“Lá vai uma chalana” navegando no remanso de Gabriel García Márquez
*O realismo fantástico, de García Márquez e de Benedito Ruy Barbosa em ‘Pantanal’, buscou cada um entender as contradições de suas naturezas — em lugares, não por acaso na América Latina, em que sobreviver à dura realidade é ainda mais absurdo que o próprio realismo fantástico.
É preciso virar bicho — lenda — para poder devorar as entranhas da dura realidade do homem latino, rural ou ilhado (daqueles em quem é literal a ideia de ‘mão do destino’, porque o traçam com a força que aplicam em suas mãos capazes de amansar a natureza bruta enquanto são presos pelo braçal trabalho).
Benedito, em 'Pantanal', recorre ao realismo mágico (mulher que vira onça, velho que vira sucuri) no mesmo sentido que Gabo recorreu a ele em sua literatura que penetra as veias da América Latina e, também como este, narrando uma saga familiar (Uma história de continuidade eterna onde a gente, que se multiplica por amor ou desejo, é parte inseparável de seu lugar e justamente quem o modifica a todo instante para o bem ou para o mal. E, quando lugares são capazes de determinar a sina de seus habitantes, uma saga tecida por mãos só é feita onde os problemas da natureza humana se alinhavam com os da natureza literal).
Trocado em miúdos: em Márquez, para poder encarar um continente construído por cima de incontáveis absurdos, era necessário recorrer a linguagem do real maravilhoso — a única capaz de açambarcar todos esses absurdos, difíceis de serem digeridos racionalmente. Assim como para mergulhar nas vivências do pantaneiro, ir à fundo na ferocidade daquela planície alagada, para Barbosa era preciso munir esta gente com as armas dessa mesma linguagem.
E a ferocidade do lugar implica diretamente no poder de resistência de seu povo nativo. Assim a alegoria é perfeita, nunca gratuita. Então vejamos: à 'Juma', menina órfã de pais sem-terra vitimados pela ambição de um grileiro, resta resguardar seu pedaço de chão manchado de sangue e todo o seu mundo tem a forma de uma tapera miserável que lhe parece sagrada; sozinha, exposta aos perigos naturais e aos inenarráveis do bicho homem, guarda na sua natureza feminina a força herdada de sua mãe. Vira onça para se defender, usa a sua “réiva” (de fera ferida) como arma legítima contra a barbárie em volta dela. Mata apenas por necessidade, como os animais que cumprem a sina da cadeia alimentar e, também como eles, serve-se só do indispensável para sobreviver.
Em resumo: uma bela metáfora sobre o dom de sobrevivência que tem a mulher brasileira, em grande parte vivendo em condições miseráveis, onde, animalizadas pelo contexto, não lhes resta outra opção senão devorar a realidade em busca de suas necessidades mais imediatas. Mas todas, em comum, de unhas em riste para se manter num espaço sempre desfavorável ao feminino; sobretudo desfavorável para aquelas ‘Maria, Maria’ confinadas aos rincões pobres e mais agrestes do país.
O 'Véio do Rio', um ser em trânsito entre o corporal e o espiritual, o ontem e o hoje, é a figura do patriarca — a semente basal de onde brotaram as emboladas ramas familiares. Para proteger sua prole, antes e sempre, também se transforma numa entidade protetora do meio ambiente e vaga, desafiando a interrupção feita pela morte, como quem clamasse por continuar sua indesviável missão de cuidar do que brotou dele e em volta dele; porque em locais assim, em que a natureza tem um domínio inarredável, não há mais diferença entre os vínculos que se criam com as pessoas e com o meio.
E, não por acaso, o velho 'Joventino Leôncio' se perde para sempre ao, na lida cotidiana, tentar a doma de um boi marruá — o selvagem símbolo daquele pantanal, em verdade, indominável. A brutalidade do lugar, na forma de um animal, venceu um homem à época em meia idade e esse mesmo, por força envelhecido em espírito, então busca justamente que a brutalidade desse lugar vença à dos homens contemporâneos.
Assim o patriarca vira uma imensa sucuri, a maior de todas, porque não bastaria se metamorfosear numa cobra que já é grande em sua versão literal; ele precisa ser absurdo, em seu tamanho metafórico, para poder abocanhar a sede inesgotável do ser explorador daquele espaço que é também grandioso mas encontra-se frágil.
E, prendidos pela figura hipnotizante dele, constatamos que o homem-sucuri não se parece com um Super Herói norte americano que, equipado com poderes incontestáveis, maiores que os dos outros comuns, faz a propaganda primeiro mundista sempre em torno de seu próprio umbigo imperialista. É, isto sim, mais aparentado com o cigano 'Melquíades' de 'Cem Anos de Solidão' — quem “envelhecera com uma rapidez assombrosa” — e “usava um chapéu grande (…) e um casaco de veludo patinado pelo limo dos séculos”.
Em paralelo: 'Melquíades' é o responsável por trazer notícias de um mundo imenso alheio àquela 'Macondo' ilhada e, ao retornar de suas viagens, deslumbrar o povoado com objetos vindos de toda a parte; assim como é o 'Véio', com seu poder de transitar entre a vida e a morte, quem (com sua voz e seu cajado) demarca a permanência naquele chão alagadiço, todas as vezes que os seus querem partir para além rios pantaneiros. Um anda pra que o povoado não pare no tempo; o outro se fixa pra que o pantanal não se esvaia.
O ancião, guardião do bioma brasileiro, arrasta o peso do implacável na sua capa de couro recoberta pelas crostas do tempo, se expõe, seu corpo ultrapassado ainda pode ser ferido por balas lançadas por gente agindo no presente — e é exatamente tudo isso que reforça a beleza de seu significado, porque os “super-homens” terceiro mundistas precisam ser falhos como são as nossas estruturas. Para Mário de Andrade eram falhas expressas na deformação moral de seu 'Macunaíma', o herói sem caráter — que, por sinal, já nascia velho; pra Benedito esses defeitos no superpoder são frutos da mistura entre a vulnerabilidade do ser humano e da natureza, que parecem poderosos, mas não são invencíveis diante do capitalismo selvagem.
E se “o homem é o lobo do homem”, ou seja, para combinar com esse tema, é o próprio causador da sua extinção; tal e qual, o velho traz a serpente vingativa dentro do conselheiro amoroso, o mal dentro de si, e é essa sede de barbárie, que existe no fundo da natureza humana, que precisa ser dominada, canalizada para as lutas certas — e ele ensina-nos isso todo o tempo.
Muito semelhante a García Márquez, Barbosa nos entregou uma obra prima em forma de saga, espelhar, para nos refletirmos enquanto observamos a marcha contínua de gente, passarmos a limpo nossos retrocessos nesse trajeto pisoteado que deixa marcas reais a quem fica e deve continuar a caminhada; uma história em que as ramas familiares, espalhadas pelo ventre da terra, se entrelaçam com as ramas literais. E, no caso específico do autor brasileiro, através do deslumbrante remake para, nesse país atual, nos reconectar a um país puro, perdido a cada telejornal assistido.
Os 'Leôncio' e os 'Buendía' se espremeriam muito e muito até virarem uma maçaroca de gente indistinguível, é verdade, mas caberiam, sim, num mesmo retrato de família.
Pantanal
4.2 49 Assista Agora“Lá vai uma chalana” navegando no remanso de Gabriel García Márquez
*O realismo fantástico, de García Márquez e de Benedito Ruy Barbosa em ‘Pantanal’, buscou cada um entender as contradições de suas naturezas — em lugares, não por acaso na América Latina, em que sobreviver à dura realidade é ainda mais absurdo que o próprio realismo fantástico.
É preciso virar bicho — lenda — para poder devorar as entranhas da dura realidade do homem latino, rural ou ilhado (daqueles em quem é literal a ideia de ‘mão do destino’, porque o traçam com a força que aplicam em suas mãos capazes de amansar a natureza bruta enquanto são presos pelo braçal trabalho).
Benedito, em 'Pantanal', recorre ao realismo mágico (mulher que vira onça, velho que vira sucuri) no mesmo sentido que Gabo recorreu a ele em sua literatura que penetra as veias da América Latina e, também como este, narrando uma saga familiar (Uma história de continuidade eterna onde a gente, que se multiplica por amor ou desejo, é parte inseparável de seu lugar e justamente quem o modifica a todo instante para o bem ou para o mal. E, quando lugares são capazes de determinar a sina de seus habitantes, uma saga tecida por mãos só é feita onde os problemas da natureza humana se alinhavam com os da natureza literal).
Trocado em miúdos: em Márquez, para poder encarar um continente construído por cima de incontáveis absurdos, era necessário recorrer a linguagem do real maravilhoso — a única capaz de açambarcar todos esses absurdos, difíceis de serem digeridos racionalmente. Assim como para mergulhar nas vivências do pantaneiro, ir à fundo na ferocidade daquela planície alagada, para Barbosa era preciso munir esta gente com as armas dessa mesma linguagem.
E a ferocidade do lugar implica diretamente no poder de resistência de seu povo nativo. Assim a alegoria é perfeita, nunca gratuita. Então vejamos: à 'Juma', menina órfã de pais sem-terra vitimados pela ambição de um grileiro, resta resguardar seu pedaço de chão manchado de sangue e todo o seu mundo tem a forma de uma tapera miserável que lhe parece sagrada; sozinha, exposta aos perigos naturais e aos inenarráveis do bicho homem, guarda na sua natureza feminina a força herdada de sua mãe. Vira onça para se defender, usa a sua “réiva” (de fera ferida) como arma legítima contra a barbárie em volta dela. Mata apenas por necessidade, como os animais que cumprem a sina da cadeia alimentar e, também como eles, serve-se só do indispensável para sobreviver.
Em resumo: uma bela metáfora sobre o dom de sobrevivência que tem a mulher brasileira, em grande parte vivendo em condições miseráveis, onde, animalizadas pelo contexto, não lhes resta outra opção senão devorar a realidade em busca de suas necessidades mais imediatas. Mas todas, em comum, de unhas em riste para se manter num espaço sempre desfavorável ao feminino; sobretudo desfavorável para aquelas ‘Maria, Maria’ confinadas aos rincões pobres e mais agrestes do país.
O 'Véio do Rio', um ser em trânsito entre o corporal e o espiritual, o ontem e o hoje, é a figura do patriarca — a semente basal de onde brotaram as emboladas ramas familiares. Para proteger sua prole, antes e sempre, também se transforma numa entidade protetora do meio ambiente e vaga, desafiando a interrupção feita pela morte, como quem clamasse por continuar sua indesviável missão de cuidar do que brotou dele e em volta dele; porque em locais assim, em que a natureza tem um domínio inarredável, não há mais diferença entre os vínculos que se criam com as pessoas e com o meio.
E, não por acaso, o velho 'Joventino Leôncio' se perde para sempre ao, na lida cotidiana, tentar a doma de um boi marruá — o selvagem símbolo daquele pantanal, em verdade, indominável. A brutalidade do lugar, na forma de um animal, venceu um homem à época em meia idade e esse mesmo, por força envelhecido em espírito, então busca justamente que a brutalidade desse lugar vença à dos homens contemporâneos.
Assim o patriarca vira uma imensa sucuri, a maior de todas, porque não bastaria se metamorfosear numa cobra que já é grande em sua versão literal; ele precisa ser absurdo, em seu tamanho metafórico, para poder abocanhar a sede inesgotável do ser explorador daquele espaço que é também grandioso mas encontra-se frágil.
E, prendidos pela figura hipnotizante dele, constatamos que o homem-sucuri não se parece com um Super Herói norte americano que, equipado com poderes incontestáveis, maiores que os dos outros comuns, faz a propaganda primeiro mundista sempre em torno de seu próprio umbigo imperialista. É, isto sim, mais aparentado com o cigano 'Melquíades' de 'Cem Anos de Solidão' — quem “envelhecera com uma rapidez assombrosa” — e “usava um chapéu grande (…) e um casaco de veludo patinado pelo limo dos séculos”.
Em paralelo: 'Melquíades' é o responsável por trazer notícias de um mundo imenso alheio àquela 'Macondo' ilhada e, ao retornar de suas viagens, deslumbrar o povoado com objetos vindos de toda a parte; assim como é o 'Véio', com seu poder de transitar entre a vida e a morte, quem (com sua voz e seu cajado) demarca a permanência naquele chão alagadiço, todas as vezes que os seus querem partir para além rios pantaneiros. Um anda pra que o povoado não pare no tempo; o outro se fixa pra que o pantanal não se esvaia.
O ancião, guardião do bioma brasileiro, arrasta o peso do implacável na sua capa de couro recoberta pelas crostas do tempo, se expõe, seu corpo ultrapassado ainda pode ser ferido por balas lançadas por gente agindo no presente — e é exatamente tudo isso que reforça a beleza de seu significado, porque os “super-homens” terceiro mundistas precisam ser falhos como são as nossas estruturas. Para Mário de Andrade eram falhas expressas na deformação moral de seu 'Macunaíma', o herói sem caráter — que, por sinal, já nascia velho; pra Benedito esses defeitos no superpoder são frutos da mistura entre a vulnerabilidade do ser humano e da natureza, que parecem poderosos, mas não são invencíveis diante do capitalismo selvagem.
E se “o homem é o lobo do homem”, ou seja, para combinar com esse tema, é o próprio causador da sua extinção; tal e qual, o velho traz a serpente vingativa dentro do conselheiro amoroso, o mal dentro de si, e é essa sede de barbárie, que existe no fundo da natureza humana, que precisa ser dominada, canalizada para as lutas certas — e ele ensina-nos isso todo o tempo.
Muito semelhante a García Márquez, Barbosa nos entregou uma obra prima em forma de saga, espelhar, para nos refletirmos enquanto observamos a marcha contínua de gente, passarmos a limpo nossos retrocessos nesse trajeto pisoteado que deixa marcas reais a quem fica e deve continuar a caminhada; uma história em que as ramas familiares, espalhadas pelo ventre da terra, se entrelaçam com as ramas literais. E, no caso específico do autor brasileiro, através do deslumbrante remake para, nesse país atual, nos reconectar a um país puro, perdido a cada telejornal assistido.
Os 'Leôncio' e os 'Buendía' se espremeriam muito e muito até virarem uma maçaroca de gente indistinguível, é verdade, mas caberiam, sim, num mesmo retrato de família.
Larissa Gouveia