil, tal qual o termo otaku, acabou erroneamente relacionado algo. Neste caso, exclusivamente a Power Rangers e obras como Ultraman -, filmes de baixo orçamento e criatividade solta, desde que mostrem, algumas vezes, batalhas do Godzilla com algum outro monstro. É tudo muito bizarro, com pessoas vestidas em fantasias das criaturas, lutando com coreografias enferrujadas e rígidas enquanto destroem mini-cenários das cidades Japonesas, verdadeiros dioramas em escala humana. 

Em suma, é tosquíssimo. Mas a liberdade dada aos cineastas em ousar e inovar rende um universo pouco conexo, mas frequentemente imprevisível e "mágico". Godzilla começou como um super-vilão até se tornar um anti-herói que protege a terra. Já foi desintegrado no mar, congelado num iceberg e teve seu segundo!!! cérebro explodido. Teve uma fase estranha em que andava com seu rabo, e também um inexplicável filho - que bem, talvez seja melhor pedir o teste de DNA, pois não parece nada consigo. Se sua origem costuma ser repetida como uma metáfora das bombas nucleares, seus inimigos variam de um ser surgido a partir de suas células, sugadas por um buraco negro e então disseminadas no espaço até criar um nêmesis do zero (?), uma ossada antiga colocada em uma casca robótica, uma rosa gigante que mescla os genes de godzilla com o de uma planta... Os filmes incluem, sem aparente explicação nem sequência exata, crianças telepatas, duas criaturinhas voadoras e que se teletransportam como mensageiras da Mothra, viagem no tempo, jovens com poderes...

Com exceção do original e do recente Shin Godzilla, a saga Gojira se leva muito pouco a sério, e este é seu principal charme, pois seria muito difícil crer na complexidade de uma fita que foca em batalhas de monstros que são claramente pessoas vestidas em maquetes com baixa profundidade e iluminação, assim como conceitos que transcendem a suspensão de descrença. Mesmo quando incutem debates filosóficos e existenciais, são em circunstâncias absurdas, numa ingenuidade que só poderia pertencer ao estilo Tokusatsu e toda sua idiossincrasia. 

Esta falta de austeridade em nada se identifica com falta de qualidade, e sim projetos conscientes de seu formato, alcance e até demanda do público. Não quer dizer que sejam descerebrados e imbecis, mas bastante inocentes e abertos a uma inventividade flutuante que dispensa razões quânticas minuciosas para sua existência - se as células do Godzilla foram sugadas por um buraco negro e isso criou um bicho malvado, você aceita e pronto. 

O principal revés que acometeu o Monsterverse americano desde seus primórdios, foi justamente a contradição que a Warner e a Legendary imprimiram na ambientação e estruturação dos filmes, principalmente os dois capítulos solos de Godzilla. Mesmo que eu prefira muito mais o lagartão atômico que Kong, é a aventura do macaco que mais se aproxima do descomprometimento irreverente da Toho, assumindo bem o clima de galhofa puritana de um mundo em que monstros gigantes existem, logo, isso abre espaço para mais experimentos narrativos gráficos. É uma fita de ação indolente dos anos 80, e o slow-motion de Tom Hiddleston matando monstrinhos usando máscara de gás e uma espada samurai no meio de uma fumaça verde reitera bem isso. 

Mas o Godzilla de 2014, assim como sua sequência de 2019, claramente são frutos da Nolanização do cinema blockbuster, estabelecendo cores sóbrias e uma apocaliptização fantasmagórica dos eventos, sem perceber que isso os fazem ainda mais tolos e imbecis do que assumir o desaforo que seu conceito permite e pede. Assim, se é incrível ver o trabalho visual dos monstros, os embates de Godzilla com um dragão de três cabeças ou insetos de visual futurista, a própria maravilha técnica e artificial que eles são é sabotada por uma fotografia dark e que se esforça para mistificar aqueles eventos, quando sua possibilidade já é um milagre suficiente que clama por exposição. São filmes que almejam e imploram pela verossimilhança, mas também a contradizem periodicamente, perdidas pelo anseio de uma maturidade pueril e um refresco cônscio. Por que todo embate precisar ser na chuva ou na neblina? É uma ideia Lovecraftiana em optar pelo desespero existencial surgido pela mera vivência de titãs desse porte em nossa irrelevante e frágil existência, mas mesmo quando os japoneses optaram por essa vertente, entregaram provavelmente os piores espécimes que levam o nome do bichão - a trilogia animada dirigida por Hiroyuki Seshita e Kôbun Shizuno.

A opção de Adam Wingard, um diretor bastante "teen" em sua visão cinematográfica e com um tom debochado e direto no que trabalha, com baixa intelectualidade e nenhuma complexidade, é uma correção de rotas correta do Monsterverse. Ainda que pouco expressivo, Wingard sabe que Godzilla vs. Kong dispensa uma duração superior à duas horas, pois se o orçamento limita as aparições dos titãs, não é a interação humana que vai o tornar mais agradável, e sim criar uma inevitável gordura que tortura a expectativa pelo prato principal. Não por acaso, o filme é o primeiro do projeto a reciclar personagens, para dispensar ter de introduzir e humanizar todas as figuras ali. E mesmo as novas, são mais superficializadas e caricatas, com pouco tempo de tela e abordadas como se já estabelecidas psicologicamente no universo, somente aparatos para criar uma desculpa a algo maior. Talvez, alguém algum dia faça um longa de kaijus com um texto rico em subcamadas, mas o histórico depõe contra essa direção. Mesmo Del Toro, aclamado cineasta, se rendeu a um cinema divertidamente bobo de efeitos e imagética imponente em seu Pacific Rim, adotando uma atmosfera enegrecida para amplificar a mitomania apaixonada de seus seres, e não por uma ideação soturna incoerente. Seu esforço deveria ser a maior referência na temática a novos adeptos. 

Claro que isso poderia enfraquecer o elo empático com o público, mas é o próprio Kong, um símio, naturalmente antropomorfizado e que compartilha tantos traços conosco, que serve de ligação antropológica. Obviamente que sua única relação significativa é com uma garota surda e muda, nativa e órfã, que se comunica com ele pelo tato e pelo olhar, por sensibilidades ao invés de verbalizações. É uma conexão primitiva e significativa, facilmente reconhecível e adorável, e não um mergulho em pedra dura com homens e mulheres que não precisam ser ninguém. Atores e atrizes conhecidos e carismáticos como Rebecca Hall, Kyle Chandler, Millie Brown e Alexander Skarsgård são menos personagens que os próprios atores em cena, preenchendo o espaço pela própria aparência e não subjetividades. Qual o nome do personagem de Alexander e Rebecca? Acho pouco provável que você saberá disso após fechar o player. 

Pois a experiência simbiótica com um filme deste porte é tão e somente visual e sensível quanto a de Kong e a criança. Se Gareth Edwards e Michael Dougherty optaram por construir o mito de Zilla por trás da chuva, das trovoadas e da fumaça noturna, como se fosse a própria morte, Wingard se aproxima mais da visão de Vogt-Roberts, diretor de Kong, em endeusar seus bichos na própria claridade, num fetiche glorioso das luzes neon de uma Hong Kong deserta e estilisticamente cyberpunk, não ignorante à vida de seus habitantes conforme edifícios são esmagados e cortados, mas sim sua própria condição de realidade. Tal como nós, de fora do ecrã, as personagens somente assistem, impressionadas e impotentes, ao espetáculo visual e cinético proporcionado por um Godzilla vs. Kong. 

Futuramente, é muito provável que somente os 20 minutos finais, consequentemente, sejam lembrados. As cenas de luta. Pois na obrigação de costurar algum engendre científico e técnico para explorar as nuances deste mundo, é que resida a fraqueza e natural gordura da película, com conceitos que transitam entre o "é isso e deu", dos Godzilla japoneses, e a obrigação de soar plausível e verídico, como as explicações de Tony Stark sobre a tecnologia de suas armaduras. 

Um 6 ou 7, então, se reflete como um 8 ou 9 para obras assim, um ápice do que podem chegar - talvez até acima do que qualquer blockbuster portentoso e pedante contemporâneo. Num mundo em que lagartos crescem enormemente da radiação e cospem laser, macacos passam dos 100 metros e empunham machados, o encantamento está na existência, não na mistificação. É o close do sorriso irônico de Godzilla ao acertar um golpe, ou o sentar imponente de Kong no trono. É a terra dos titãs, e nós somos somente observadores. E queremos isso. 

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