Sobre achar algo de nosso e se apegar a ele em tempos de solidão, sobre a compreensão encontrada em meio à incompreensão, sobre amizade em um sentido amplo e verdadeiro, sobre aquilo que não faz sentido lógico, mas faz todo o sentido emocional, sobre o deslumbramento, sobre encontrar um motivo - como em Kes, mas mais esperançoso -, sobre estar disposto a ter mais do mundo, sobre olhar para o alto e não apenas para os pés no chão, sobre não ter medo de perseguir aquilo que se impôe à vontade, sobre se abrir àquilo que não se entende, sobre amar, sobre ser diferente, sobre a necessidade que tantos possuem de cercear e perseguir aquilo que é diferente até destruí-lo, sobre a resistência a essa mesma tendência humana reconhecível a partir da imaginação, do amor, da subjetividade, da abertura ao novo. Sobre possuir algo muito próprio e muito íntimo que se quer proteger a todo custo, pode ser a alma, vontades e crenças, pode ser um sonho, pode ser a arte, pode ser a capacidade de se deixar envolver por ela. Aquilo em que se agarra para voar para longe.
Morte e vida. O filme mostra como várias pessoas, em especial a Sol, lidam com esse momento de uma morte próxima, iminente. Mas também mostra como há muita vida nesse processo, no olhar curioso de Sol, naquilo que seu pai lhe ensinou, na criatividade ativa de vários dos personagens.
A festa é uma espécie de monumento erguido a muitas mãos, uma forma de demonstrar afeto, mas também fazer uma catarse dessa futura perda, que seja mais celebratória da vida do que lamentosa.
Sol e sua mãe se erguem como um tótem, e esse momento de apresentação, entre o ludismo circense e a ternura, fala sobre essa relação bonita que construíram, sobre arte, sobre amor, sobre graça e leveza.
Ao mesmo tempo, não é uma vivacidade que recai num otimismo histérico, numa tentativa de positividade. Há uma melancolia por todo o filme, um caos doméstico em que os sentimentos de todos estão em ebulição, mas ninguém tem muito tempo de falar sobre isso, enquanto constroem esse momento, que creem que seja o que têm para oferecer. Sol anda por aquele espaço tentando fazer sentido do que acontece a sua volta, desses sentimentos tão complexos e até então desconhecidos, desse futuro que se pronuncia quase em silêncio.
Não é especialmente feliz nem é devastador. É - assim como os caramujos que, séria, ela põe sobre as pinturas, e assim como as falas sinceras na festa e fora dela - vivo, com suas várias cargas.
Esse filme só demonstra como ficcionalizações da realidade que são pensadas e discutidas como tal acabam sendo muito mais verdadeiras que a suposta verdade (que é sempre uma ficção) dos documentários mais tradicionais. Acho ingenuidade pensar no formato desse documentário como um mascaramento desnecessário, um "inventar moda" diante da realidade de Olfa e suas filhas. A melhor forma de chegar perto da enorme complexidade da relação entre elas e da personalidade de cada uma é essa mistura de narração reencenando (nas palavras e na atuação) o vivido e reflexão e problematização desse vivido, que se torna possível a partir dos diálogos entre as participantes do filme, tanto aquelas que passaram pela história quanto as atrizes que buscam entendê-las. Nada disso diz respeito só ao passado. O filme é um processo em que elas não estão estáticas, moldadas num personagem delas mesmas (o que provavelmente aconteceria numa estrutura mais tradicional de documentário), mas elas se movimentam, se contradizem, se contrapõem e questionam umas às outras, reavaliam juntas, brincam com certas situações e em seguida as tratam com o peso que tiveram, ressignificam o próprio olhar para o que passou ao mesmo tempo em que, enquanto espectadores, vamos entendendo um pouco mais dessa história. A linguagem permite essa fluidez de não serem mostradas como pessoas estanques, e o passado como uma coisa única e com sentidos definidos. A escolha de não revelar tão cedo o destino das personagens funciona muito bem porque evita que o filme se reduza apenas a uma dissecação dos motivos que levaram as jovens para esse caminho. Ele ganha muito em complexidade ao não simular ser uma tentativa de resposta a uma pergunta que já se colocasse de forma inicial, e que contaminasse o olhar do público, que passasse a enxergar Ghofrane e Rahma
e não como pessoas, com todas suas dimensões, não como alguém que pudesse fazer parte da nossa familia, conviver conosco. Ter a história delas contada dessa outra forma, em que a radicalização religiosa e a entrada numa organização terrorista não está colocada desde o início de forma central, não tem nada, nada a ver com criar suspense. É para que se evite o conforto bem-resolvido e perigoso de colocar todas elas, não só Ghofrane e Rahma, como o radicalmente outro. Essa forma de contar acaba seguindo uma lógica um tanto mais próxima à vida, que deixa mais difícil colocar aquela velha distância moral que diz: "nem eu nem ninguém que conheço passaríamos por isso". Na vida, vamos agindo e percebendo como podemos as ações de pessoas a nossa volta, até que algo inesperado acontece, um choque, uma quebra violenta - e é aí que começamos a perceber que aquele acontecimento não foi isolado, inevitável e incompreensível, mas que foi se desenhando aos poucos, a partir de vários momentos que é só pela memória que vão ganhando significado. O filme, ao evitar ser forçosamente um olhar retrospectivo sobre a partida das duas irmãs. faz com que o espectador construa um pouco desse olhar retrospectivo por si mesmo, reavaliando tudo que viu antes, principalmente no que diz respeito a um dos principais temas do filme: a transmissão intergeracional, muitas vezes inconsciente, de uma herança de violência, que não é óbvia, não é simples e clara, pois geralmente vem misturada a uma herança de afeto - e a possibilidade de ganhar compreensão sobre isso e tentar quebrar essa lógica.
O Balão Vermelho
4.4 237 Assista AgoraSobre achar algo de nosso e se apegar a ele em tempos de solidão, sobre a compreensão encontrada em meio à incompreensão, sobre amizade em um sentido amplo e verdadeiro, sobre aquilo que não faz sentido lógico, mas faz todo o sentido emocional, sobre o deslumbramento, sobre encontrar um motivo - como em Kes, mas mais esperançoso -, sobre estar disposto a ter mais do mundo, sobre olhar para o alto e não apenas para os pés no chão, sobre não ter medo de perseguir aquilo que se impôe à vontade, sobre se abrir àquilo que não se entende, sobre amar, sobre ser diferente, sobre a necessidade que tantos possuem de cercear e perseguir aquilo que é diferente até destruí-lo, sobre a resistência a essa mesma tendência humana reconhecível a partir da imaginação, do amor, da subjetividade, da abertura ao novo. Sobre possuir algo muito próprio e muito íntimo que se quer proteger a todo custo, pode ser a alma, vontades e crenças, pode ser um sonho, pode ser a arte, pode ser a capacidade de se deixar envolver por ela.
Aquilo em que se agarra para voar para longe.
Tótem
3.3 8 Assista AgoraMorte e vida. O filme mostra como várias pessoas, em especial a Sol, lidam com esse momento de uma morte próxima, iminente. Mas também mostra como há muita vida nesse processo, no olhar curioso de Sol, naquilo que seu pai lhe ensinou, na criatividade ativa de vários dos personagens.
A festa é uma espécie de monumento erguido a muitas mãos, uma forma de demonstrar afeto, mas também fazer uma catarse dessa futura perda, que seja mais celebratória da vida do que lamentosa.
Sol e sua mãe se erguem como um tótem, e esse momento de apresentação, entre o ludismo circense e a ternura, fala sobre essa relação bonita que construíram, sobre arte, sobre amor, sobre graça e leveza.
Ao mesmo tempo, não é uma vivacidade que recai num otimismo histérico, numa tentativa de positividade. Há uma melancolia por todo o filme, um caos doméstico em que os sentimentos de todos estão em ebulição, mas ninguém tem muito tempo de falar sobre isso, enquanto constroem esse momento, que creem que seja o que têm para oferecer.
Sol anda por aquele espaço tentando fazer sentido do que acontece a sua volta, desses sentimentos tão complexos e até então desconhecidos, desse futuro que se pronuncia quase em silêncio.
Não é especialmente feliz nem é devastador. É - assim como os caramujos que, séria, ela põe sobre as pinturas, e assim como as falas sinceras na festa e fora dela - vivo, com suas várias cargas.
As 4 Filhas de Olfa
3.8 35 Assista AgoraEsse filme só demonstra como ficcionalizações da realidade que são pensadas e discutidas como tal acabam sendo muito mais verdadeiras que a suposta verdade (que é sempre uma ficção) dos documentários mais tradicionais. Acho ingenuidade pensar no formato desse documentário como um mascaramento desnecessário, um "inventar moda" diante da realidade de Olfa e suas filhas.
A melhor forma de chegar perto da enorme complexidade da relação entre elas e da personalidade de cada uma é essa mistura de narração reencenando (nas palavras e na atuação) o vivido e reflexão e problematização desse vivido, que se torna possível a partir dos diálogos entre as participantes do filme, tanto aquelas que passaram pela história quanto as atrizes que buscam entendê-las.
Nada disso diz respeito só ao passado. O filme é um processo em que elas não estão estáticas, moldadas num personagem delas mesmas (o que provavelmente aconteceria numa estrutura mais tradicional de documentário), mas elas se movimentam, se contradizem, se contrapõem e questionam umas às outras, reavaliam juntas, brincam com certas situações e em seguida as tratam com o peso que tiveram, ressignificam o próprio olhar para o que passou ao mesmo tempo em que, enquanto espectadores, vamos entendendo um pouco mais dessa história. A linguagem permite essa fluidez de não serem mostradas como pessoas estanques, e o passado como uma coisa única e com sentidos definidos.
A escolha de não revelar tão cedo o destino das personagens funciona muito bem porque evita que o filme se reduza apenas a uma dissecação dos motivos que levaram as jovens para esse caminho. Ele ganha muito em complexidade ao não simular ser uma tentativa de resposta a uma pergunta que já se colocasse de forma inicial, e que contaminasse o olhar do público, que passasse a enxergar Ghofrane e Rahma
somente como terroristas
Essa forma de contar acaba seguindo uma lógica um tanto mais próxima à vida, que deixa mais difícil colocar aquela velha distância moral que diz: "nem eu nem ninguém que conheço passaríamos por isso". Na vida, vamos agindo e percebendo como podemos as ações de pessoas a nossa volta, até que algo inesperado acontece, um choque, uma quebra violenta - e é aí que começamos a perceber que aquele acontecimento não foi isolado, inevitável e incompreensível, mas que foi se desenhando aos poucos, a partir de vários momentos que é só pela memória que vão ganhando significado.
O filme, ao evitar ser forçosamente um olhar retrospectivo sobre a partida das duas irmãs. faz com que o espectador construa um pouco desse olhar retrospectivo por si mesmo, reavaliando tudo que viu antes, principalmente no que diz respeito a um dos principais temas do filme: a transmissão intergeracional, muitas vezes inconsciente, de uma herança de violência, que não é óbvia, não é simples e clara, pois geralmente vem misturada a uma herança de afeto - e a possibilidade de ganhar compreensão sobre isso e tentar quebrar essa lógica.