No livro "As Ondas", Virginia Woolf transforma o pensamento-em-continuo num relicário dessacralizado pelas ausências. Amigos compartilham suas memórias, por milhas inventadas, a partir da morte de Percival. Trata-se, portanto, de uma eternidade romântica que guia todas as personagens através dos anos.
Veio-me à mente Woolf enquanto assistia ao longa de estreia da diretora portuguesa Catarina Vasconcelos, "𝐀 𝐌𝐞𝐭𝐚𝐦𝐨𝐫𝐟𝐨𝐬𝐞 𝐝𝐨𝐬 𝐏á𝐬𝐬𝐚𝐫𝐨𝐬", no qual o documento ainda se recorda da imagem letrada. Assim como a escritora modernista, as associações e metáforas de Vasconcelos e sua família guiam um filme em natureza-morta. A memória é uma paisagem de movimento imaginado. Documentar-se por intermédio dos detalhes, das mãos que já se tingem às rugas (ecoando as mãos catadoras de Agnès Varda), faz da metamorfose um exercício singular sobre o luto e o cinema. Talvez porque aquilo que é externo à película - o que decompõe fora do quadro numa cesta de café-da-manhã, ou no tronco de uma árvore -, ainda seja passagem de uma vida.
Um dos grandes filmes desse ano. Para guardar bem na retina.
“Sou de Nazaré, Palestina” “E onde fica isso? Israel?” “Não! Na Palestina!”
Elia Suleiman é um personagem de slapstick comedies, quase um clown, quase um mímico; utiliza o seu corpo para caminhar e partir, enquanto seu rosto é de um efeito Kuleshov, o mármore de Buster Keaton. Ele já não se espanta vivendo entre-imagens de uma cultura de guerra; detém uma expressividade doce no olhar, embora nunca consiga sorrir ou proferir meia dúzia de palavras, porque, quem sabe, esteja em voto de silêncio pela Palestina. Em O Paraíso Deve Ser Aqui, para afirmar a sua condição de cineasta e a sua identidade palestina, Suleiman se autorrepresenta, documentando-se, e faz de sua presença um diário de denúncias.
Num primeiro momento, sua atenção é para o cotidiano de pessoas simples do bairro onde reside, seja um ladrão de limões, ou um velhinho cheio de histórias sobre caças. O diretor passa o dia fumando e bebendo. Veste-se com ternos, camisas coloridas e possui um chapéu tipo fedora sobre os cabelos grisalhos. Quando decide viajar à Paris, assusta-se com seu estrangeirismo, a indumentária tornando-se traje de turista, um Monsieur Hulot (Jacques Tati) da Palestina, que rapidamente identifica os contrastes culturais e sociais entre os seus destinos. Diferente de Hulot, seu incômodo não parte da burocracia e da tecnologia predatória, mas da indiferença do Estado pelos imigrantes e pela exploração da mão-de-obra.
Empolga-se, no entanto, com a maneira de se portar e vestir das jovens francesas; nota a liberdade de não serem impostas a dogmas extremistas, assim como a possibilidade de transitarem sem medo e sem vendas nos olhos. Contudo, também encontra uma França paternalista e fantasmagórica, recolhida no evento do Dia da Bastilha, no qual vangloriam a revolução da burguesia e o exército. Aeronaves cortam o céu e carros de combate atravessam faixas de pedestres. Talvez o Paraíso ainda não seja em Paris. De todo modo, são apenas fogos de artifício que estouram no manto da noite. É por isso que é melhor manter-se calado, para atentar-se às bombas e aos ruídos, já que o som de uma simples latinha sugada pelo bueiro pode evocar uma lembrança violenta.
Em Nova Iorque, é questionado sobre o seu ofício de cineasta, o qual lhe possibilita ser um “cidadão do mundo”. Finalizam ainda: “você se considera um perfeito estrangeiro?”. Ele nunca responde, permitindo que o filme se encontre cada vez menos em uma universalidade. A imagem é uma esquete que não se conclui – resiste em sua intermitência. O compromisso de Suleiman é com a sua defesa identitária e com a luta pelo reconhecimento de seu povo. Da gag cartunesca e barulhenta, países colonizadores são dominados pelo interesse do capital: alimentar a corrida armamentista faz parte do jogo.
Sua condição de estrangeiro é imperfeita, não basta-lhe ser um cineasta reconhecido se a sua língua e sua própria etnia forem motivos de reforços e seguranças em aeroportos. Suleiman encontra no cinema uma maneira de libertar-se do fardo da sobrevivência – o cinema é um privilégio geográfico, existem vidas atrás dos quadros e a sua sina é expôr o não-visível. Com humor e sensibilidade, ao menos por uma noite, o Paraíso é a Palestina, não existe lugar melhor no mundo para se viver, e os jovens merecem sonhar com um dia de festa.
Para que ninguém se engane ao adentrar a sala de cinema: se passará, também, durante uma temporada de caça.
Meu fascínio pelo cinema é a possibilidade da surpresa – e, quando tal elemento se manifesta, é melhor deixá-lo oculto, cobri-lo de volta com seu realismo impossível e permitir ao outro um pouco da noite. Gosto quando o fantástico se experimenta para além de um único gênero, quando o cinema se sente forte em sua autoconsciência, da transparência sendo rompida. Em “O Discurso Cinematográfico”, Ismail Xavier vai chamar isso de Cinema da Imagem Arquétipo, quando há disjunção e descontinuidade, não essencialmente abstratas. O autor cita, por exemplo, Maya Deren e seu “cinema-ritual” – um cinema do controle, da libertação do inconsciente. Koko-Di Koko-Da (2019) talvez seja uma das melhores surpresas que tive esse ano, articulando-se em uma estratégia ritualística.
Do prenúncio da morte à fabulação infantil, o diretor Johannes Nyholm transforma um brinquedo lúdico, de evocação às cirandas nórdicas, em um pesadelo contínuo. Uma caixinha de música é um portal para más recordações. Recordar uma morte não é só estar preso no passado, é também negar a própria existência. Longe de querer se reduzir a uma alusão ao luto e/ou à uma crise matrimonial, “Koko-Di Koko-Da” formula o medo da permanência – estar vivo é quase uma maldição quando só se consegue se lembrar. E então, o filme se provoca e se repete, uma, duas, três vezes, é um exercício de memória, a memória que se forma d’um cataclismo espiritual.
O tempo se desconstrói em sua inércia, na inevitável presença do diabo e o cantarolar daqueles que estão sempre partindo. Nyholm tece a luz da lanterna, o olhar da mulher e a fuga do homem – invoca o Black Lodge de “Twin Peaks” (David Lynch), um limbo primitivo, mas humano. E das repetições, revela-se um filme possuído por outros filmes, contudo, incomoda a quem vê, se da plateia ou do além-enquadramento, por nenhum deles ser sobre exorcismos. Penso que uma obra realmente assustadora não é delimitada apenas pela ausência de esperança – nesse ponto, “Koko-Di Koko-Da” quase me fez chorar com um simples teatro de sombras. O que me aflige é um recomeço.
Na coletiva que antecedeu a abertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o cineasta francês Olivier Assayas revelou que a grande dificuldade em adaptar o livro “Os Últimos Soldados da Guerra Fria” (2011), do escritor brasileiro Fernando Morais, era dar conta de todos os seus muitos dados históricos e personagens. De fato, um enredo concentrado em quase dez anos – do começo dos anos 1990 até a virada do milênio – exige certo fôlego, mesmo para um longa-metragem. Embora a importância sobre um caso pouco conhecido, Wasp Network (2019), em tradução livre “A Rede Vespa”, o filme resultado a partir dos fatos descritos por Morais, fragmenta o tempo num ritmo enervado e rocambolesco.
“A Rede Vespa” foi um grupo de espionagem cubano que atuou nos Estados Unidos com o intuito de impedir ataques terroristas anticastristas em Cuba. Para além do regime de Castro, que gerou descontentamento popular ao provocar um alto índice de inflação e escassez de recursos naturais, o interesse estadunidense pela ocupação do território cubano e destituição do sistema comunista foi responsável por mais de cem ataques terroristas, principalmente em locais que afetavam círculos turísticos e sociais.
Respeitando uma identidade latino-americana, Assayas escolheu um elenco multinacional que representasse as origens da maioria de seus personagens – ainda que sua opção desague na higienização de um star system, trazendo intérpretes como Penélope Cruz, Édgar Ramirez, Gael García Bernal, Leonardo Sbaraglia e Wagner Moura; um elenco que ao menos poderia favorecer um sólido desempenho dramatúrgico, mas seu subaproveitamento acaba por deixar os personagens sempre à deriva. O exemplo mais pontual é o arco do personagem do brasileiro Wagner Moura – ainda que, na história, seja cubano. Acompanhamos a ascensão de um conspirador, sua vida privada prejudicada pelos interesses norte-americanos, mas também suas recompensas materiais ao infiltrar-se em ações ilícitas. Uma vez inserido à trama, que preza por ações e personagens paralelos que nem sempre se cruzam, assume o seu co-protagonismo ao lado de Édgar Ramirez, mas desaparece de uma forma tão abrupta quanto inquietante.
Exibido em competição do último Festival de Veneza, “Wasp Network” passou por uma remontagem para lançamentos comerciais. Segundo Assayas, as muitas informações históricas precisaram ser reajustadas para uma melhor compreensão do público, e, com isso, o filme ganhou mais três minutos. Curioso, no entanto, como tudo soa tão rápido e inconsistente, por vezes confuso, prejudicado pela escolha em saltar continuamente por linhas temporais distintas.
“Wasp Network” se alimenta do desejo de ser um filme de espionagem, embora atinja muito mais e com facilidade um tipo de “turismo visual” entre dezenas de locações no continente americano e personagens sem tridimensionalidades. Penso que um formato maior, quem sabe um material seriado como a elogiada minissérie “Carlos, o Chacal” (2011, Olivier Assayas), ou ainda um recorte específico sobre o objeto retratado, “Wasp Network” seria muito mais interessante de ser acompanhado. Ao querer abranger História com a vida privada de exilados para intensificar emocionalmente seus personagens, Assayas transforma o seu thriller político em uma novela exaustiva e pouco inspirada.
Quando Georges Méliès (Le Voyage dans la Lune, 1902) direcionou a sua câmera para uma Lua humanizada, a proposta imaginativa e visual de uma clássica epopeia de Jules Verne, fez do cinema a linguagem universal das odisseias espaciais. Dizem ainda os conspiradores: o homem nunca pisou na Lua, não passando de uma representação bidimensional e fotossensível – e um grande cineasta estaria por trás de tais armações, Stanley Kubrick, não por acaso a mente criadora de “2001 – uma Odisseia no Espaço” (2001: A Space Odyssey, 1968). Se durante a guerra fria a conquista espacial fazia parte de uma imagem da polarização política e de propósitos hegemônicos, de um “perigo socialista” frente à demagogia republicana, a iminência de um conflito bélico e nuclear também se fez tema em alguns filmes de ficção científica até o começo dos anos 1990, como “Miracle Mile” (dir. Steve De Jarnatt, 1988), que, embora não se trate de viagens espaciais, deixa claro que nunca estaremos suficientemente bem e em segurança na Terra. O deslocamento gravitacional do homem, sumariamente conformista e patriótico, logo se transformou em uma viagem em busca de seu autoconhecimento e por novas formas de convivência em sociedade. Na maioria das vezes, contudo, a sobriedade desses filmes atraíram imagens de um futuro pessimista.
James Gray talvez seja um dos nomes mais importantes do cinema independente estadunidense deste novo século, um cineasta que gosta de trabalhar com o estilo clássico que consolidou Hollywood, conhecido ainda por sua elegante mise-en-scène; filmes de quem possui um requintado repertório adquirido pela cinefilia, não por inserir incessantes referências como um Quentin Tarantino, mas por salientar um pleno domínio da gramática cinematográfica. De todo modo, citar ainda Tarantino nesse mesmo parágrafo não é algo fortuito: “Era uma vez em… Hollywood” (Once Upon a Time in Hollywood, 2019), um dos destaques da última edição do Festival de Cannes, foi visto como uma fuga da “zona de conforto” do diretor, quando na verdade, ao resgatar a memória da época de ouro de Hollywood, Tarantino mais diz de si, sua cinefilia e sobre o cinema do que em qualquer outro filme que tenha feito – a opção por trabalhar com a emoção à luz um período histórico, assim ressignificando uma triste atrocidade (o caso Sharon Tate e a família Manson). Nesse sentido, percebo uma ligação muito forte com Ad Astra, pois dessa paixão por Hollywood surge uma obra que reverencia, também, as estrelas do cinema, trabalhando com o gênero da ficção científica, à contramão do que James Gray já produziu.
Ao abrir o filme com um letreiro sobre “um futuro onde o homem busca as estrelas”, penso que Gray não esteja preocupado unicamente com o misterioso campo intergalático, mas antes com uma repartição do tempo, o propósito do cinema como memorabilia histórica; justo então as imagens de grandes ícones do cinema, como Donald Sutherland e Tommy Lee Jones, da forma como são apresentados e respeitados, serem homenageadas em um filme sobre reconciliações. “Ad Astra” mostra como é envelhecer no cinema e fazendo cinema, estrelas que daqui a alguns anos estarão mortas, como já aconteceu com Orson Welles, Marlene Dietrich ou Christopher Lee, embora ainda presentes em movimentos de suas sombras projetadas.
Pensei muito em meu avô João, um dos responsáveis de minha cinefilia, e dos filmes que ele tanto gosta e dos quais sempre conversa comigo, citando os atores que marcaram sua época. Dei-me conta disso só ontem assistindo ao filme de James Gray, de que acompanhei a trajetória de Brad Pitt, praticamente desde o início de sua carreira, e que agora não esconde suas rugas na tela. No filme de Tarantino, Pitt é um flanêur, um espectador de sensações – a força da narrativa; e no filme de James Gray, afirmando a sua sensibilidade dramatúrgica, potencial para personagens plurais: em “Era uma Vez…”, um dublê de cinema, aquele que se coloca no lugar dos astros; em “Ad Astra” é Roy McBride, um oficial da aeronáutica americana que parte em busca de seu pai em uma missão espacial.
Ao sermos guiados por uma Lua já habitada por humanos e projetada à hermenêutica cosmo-capitalista, McBride nos diz: “… Nós [os homens] somos destruidores de mundos”. É um de seus muitos monólogos que tecem a narrativa – Gray em demarcação de gêneros; a narração no filme se comporta como testemunho e confessionário, tão caros a um clássico noir investigativo. Em um de seus segredos compartilhados com o espectador, Roy McBride conta que o elo que possuía com o seu pai era justamente o cinema, as tardes assistindo ao lado dele aos musicais antigos e em preto e branco – no futuro pensado por James Gray, o cinema ainda resiste como partilha (quantos anos já terá? 150? 200?). De todo modo, é um futuro com escassez de recursos naturais e disputas territoriais.
Mas James Gray não se limita ao discurso, sua fábula parte de um reencontro para evidenciar o que ainda existe de emocional no ser humano. Nesse reencontro, um pai que é Tommy Lee Jones, a promessa de reconciliação não é um abraço em aneis de Saturno, é a união de sons e imagens em sapateados monocromáticos. Do esquecimento e abandono paterno, Gray sintetiza a memória de quem se imagina no impossível – o cinema cria mundos, os que já foram destruídos pelo homem, mas também os que são frequentemente imaginados e compartilhados por ele. Não importa se sua leitura é extremamente romântica, e, ainda que seu desfecho seja deveras burocrático, o que “Ad Astra” nos deixa é uma promessa de constantes reinvenções.
O que mais gosto neste novo filme de Nadav Lapid é, como o próprio nome sugere, SYNONYMES, que os acontecimentos não partirão das diferenças socioculturais, mas sim daquilo que se assemelha, do que se aproxima, independente se, a priori, a França, país europeu, defenda uma igualdade de valores a todos os cidadãos, franceses ou não.
Nesse ponto é que Lapid consegue ser mais sagaz. É também a dominação colonial e do capital que alimenta uma cultura de guerra, dos extremismos, e, mediante aos esteriótipos, agora sim, mediante às diferenças, o "outro", o estrangeiro, sumariamente aquele de religião muçulmana, ainda é visto como um possível membro extremista, um perigo à nação da Marseillaise.
Ao fugir de sua identidade, dos valores que o desaproximam de uma liberdade utópica, o protagonista Yoav (Tom Mercier), um jovem ex-combatente israelense, é abraçado pela burguesia parisiense. Sua moeda de troca: suas histórias, a neve, o frio da montanha, a hipotermia, o sangue que viu sendo derramado, os contos proibidos em sua própria família, agora alimentando o "mea culpa" de um casal apadrinhado por famílias de industriais.
Yoav torna-se, então, agressivo, agressivo como a câmera que persegue luzes, o concreto, os paralelepípedos úmidos dos Champs Élysées, as boulangeries, ou a Ponte Alexandre III. Yoav não sabe mais o quê é, se é homem, se é bicho, se é verbete de dicionário, se pertence à luta armada, ou se seu destino está fincado à página de um Victor Hugo.
Depois de mostrar que a rotina tem o seu encanto em "Paterson" (2016), Jim Jarmusch faz de "The Dead Don't Die" (2019) o seu filme mais autoconsciente e niilista -- não há uma preocupação em subverter "zombies movies", e, nesse ponto, o filme é até bem quadrado, mas antes se porta como uma assimilação da própria obra com o gênero. Tenho a impressão de que ele funciona como um "À Prova de Morte" (2007) do Tarantino, ou "Os Amantes Passageiros" (2013) do Almodóvar; todos estes filmes "menores" buscam na autorreferência o desejo pela experimentação estética e política.
Diferente, por exemplo, de um "Despertar dos Mortos" (1978), no qual George Romeno desloca os mortos-vivos para um shopping, símbolo da vida cosmo-capitalista, Jarmusch codifica a personalidade materialista nos próprios zumbis, nem sempre carcomidos, até bem aprumadinhos, mas que, para além de sua sede de sangue, ruminam os caminhos que traçaram em vida, sempre submetidos a um tipo de necessidade física ou a um pecado capital. São zumbis que vagam com um princípio de consciência à procura de seus alicerces, sejam estes aparelhos celulares, doces ou xícaras de café. Os vivos são percalços que precisam ser contidos, caso eles os impeçam de alcançarem os seus vícios. [Tem algo de "Manhã de Santo António" (2012) aqui...]
Uma cidade pequena e conservadora, um Buscemi que usa um boné com os dizeres "Make America White Again", um policial que ostenta um carro "descolado", um nerd viciado em filmes de terror... Do arquétipo fatalista, e, porque não, também a partir do didatismo, Jarmusch acaba por ser até bastante moralista. A crítica nem precisava trabalhar com uma retórica do diálogo observativo, acho que o erro do diretor é justamente fechar o filme com conclusões ensaísticas.
Gosto, no entanto, de como o "star system" nos é apresentado, um Iggy Pop que sai do túmulo e observa a objetiva por alguns segundos ("sim, sou eu mesmo!), uma Selena Gomez patricinha, uma Tilda Swinton meio-samurai e meio-elfa, fora de um eixo terrestre. Das figuras do imaginário popular, ao que inclui, também, a ressurreição de Samuel Fuller -- embora não presente em cena, mas que no imaginário extrafílmico vaga em caracterização de zumbi --, o estrelismo é reforçado como esteriótipos da indústria cultural.
Pode até soar mais um artifício moralista, embora seja interessante como o filme tem ciência do que nos apresenta, como se todo o elenco, Iggy Pop, Selena Gomez, Steve Buscemi, Bill Murray, Adam Driver, Chloë Sevigny ou Tilda Swinton, interpretassem não apenas a si mesmos, mas "um elenco de Cinema". Inicialmente sitiados na delegacia de polícia, como em "Assalto ao Décimo Terceiro Distrito" (1976), os oficiais precisam seguir um roteiro. De mocinhos, descobrem-se máquinas de matar. Não é uma "vingança" da Natureza, a Terra em mudança de rotação para fazer justiça contra a humanidade; é só a homem engrandecendo a América novamente. Desse ensaio, nasce uma farsa anticapitalista e anti-Hollywoodiana.
E ainda tem o uso curioso da música-tema, "The Dead Don't Die", do cantor country Sturgill Simpson. Explorada como promoção comercial, a única canção em todo o filme, que se repete por pelo menos três vezes, a cada sequência é ressignificada pelas imagens. Uma mesma música pode ser a companhia ingênua das estradas, ou uma elegia aos mortos errantes, ou simplesmente um contraponto estético ao próprio discurso político. Usá-la nos créditos finais reforça mais uma vez que, de fato, tudo o que vimos é só um filme do que já estamos vivendo. Piegas? Sim. Mas diverte.
Revendo "Ilha das Flores" (1989, Jorge Furtado) na abertura da 30ª edição do Festival de Curtas-Metragens de São Paulo, foi difícil não lembrar de um filme que mexeu muito comigo semana passada, talvez a principal estreia nacional do ano, "Bacurau" (2019, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles).
A começar que os dois filmes abrem com imagens do planeta Terra. Em "Ilha das Flores", um globo terrestre para fins didáticos; e em "Bacurau", uma imagem via satélite que antecipa o contraponto tecnológico que permeará a narrativa. Do todo modo, outras características aproximam as duas produções: 1) A Terra aqui retratada, claro, é única E não é plana; 2) A câmera pontuará a geografia correspondente à América do Sul. Porque Bacurau é uma cidade brasileira. Porque a Ilha das Flores também está localizada no Brasil. Ambos os filmes, no entanto, usam nomes fictícios para as suas geografias genuinamente brasileiras, de modo algum afastando-se de uma realidade ainda eminentemente latino-americana; nossa exploração colonial, nosso eterno espectro escravocrata e a nossa falta de consciência de classe.
Furtado, discursando na abertura do festival, disse assustar-se por seu filme continuar sendo tão atual. Para quem não se lembra: a Ilha das Flores é um local abandonado pelo Estado, onde mulheres e crianças não são tratados como "gente". Elas sobrevivem alimentando-se de restos de lixos que um "colono" julga não serem viáveis para o consumo de seus porcos. No filme de Mendonça Filho e Dornelles, a falta de comprometimento do governo com a pequena e pacata cidade de Bacurau implica no desenvolvimento local. Isso não impede, por outro lado, que os nascidos em Bacurau sejam também lembrados como cidadãos que conseguiram estudos, saúde e bons empregos, informações reiteradas em um emocionante discurso proferido por Plínio (Wilson Rabelo) durante o enterro de Dona Carmelita (Lia de Itamaracá), duas figuras importantes para os bacurauenses.
Desse modo, o que separa "Ilha das Flores" e "Bacurau" são 30 anos de (uma jovem) democracia e dos avanços das políticas públicas, mesmo que fadados à corrupção e ao egoísmo, mas que facilitaram a acessibilidade do pobre e o seu reconhecimento como "gente".
"Quem nasce em Bacurau é o quê?", pergunta a Forasteira interpretada por Karine Teles, ao chegar na cidade. "Gente", responde um garotinho.
"Gente" é um coletivo de pessoas. É também uma representação de humanidade. Como sabemos, os humanos possuem telencéfalos altamente desenvolvidos e polegares opositores, diferente dos porcos.
Fascina-me, então, o quanto nesses 30 anos que distanciam as duas obras o nosso país conquistou, mas também o quanto ainda necessitamos lutar por nossos direitos básicos de sobrevivência e permanência. Um passado que existe, e tá ali, e é tipo um passarinho... ou melhor, passarinho não, é um pássaro! É um pássaro brabo que sai à noite...
"Bacurau" mostra a importância do coletivo na luta dessas sobrevivências e permanências identitárias (não só brasileiras, nordestinas, mas latino-americanas). Diferente dos clássicos filmes de "invasões alienígenas", quando extraterrestres parecem enxergar apenas os Estados Unidos no mapa, o perigo vem de nave-espacial para assombrar um país latino. A tecnologia afrontosa evidencia o potencial de observação (o controle) e exploração de células colonizadoras, que ainda acreditam em uma supremacia individual e/ou racial. Basicamente, lidando com um Estado que pratica a necropolítica.
Contudo, novamente temos que lembrar que o ser humano possui um telencéfalo altamente desenvolvido, polegares opositores e a qualidade de ser livre, características estas que, num coletivo, servem para, entre outras coisas, "fazerem provas de História". Afinal de contas, "Recordar é viver". Dessa forma, em tempos em que uma parcela de gente considera Cultura, História e Educação como elementos inúteis e imorais para uma sociedade, "Bacurau" as abraça como as águas de um povo, a força motriz, a correnteza misturada com o sangue derramado por quem construiu um país e por quem lutou e resistiu por aquilo que chamamos de "liberdade". O sangue dos índios, dos escravos, da pele retinta, dos imigrantes explorados, dos cangaceiros,dos desaparecidos políticos, das mulheres e das crianças que se contaminam com césio a partir dos alimentos que buscam no lixo. O sangue de quem "vai na paz" para outros estados, porque sente sede, mas acaba morrendo no caminho.
A Ilha das Flores, na verdade, é a Ilha dos Marinheiros. Bacurau, na verdade, é uma comunidade da Barra que fica na cidade de Parelhas. Deus não existe na Terra do Sol.
O resto ainda é verdade. E a verdade é justa e livre, ainda que sangrenta, porque é ela quem alimenta a revolução.
O último trailer. Sombras se projetam em frente ao caleidoscópio do fio de luz e caminham entre os corredores em busca dos assentos que lhe foram ofertados. Um homem conduz uma cadeira de rodas, onde uma senhora aprecia um balde de Coca-Cola com um canudinho. Na fileira atrás de mim, mãe e filho, um filho jovem, sentam-se ruidosamente – “tá começando!”, ela exclama sem saber sussurrar: a tradicional ceia dos eufóricos e atrasados, enquanto os créditos iniciais dissolvem-se em seus fantasmas. Na tela, um verde como do carpete que tínhamos na sala quando eu era criança, um verde borbulhante que pega a mão d’um âmbar e o tira para dançar, então valsando por corredores imersos às ondas de um aquário, outrora uma prosaica sala de visitas, como se estivéssemos vasculhando um navio em sua imobilidade de naufrágio milenar, muito provavelmente extraído de algumas imagens milagrosas de Jean Cocteau, imagens que se moldam à forma d’água.
Elisa Esposito (Sally Hawkins) desperta ao encanto de sua rotina. Desperta pela madrugada, como os amantes que ainda anseiam um último clímax antes de abandonarem seus lençois. Refaz o que lhe é habitual, prepara o lanche para a jornada de trabalho, arranca a folha de seu calendário de premonições zodiacais e acolhe-se à banheira para se amar. Ama o seu corpo e também as águas. Elisa é uma mulher feliz, silenciosa, mas de ouvidos bastante aguçados – e não por acaso! É inquilina de um cinema à mercê do abandono dos anos 1960, um cinema que vaza sons e Technicolor pelas frestas das portas, mesclando-se com cantorias e sapateados, mas estes em sua tradicional monocromia de Shirley Temple e Fred Astaire, que prestam serenatas a um vizinho e amigo pintor.
E assim vive Elisa, numa poesia que homenageia, em primeiro lugar, o espaço do cinema, talvez centrada em seus exageros, é verdade, mas à audiência do conforto de uma gramática universal e onírica. Elisa, que carrega a mudez dos primeiros filmes, uma auxiliar de limpeza de um laboratório nuclear, descobre um homem-anfíbio (Doug Jones) destinado a experimentos desumanos. Pouco importa se ninguém percebe que ela, em intervalos para lanchar, com o intuito de conhecê-lo melhor, esconde-se na sala onde acorrentam a criatura – afinal, estamos em um filme, um musical de gestos, e, como todo grande musical, as personagens compartilham telepaticamente uma mesma letra e melodia por intermédio de um único olhar: os outros param e observam, debruçando-se ao feitiço de um realismo impossível.
A relação entre Elisa e o homem-anfíbio se intensifica a um plano ardiloso para salvar a criatura – é como se Guillermo del Toro se vingasse de todos os filmes de monstros que atormentam nossas memórias de infância, cujos monstros, nem de longe tão crueis como aparentam seus biotipos, rapidamente criam empatia no mais sisudo espectador. É a vingança adormecida, quem sabe ainda nos anos 1920, com o sonâmbulo apaixonado Cesare (Das Cabinet des Dr. Caligari, de Robert Wiene), ou com o monstro de Frakenstein, eterno Boris Karloff, perseguido pela intolerância e preconceito em 1931 (Frankenstein, de James Whale), vingança alimentada em 1933 pelo desfecho cruel de um King Kong, assustadoramente cinematográfico (King Kong, de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack), ou mesmo por um outro homem-anfíbio, este que despertou as inspiradas cinessensações na construção d’A Forma da Água, descoberto igualmente na América do Sul, sendo vítima de constantes estudos científicos (Creature from the Black Lagoon, 1954, Jack Arnold). Em repouso na banheira de Elisa, fiel leito de orgasmos, do amor próprio, o homem-anfíbio agora desfruta de um lar.
“Mas que besteira!”, disse a mulher atrás de mim a seu filho quando Elisa e o monstro se entregavam ao desejo de seus corpos. Ao se vingar de um cinema que persegue a imagem do outro, del Toro, um cineasta mexicano exercendo o seu ofício na mais selvagem e poderosa indústria do cinema, mostra que não é da castração que se forma uma relação de cinefilia – afinal, parte dessa conjunção carrega consigo a dependência do amor. Não há julgamentos; não há, sem sombra de dúvida, ressentimentos. Del Toro permanece à égide de sua criação proporcionando-lhe prazer. Não vejo diferença na aceitação e possibilidade do amor como pregam Fassbinder, Brigitte Mira e El Hedi ben Salem com uma relação inter-racial (Angst essen Seele auf, 1974, Rainer Werner Fassbinder), ou Douglas Sirk, Jane Wyman e Rock Hudson no melhor sentido de que “o amor não possui idade” (All That Heaven Allows, 1955, Douglas Sirk). O outro é quem está à margem, ao preconceito racial, à xenofobia, à homofobia, à representação do monstro em um cinema que por muitos anos perpetua a sua frigidez.
“Que filme bonito!”, a mesma mulher disse ao filho, torcendo o nariz emocionado. Lá embaixo, ao acenderem as luzes da sala, notei que a suposta senhora na cadeira de rodas, à claridade revelando-se uma adolescente debilitada por alguma doença, deu alguns passos tímidos e sorridentes da poltrona à sua cadeira de rodas. O homem que a acompanhava também sorriu. “A Forma da Água”, em seu classicismo romântico, pode nem sempre ser envolvente, mas nessa tarde de exibição fora capaz de proporcionar pequenos momentos milagrosos. Gosto de pensar nisso, que o cinema, em suas pequenas sublimações, fornece rejuvenescimento e ressurreições.
Desde a sua passagem no Festival do Rio, de onde saiu vencedor de quatro prêmios, muita gente comparou "Aos Teus Olhos" com o filme “A Caça” (Jagten, 2012), de Thomas Vinterberg. Em ambos os filmes, um professor que leciona para crianças é acusado de assédio sexual e, com isso, sua vida sofre um reboliço. Contudo, se n”A Caça” não há dúvidas de que o protagonista Lucas (Mads Mikkelsen) não cometera nenhum tipo de crime – inocentado apenas pelo espectador, então a única testemunha ocular em sequências que só são apresentadas a ele, logo, desconhecidas pela comunidade dinamarquesa onde se passa a história, motivo da violenta perseguição ao professor – , em “Aos Teus Olhos” a diretora Carolina Jabor trabalha o tempo todo com a dúvida, ausentando a testificação dos acontecimentos ao evitar uma câmera ubíqua.
Rubens, numa ótima interpretação de Daniel de Oliveira, é um personagem de construção ambígua, um professor de natação de extrema simpatia em seu ambiente de trabalho, mas de igual petulância e de condutas machistas, quando não mais questionáveis, longe de seus vínculos profissionais. Carolina Jabor beneficia a direção do filme com essa visão que evita a unilateralidade de personagens e acontecimentos, demonstrando-se mais segura – uma segurança até muito enrijecida – do que em seu primeiro longa-metragem de ficção, “Boa Sorte” (2014).
Da mesma forma, o roteirista Lucas Paraizo se aproveita da massiva participação de internautas em redes sociais para a ativação de tensões. Em tempos em que o acesso já não se difere em questões geracionais, difundido a indivíduos de todas as idades e das mais diversas classes, garantindo um acompanhamento direto com grupos familiares e institucionais, “Aos Teus Olhos” se preocupa em estimular o debate sobre exposição e linchamento virtual a partir do momento em que ocorre uma rápida viralização de julgamentos precipitados. Algumas das sequências de maiores impactos estão presentes nas multi-telas de interações do caso. As trocas de mensagens entre os pais dos alunos, mensagens que contrapontam a condenação e a preocupação da exposição impetuosa, causam um desespero bem caro aos filmes de suspense, passagens que também lembram a intensificação de sensações presentes no recente “Personal Shopper” (2016), de Olivier Assayas.
Atentos ainda à questão de gênero, Paraizo e Jabor não velam o machismo e a homofobia que acompanham situações desse porte. Ao ser acusado de beijar um menino no vestiário do clube, Rubens vê a sua sexualidade sendo questionada, como se isso fosse de igual ou maior importância do que o suposto crime cometido, ferindo o orgulho heteronormativo do pai da criança (Marco Ricca). Extrapola-se, no entanto, quando contraditoriamente o filme se vê no direito de criar situações deveras expositivas para a afirmação da heterossexualidade de seu protagonista, gerando constrangedores desconfortos.
Mesmo sendo um curioso e honesto exemplo de um filme de gênero nacional, “Aos Teus Olhos” ainda tende a ser lido com uma problematização necessária aos nossos tempos – e muito em voga nas redes mundiais. Ao trabalhar apenas com especulações, sobretudo não se aprofundando mais do que a sua própria sinopse sugere, é um filme de emoções controladas e perigosas, pondo em risco a apuração de casos sobre o assédio, independentes de gênero e faixa etária, podendo funcionar não muito diferente do que uma reportagem da mídia evasiva e tendenciosa, que muitas vezes questiona as vítimas, não os opressores.
"Gabriel e a Montanha" abre com uma dedicatória ao verdadeiro Gabriel Buchmann, figura que serve como inspiração para o novo longa-metragem de Fellipe Barbosa, cuja estreia ocorrera na última edição do Festival de Cannes, faturando dois prêmios na celebrada Semana da Crítica. Paradoxal então dizer que, tratando-se de um pessoa real e de convívio próximo com o cineasta, o personagem de Gabriel fora construído de uma forma tão problemática. Personagens ambíguos sempre reforçam uma natureza humana e realista, no entanto, ainda que postos em debate por suas contradições, espera-se um mínimo de empatia da parte do espectador.
Não consigo gostar de Gabriel, e nem é por uma falha do talentoso João Pedro Zappa. O Gabriel do filme de Barbosa é um sujeito mimado e individualista, de espírito orgulhoso e competitivo. Paradoxal ainda dizer que, sendo Gabriel um estrangeiro em países africanos, após uma “desilusão” que só culmina em uma percepção fria de sua personalidade – a saber: Gabriel decide pesquisar “a pobreza nos países africanos”, in loco, depois de ficar na lista de espera da Universidade de Harvard (uma fuga) –, os personagens que trilharam sua viagem o rememoram, em voice over, com tanto esmero e “saudade”, palavra que só existe no idioma português e por muito reforçada pelo protagonista.
Do que realmente Gabriel sente saudade? De sua namorada Cristina (Caroline Abras), que quando chega de um congresso internacional é ridicularizada por seu ofício pelo próprio Gabriel? De seu país, que o abraça com diversos privilégios, privilégio enquanto homem branco e de classe-média alta? Gabriel, poliglota, detentor de uma cidadania também francesa, faz questão de ressaltar que estudara nas melhores instituições brasileiras e que isso o legitimiza como um sujeito mais eloquente, que não se firma “na teoria”, como se o seu processo de viagem não fosse um percurso turístico, mas sim de uma transcendência educacional.
“Aqui, com muito pouco se pode fazer mudanças”, ele diz sobre o continente africano, em seguida revelando que com menos de U$55,00 pagara um mês de aluguel a uma pessoa que o abrigou por uns dias e um ano de mensalidade escolar a uma criança. Sua virtude de “bom-samaritano” se reduz aí. Pode ser que realmente o verdadeiro Gabriel Buchmann tenha contribuído para com muitos habitantes jogados à miséria e ao subemprego, mas Fellipe Barbosa faz desse pequeno recorte um subterfúgio para, quem sabe, mudarmos a concepção que temos de seu personagem. Ao aderir as tangas locais como indumentárias cotidianas, tangas que o transformam num homem artificial e caricato, como um personagem da família Flintstones, parece que Gabriel está numa constante busca por uma troca de identidade.
A meu ver, um filme que não define claramente as reais intenções da direção. Maniqueísta, de maneira ainda maior, quando num almoço com uma família do Quênia, uma jovem pede que Gabriel cante uma música de seu país. Após cantar um trecho de “Nos Bailes da Vida”, de Milton Nascimento, Gabriel pede que a moça também cante uma música à sua escolha. Como num musical hollywoodiano, a câmera enquadra duas crianças que repetem as estrofes da canção, depois Gabriel, que rapidamente decora o refrão, e logo a cena, num intuito de expor um entrosamento entre identidades, se transforma num coro risível, com todos os presentes cantando em uníssono. É essa música, no momento de sua morte, que Gabriel irá balbuciar perdido no monte Mulanje.
Numa região marcada pela fome e pelo desemprego, explorada por grandes corporações capitalistas e pelo mercado turístico, é perigosa a leitura que o filme possa gerar acerca dos vendedores ambulantes, guias turísticos e caroneiros. Novamente, ponho em dúvida as intenções da direção. Não me parece uma leitura crítica, e isso se reforça nas ações de Gabriel, que por muitas vezes os trata como aproveitadores da moeda estrangeira, como traiçoeiros em pequenos golpes. Gabriel é o arquétipo do privilegiado de uma esquerda duvidosa, vivendo uma espécie de laboratório narcisista em busca da impossível compreensão do que é ser um marginalizado. Para escalar o monte que o destina à morte, o guia de Gabriel sugere que ele não vá com sua sandália feita de pneu, presente de uma tribo queniana. Gabriel, refutando seu estrangeirismo, nega-se a calçar um par de tênis, mas não se esquece de sua câmera Nikon. Gabriel é o típico humanista de Instagram, cujas boas ações carecem de imagens.
Embora a interessante sinergia entre o elenco, ou mesmo as escolhas estéticas que transformam a narrativa num curioso exercício naturalista que busca suporte no documental, “Gabriel e a Montanha” é um filme demarcado por um distanciamento sisudo e incoerente, de uma rasa crítica social, não funcionando muito bem como homenagem ou registro histórico. É um cinema turismólogo, cuja proposta passeia sobre elefantes e salta de bungee jump entre cachoeiras africanas.
Seus pés estão sempre cansados. Os cabelos já se aninham num tufão da Medusa. Seus braços, de onde jaz a tinta, têm sido o seu confessionário, partilhando das palavras e dos hematomas. Manana (Nato Murvanidze) está se transformando num monstro, um monstro que, convivendo com a pressão do âmbito doméstico, tem sugado o próprio sangue.
O longa de estreia da diretora georgiana Ana Urushadze é um obscuro drama familiar sobre vampiros diários, protagonizado por uma mulher, que também é mãe, esposa e escritora, sentindo a afronta do passado e das letras, afastando-se de qualquer tipo de laço afetivo – embora nutra um envolvimento praticamente messiânico com seu leitor (e talvez o único) mais assíduo, Nukri (Ramaz Ioseliani), no limiar entre a genialidade artística e a compulsão sexual. Manana, como um espírito errante vagando à esmo, enxerga em Nukri o caminho da salvação – nem por isso o “divino”; é como se ela estivesse presa num acordo diabólico, em que a oferta pelo sucesso puramente empírico oculta-lhe a exploração e a exaustão de seu corpo.
O isolamento, de ordem pessoal ou mesmo patológica, atinge uma aura horrorífica com uma trilha musical que flerta com o dodecafonismo, além de uma mise-en-scène que privilegia o extracampo, em determinados momentos quase se reverenciando ao estilo da cineasta argentina Lucrecia Martel, à luz de seu filme “A Mulher sem Cabeça” (La Mujer Sin Cabeza, 2008). Dessa maneira, o compasso rítmico de Scary Mother nos conduz a uma percepção expressionista da narrativa, ardiloso ao trabalhar com sugestões sonoras que provocam um notável estranhamento sem a necessidade de distorções visuais, aproveitando a precariedade de seus próprios espaços – que sentem a passagem de tempo no vento e no concreto.
Intrigante, no entanto, que Ana Urushadze se importe demais com afirmações psicológicas com o término de seu filme, assumindo uma última sequência deveras autoexplicativa. É quando Manana percebe que algumas histórias são “coisas de crianças”, ao passo que “Scary Mother” enxerga a sua fragilidade enquanto filme de estreia, de um estilo inventivo a um roteiro que se sufoca numa conclusão edipiana.
Um celular e um interesse – de quem e a quem? É assim que Michael Haneke nos apresenta Happy End, no enquadramento cada vez mais verticalizante, da diluição do espaço e da distância evoluída. Não se trata, no entanto, apenas de mais um trabalho sobre a incomunicabilidade, tema de fascínio na filmografia do diretor austríaco; aqui, a comunicação é parte do simulacro da rotina em tempo real. Os personagens participam de conversas, mesmo em suas ausências, ou ainda trocam palavras de amor – mas não se amam, porque já não são físicos.
As imagens de dispositivos móveis são “atrações” geográficas dentro da narrativa, e mesmo quando não é a definição da câmera de um aplicativo que vemos na tela, Haneke evita se aproximar de suas personagens. Não há tomadas de zoom e sua inevitável perda de pixels – ainda que as linhas se turvem e alguns movimentos se repitam, como se o tempo congelasse por milissegundos – uma imagem mumificada. Raros são os closes, e as personagens são pouco desmembradas nos enquadramentos. Tamanha distância também nos afasta. Elas não precisam da gente, elas já possuem as imagens uma das outras em seus aparelhos. E, dessa maneira, Haneke parece fazer um compêndio de sua filmografia. Da obsessão pela pornografia do vídeo, como vimos em “O Video de Benny” (Benny’s Video, 1992), na qual se deseja a reprodução da violência, à paranoia das imagens anônimas em “Caché” (2005), no momento em que ser observado, na sua ação mais cotidiana, torna-se uma ameaça.
Doze anos se passaram desde “Caché”. Voltando às suas teorias de abandono, Haneke confronta gerações e sua relação com a tecnologia – de todo modo, uma leitura que demonstra-se ingênua em alguns aspectos. Há um questionável moralismo ao sugerir, por exemplo, uma possível sociopatia adquirida pelo consumo dessas imagens modernas, de stories do Instagram a canais de youtubers. Se antes com “O Video de Benny” esse tipo de apresentação era palatável diante da dificuldade do acesso e pela inerente questão política como background (o rompimento da cortina de ferro e o prenúncio de grupos extremistas), Haneke parece confundir difusão, privacidade e alienação. Talvez por isso o seu elenco esteja tão mal aproveitado – com exceção dos irônicos personagens Georges Laurent (interpretado por Jean-Louis Trintignant, que parece estar numa sequência de “Amor” (Amour, 2012), além de assumir o nome do personagem que interpretou no mesmo filme), e Eve Laurent (Fantine Harduin), dotada de um imenso carisma, que contorna contradições com sua inocência – e sempre está de malas prontas para mudanças – à Austrália d’O Sétimo Continente (Der siebente Kontinent, 1989)? Isabelle Huppert e Toby Jones somam como parte do star system – não agregam; agem como seus papeis de burocratas.
À frente de suas metarepetições, quando essa crônica burguesa começa a trilhar entre o pessimismo de um realismo poético francês – a surpresa da mise-en-scène de um Renoir, de Boudus salvos das águas – e a sofisticada ironia de um realismo espanhol – como a caridade pútrida e aristocrática que Luis García Berlanga escancarou em “Plácido” (1961) –, Haneke deixa o seu apego à própria obra e apresenta um ato final assustadoramente festivo. O costumeiro misantropo fabulístico pode também ser lido por uma ótica humanista – depende da câmera para qual você estiver olhando, ou de quem estiver por trás dela.
“O acaso sempre foi o meu melhor assistente”, diz Agnès Varda, então com 88 anos quando gravou Visages, Villages, referindo-se aos felizes encontros com as histórias e imagens que tem colecionado por mais de 50 anos, compondo mosaicos autobiográficos dentro de sua própria obra.
Agnès Varda, a cineasta da memória superlativa: uma das figuras mais importantes do cinema moderno estreou bem jovem e num espaço dominado pelos homens. “La Pointe-Courte” (1955), um filme-monólogo precursor da nouvelle vague francesa, tinha o espaço – um porto –, como protagonista, circundado pela realidade mística das imagens em movimento, do verdadeiro ondular das águas e das silhuetas dos rostos. Inicialmente uma fotógrafa, Varda já demarcava sua frequente aproximação do romanesco à mais sincera seleção das reminiscências do cotidiano.
Varda está se curvando com o tempo – talvez seu corpo sinta o excesso da juventude inventiva que habita o seu espírito. Mantém-se em pé, grande parte das vezes, com uma bengala estilizada, complemente revestida por motivos florais. O topo de seus cabelos, alvos como uma praia de sal, deságua em cerdas de um pincel da cor da terra. Elegância e autenticidade. Varda, “catadora” das lembranças, as suas e as que ainda não as pertencem, aquilo que nos fazem férteis. Filma o ato de envelhecer, permitindo-se envelhecer – mas não de (se) esquecer. Não esquece, também, seu grande amor, o cineasta Jacques Demy, dedicando-lhe suas imagens, seus gestos e suas rugas. Desse modo, explorando o espontâneo imaterial do cinema, dos tempos revisitados nos grãos de fótons, Varda está sempre preocupada indiretamente com o efêmero.
Em “Visages, Villages”, dividindo a direção com o fotógrafo e street artist JR, a cineasta novamente se insere em um filme particular para universalizar o mundo das imagens. É ainda um filme sobre gerações que compartilham muitas estradas, como um road movie em que a avó divide suas histórias com um neto peralta. Varda e JR estão em busca de texturas, do tempo impresso ao redor dos olhos dos muitos rostos de pequenos vilarejos. Alguns olhos mais curiosos do que outros, uma porção deles tímidos – e outros tantos consternados.
Os próprios olhos de Varda sentem-se cansados – mas nunca atrofiados –, talvez por terem visto coisas demais. Desses olhares, JR e Varda reafirmam identidades, fotografando-os e posteriormente transformando-os em gigantescos paineis posicionados em (não-)lugares, como afrescos que se dissolvem com a água. Retratos, apesar de tudo; retratos nem sempre vistos, mas condenados às rugas também da tinta, ou das veias dos tijolos e do concreto. “Eu sou uma mística”, define-se Varda durante uma provocação de JR. Ela sabe que o tempo desbota as imagens e, para tê-las consigo, às vezes é necessário fechar os olhos. “Visages, Villages”, de um rosto tenro a um vilarejo melancólico. Um novo capítulo adicionado ao réquiem de uma das cineastas mais criativas em atividade – com um doloroso tom de despedida, de fazer os olhos marejarem. Que não sejam as últimas praias de Agnès. Que não sejam…
Em “O Espírito da Colmeia” (El espíritu de la colmena, 1973, de Víctor Erice), a pequena Ana (Ana Torrent) começa a questionar o que é a morte ao assistir ao filme “Frankenstein”. Para ela, o monstro da película sintetiza a ausência de vida; primeiro, por ser uma criatura que pode matar alguém, ademais, porque os mortos, mesmo quando em personas por seus atores, não mais respiram. Dar-se conta de sua finitude instiga-a de igual maneira que a amedronta. São assim as crianças, que brincam de trepar nos galhos das árvores ainda que seus responsáveis estejam a ralhar, e só percebem o perigo após caírem, soluçando – os sobressaltos que pouco depois logo se repetem. Erice, com sua infinita sensibilidade, capta o olhar inocente da criança quando ela descobre que existe o tempo e o acaso.
Ao emular inocência e efemeridade, o diretor norueguês Jonas Matzow Gulbrandsen dialoga intrinsicamente com o filme de Victor Erice em sua estreia num longa-metragem. No Vale das Sombras, está sempre ventando e as janelas estampam uma constante umidade, como o cinema chovediço e lamacento de Vincent Ward (de Vigil, 1984). As casas, tão pequenas e esparsas entre colinas, são acalentos que protegem do abate e da névoa noturna. À frente, uma floresta com árvores tão grandes e capazes de abraçar gigantes, uma floresta das fábulas de Grimm, daquelas que escondem mangues e de onde reverberam-se os uivos de lobisomens e os cantares das ninfas.
Pela manhã, Aslak (Adam Ekeli) descobre que algumas ovelhas foram assassinadas. Seu amigo Lasse (Lennard Salamon), mostrando uma imagem de um livro antigo, aponta para um devorador de criancinhas, um assustador lobisomem em rabiscos de nanquim.
Há um monstro à espreita.
Tão perigoso quanto a floresta que possivelmente esconde o monstro é o quarto do irmão de Aslak, intacto desde o dia em que ele saíra de casa. Os pôsteres de bandas ainda estão colados na parede e a cama permanece feita, ansiando o seu regresso. É por isso que sua mãe (Kathrine Fagerland) insiste em proibi-lo para visitações, logo, um espaço que incita imensa curiosidade. É uma forma de Aslak se aproximar de alguém tão próximo aos seus e que nunca conhecera, mas que habita as muitas memórias do lar.
Gulbrandsen se apega ao gótico para uma notável ambientação taciturna e fantasmagórica, reforçada pelas sombras e luzes leitosas da bela fotografia de Marius Matzow Gulbrandsen, irmão do diretor, e pelo acompanhamento musical de Zbigniew Preisner, que muito colaborou com o cineasta Krzysztof Kieślowski. Preisner é ainda o primeiro nome que surge durante os créditos iniciais, tamanha a sua importância para a construção do alquímico e poético que muito se faz presente em “Vale das Sombras”. A trilha do compositor polonês conduz a narrativa como um dedo que perpassa as páginas de um conto de fadas, dosando o suspense de um sintetizador 80’s com cantos quiméricos rimados ao vento.
Em sua estreia, Gulbrandsen demonstra muita segurança e delicadeza ao criar um universo tão fantástico quanto terrível. Ao embarcarmos no lúdico e obscuro imaginário de Aslak, certamente nos encontraremos com nossas crianças, e também com muitas de nossas insólitas memórias – a sensorialidade nos permite ter medo de, num repente, perdemo-nos entre as brumas.
Na primeira exibição de seu filme no Brasil, o diretor dominicano Nelson Carlo de Los Santos Arias mandou uma mensagem aos espectadores presentes explicando os motivos de sua ausência na Mostra – um problema com o seu visto foi apenas um dos impedimentos da viagem. Em seu texto, Arias não se esqueceu de citar o conturbado momento sociopolítico das Américas e suas más distribuições de poder, pensando ainda numa construção da História por homens armados, marcada por ditaduras, exploração de bens e da mão-de-obra, além dos fluxos migratórios. Em suas palavras, o descaso de “países esquizofrênicos” invisibilizam culturas e etnias, e é por isso que seu filme Cocote, depois de passar por alguns dos mais importantes festivais de cinema do mundo, é um material de afirmação identitária dentro de uma filmografia dominicana escassa, e, doravante, alvo de perseguições políticas.
Jardineiro de uma família rica e branca, Alberto (Vicente Santos) regressa à sua cidade natal após o violento assassinato de seu pai, com a condição de que deve retornar à casa de seus patrões no dia em que ocorrerá uma grande festa. A “volta do filho pródigo” ganha uma releitura bastante inusitada, uma vez que Alberto não participa mais dos cultos religiosos de sua família, agora convertido numa doutrina protestante, motivo pelo qual mudara seus hábitos e o modo de se vestir. A falta de diálogo e o fanatismo religioso são embates inevitáveis estando em casa, causando conflitos fraternais. Por tradição, Alberto, sendo um filho homem, precisa comparecer aos rituais fúnubres em memória de seu pai, assim como deve vingar a sua morte, renegando então seus ideais cristãos.
Filmado em 35mm e em digital, “Cocote” está a todo instante se experimentando, seja na mudança das janelas, ou nas sequências em PB intercaladas com imagens a cores sempre muito saturadas, destacando as peles negras de suas personagens. Nelson Carlo de Los Santos Arias enquadra os corpos pensando na fragilidade dos espaços, remetendo à fotogenia dos filmes do cineasta português Pedro Costa; sua câmera é um convite aos movimentos, acoando-se quando a paisagem é maior que o humano, ou assumindo-se ébria na tensão noturna, provocando a sincronia entre o tempo e seus atores num vórtice de 360o .
O diretor ainda parte de uma mise-en-scène de deslocamentos e contrastes dialéticos para pensar o sincretismo religioso; da encenação dramática ao uso da linguagem não-ficcional, sobrepondo sons anacrônicos às cenas dos cultos cristãos, ou de rezas do Pai-Nosso mescladas aos ritos afro-caribenhos, suas similaridades são perceptíveis. A montagem se aproveita também de imagens reais da mídia local, que propaga o sensacionalismo religioso através do exagero e do escárnio – são imagens de falsos testemunhos e de duvidosos exorcismos em choque com as captações documentais de verdadeiros rituais, nem por isso performáticos. Ao retratar diferenças de classes, no entanto, Arias se abstém de uma estética de comparações, reforçando contradições socioculturais com a retórica das imagens e a economia de movimentos nos planos. O resultado é um corajoso e inventivo filme de peso etnográfico, bastante duro, embora encontre a sua graça na ingenuidade das personagens, constantes na busca pela liberdade de se expressarem.
Estreante em longas-metragens, o holandês Daan Bakker se aproveita da linguagem da internet para criar um filme de experimentalismo raro, embalando o suprassumo dos pixels a um tipo de voyeurismo cibernético.
“Tempo de Qualidade” é um filme constituído por cinco capítulos, todos eles protagonizados por homens carentes de maturidade, como se parte de sua forma fílmica, jovial e tecnocrata, ratificasse, com ironia, um atraso cognitivo e suas ansiedades particulares. Na primeira história, por exemplo, um círculo (criado pelo Paint?), como mímese humana, desabafa com um amigo. Ele alega estar farto de um tradicional almoço em família que, ano após ano, não incorpora nenhuma novidade à sua vida, como se a possibilidade de inserir mudanças no “roteiro” dessa reunião familiar, na simples tarefa de cambiar um prato de comida, ou de não dar atenção a uma piada de um parente – há muito tempo já esgotada –, acarretasse em algo drástico. Em outro capítulo, um marmanjo não consegue se relacionar socialmente, limitação que teria sido desencadeada devido a um acontecimento banal de sua infância (uma professora o teria repreendido quando ele tinha três anos, dando-lhe palmadas no traseiro). Ao adentrar uma “máquina do tempo” para então evitar seu trauma, ele se dá conta do “perigo” que é crescer, suicidando-se ao defrontar seu passado. Daan Bakker expõe a fragilidade masculina, desvinculando-se de símbolos heroicos e normativos.
Anárquico, porque não se prende ao verbo e é inventivo com os letterings, porque também permite sua câmera se libertar dos enquadramentos corriqueiros e modistas, mesmo quando utiliza um drone – com o cuidado das imagens não se transformem num plástico publicitário e pirotécnico –, ainda assumindo uma montagem clipática num conto sobre abduções alienígenas, o diretor faz de “Tempo de Qualidade” uma junção de uma melancólica comicidade a um sci-fi não-progressista. Um filme obscuro e divertido sobre gêneros narrativos, criando um reboliço no status quo – da exterioridade social ao campo de expectativas do espectador.
Documentário informativo sobre o surgimento da Cinecittà, um conjunto de estúdios cinematográficos inaugurado em 1937 em Roma. Criada com o objetivo de originar um complexo industrial tão poderoso quanto Hollywood, fora uma iniciativa de Benito Mussolini, que também era editor da revista Cinema, um dos maiores veículos impressos do período, cuja importância garantiu até mesmo a criação de um prêmio dedicado às obras cinematográficas, inspirando-se no Oscar.
De cunho didático, nem por isso desinteressante, o filme é composto por imagens de arquivo que mostram o auge das produções italianas no momento da ascensão fascista, intercalando-as com ilustrações que dramatizam alguns dos casos orais fornecidos pelos entrevistados, ou ainda por monólogos em PB com diversas mulheres que interpretam atrizes famosas da época, como Doris Duranti, símbolo do regime fascista, e Alida Valli.
Segundo um dos depoimentos, a Cinecittà “foi formada por golpes e pelo sucesso a qualquer custo”. Na Itália dos anos 1930, instalou-se uma “legião da decência”, preocupando-se em mostrar a burguesia e o enaltecimento de valores morais e paternalistas. As personagens eram enrijecidas e viviam em mansões, traçando uma hierarquia de classes sociais. Essas narrativas insípidas e de uma utopia traiçoeira escondiam as contradições do período, logo, por ironia, as obras com tais características eram conhecidas como “filmes de telefones brancos”, porque sempre havia um plano de um telefone branco em algum cômodo das casas, símbolo que ficou atrelado à mesocracia. Paradoxalmente, no backstage das produções, rolavam muitas drogas, prostituição e abusos contra as atrizes, humilhadas e expostas sexualmente a troco dos holofotes.
Em “Cinecittà Babilonia”, ao ressuscitar algumas das mais importantes atrizes italianas da época, no formato de monólogos que denunciam os abusos que marcaram suas carreiras, Marco Spagnoli faz uma singela e importante homenagem às mulheres que ajudaram a construir a Cinecittà, mas que sempre estiveram à sombra e à violência dos homens.
A ideia de uma “vítima-serial” é no mínimo curiosa, pensando que o A Morte Te Dá Parabéns se apropria de loopings temporais extraídos do “Feitiço do Tempo” (Groundhog Day, 1993, Harold Ramis), da caracterização dos serial-killers nascidos no gênero slasher – sanguinolentos filmes de muito sucesso nos anos 1980/90, e que teve como precursor o clássico “Halloween – A Noite do Terror” (Halloween, 1978, John Carpenter) –, e ainda do universo dos teen movies, que revela a opressiva competição por um espaço de destaque entre os jovens.
Encovada no último dia de sua vida, Tree (Jessica Rothe) ironicamente tem despertado num mesmo quarto (des)conhecido, manhã a manhã, espreitada pelo demônio do eterno-retorno, que lhe sussurra através de um adesivo colado na porta: “Este é o primeiro dia do resto de sua vida”. É o décimo-oitavo dia de uma segunda-feira, dia também de seu aniversário, data escolhida para ser assassinada por um misterioso sujeito mascarado nos arredores do campus.
Tendo em vista essa premissa, vale a pena citar um filme ainda mais interessante lançado no semestre passado, “Antes que eu Vá” (Before I Fall, 2017, Ry Russo-Young), que teve uma passagem silenciosa em nossas salas de cinema, e que trabalha com representações semelhantes. Os dois filmes são protagonizados por personagens que oprimem, por vezes não percebendo a dimensão de suas ações, e que, presas cada uma em suas repetições, deparam-se com a morte ao findar do dia.
Em “A Morte Te Dá Parabéns”, como em muitos filmes sobre loopings temporais, Tree precisará rever seus conceitos, principalmente a maneira como age com as pessoas; a chave moralizante que a livrará desse constante pesadelo. Aqui, por mais que ela morra de diversas formas copiosamente, o diferencial, e talvez o elemento mais inusitado, é que a garota desperta sentindo os traumas das colisões, perfurações e demais violências sofridas a cada morte – o fatídico dia sempre se repete, mas o corpo de Tree, já muito debilitado, ao menos infere o seu fim. Seu próprio corpo torna-se, dessa forma, um paradoxo temporal.
Sem mascarar clichês do gênero, espalhando falsas pistas ao longo do filme, o diretor Christopher Landon até consegue achar soluções visualmente estimulantes para a criação de um clima de enclausuramento, permitindo que a própria câmera simule a dúvida e a perturbação de sua protagonista. Perigoso, no entanto, quando se tem a reincidência como forma, é terminar cada dia de Tree com uma sentença fácil – a figura do assassino, bastante frágil, é a representação frequente de um deus ex machina, onipresente e onisciente, que se encaminha a um desfecho preguiçoso, não mais satírico, e desengonçado – e, a meu ver, não há espaço para algo mais “sobrenatural” na trama a não ser o próprio tempo.
As mãos de K. (Ryan Gosling) estão sempre sujas, como se ele passasse grande parte de seus dias trancafiado numa oficina mecânica. Nem a constante chuva, como outrora vimos num já longínquo 2019, é capaz de limpá-las – quando não de graxa, mãos que carregam sangue. K. é um blade runner à espreita de androides aposentados, androides que depois de 30 anos em serviços de luxúria, escravo e burocratas, entenderam a dorsal humana e almejam viver entre seus criadores, como parte daquilo que também são, humanos. Um filme protagonizado por Pinocchios – a ingenuidade da evolução. Pinocchio, que pede à fada madrinha para ser um menino de verdade, logo ele, um pedaço de pinheiro esculpido pelas mãos de um homem.
O que difere, então, humanos e androides, da concepção de alma a capacidade da reprodução biológica? De possuírem suas próprias recordações, ou de uma memorobília implantada como um chip de computador? – a memória produzida pelo afeto das imagens, como filmes sendo dirigidos, orquestras em regência com a finitude. Um sortilégio, de todo modo, dos vivos.
A distinção, poderia então ser, esse estratagema milenar de hegemonias, da indolência e da inevitável decomposição.
Distancio-me do clássico de 1982 de Ridley Scott, um desses meus filmes favoritos, filmes que crescem quando revisitados por mais de uma vez em salas de cinema, em salas de memórias. Distancio-me porque, à priori, nunca passou pela minha cabeça que “Blade Runner” pudesse, ou merecesse, ter uma continuação. E isso também é humano, essa falsa incapacidade de se adequar facilmente às mudanças.
Mas Denis Villeneuve respeita e atualiza o universo de insurreição dos androides em Blade Runner 2049. Embora uma perigosa responsabilidade, o cineasta franco-canadense não trata essa sequência como fardo, tampouco como melancolia nostálgica – insere-se na forma como ela bem nasceu: grandiosa, e antes de tudo, como ficção científica. Sobre o clima, um noir pluvial e nebuloso, Villeneuve e o diretor de fotografia Roger Deakins continuam com os torrenciais de Andrei Tarkovski, homenageados na versão de 1982, o insalubre das poças d´água da Zona em “Stalker” (1979), semeadas pelos saltos ingênuos de um cão vadio, ou pelo tempo narcótico de sobrevoos em “Solaris” (1972), quando nem sempre alguém se levita – e quando o faz, já está morto.
Distancio-me – porque assim, a recepção é calorosa e mais perceptiva.
Como cinema e como ficção científica, “Blade Runner 2049” funciona com narrativas de expansão. Como ficção científica, questionando a nossa condição receptiva das coisas (nós, humanos, fadados ao esquecimento, à substituição), a visão de um futuro nada utópico, nem de perto tão realista, e, desta forma, tão incerto – e é essa incerteza que dá tom ao filme. Como cinema, trabalhando com a verdade das imagens, essa sua singela capacidade de ressuscitar o homem e o divino, não importa se Jesus de Nazaré, ou Elvis Presley num palco cantando Can’t Help Falling In Love – por mais algumas vezes, o cinema como máquina do tempo. E é nesse ponto que “Blade Runner 2049” mais acerta, ao brincar com a holografia, com a experiência de sobreposições e do projetar, para então questionar matéria e memória – porque é o que somos, não?
MERCURIALES é mais uma prova de que o catálogo da distribuidora Supo Mungam Films é o mais interessante atualmente. O trailer engana bem, pareceu-me um filme sobre a solidão nas grandes cidades, com algum aspecto jovem-indie-instagram. Que bom que o filme não é nada disso! "Mercuriales", primeiro longa do francês Virgil Vernier, se passa num "tempo muito distante, um tempo de violência, uma guerra que se propagava por toda a Europa", e a guerra aqui é ideológica, étnica, cultural. "Mercuriales" é um ensaio político sobre os imigrantes, a intolerância, a exploração da mão-de-obra, o medo de estar nas ruas, o medo de também não conseguir sair de casa. E com um olhar muito sensível sobre as mulheres, sobre a amizade, o fraterno, a relação dos corpos sem vergonha, ou sem desejo - livres, humanos, um olhar sincero e não-sexista. Um tempo tão presente, mas um tempo que (se) engana, que surge à sala em forma de coruja, que arma fogueiras e se esconde nas câmeras de vigilância. E essa trilha que exerce distância, que também nos desloca: uma violência-eletrônica, supersônica, o tempo de abraçar e de afastar-se de abraçar. "Mercuriales" é sobre o planeta Mercúrio, onde não existe o ar. "Mercuriales" é sobre a Terra, onde o ar existe, mas é difícil de respirar.
Saura dá corpo à câmera, enquanto o corpo humano, essa caixa complexa de poesia, debruça-se ao mistério dos abraços, quando o solado dos pés decidem então cantar.
Tarantino é aquele aluno repetente, que copia a lição de casa dos outros, e, inclusive, a própria lição dos anos anteriores. Contudo, um bom aluno. Mas que brinca demais com o baralho, falta no dia da prova e, no ano seguinte, volta para a oitava série. Dessa vez, Tarantino não fez muito diferente. Pelo menos trocou o baralho pelo jogo de tabuleiro "Detetive". Mas ainda não passou de ano, o que é uma pena. Durante 4 capítulos foi um aluno bem disciplinado, mas por querer explicar demais as respostas da prova, entregou um último capítulo horroroso, prolixo, aquele que o fez bombar de novo.
A Metamorfose dos Pássaros
4.3 41No livro "As Ondas", Virginia Woolf transforma o pensamento-em-continuo num relicário dessacralizado pelas ausências. Amigos compartilham suas memórias, por milhas inventadas, a partir da morte de Percival. Trata-se, portanto, de uma eternidade romântica que guia todas as personagens através dos anos.
Veio-me à mente Woolf enquanto assistia ao longa de estreia da diretora portuguesa Catarina Vasconcelos, "𝐀 𝐌𝐞𝐭𝐚𝐦𝐨𝐫𝐟𝐨𝐬𝐞 𝐝𝐨𝐬 𝐏á𝐬𝐬𝐚𝐫𝐨𝐬", no qual o documento ainda se recorda da imagem letrada. Assim como a escritora modernista, as associações e metáforas de Vasconcelos e sua família guiam um filme em natureza-morta. A memória é uma paisagem de movimento imaginado. Documentar-se por intermédio dos detalhes, das mãos que já se tingem às rugas (ecoando as mãos catadoras de Agnès Varda), faz da metamorfose um exercício singular sobre o luto e o cinema. Talvez porque aquilo que é externo à película - o que decompõe fora do quadro numa cesta de café-da-manhã, ou no tronco de uma árvore -, ainda seja passagem de uma vida.
Um dos grandes filmes desse ano. Para guardar bem na retina.
O Paraíso Deve Ser Aqui
3.7 50 Assista Agora“Sou de Nazaré, Palestina”
“E onde fica isso? Israel?”
“Não! Na Palestina!”
Elia Suleiman é um personagem de slapstick comedies, quase um clown, quase um mímico; utiliza o seu corpo para caminhar e partir, enquanto seu rosto é de um efeito Kuleshov, o mármore de Buster Keaton. Ele já não se espanta vivendo entre-imagens de uma cultura de guerra; detém uma expressividade doce no olhar, embora nunca consiga sorrir ou proferir meia dúzia de palavras, porque, quem sabe, esteja em voto de silêncio pela Palestina. Em O Paraíso Deve Ser Aqui, para afirmar a sua condição de cineasta e a sua identidade palestina, Suleiman se autorrepresenta, documentando-se, e faz de sua presença um diário de denúncias.
Num primeiro momento, sua atenção é para o cotidiano de pessoas simples do bairro onde reside, seja um ladrão de limões, ou um velhinho cheio de histórias sobre caças. O diretor passa o dia fumando e bebendo. Veste-se com ternos, camisas coloridas e possui um chapéu tipo fedora sobre os cabelos grisalhos. Quando decide viajar à Paris, assusta-se com seu estrangeirismo, a indumentária tornando-se traje de turista, um Monsieur Hulot (Jacques Tati) da Palestina, que rapidamente identifica os contrastes culturais e sociais entre os seus destinos. Diferente de Hulot, seu incômodo não parte da burocracia e da tecnologia predatória, mas da indiferença do Estado pelos imigrantes e pela exploração da mão-de-obra.
Empolga-se, no entanto, com a maneira de se portar e vestir das jovens francesas; nota a liberdade de não serem impostas a dogmas extremistas, assim como a possibilidade de transitarem sem medo e sem vendas nos olhos. Contudo, também encontra uma França paternalista e fantasmagórica, recolhida no evento do Dia da Bastilha, no qual vangloriam a revolução da burguesia e o exército. Aeronaves cortam o céu e carros de combate atravessam faixas de pedestres. Talvez o Paraíso ainda não seja em Paris. De todo modo, são apenas fogos de artifício que estouram no manto da noite. É por isso que é melhor manter-se calado, para atentar-se às bombas e aos ruídos, já que o som de uma simples latinha sugada pelo bueiro pode evocar uma lembrança violenta.
Em Nova Iorque, é questionado sobre o seu ofício de cineasta, o qual lhe possibilita ser um “cidadão do mundo”. Finalizam ainda: “você se considera um perfeito estrangeiro?”. Ele nunca responde, permitindo que o filme se encontre cada vez menos em uma universalidade. A imagem é uma esquete que não se conclui – resiste em sua intermitência. O compromisso de Suleiman é com a sua defesa identitária e com a luta pelo reconhecimento de seu povo. Da gag cartunesca e barulhenta, países colonizadores são dominados pelo interesse do capital: alimentar a corrida armamentista faz parte do jogo.
Sua condição de estrangeiro é imperfeita, não basta-lhe ser um cineasta reconhecido se a sua língua e sua própria etnia forem motivos de reforços e seguranças em aeroportos. Suleiman encontra no cinema uma maneira de libertar-se do fardo da sobrevivência – o cinema é um privilégio geográfico, existem vidas atrás dos quadros e a sua sina é expôr o não-visível. Com humor e sensibilidade, ao menos por uma noite, o Paraíso é a Palestina, não existe lugar melhor no mundo para se viver, e os jovens merecem sonhar com um dia de festa.
Koko-di Koko-da
3.2 21Esta será a história de uma família de coelhos.
Para que ninguém se engane ao adentrar a sala de cinema: se passará, também, durante uma temporada de caça.
Meu fascínio pelo cinema é a possibilidade da surpresa – e, quando tal elemento se manifesta, é melhor deixá-lo oculto, cobri-lo de volta com seu realismo impossível e permitir ao outro um pouco da noite. Gosto quando o fantástico se experimenta para além de um único gênero, quando o cinema se sente forte em sua autoconsciência, da transparência sendo rompida. Em “O Discurso Cinematográfico”, Ismail Xavier vai chamar isso de Cinema da Imagem Arquétipo, quando há disjunção e descontinuidade, não essencialmente abstratas. O autor cita, por exemplo, Maya Deren e seu “cinema-ritual” – um cinema do controle, da libertação do inconsciente. Koko-Di Koko-Da (2019) talvez seja uma das melhores surpresas que tive esse ano, articulando-se em uma estratégia ritualística.
Do prenúncio da morte à fabulação infantil, o diretor Johannes Nyholm transforma um brinquedo lúdico, de evocação às cirandas nórdicas, em um pesadelo contínuo. Uma caixinha de música é um portal para más recordações. Recordar uma morte não é só estar preso no passado, é também negar a própria existência. Longe de querer se reduzir a uma alusão ao luto e/ou à uma crise matrimonial, “Koko-Di Koko-Da” formula o medo da permanência – estar vivo é quase uma maldição quando só se consegue se lembrar. E então, o filme se provoca e se repete, uma, duas, três vezes, é um exercício de memória, a memória que se forma d’um cataclismo espiritual.
O tempo se desconstrói em sua inércia, na inevitável presença do diabo e o cantarolar daqueles que estão sempre partindo. Nyholm tece a luz da lanterna, o olhar da mulher e a fuga do homem – invoca o Black Lodge de “Twin Peaks” (David Lynch), um limbo primitivo, mas humano. E das repetições, revela-se um filme possuído por outros filmes, contudo, incomoda a quem vê, se da plateia ou do além-enquadramento, por nenhum deles ser sobre exorcismos. Penso que uma obra realmente assustadora não é delimitada apenas pela ausência de esperança – nesse ponto, “Koko-Di Koko-Da” quase me fez chorar com um simples teatro de sombras. O que me aflige é um recomeço.
Wasp Network: Rede de Espiões
3.1 116 Assista AgoraNa coletiva que antecedeu a abertura da 43ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o cineasta francês Olivier Assayas revelou que a grande dificuldade em adaptar o livro “Os Últimos Soldados da Guerra Fria” (2011), do escritor brasileiro Fernando Morais, era dar conta de todos os seus muitos dados históricos e personagens. De fato, um enredo concentrado em quase dez anos – do começo dos anos 1990 até a virada do milênio – exige certo fôlego, mesmo para um longa-metragem. Embora a importância sobre um caso pouco conhecido, Wasp Network (2019), em tradução livre “A Rede Vespa”, o filme resultado a partir dos fatos descritos por Morais, fragmenta o tempo num ritmo enervado e rocambolesco.
“A Rede Vespa” foi um grupo de espionagem cubano que atuou nos Estados Unidos com o intuito de impedir ataques terroristas anticastristas em Cuba. Para além do regime de Castro, que gerou descontentamento popular ao provocar um alto índice de inflação e escassez de recursos naturais, o interesse estadunidense pela ocupação do território cubano e destituição do sistema comunista foi responsável por mais de cem ataques terroristas, principalmente em locais que afetavam círculos turísticos e sociais.
Respeitando uma identidade latino-americana, Assayas escolheu um elenco multinacional que representasse as origens da maioria de seus personagens – ainda que sua opção desague na higienização de um star system, trazendo intérpretes como Penélope Cruz, Édgar Ramirez, Gael García Bernal, Leonardo Sbaraglia e Wagner Moura; um elenco que ao menos poderia favorecer um sólido desempenho dramatúrgico, mas seu subaproveitamento acaba por deixar os personagens sempre à deriva. O exemplo mais pontual é o arco do personagem do brasileiro Wagner Moura – ainda que, na história, seja cubano. Acompanhamos a ascensão de um conspirador, sua vida privada prejudicada pelos interesses norte-americanos, mas também suas recompensas materiais ao infiltrar-se em ações ilícitas. Uma vez inserido à trama, que preza por ações e personagens paralelos que nem sempre se cruzam, assume o seu co-protagonismo ao lado de Édgar Ramirez, mas desaparece de uma forma tão abrupta quanto inquietante.
Exibido em competição do último Festival de Veneza, “Wasp Network” passou por uma remontagem para lançamentos comerciais. Segundo Assayas, as muitas informações históricas precisaram ser reajustadas para uma melhor compreensão do público, e, com isso, o filme ganhou mais três minutos. Curioso, no entanto, como tudo soa tão rápido e inconsistente, por vezes confuso, prejudicado pela escolha em saltar continuamente por linhas temporais distintas.
“Wasp Network” se alimenta do desejo de ser um filme de espionagem, embora atinja muito mais e com facilidade um tipo de “turismo visual” entre dezenas de locações no continente americano e personagens sem tridimensionalidades. Penso que um formato maior, quem sabe um material seriado como a elogiada minissérie “Carlos, o Chacal” (2011, Olivier Assayas), ou ainda um recorte específico sobre o objeto retratado, “Wasp Network” seria muito mais interessante de ser acompanhado. Ao querer abranger História com a vida privada de exilados para intensificar emocionalmente seus personagens, Assayas transforma o seu thriller político em uma novela exaustiva e pouco inspirada.
Ad Astra: Rumo às Estrelas
3.3 850 Assista AgoraQuando Georges Méliès (Le Voyage dans la Lune, 1902) direcionou a sua câmera para uma Lua humanizada, a proposta imaginativa e visual de uma clássica epopeia de Jules Verne, fez do cinema a linguagem universal das odisseias espaciais. Dizem ainda os conspiradores: o homem nunca pisou na Lua, não passando de uma representação bidimensional e fotossensível – e um grande cineasta estaria por trás de tais armações, Stanley Kubrick, não por acaso a mente criadora de “2001 – uma Odisseia no Espaço” (2001: A Space Odyssey, 1968). Se durante a guerra fria a conquista espacial fazia parte de uma imagem da polarização política e de propósitos hegemônicos, de um “perigo socialista” frente à demagogia republicana, a iminência de um conflito bélico e nuclear também se fez tema em alguns filmes de ficção científica até o começo dos anos 1990, como “Miracle Mile” (dir. Steve De Jarnatt, 1988), que, embora não se trate de viagens espaciais, deixa claro que nunca estaremos suficientemente bem e em segurança na Terra. O deslocamento gravitacional do homem, sumariamente conformista e patriótico, logo se transformou em uma viagem em busca de seu autoconhecimento e por novas formas de convivência em sociedade. Na maioria das vezes, contudo, a sobriedade desses filmes atraíram imagens de um futuro pessimista.
James Gray talvez seja um dos nomes mais importantes do cinema independente estadunidense deste novo século, um cineasta que gosta de trabalhar com o estilo clássico que consolidou Hollywood, conhecido ainda por sua elegante mise-en-scène; filmes de quem possui um requintado repertório adquirido pela cinefilia, não por inserir incessantes referências como um Quentin Tarantino, mas por salientar um pleno domínio da gramática cinematográfica. De todo modo, citar ainda Tarantino nesse mesmo parágrafo não é algo fortuito: “Era uma vez em… Hollywood” (Once Upon a Time in Hollywood, 2019), um dos destaques da última edição do Festival de Cannes, foi visto como uma fuga da “zona de conforto” do diretor, quando na verdade, ao resgatar a memória da época de ouro de Hollywood, Tarantino mais diz de si, sua cinefilia e sobre o cinema do que em qualquer outro filme que tenha feito – a opção por trabalhar com a emoção à luz um período histórico, assim ressignificando uma triste atrocidade (o caso Sharon Tate e a família Manson). Nesse sentido, percebo uma ligação muito forte com Ad Astra, pois dessa paixão por Hollywood surge uma obra que reverencia, também, as estrelas do cinema, trabalhando com o gênero da ficção científica, à contramão do que James Gray já produziu.
Ao abrir o filme com um letreiro sobre “um futuro onde o homem busca as estrelas”, penso que Gray não esteja preocupado unicamente com o misterioso campo intergalático, mas antes com uma repartição do tempo, o propósito do cinema como memorabilia histórica; justo então as imagens de grandes ícones do cinema, como Donald Sutherland e Tommy Lee Jones, da forma como são apresentados e respeitados, serem homenageadas em um filme sobre reconciliações. “Ad Astra” mostra como é envelhecer no cinema e fazendo cinema, estrelas que daqui a alguns anos estarão mortas, como já aconteceu com Orson Welles, Marlene Dietrich ou Christopher Lee, embora ainda presentes em movimentos de suas sombras projetadas.
Pensei muito em meu avô João, um dos responsáveis de minha cinefilia, e dos filmes que ele tanto gosta e dos quais sempre conversa comigo, citando os atores que marcaram sua época. Dei-me conta disso só ontem assistindo ao filme de James Gray, de que acompanhei a trajetória de Brad Pitt, praticamente desde o início de sua carreira, e que agora não esconde suas rugas na tela. No filme de Tarantino, Pitt é um flanêur, um espectador de sensações – a força da narrativa; e no filme de James Gray, afirmando a sua sensibilidade dramatúrgica, potencial para personagens plurais: em “Era uma Vez…”, um dublê de cinema, aquele que se coloca no lugar dos astros; em “Ad Astra” é Roy McBride, um oficial da aeronáutica americana que parte em busca de seu pai em uma missão espacial.
Ao sermos guiados por uma Lua já habitada por humanos e projetada à hermenêutica cosmo-capitalista, McBride nos diz: “… Nós [os homens] somos destruidores de mundos”. É um de seus muitos monólogos que tecem a narrativa – Gray em demarcação de gêneros; a narração no filme se comporta como testemunho e confessionário, tão caros a um clássico noir investigativo. Em um de seus segredos compartilhados com o espectador, Roy McBride conta que o elo que possuía com o seu pai era justamente o cinema, as tardes assistindo ao lado dele aos musicais antigos e em preto e branco – no futuro pensado por James Gray, o cinema ainda resiste como partilha (quantos anos já terá? 150? 200?). De todo modo, é um futuro com escassez de recursos naturais e disputas territoriais.
Mas James Gray não se limita ao discurso, sua fábula parte de um reencontro para evidenciar o que ainda existe de emocional no ser humano. Nesse reencontro, um pai que é Tommy Lee Jones, a promessa de reconciliação não é um abraço em aneis de Saturno, é a união de sons e imagens em sapateados monocromáticos. Do esquecimento e abandono paterno, Gray sintetiza a memória de quem se imagina no impossível – o cinema cria mundos, os que já foram destruídos pelo homem, mas também os que são frequentemente imaginados e compartilhados por ele. Não importa se sua leitura é extremamente romântica, e, ainda que seu desfecho seja deveras burocrático, o que “Ad Astra” nos deixa é uma promessa de constantes reinvenções.
Sinônimos
3.4 50 Assista AgoraO que mais gosto neste novo filme de Nadav Lapid é, como o próprio nome sugere, SYNONYMES, que os acontecimentos não partirão das diferenças socioculturais, mas sim daquilo que se assemelha, do que se aproxima, independente se, a priori, a França, país europeu, defenda uma igualdade de valores a todos os cidadãos, franceses ou não.
Nesse ponto é que Lapid consegue ser mais sagaz. É também a dominação colonial e do capital que alimenta uma cultura de guerra, dos extremismos, e, mediante aos esteriótipos, agora sim, mediante às diferenças, o "outro", o estrangeiro, sumariamente aquele de religião muçulmana, ainda é visto como um possível membro extremista, um perigo à nação da Marseillaise.
Ao fugir de sua identidade, dos valores que o desaproximam de uma liberdade utópica, o protagonista Yoav (Tom Mercier), um jovem ex-combatente israelense, é abraçado pela burguesia parisiense. Sua moeda de troca: suas histórias, a neve, o frio da montanha, a hipotermia, o sangue que viu sendo derramado, os contos proibidos em sua própria família, agora alimentando o "mea culpa" de um casal apadrinhado por famílias de industriais.
Yoav torna-se, então, agressivo, agressivo como a câmera que persegue luzes, o concreto, os paralelepípedos úmidos dos Champs Élysées, as boulangeries, ou a Ponte Alexandre III. Yoav não sabe mais o quê é, se é homem, se é bicho, se é verbete de dicionário, se pertence à luta armada, ou se seu destino está fincado à página de um Victor Hugo.
Os Mortos Não Morrem
2.5 465 Assista AgoraDepois de mostrar que a rotina tem o seu encanto em "Paterson" (2016), Jim Jarmusch faz de "The Dead Don't Die" (2019) o seu filme mais autoconsciente e niilista -- não há uma preocupação em subverter "zombies movies", e, nesse ponto, o filme é até bem quadrado, mas antes se porta como uma assimilação da própria obra com o gênero. Tenho a impressão de que ele funciona como um "À Prova de Morte" (2007) do Tarantino, ou "Os Amantes Passageiros" (2013) do Almodóvar; todos estes filmes "menores" buscam na autorreferência o desejo pela experimentação estética e política.
Diferente, por exemplo, de um "Despertar dos Mortos" (1978), no qual George Romeno desloca os mortos-vivos para um shopping, símbolo da vida cosmo-capitalista, Jarmusch codifica a personalidade materialista nos próprios zumbis, nem sempre carcomidos, até bem aprumadinhos, mas que, para além de sua sede de sangue, ruminam os caminhos que traçaram em vida, sempre submetidos a um tipo de necessidade física ou a um pecado capital. São zumbis que vagam com um princípio de consciência à procura de seus alicerces, sejam estes aparelhos celulares, doces ou xícaras de café. Os vivos são percalços que precisam ser contidos, caso eles os impeçam de alcançarem os seus vícios.
[Tem algo de "Manhã de Santo António" (2012) aqui...]
Uma cidade pequena e conservadora, um Buscemi que usa um boné com os dizeres "Make America White Again", um policial que ostenta um carro "descolado", um nerd viciado em filmes de terror... Do arquétipo fatalista, e, porque não, também a partir do didatismo, Jarmusch acaba por ser até bastante moralista. A crítica nem precisava trabalhar com uma retórica do diálogo observativo, acho que o erro do diretor é justamente fechar o filme com conclusões ensaísticas.
Gosto, no entanto, de como o "star system" nos é apresentado, um Iggy Pop que sai do túmulo e observa a objetiva por alguns segundos ("sim, sou eu mesmo!), uma Selena Gomez patricinha, uma Tilda Swinton meio-samurai e meio-elfa, fora de um eixo terrestre. Das figuras do imaginário popular, ao que inclui, também, a ressurreição de Samuel Fuller -- embora não presente em cena, mas que no imaginário extrafílmico vaga em caracterização de zumbi --, o estrelismo é reforçado como esteriótipos da indústria cultural.
Pode até soar mais um artifício moralista, embora seja interessante como o filme tem ciência do que nos apresenta, como se todo o elenco, Iggy Pop, Selena Gomez, Steve Buscemi, Bill Murray, Adam Driver, Chloë Sevigny ou Tilda Swinton, interpretassem não apenas a si mesmos, mas "um elenco de Cinema". Inicialmente sitiados na delegacia de polícia, como em "Assalto ao Décimo Terceiro Distrito" (1976), os oficiais precisam seguir um roteiro. De mocinhos, descobrem-se máquinas de matar. Não é uma "vingança" da Natureza, a Terra em mudança de rotação para fazer justiça contra a humanidade; é só a homem engrandecendo a América novamente. Desse ensaio, nasce uma farsa anticapitalista e anti-Hollywoodiana.
E ainda tem o uso curioso da música-tema, "The Dead Don't Die", do cantor country Sturgill Simpson. Explorada como promoção comercial, a única canção em todo o filme, que se repete por pelo menos três vezes, a cada sequência é ressignificada pelas imagens. Uma mesma música pode ser a companhia ingênua das estradas, ou uma elegia aos mortos errantes, ou simplesmente um contraponto estético ao próprio discurso político. Usá-la nos créditos finais reforça mais uma vez que, de fato, tudo o que vimos é só um filme do que já estamos vivendo. Piegas? Sim. Mas diverte.
Bacurau
4.3 2,7K Assista AgoraRevendo "Ilha das Flores" (1989, Jorge Furtado) na abertura da 30ª edição do Festival de Curtas-Metragens de São Paulo, foi difícil não lembrar de um filme que mexeu muito comigo semana passada, talvez a principal estreia nacional do ano, "Bacurau" (2019, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles).
A começar que os dois filmes abrem com imagens do planeta Terra. Em "Ilha das Flores", um globo terrestre para fins didáticos; e em "Bacurau", uma imagem via satélite que antecipa o contraponto tecnológico que permeará a narrativa. Do todo modo, outras características aproximam as duas produções: 1) A Terra aqui retratada, claro, é única E não é plana; 2) A câmera pontuará a geografia correspondente à América do Sul. Porque Bacurau é uma cidade brasileira. Porque a Ilha das Flores também está localizada no Brasil. Ambos os filmes, no entanto, usam nomes fictícios para as suas geografias genuinamente brasileiras, de modo algum afastando-se de uma realidade ainda eminentemente latino-americana; nossa exploração colonial, nosso eterno espectro escravocrata e a nossa falta de consciência de classe.
Furtado, discursando na abertura do festival, disse assustar-se por seu filme continuar sendo tão atual. Para quem não se lembra: a Ilha das Flores é um local abandonado pelo Estado, onde mulheres e crianças não são tratados como "gente". Elas sobrevivem alimentando-se de restos de lixos que um "colono" julga não serem viáveis para o consumo de seus porcos. No filme de Mendonça Filho e Dornelles, a falta de comprometimento do governo com a pequena e pacata cidade de Bacurau implica no desenvolvimento local. Isso não impede, por outro lado, que os nascidos em Bacurau sejam também lembrados como cidadãos que conseguiram estudos, saúde e bons empregos, informações reiteradas em um emocionante discurso proferido por Plínio (Wilson Rabelo) durante o enterro de Dona Carmelita (Lia de Itamaracá), duas figuras importantes para os bacurauenses.
Desse modo, o que separa "Ilha das Flores" e "Bacurau" são 30 anos de (uma jovem) democracia e dos avanços das políticas públicas, mesmo que fadados à corrupção e ao egoísmo, mas que facilitaram a acessibilidade do pobre e o seu reconhecimento como "gente".
"Quem nasce em Bacurau é o quê?", pergunta a Forasteira interpretada por Karine Teles, ao chegar na cidade. "Gente", responde um garotinho.
"Gente" é um coletivo de pessoas. É também uma representação de humanidade. Como sabemos, os humanos possuem telencéfalos altamente desenvolvidos e polegares opositores, diferente dos porcos.
Fascina-me, então, o quanto nesses 30 anos que distanciam as duas obras o nosso país conquistou, mas também o quanto ainda necessitamos lutar por nossos direitos básicos de sobrevivência e permanência. Um passado que existe, e tá ali, e é tipo um passarinho... ou melhor, passarinho não, é um pássaro! É um pássaro brabo que sai à noite...
"Bacurau" mostra a importância do coletivo na luta dessas sobrevivências e permanências identitárias (não só brasileiras, nordestinas, mas latino-americanas). Diferente dos clássicos filmes de "invasões alienígenas", quando extraterrestres parecem enxergar apenas os Estados Unidos no mapa, o perigo vem de nave-espacial para assombrar um país latino. A tecnologia afrontosa evidencia o potencial de observação (o controle) e exploração de células colonizadoras, que ainda acreditam em uma supremacia individual e/ou racial. Basicamente, lidando com um Estado que pratica a necropolítica.
Contudo, novamente temos que lembrar que o ser humano possui um telencéfalo altamente desenvolvido, polegares opositores e a qualidade de ser livre, características estas que, num coletivo, servem para, entre outras coisas, "fazerem provas de História". Afinal de contas, "Recordar é viver". Dessa forma, em tempos em que uma parcela de gente considera Cultura, História e Educação como elementos inúteis e imorais para uma sociedade, "Bacurau" as abraça como as águas de um povo, a força motriz, a correnteza misturada com o sangue derramado por quem construiu um país e por quem lutou e resistiu por aquilo que chamamos de "liberdade". O sangue dos índios, dos escravos, da pele retinta, dos imigrantes explorados, dos cangaceiros,dos desaparecidos políticos, das mulheres e das crianças que se contaminam com césio a partir dos alimentos que buscam no lixo. O sangue de quem "vai na paz" para outros estados, porque sente sede, mas acaba morrendo no caminho.
A Ilha das Flores, na verdade, é a Ilha dos Marinheiros.
Bacurau, na verdade, é uma comunidade da Barra que fica na cidade de Parelhas.
Deus não existe na Terra do Sol.
O resto ainda é verdade. E a verdade é justa e livre, ainda que sangrenta, porque é ela quem alimenta a revolução.
A Forma da Água
3.9 2,7KO último trailer. Sombras se projetam em frente ao caleidoscópio do fio de luz e caminham entre os corredores em busca dos assentos que lhe foram ofertados. Um homem conduz uma cadeira de rodas, onde uma senhora aprecia um balde de Coca-Cola com um canudinho. Na fileira atrás de mim, mãe e filho, um filho jovem, sentam-se ruidosamente – “tá começando!”, ela exclama sem saber sussurrar: a tradicional ceia dos eufóricos e atrasados, enquanto os créditos iniciais dissolvem-se em seus fantasmas. Na tela, um verde como do carpete que tínhamos na sala quando eu era criança, um verde borbulhante que pega a mão d’um âmbar e o tira para dançar, então valsando por corredores imersos às ondas de um aquário, outrora uma prosaica sala de visitas, como se estivéssemos vasculhando um navio em sua imobilidade de naufrágio milenar, muito provavelmente extraído de algumas imagens milagrosas de Jean Cocteau, imagens que se moldam à forma d’água.
Elisa Esposito (Sally Hawkins) desperta ao encanto de sua rotina. Desperta pela madrugada, como os amantes que ainda anseiam um último clímax antes de abandonarem seus lençois. Refaz o que lhe é habitual, prepara o lanche para a jornada de trabalho, arranca a folha de seu calendário de premonições zodiacais e acolhe-se à banheira para se amar. Ama o seu corpo e também as águas. Elisa é uma mulher feliz, silenciosa, mas de ouvidos bastante aguçados – e não por acaso! É inquilina de um cinema à mercê do abandono dos anos 1960, um cinema que vaza sons e Technicolor pelas frestas das portas, mesclando-se com cantorias e sapateados, mas estes em sua tradicional monocromia de Shirley Temple e Fred Astaire, que prestam serenatas a um vizinho e amigo pintor.
E assim vive Elisa, numa poesia que homenageia, em primeiro lugar, o espaço do cinema, talvez centrada em seus exageros, é verdade, mas à audiência do conforto de uma gramática universal e onírica. Elisa, que carrega a mudez dos primeiros filmes, uma auxiliar de limpeza de um laboratório nuclear, descobre um homem-anfíbio (Doug Jones) destinado a experimentos desumanos. Pouco importa se ninguém percebe que ela, em intervalos para lanchar, com o intuito de conhecê-lo melhor, esconde-se na sala onde acorrentam a criatura – afinal, estamos em um filme, um musical de gestos, e, como todo grande musical, as personagens compartilham telepaticamente uma mesma letra e melodia por intermédio de um único olhar: os outros param e observam, debruçando-se ao feitiço de um realismo impossível.
A relação entre Elisa e o homem-anfíbio se intensifica a um plano ardiloso para salvar a criatura – é como se Guillermo del Toro se vingasse de todos os filmes de monstros que atormentam nossas memórias de infância, cujos monstros, nem de longe tão crueis como aparentam seus biotipos, rapidamente criam empatia no mais sisudo espectador. É a vingança adormecida, quem sabe ainda nos anos 1920, com o sonâmbulo apaixonado Cesare (Das Cabinet des Dr. Caligari, de Robert Wiene), ou com o monstro de Frakenstein, eterno Boris Karloff, perseguido pela intolerância e preconceito em 1931 (Frankenstein, de James Whale), vingança alimentada em 1933 pelo desfecho cruel de um King Kong, assustadoramente cinematográfico (King Kong, de Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack), ou mesmo por um outro homem-anfíbio, este que despertou as inspiradas cinessensações na construção d’A Forma da Água, descoberto igualmente na América do Sul, sendo vítima de constantes estudos científicos (Creature from the Black Lagoon, 1954, Jack Arnold). Em repouso na banheira de Elisa, fiel leito de orgasmos, do amor próprio, o homem-anfíbio agora desfruta de um lar.
“Mas que besteira!”, disse a mulher atrás de mim a seu filho quando Elisa e o monstro se entregavam ao desejo de seus corpos. Ao se vingar de um cinema que persegue a imagem do outro, del Toro, um cineasta mexicano exercendo o seu ofício na mais selvagem e poderosa indústria do cinema, mostra que não é da castração que se forma uma relação de cinefilia – afinal, parte dessa conjunção carrega consigo a dependência do amor. Não há julgamentos; não há, sem sombra de dúvida, ressentimentos. Del Toro permanece à égide de sua criação proporcionando-lhe prazer. Não vejo diferença na aceitação e possibilidade do amor como pregam Fassbinder, Brigitte Mira e El Hedi ben Salem com uma relação inter-racial (Angst essen Seele auf, 1974, Rainer Werner Fassbinder), ou Douglas Sirk, Jane Wyman e Rock Hudson no melhor sentido de que “o amor não possui idade” (All That Heaven Allows, 1955, Douglas Sirk). O outro é quem está à margem, ao preconceito racial, à xenofobia, à homofobia, à representação do monstro em um cinema que por muitos anos perpetua a sua frigidez.
“Que filme bonito!”, a mesma mulher disse ao filho, torcendo o nariz emocionado. Lá embaixo, ao acenderem as luzes da sala, notei que a suposta senhora na cadeira de rodas, à claridade revelando-se uma adolescente debilitada por alguma doença, deu alguns passos tímidos e sorridentes da poltrona à sua cadeira de rodas. O homem que a acompanhava também sorriu. “A Forma da Água”, em seu classicismo romântico, pode nem sempre ser envolvente, mas nessa tarde de exibição fora capaz de proporcionar pequenos momentos milagrosos. Gosto de pensar nisso, que o cinema, em suas pequenas sublimações, fornece rejuvenescimento e ressurreições.
Aos Teus Olhos
3.4 288 Assista AgoraDesde a sua passagem no Festival do Rio, de onde saiu vencedor de quatro prêmios, muita gente comparou "Aos Teus Olhos" com o filme “A Caça” (Jagten, 2012), de Thomas Vinterberg. Em ambos os filmes, um professor que leciona para crianças é acusado de assédio sexual e, com isso, sua vida sofre um reboliço. Contudo, se n”A Caça” não há dúvidas de que o protagonista Lucas (Mads Mikkelsen) não cometera nenhum tipo de crime – inocentado apenas pelo espectador, então a única testemunha ocular em sequências que só são apresentadas a ele, logo, desconhecidas pela comunidade dinamarquesa onde se passa a história, motivo da violenta perseguição ao professor – , em “Aos Teus Olhos” a diretora Carolina Jabor trabalha o tempo todo com a dúvida, ausentando a testificação dos acontecimentos ao evitar uma câmera ubíqua.
Rubens, numa ótima interpretação de Daniel de Oliveira, é um personagem de construção ambígua, um professor de natação de extrema simpatia em seu ambiente de trabalho, mas de igual petulância e de condutas machistas, quando não mais questionáveis, longe de seus vínculos profissionais. Carolina Jabor beneficia a direção do filme com essa visão que evita a unilateralidade de personagens e acontecimentos, demonstrando-se mais segura – uma segurança até muito enrijecida – do que em seu primeiro longa-metragem de ficção, “Boa Sorte” (2014).
Da mesma forma, o roteirista Lucas Paraizo se aproveita da massiva participação de internautas em redes sociais para a ativação de tensões. Em tempos em que o acesso já não se difere em questões geracionais, difundido a indivíduos de todas as idades e das mais diversas classes, garantindo um acompanhamento direto com grupos familiares e institucionais, “Aos Teus Olhos” se preocupa em estimular o debate sobre exposição e linchamento virtual a partir do momento em que ocorre uma rápida viralização de julgamentos precipitados. Algumas das sequências de maiores impactos estão presentes nas multi-telas de interações do caso. As trocas de mensagens entre os pais dos alunos, mensagens que contrapontam a condenação e a preocupação da exposição impetuosa, causam um desespero bem caro aos filmes de suspense, passagens que também lembram a intensificação de sensações presentes no recente “Personal Shopper” (2016), de Olivier Assayas.
Atentos ainda à questão de gênero, Paraizo e Jabor não velam o machismo e a homofobia que acompanham situações desse porte. Ao ser acusado de beijar um menino no vestiário do clube, Rubens vê a sua sexualidade sendo questionada, como se isso fosse de igual ou maior importância do que o suposto crime cometido, ferindo o orgulho heteronormativo do pai da criança (Marco Ricca). Extrapola-se, no entanto, quando contraditoriamente o filme se vê no direito de criar situações deveras expositivas para a afirmação da heterossexualidade de seu protagonista, gerando constrangedores desconfortos.
Mesmo sendo um curioso e honesto exemplo de um filme de gênero nacional, “Aos Teus Olhos” ainda tende a ser lido com uma problematização necessária aos nossos tempos – e muito em voga nas redes mundiais. Ao trabalhar apenas com especulações, sobretudo não se aprofundando mais do que a sua própria sinopse sugere, é um filme de emoções controladas e perigosas, pondo em risco a apuração de casos sobre o assédio, independentes de gênero e faixa etária, podendo funcionar não muito diferente do que uma reportagem da mídia evasiva e tendenciosa, que muitas vezes questiona as vítimas, não os opressores.
Gabriel e a Montanha
3.7 141 Assista Agora"Gabriel e a Montanha" abre com uma dedicatória ao verdadeiro Gabriel Buchmann, figura que serve como inspiração para o novo longa-metragem de Fellipe Barbosa, cuja estreia ocorrera na última edição do Festival de Cannes, faturando dois prêmios na celebrada Semana da Crítica. Paradoxal então dizer que, tratando-se de um pessoa real e de convívio próximo com o cineasta, o personagem de Gabriel fora construído de uma forma tão problemática. Personagens ambíguos sempre reforçam uma natureza humana e realista, no entanto, ainda que postos em debate por suas contradições, espera-se um mínimo de empatia da parte do espectador.
Não consigo gostar de Gabriel, e nem é por uma falha do talentoso João Pedro Zappa. O Gabriel do filme de Barbosa é um sujeito mimado e individualista, de espírito orgulhoso e competitivo. Paradoxal ainda dizer que, sendo Gabriel um estrangeiro em países africanos, após uma “desilusão” que só culmina em uma percepção fria de sua personalidade – a saber: Gabriel decide pesquisar “a pobreza nos países africanos”, in loco, depois de ficar na lista de espera da Universidade de Harvard (uma fuga) –, os personagens que trilharam sua viagem o rememoram, em voice over, com tanto esmero e “saudade”, palavra que só existe no idioma português e por muito reforçada pelo protagonista.
Do que realmente Gabriel sente saudade? De sua namorada Cristina (Caroline Abras), que quando chega de um congresso internacional é ridicularizada por seu ofício pelo próprio Gabriel? De seu país, que o abraça com diversos privilégios, privilégio enquanto homem branco e de classe-média alta? Gabriel, poliglota, detentor de uma cidadania também francesa, faz questão de ressaltar que estudara nas melhores instituições brasileiras e que isso o legitimiza como um sujeito mais eloquente, que não se firma “na teoria”, como se o seu processo de viagem não fosse um percurso turístico, mas sim de uma transcendência educacional.
“Aqui, com muito pouco se pode fazer mudanças”, ele diz sobre o continente africano, em seguida revelando que com menos de U$55,00 pagara um mês de aluguel a uma pessoa que o abrigou por uns dias e um ano de mensalidade escolar a uma criança. Sua virtude de “bom-samaritano” se reduz aí. Pode ser que realmente o verdadeiro Gabriel Buchmann tenha contribuído para com muitos habitantes jogados à miséria e ao subemprego, mas Fellipe Barbosa faz desse pequeno recorte um subterfúgio para, quem sabe, mudarmos a concepção que temos de seu personagem. Ao aderir as tangas locais como indumentárias cotidianas, tangas que o transformam num homem artificial e caricato, como um personagem da família Flintstones, parece que Gabriel está numa constante busca por uma troca de identidade.
A meu ver, um filme que não define claramente as reais intenções da direção. Maniqueísta, de maneira ainda maior, quando num almoço com uma família do Quênia, uma jovem pede que Gabriel cante uma música de seu país. Após cantar um trecho de “Nos Bailes da Vida”, de Milton Nascimento, Gabriel pede que a moça também cante uma música à sua escolha. Como num musical hollywoodiano, a câmera enquadra duas crianças que repetem as estrofes da canção, depois Gabriel, que rapidamente decora o refrão, e logo a cena, num intuito de expor um entrosamento entre identidades, se transforma num coro risível, com todos os presentes cantando em uníssono. É essa música, no momento de sua morte, que Gabriel irá balbuciar perdido no monte Mulanje.
Numa região marcada pela fome e pelo desemprego, explorada por grandes corporações capitalistas e pelo mercado turístico, é perigosa a leitura que o filme possa gerar acerca dos vendedores ambulantes, guias turísticos e caroneiros. Novamente, ponho em dúvida as intenções da direção. Não me parece uma leitura crítica, e isso se reforça nas ações de Gabriel, que por muitas vezes os trata como aproveitadores da moeda estrangeira, como traiçoeiros em pequenos golpes. Gabriel é o arquétipo do privilegiado de uma esquerda duvidosa, vivendo uma espécie de laboratório narcisista em busca da impossível compreensão do que é ser um marginalizado. Para escalar o monte que o destina à morte, o guia de Gabriel sugere que ele não vá com sua sandália feita de pneu, presente de uma tribo queniana. Gabriel, refutando seu estrangeirismo, nega-se a calçar um par de tênis, mas não se esquece de sua câmera Nikon. Gabriel é o típico humanista de Instagram, cujas boas ações carecem de imagens.
Embora a interessante sinergia entre o elenco, ou mesmo as escolhas estéticas que transformam a narrativa num curioso exercício naturalista que busca suporte no documental, “Gabriel e a Montanha” é um filme demarcado por um distanciamento sisudo e incoerente, de uma rasa crítica social, não funcionando muito bem como homenagem ou registro histórico. É um cinema turismólogo, cuja proposta passeia sobre elefantes e salta de bungee jump entre cachoeiras africanas.
Scary Mother
3.7 5Seus pés estão sempre cansados. Os cabelos já se aninham num tufão da Medusa. Seus braços, de onde jaz a tinta, têm sido o seu confessionário, partilhando das palavras e dos hematomas. Manana (Nato Murvanidze) está se transformando num monstro, um monstro que, convivendo com a pressão do âmbito doméstico, tem sugado o próprio sangue.
O longa de estreia da diretora georgiana Ana Urushadze é um obscuro drama familiar sobre vampiros diários, protagonizado por uma mulher, que também é mãe, esposa e escritora, sentindo a afronta do passado e das letras, afastando-se de qualquer tipo de laço afetivo – embora nutra um envolvimento praticamente messiânico com seu leitor (e talvez o único) mais assíduo, Nukri (Ramaz Ioseliani), no limiar entre a genialidade artística e a compulsão sexual. Manana, como um espírito errante vagando à esmo, enxerga em Nukri o caminho da salvação – nem por isso o “divino”; é como se ela estivesse presa num acordo diabólico, em que a oferta pelo sucesso puramente empírico oculta-lhe a exploração e a exaustão de seu corpo.
O isolamento, de ordem pessoal ou mesmo patológica, atinge uma aura horrorífica com uma trilha musical que flerta com o dodecafonismo, além de uma mise-en-scène que privilegia o extracampo, em determinados momentos quase se reverenciando ao estilo da cineasta argentina Lucrecia Martel, à luz de seu filme “A Mulher sem Cabeça” (La Mujer Sin Cabeza, 2008). Dessa maneira, o compasso rítmico de Scary Mother nos conduz a uma percepção expressionista da narrativa, ardiloso ao trabalhar com sugestões sonoras que provocam um notável estranhamento sem a necessidade de distorções visuais, aproveitando a precariedade de seus próprios espaços – que sentem a passagem de tempo no vento e no concreto.
Intrigante, no entanto, que Ana Urushadze se importe demais com afirmações psicológicas com o término de seu filme, assumindo uma última sequência deveras autoexplicativa. É quando Manana percebe que algumas histórias são “coisas de crianças”, ao passo que “Scary Mother” enxerga a sua fragilidade enquanto filme de estreia, de um estilo inventivo a um roteiro que se sufoca numa conclusão edipiana.
Happy End
3.5 93 Assista AgoraUm celular e um interesse – de quem e a quem? É assim que Michael Haneke nos apresenta Happy End, no enquadramento cada vez mais verticalizante, da diluição do espaço e da distância evoluída. Não se trata, no entanto, apenas de mais um trabalho sobre a incomunicabilidade, tema de fascínio na filmografia do diretor austríaco; aqui, a comunicação é parte do simulacro da rotina em tempo real. Os personagens participam de conversas, mesmo em suas ausências, ou ainda trocam palavras de amor – mas não se amam, porque já não são físicos.
As imagens de dispositivos móveis são “atrações” geográficas dentro da narrativa, e mesmo quando não é a definição da câmera de um aplicativo que vemos na tela, Haneke evita se aproximar de suas personagens. Não há tomadas de zoom e sua inevitável perda de pixels – ainda que as linhas se turvem e alguns movimentos se repitam, como se o tempo congelasse por milissegundos – uma imagem mumificada. Raros são os closes, e as personagens são pouco desmembradas nos enquadramentos. Tamanha distância também nos afasta. Elas não precisam da gente, elas já possuem as imagens uma das outras em seus aparelhos. E, dessa maneira, Haneke parece fazer um compêndio de sua filmografia. Da obsessão pela pornografia do vídeo, como vimos em “O Video de Benny” (Benny’s Video, 1992), na qual se deseja a reprodução da violência, à paranoia das imagens anônimas em “Caché” (2005), no momento em que ser observado, na sua ação mais cotidiana, torna-se uma ameaça.
Doze anos se passaram desde “Caché”. Voltando às suas teorias de abandono, Haneke confronta gerações e sua relação com a tecnologia – de todo modo, uma leitura que demonstra-se ingênua em alguns aspectos. Há um questionável moralismo ao sugerir, por exemplo, uma possível sociopatia adquirida pelo consumo dessas imagens modernas, de stories do Instagram a canais de youtubers. Se antes com “O Video de Benny” esse tipo de apresentação era palatável diante da dificuldade do acesso e pela inerente questão política como background (o rompimento da cortina de ferro e o prenúncio de grupos extremistas), Haneke parece confundir difusão, privacidade e alienação. Talvez por isso o seu elenco esteja tão mal aproveitado – com exceção dos irônicos personagens Georges Laurent (interpretado por Jean-Louis Trintignant, que parece estar numa sequência de “Amor” (Amour, 2012), além de assumir o nome do personagem que interpretou no mesmo filme), e Eve Laurent (Fantine Harduin), dotada de um imenso carisma, que contorna contradições com sua inocência – e sempre está de malas prontas para mudanças – à Austrália d’O Sétimo Continente (Der siebente Kontinent, 1989)? Isabelle Huppert e Toby Jones somam como parte do star system – não agregam; agem como seus papeis de burocratas.
À frente de suas metarepetições, quando essa crônica burguesa começa a trilhar entre o pessimismo de um realismo poético francês – a surpresa da mise-en-scène de um Renoir, de Boudus salvos das águas – e a sofisticada ironia de um realismo espanhol – como a caridade pútrida e aristocrática que Luis García Berlanga escancarou em “Plácido” (1961) –, Haneke deixa o seu apego à própria obra e apresenta um ato final assustadoramente festivo. O costumeiro misantropo fabulístico pode também ser lido por uma ótica humanista – depende da câmera para qual você estiver olhando, ou de quem estiver por trás dela.
Visages, Villages
4.4 160 Assista Agora“O acaso sempre foi o meu melhor assistente”, diz Agnès Varda, então com 88 anos quando gravou Visages, Villages, referindo-se aos felizes encontros com as histórias e imagens que tem colecionado por mais de 50 anos, compondo mosaicos autobiográficos dentro de sua própria obra.
Agnès Varda, a cineasta da memória superlativa: uma das figuras mais importantes do cinema moderno estreou bem jovem e num espaço dominado pelos homens. “La Pointe-Courte” (1955), um filme-monólogo precursor da nouvelle vague francesa, tinha o espaço – um porto –, como protagonista, circundado pela realidade mística das imagens em movimento, do verdadeiro ondular das águas e das silhuetas dos rostos. Inicialmente uma fotógrafa, Varda já demarcava sua frequente aproximação do romanesco à mais sincera seleção das reminiscências do cotidiano.
Varda está se curvando com o tempo – talvez seu corpo sinta o excesso da juventude inventiva que habita o seu espírito. Mantém-se em pé, grande parte das vezes, com uma bengala estilizada, complemente revestida por motivos florais. O topo de seus cabelos, alvos como uma praia de sal, deságua em cerdas de um pincel da cor da terra. Elegância e autenticidade. Varda, “catadora” das lembranças, as suas e as que ainda não as pertencem, aquilo que nos fazem férteis. Filma o ato de envelhecer, permitindo-se envelhecer – mas não de (se) esquecer. Não esquece, também, seu grande amor, o cineasta Jacques Demy, dedicando-lhe suas imagens, seus gestos e suas rugas. Desse modo, explorando o espontâneo imaterial do cinema, dos tempos revisitados nos grãos de fótons, Varda está sempre preocupada indiretamente com o efêmero.
Em “Visages, Villages”, dividindo a direção com o fotógrafo e street artist JR, a cineasta novamente se insere em um filme particular para universalizar o mundo das imagens. É ainda um filme sobre gerações que compartilham muitas estradas, como um road movie em que a avó divide suas histórias com um neto peralta. Varda e JR estão em busca de texturas, do tempo impresso ao redor dos olhos dos muitos rostos de pequenos vilarejos. Alguns olhos mais curiosos do que outros, uma porção deles tímidos – e outros tantos consternados.
Os próprios olhos de Varda sentem-se cansados – mas nunca atrofiados –, talvez por terem visto coisas demais. Desses olhares, JR e Varda reafirmam identidades, fotografando-os e posteriormente transformando-os em gigantescos paineis posicionados em (não-)lugares, como afrescos que se dissolvem com a água. Retratos, apesar de tudo; retratos nem sempre vistos, mas condenados às rugas também da tinta, ou das veias dos tijolos e do concreto. “Eu sou uma mística”, define-se Varda durante uma provocação de JR. Ela sabe que o tempo desbota as imagens e, para tê-las consigo, às vezes é necessário fechar os olhos. “Visages, Villages”, de um rosto tenro a um vilarejo melancólico. Um novo capítulo adicionado ao réquiem de uma das cineastas mais criativas em atividade – com um doloroso tom de despedida, de fazer os olhos marejarem. Que não sejam as últimas praias de Agnès. Que não sejam…
O Vale das Sombras
3.0 24Em “O Espírito da Colmeia” (El espíritu de la colmena, 1973, de Víctor Erice), a pequena Ana (Ana Torrent) começa a questionar o que é a morte ao assistir ao filme “Frankenstein”. Para ela, o monstro da película sintetiza a ausência de vida; primeiro, por ser uma criatura que pode matar alguém, ademais, porque os mortos, mesmo quando em personas por seus atores, não mais respiram. Dar-se conta de sua finitude instiga-a de igual maneira que a amedronta. São assim as crianças, que brincam de trepar nos galhos das árvores ainda que seus responsáveis estejam a ralhar, e só percebem o perigo após caírem, soluçando – os sobressaltos que pouco depois logo se repetem. Erice, com sua infinita sensibilidade, capta o olhar inocente da criança quando ela descobre que existe o tempo e o acaso.
Ao emular inocência e efemeridade, o diretor norueguês Jonas Matzow Gulbrandsen dialoga intrinsicamente com o filme de Victor Erice em sua estreia num longa-metragem. No Vale das Sombras, está sempre ventando e as janelas estampam uma constante umidade, como o cinema chovediço e lamacento de Vincent Ward (de Vigil, 1984). As casas, tão pequenas e esparsas entre colinas, são acalentos que protegem do abate e da névoa noturna. À frente, uma floresta com árvores tão grandes e capazes de abraçar gigantes, uma floresta das fábulas de Grimm, daquelas que escondem mangues e de onde reverberam-se os uivos de lobisomens e os cantares das ninfas.
Pela manhã, Aslak (Adam Ekeli) descobre que algumas ovelhas foram assassinadas. Seu amigo Lasse (Lennard Salamon), mostrando uma imagem de um livro antigo, aponta para um devorador de criancinhas, um assustador lobisomem em rabiscos de nanquim.
Há um monstro à espreita.
Tão perigoso quanto a floresta que possivelmente esconde o monstro é o quarto do irmão de Aslak, intacto desde o dia em que ele saíra de casa. Os pôsteres de bandas ainda estão colados na parede e a cama permanece feita, ansiando o seu regresso. É por isso que sua mãe (Kathrine Fagerland) insiste em proibi-lo para visitações, logo, um espaço que incita imensa curiosidade. É uma forma de Aslak se aproximar de alguém tão próximo aos seus e que nunca conhecera, mas que habita as muitas memórias do lar.
Gulbrandsen se apega ao gótico para uma notável ambientação taciturna e fantasmagórica, reforçada pelas sombras e luzes leitosas da bela fotografia de Marius Matzow Gulbrandsen, irmão do diretor, e pelo acompanhamento musical de Zbigniew Preisner, que muito colaborou com o cineasta Krzysztof Kieślowski. Preisner é ainda o primeiro nome que surge durante os créditos iniciais, tamanha a sua importância para a construção do alquímico e poético que muito se faz presente em “Vale das Sombras”. A trilha do compositor polonês conduz a narrativa como um dedo que perpassa as páginas de um conto de fadas, dosando o suspense de um sintetizador 80’s com cantos quiméricos rimados ao vento.
Em sua estreia, Gulbrandsen demonstra muita segurança e delicadeza ao criar um universo tão fantástico quanto terrível. Ao embarcarmos no lúdico e obscuro imaginário de Aslak, certamente nos encontraremos com nossas crianças, e também com muitas de nossas insólitas memórias – a sensorialidade nos permite ter medo de, num repente, perdemo-nos entre as brumas.
Cocote
3.2 3 Assista AgoraNa primeira exibição de seu filme no Brasil, o diretor dominicano Nelson Carlo de Los Santos Arias mandou uma mensagem aos espectadores presentes explicando os motivos de sua ausência na Mostra – um problema com o seu visto foi apenas um dos impedimentos da viagem. Em seu texto, Arias não se esqueceu de citar o conturbado momento sociopolítico das Américas e suas más distribuições de poder, pensando ainda numa construção da História por homens armados, marcada por ditaduras, exploração de bens e da mão-de-obra, além dos fluxos migratórios. Em suas palavras, o descaso de “países esquizofrênicos” invisibilizam culturas e etnias, e é por isso que seu filme Cocote, depois de passar por alguns dos mais importantes festivais de cinema do mundo, é um material de afirmação identitária dentro de uma filmografia dominicana escassa, e, doravante, alvo de perseguições políticas.
Jardineiro de uma família rica e branca, Alberto (Vicente Santos) regressa à sua cidade natal após o violento assassinato de seu pai, com a condição de que deve retornar à casa de seus patrões no dia em que ocorrerá uma grande festa. A “volta do filho pródigo” ganha uma releitura bastante inusitada, uma vez que Alberto não participa mais dos cultos religiosos de sua família, agora convertido numa doutrina protestante, motivo pelo qual mudara seus hábitos e o modo de se vestir. A falta de diálogo e o fanatismo religioso são embates inevitáveis estando em casa, causando conflitos fraternais. Por tradição, Alberto, sendo um filho homem, precisa comparecer aos rituais fúnubres em memória de seu pai, assim como deve vingar a sua morte, renegando então seus ideais cristãos.
Filmado em 35mm e em digital, “Cocote” está a todo instante se experimentando, seja na mudança das janelas, ou nas sequências em PB intercaladas com imagens a cores sempre muito saturadas, destacando as peles negras de suas personagens. Nelson Carlo de Los Santos Arias enquadra os corpos pensando na fragilidade dos espaços, remetendo à fotogenia dos filmes do cineasta português Pedro Costa; sua câmera é um convite aos movimentos, acoando-se quando a paisagem é maior que o humano, ou assumindo-se ébria na tensão noturna, provocando a sincronia entre o tempo e seus atores num vórtice de 360o .
O diretor ainda parte de uma mise-en-scène de deslocamentos e contrastes dialéticos para pensar o sincretismo religioso; da encenação dramática ao uso da linguagem não-ficcional, sobrepondo sons anacrônicos às cenas dos cultos cristãos, ou de rezas do Pai-Nosso mescladas aos ritos afro-caribenhos, suas similaridades são perceptíveis. A montagem se aproveita também de imagens reais da mídia local, que propaga o sensacionalismo religioso através do exagero e do escárnio – são imagens de falsos testemunhos e de duvidosos exorcismos em choque com as captações documentais de verdadeiros rituais, nem por isso performáticos. Ao retratar diferenças de classes, no entanto, Arias se abstém de uma estética de comparações, reforçando contradições socioculturais com a retórica das imagens e a economia de movimentos nos planos. O resultado é um corajoso e inventivo filme de peso etnográfico, bastante duro, embora encontre a sua graça na ingenuidade das personagens, constantes na busca pela liberdade de se expressarem.
Tempo de Qualidade
3.6 1 Assista AgoraEstreante em longas-metragens, o holandês Daan Bakker se aproveita da linguagem da internet para criar um filme de experimentalismo raro, embalando o suprassumo dos pixels a um tipo de voyeurismo cibernético.
“Tempo de Qualidade” é um filme constituído por cinco capítulos, todos eles protagonizados por homens carentes de maturidade, como se parte de sua forma fílmica, jovial e tecnocrata, ratificasse, com ironia, um atraso cognitivo e suas ansiedades particulares. Na primeira história, por exemplo, um círculo (criado pelo Paint?), como mímese humana, desabafa com um amigo. Ele alega estar farto de um tradicional almoço em família que, ano após ano, não incorpora nenhuma novidade à sua vida, como se a possibilidade de inserir mudanças no “roteiro” dessa reunião familiar, na simples tarefa de cambiar um prato de comida, ou de não dar atenção a uma piada de um parente – há muito tempo já esgotada –, acarretasse em algo drástico. Em outro capítulo, um marmanjo não consegue se relacionar socialmente, limitação que teria sido desencadeada devido a um acontecimento banal de sua infância (uma professora o teria repreendido quando ele tinha três anos, dando-lhe palmadas no traseiro). Ao adentrar uma “máquina do tempo” para então evitar seu trauma, ele se dá conta do “perigo” que é crescer, suicidando-se ao defrontar seu passado. Daan Bakker expõe a fragilidade masculina, desvinculando-se de símbolos heroicos e normativos.
Anárquico, porque não se prende ao verbo e é inventivo com os letterings, porque também permite sua câmera se libertar dos enquadramentos corriqueiros e modistas, mesmo quando utiliza um drone – com o cuidado das imagens não se transformem num plástico publicitário e pirotécnico –, ainda assumindo uma montagem clipática num conto sobre abduções alienígenas, o diretor faz de “Tempo de Qualidade” uma junção de uma melancólica comicidade a um sci-fi não-progressista. Um filme obscuro e divertido sobre gêneros narrativos, criando um reboliço no status quo – da exterioridade social ao campo de expectativas do espectador.
Cinecittà Babilonia
3.5 1Documentário informativo sobre o surgimento da Cinecittà, um conjunto de estúdios cinematográficos inaugurado em 1937 em Roma. Criada com o objetivo de originar um complexo industrial tão poderoso quanto Hollywood, fora uma iniciativa de Benito Mussolini, que também era editor da revista Cinema, um dos maiores veículos impressos do período, cuja importância garantiu até mesmo a criação de um prêmio dedicado às obras cinematográficas, inspirando-se no Oscar.
De cunho didático, nem por isso desinteressante, o filme é composto por imagens de arquivo que mostram o auge das produções italianas no momento da ascensão fascista, intercalando-as com ilustrações que dramatizam alguns dos casos orais fornecidos pelos entrevistados, ou ainda por monólogos em PB com diversas mulheres que interpretam atrizes famosas da época, como Doris Duranti, símbolo do regime fascista, e Alida Valli.
Segundo um dos depoimentos, a Cinecittà “foi formada por golpes e pelo sucesso a qualquer custo”. Na Itália dos anos 1930, instalou-se uma “legião da decência”, preocupando-se em mostrar a burguesia e o enaltecimento de valores morais e paternalistas. As personagens eram enrijecidas e viviam em mansões, traçando uma hierarquia de classes sociais. Essas narrativas insípidas e de uma utopia traiçoeira escondiam as contradições do período, logo, por ironia, as obras com tais características eram conhecidas como “filmes de telefones brancos”, porque sempre havia um plano de um telefone branco em algum cômodo das casas, símbolo que ficou atrelado à mesocracia. Paradoxalmente, no backstage das produções, rolavam muitas drogas, prostituição e abusos contra as atrizes, humilhadas e expostas sexualmente a troco dos holofotes.
Em “Cinecittà Babilonia”, ao ressuscitar algumas das mais importantes atrizes italianas da época, no formato de monólogos que denunciam os abusos que marcaram suas carreiras, Marco Spagnoli faz uma singela e importante homenagem às mulheres que ajudaram a construir a Cinecittà, mas que sempre estiveram à sombra e à violência dos homens.
A Morte Te Dá Parabéns
3.3 1,5K Assista AgoraA ideia de uma “vítima-serial” é no mínimo curiosa, pensando que o A Morte Te Dá Parabéns se apropria de loopings temporais extraídos do “Feitiço do Tempo” (Groundhog Day, 1993, Harold Ramis), da caracterização dos serial-killers nascidos no gênero slasher – sanguinolentos filmes de muito sucesso nos anos 1980/90, e que teve como precursor o clássico “Halloween – A Noite do Terror” (Halloween, 1978, John Carpenter) –, e ainda do universo dos teen movies, que revela a opressiva competição por um espaço de destaque entre os jovens.
Encovada no último dia de sua vida, Tree (Jessica Rothe) ironicamente tem despertado num mesmo quarto (des)conhecido, manhã a manhã, espreitada pelo demônio do eterno-retorno, que lhe sussurra através de um adesivo colado na porta: “Este é o primeiro dia do resto de sua vida”. É o décimo-oitavo dia de uma segunda-feira, dia também de seu aniversário, data escolhida para ser assassinada por um misterioso sujeito mascarado nos arredores do campus.
Tendo em vista essa premissa, vale a pena citar um filme ainda mais interessante lançado no semestre passado, “Antes que eu Vá” (Before I Fall, 2017, Ry Russo-Young), que teve uma passagem silenciosa em nossas salas de cinema, e que trabalha com representações semelhantes. Os dois filmes são protagonizados por personagens que oprimem, por vezes não percebendo a dimensão de suas ações, e que, presas cada uma em suas repetições, deparam-se com a morte ao findar do dia.
Em “A Morte Te Dá Parabéns”, como em muitos filmes sobre loopings temporais, Tree precisará rever seus conceitos, principalmente a maneira como age com as pessoas; a chave moralizante que a livrará desse constante pesadelo. Aqui, por mais que ela morra de diversas formas copiosamente, o diferencial, e talvez o elemento mais inusitado, é que a garota desperta sentindo os traumas das colisões, perfurações e demais violências sofridas a cada morte – o fatídico dia sempre se repete, mas o corpo de Tree, já muito debilitado, ao menos infere o seu fim. Seu próprio corpo torna-se, dessa forma, um paradoxo temporal.
Sem mascarar clichês do gênero, espalhando falsas pistas ao longo do filme, o diretor Christopher Landon até consegue achar soluções visualmente estimulantes para a criação de um clima de enclausuramento, permitindo que a própria câmera simule a dúvida e a perturbação de sua protagonista. Perigoso, no entanto, quando se tem a reincidência como forma, é terminar cada dia de Tree com uma sentença fácil – a figura do assassino, bastante frágil, é a representação frequente de um deus ex machina, onipresente e onisciente, que se encaminha a um desfecho preguiçoso, não mais satírico, e desengonçado – e, a meu ver, não há espaço para algo mais “sobrenatural” na trama a não ser o próprio tempo.
Blade Runner 2049
4.0 1,7K Assista AgoraAs mãos de K. (Ryan Gosling) estão sempre sujas, como se ele passasse grande parte de seus dias trancafiado numa oficina mecânica. Nem a constante chuva, como outrora vimos num já longínquo 2019, é capaz de limpá-las – quando não de graxa, mãos que carregam sangue. K. é um blade runner à espreita de androides aposentados, androides que depois de 30 anos em serviços de luxúria, escravo e burocratas, entenderam a dorsal humana e almejam viver entre seus criadores, como parte daquilo que também são, humanos. Um filme protagonizado por Pinocchios – a ingenuidade da evolução. Pinocchio, que pede à fada madrinha para ser um menino de verdade, logo ele, um pedaço de pinheiro esculpido pelas mãos de um homem.
O que difere, então, humanos e androides, da concepção de alma a capacidade da reprodução biológica? De possuírem suas próprias recordações, ou de uma memorobília implantada como um chip de computador? – a memória produzida pelo afeto das imagens, como filmes sendo dirigidos, orquestras em regência com a finitude. Um sortilégio, de todo modo, dos vivos.
A distinção, poderia então ser, esse estratagema milenar de hegemonias, da indolência e da inevitável decomposição.
Distancio-me do clássico de 1982 de Ridley Scott, um desses meus filmes favoritos, filmes que crescem quando revisitados por mais de uma vez em salas de cinema, em salas de memórias. Distancio-me porque, à priori, nunca passou pela minha cabeça que “Blade Runner” pudesse, ou merecesse, ter uma continuação. E isso também é humano, essa falsa incapacidade de se adequar facilmente às mudanças.
Mas Denis Villeneuve respeita e atualiza o universo de insurreição dos androides em Blade Runner 2049. Embora uma perigosa responsabilidade, o cineasta franco-canadense não trata essa sequência como fardo, tampouco como melancolia nostálgica – insere-se na forma como ela bem nasceu: grandiosa, e antes de tudo, como ficção científica. Sobre o clima, um noir pluvial e nebuloso, Villeneuve e o diretor de fotografia Roger Deakins continuam com os torrenciais de Andrei Tarkovski, homenageados na versão de 1982, o insalubre das poças d´água da Zona em “Stalker” (1979), semeadas pelos saltos ingênuos de um cão vadio, ou pelo tempo narcótico de sobrevoos em “Solaris” (1972), quando nem sempre alguém se levita – e quando o faz, já está morto.
Distancio-me – porque assim, a recepção é calorosa e mais perceptiva.
Como cinema e como ficção científica, “Blade Runner 2049” funciona com narrativas de expansão. Como ficção científica, questionando a nossa condição receptiva das coisas (nós, humanos, fadados ao esquecimento, à substituição), a visão de um futuro nada utópico, nem de perto tão realista, e, desta forma, tão incerto – e é essa incerteza que dá tom ao filme. Como cinema, trabalhando com a verdade das imagens, essa sua singela capacidade de ressuscitar o homem e o divino, não importa se Jesus de Nazaré, ou Elvis Presley num palco cantando Can’t Help Falling In Love – por mais algumas vezes, o cinema como máquina do tempo. E é nesse ponto que “Blade Runner 2049” mais acerta, ao brincar com a holografia, com a experiência de sobreposições e do projetar, para então questionar matéria e memória – porque é o que somos, não?
Mercuriales
3.1 8 Assista AgoraMERCURIALES é mais uma prova de que o catálogo da distribuidora Supo Mungam Films é o mais interessante atualmente. O trailer engana bem, pareceu-me um filme sobre a solidão nas grandes cidades, com algum aspecto jovem-indie-instagram. Que bom que o filme não é nada disso! "Mercuriales", primeiro longa do francês Virgil Vernier, se passa num "tempo muito distante, um tempo de violência, uma guerra que se propagava por toda a Europa", e a guerra aqui é ideológica, étnica, cultural. "Mercuriales" é um ensaio político sobre os imigrantes, a intolerância, a exploração da mão-de-obra, o medo de estar nas ruas, o medo de também não conseguir sair de casa. E com um olhar muito sensível sobre as mulheres, sobre a amizade, o fraterno, a relação dos corpos sem vergonha, ou sem desejo - livres, humanos, um olhar sincero e não-sexista. Um tempo tão presente, mas um tempo que (se) engana, que surge à sala em forma de coruja, que arma fogueiras e se esconde nas câmeras de vigilância. E essa trilha que exerce distância, que também nos desloca: uma violência-eletrônica, supersônica, o tempo de abraçar e de afastar-se de abraçar. "Mercuriales" é sobre o planeta Mercúrio, onde não existe o ar. "Mercuriales" é sobre a Terra, onde o ar existe, mas é difícil de respirar.
Bodas de Sangue
4.1 46 Assista AgoraSaura dá corpo à câmera, enquanto o corpo humano, essa caixa complexa de poesia, debruça-se ao mistério dos abraços, quando o solado dos pés decidem então cantar.
Os Oito Odiados
4.1 2,4K Assista AgoraTarantino é aquele aluno repetente, que copia a lição de casa dos outros, e, inclusive, a própria lição dos anos anteriores. Contudo, um bom aluno. Mas que brinca demais com o baralho, falta no dia da prova e, no ano seguinte, volta para a oitava série. Dessa vez, Tarantino não fez muito diferente. Pelo menos trocou o baralho pelo jogo de tabuleiro "Detetive". Mas ainda não passou de ano, o que é uma pena. Durante 4 capítulos foi um aluno bem disciplinado, mas por querer explicar demais as respostas da prova, entregou um último capítulo horroroso, prolixo, aquele que o fez bombar de novo.
O Quarto de Jack
4.4 3,3K Assista AgoraDe extrema petulância,