Likeness (2010) é um retrato incisivo e brutal do padrão de beleza e valores impostos pela sociedade. Repleto de tomadas perturbadoras e muito bem esquadrinhadas, quanto mais entramos fundo na mente de Mia (Elle Fanning), mais percebemos que ela se perde do limiar da sanidade. Nas seguintes linhas, tentarei expor não só porquê este curta é tecnicamente perfeito, como acessório à linguagem/crítica do filme.
Logo que o curta começa, nos damos de cara com o rosto vazio de uma moça. Encarando-a por um certo tempo, será ela a responsável por iniciar a nossa jornada às profundezas deste mundo. A trilha sonora parece intensificar a sensação de mistério presente nos tons azulados/escuros da sala. Conforme vamos adentrando, vamos observando figuras muitas vezes iluminadas por um feixe de luz bem forte, dando a impressão de que estes indivíduos são mais manequins do que propriamente humanos. O interessante é notar que até aqui não tivemos nenhum corte, sendo conduzidos por uma mise-en-scène (basicamente a movimentação da câmera através do espaço) um tanto curiosa, um tanto assustada, aparente nos movimentos bruscos pela sala, mas delongados em cada nova pessoa.
Assim que entramos no novo cômodo, a trilha sonora antes perturbadora transforma-se em dissonantes, como se o choque inicial fosse superado. Após vermos um casal prestes a se beijar temos um brusco zoom-in antes de observarmos uma garota desleixada também com olhar vazio. Ao decorrer deste cômodo, veremos cada uma das personagens em closes que focam nas unhas ou no pescoço. Ao mesmo tempo que vemos a tentação, o prazer expresso num menagé, observamos um ser anoréxico estendido sobre a mesa. A câmera mais uma vez fará um caminho tortuoso, indo em direção a um novo cômodo. Mas é aqui que temos uma primeira dica factível: se formos acompanhar o caminho da câmera por esta sala, veremos que ao final da cena, estamos saindo pela mesma porta que entramos. Isso indica que talvez estejamos passando por um delírio, que não estamos conseguindo ver a realidade como ela de fato é.
Quando a câmera olha para um prato vazio sobre a mesa, logo somos cortados para o olhar reprovador de uma mulher que estava no cômodo. Considerando a temática do curta, podemos certamente inferir que este olhar é um bloqueio mental (já que acabamos de dizer que talvez o que estamos vendo não seja a realidade) para que consigamos nos adequar ao padrão de beleza da sociedade. Em outras palavras, o olhar da mulher é a personificação da repressão à comida em prol da beleza (anorexia). Interessante é também perceber que juntamente com a trilha dissonante, começamos a ouvir risos e talheres. A noção de delírio, de mistura do real e do psicológico está acentuada.
Conforme vamos andando em direção à sala, começamos a escutar um doce voz cantarolando. Mas chegados nestes 2min de filme, a voz que poderia ser agradável, torna-se medonha juntamente com as figuras cada vez mais bizarras que observamos. Esta tensão é ilustrada no movimento acelerado em que nos aproximamos de duas figuras no primeiro lance de escadas, acabando num corredor. Com pessoas tão histéricas que já sufocam, a dimensão do corredor também contribui para uma sensação horrível de claustrofobia. Conhecemos este mundo e queremos fazer parte dele, mas ele parece ao mesmo tempo nos sufocar.
O contraste de uma trilha sonora forte mais uma vez, juntamente com uma série de cortes em contraponto aos lentos movimentos anteriores, vai nos preparando para o fatídico encontro de algo monstruoso, mas a única coisa que vemos é uma jovem totalmente destoante ao local, com um olhar menos vazio de tudo o que viramos anteriormente, e sem contar que a trilha pesada permanece longe ao fundo. Mais uma vez, este contraste parece quebrar mais uma vez com tudo o que esperávamos. Até que ela olha para a câmera, ou pelo menos o reflexo dela olha. A outra personagem a fazer isso tinha sido somente ao começo do filme. Temos então uma ideia de ciclo, já que enquanto aquela primeira moça prenunciava e nos convidava a olhar o mundo dela, Mia é o grande resultado deste conhecer.
A ideia do espelho é interessantíssima, já que metaforicamente reflete tudo o que gostaríamos de ser. No entanto, neste curta, o espelho parece algo horrível, algo a se fugir, como se Mia embora anseie tal objeto, queira fugir, não só sentindo bem com a imagem que vê dela. O trabalho minucioso é primoroso para que entramos mais ainda no sofrimento dela. A câmera foca pedaços cada vez mais específicos do rosto de Mia, passando com o tempo para uma câmera tremida propositalmente, ilustrando a dificuldade em que ela realiza tal tarefa. Mais do que isso, ainda temos uma câmera que desfoca e foca o rosto de Mia, combinando com a ideia de reflexo do espelho que nunca de fato espelha a imagem que queremos ver de nós. Por fim, Mia começa a vomitar através de uma câmera que a pega por cima (plongeé), colocando-a como indefesa.
Finalmente, Mia sai do banheiro e vemos uma festa entre jovens bem casual. Embora só conheçamos Mia ao final do curta, descobrimos que tudo que víamos partia justamente da cabeça dela. À medida que Mia vai andando no corredor, o que parecia estar inicialmente bem vai se transformando aos poucos em toda a sensação que vimos nos 6min anteriores. O mais interessante é perceber que Mia está começando a delirar novamente mais uma vez pelos aspectos técnicos do filme: a trilha dissonante começa a voltar, a festa e os amigos começam a ficar desfocados, mas o mais sutil de tudo, os filtros de cores começam a perder as cores vivas da festa voltando ao frio e vazio dos delírios de Mia, que nos acompanharão ao decorrer de todos os créditos através do "doce" cantarolar.
Semblante
4.0 26SPOILER DETECTED!!!
Likeness (2010) é um retrato incisivo e brutal do padrão de beleza e valores impostos pela sociedade. Repleto de tomadas perturbadoras e muito bem esquadrinhadas, quanto mais entramos fundo na mente de Mia (Elle Fanning), mais percebemos que ela se perde do limiar da sanidade. Nas seguintes linhas, tentarei expor não só porquê este curta é tecnicamente perfeito, como acessório à linguagem/crítica do filme.
Logo que o curta começa, nos damos de cara com o rosto vazio de uma moça. Encarando-a por um certo tempo, será ela a responsável por iniciar a nossa jornada às profundezas deste mundo. A trilha sonora parece intensificar a sensação de mistério presente nos tons azulados/escuros da sala. Conforme vamos adentrando, vamos observando figuras muitas vezes iluminadas por um feixe de luz bem forte, dando a impressão de que estes indivíduos são mais manequins do que propriamente humanos. O interessante é notar que até aqui não tivemos nenhum corte, sendo conduzidos por uma mise-en-scène (basicamente a movimentação da câmera através do espaço) um tanto curiosa, um tanto assustada, aparente nos movimentos bruscos pela sala, mas delongados em cada nova pessoa.
Assim que entramos no novo cômodo, a trilha sonora antes perturbadora transforma-se em dissonantes, como se o choque inicial fosse superado. Após vermos um casal prestes a se beijar temos um brusco zoom-in antes de observarmos uma garota desleixada também com olhar vazio. Ao decorrer deste cômodo, veremos cada uma das personagens em closes que focam nas unhas ou no pescoço. Ao mesmo tempo que vemos a tentação, o prazer expresso num menagé, observamos um ser anoréxico estendido sobre a mesa. A câmera mais uma vez fará um caminho tortuoso, indo em direção a um novo cômodo. Mas é aqui que temos uma primeira dica factível: se formos acompanhar o caminho da câmera por esta sala, veremos que ao final da cena, estamos saindo pela mesma porta que entramos. Isso indica que talvez estejamos passando por um delírio, que não estamos conseguindo ver a realidade como ela de fato é.
Quando a câmera olha para um prato vazio sobre a mesa, logo somos cortados para o olhar reprovador de uma mulher que estava no cômodo. Considerando a temática do curta, podemos certamente inferir que este olhar é um bloqueio mental (já que acabamos de dizer que talvez o que estamos vendo não seja a realidade) para que consigamos nos adequar ao padrão de beleza da sociedade. Em outras palavras, o olhar da mulher é a personificação da repressão à comida em prol da beleza (anorexia). Interessante é também perceber que juntamente com a trilha dissonante, começamos a ouvir risos e talheres. A noção de delírio, de mistura do real e do psicológico está acentuada.
Conforme vamos andando em direção à sala, começamos a escutar um doce voz cantarolando. Mas chegados nestes 2min de filme, a voz que poderia ser agradável, torna-se medonha juntamente com as figuras cada vez mais bizarras que observamos. Esta tensão é ilustrada no movimento acelerado em que nos aproximamos de duas figuras no primeiro lance de escadas, acabando num corredor. Com pessoas tão histéricas que já sufocam, a dimensão do corredor também contribui para uma sensação horrível de claustrofobia. Conhecemos este mundo e queremos fazer parte dele, mas ele parece ao mesmo tempo nos sufocar.
O contraste de uma trilha sonora forte mais uma vez, juntamente com uma série de cortes em contraponto aos lentos movimentos anteriores, vai nos preparando para o fatídico encontro de algo monstruoso, mas a única coisa que vemos é uma jovem totalmente destoante ao local, com um olhar menos vazio de tudo o que viramos anteriormente, e sem contar que a trilha pesada permanece longe ao fundo. Mais uma vez, este contraste parece quebrar mais uma vez com tudo o que esperávamos. Até que ela olha para a câmera, ou pelo menos o reflexo dela olha. A outra personagem a fazer isso tinha sido somente ao começo do filme. Temos então uma ideia de ciclo, já que enquanto aquela primeira moça prenunciava e nos convidava a olhar o mundo dela, Mia é o grande resultado deste conhecer.
A ideia do espelho é interessantíssima, já que metaforicamente reflete tudo o que gostaríamos de ser. No entanto, neste curta, o espelho parece algo horrível, algo a se fugir, como se Mia embora anseie tal objeto, queira fugir, não só sentindo bem com a imagem que vê dela. O trabalho minucioso é primoroso para que entramos mais ainda no sofrimento dela. A câmera foca pedaços cada vez mais específicos do rosto de Mia, passando com o tempo para uma câmera tremida propositalmente, ilustrando a dificuldade em que ela realiza tal tarefa. Mais do que isso, ainda temos uma câmera que desfoca e foca o rosto de Mia, combinando com a ideia de reflexo do espelho que nunca de fato espelha a imagem que queremos ver de nós. Por fim, Mia começa a vomitar através de uma câmera que a pega por cima (plongeé), colocando-a como indefesa.
Finalmente, Mia sai do banheiro e vemos uma festa entre jovens bem casual. Embora só conheçamos Mia ao final do curta, descobrimos que tudo que víamos partia justamente da cabeça dela. À medida que Mia vai andando no corredor, o que parecia estar inicialmente bem vai se transformando aos poucos em toda a sensação que vimos nos 6min anteriores. O mais interessante é perceber que Mia está começando a delirar novamente mais uma vez pelos aspectos técnicos do filme: a trilha dissonante começa a voltar, a festa e os amigos começam a ficar desfocados, mas o mais sutil de tudo, os filtros de cores começam a perder as cores vivas da festa voltando ao frio e vazio dos delírios de Mia, que nos acompanharão ao decorrer de todos os créditos através do "doce" cantarolar.