O filme tem lá seu propósito, uma bela fotografia, mas para mim faltou mais conteúdo. Gosto de filmes com sutilezas e esse é um filme cheio delas, mas acho que houve um exagero nesse sentido. A premissa é interessante, mas o desenvolvimento não me cativou.
[spoiler][/spoiler] O melhor momento, sem dúvida, é o diálogo final com o pai.
[spoiler][/spoiler] Fica uma questão para se pensar sobre esse filme: teria havido um acontecimento originário, responsável por tudo o que ocorreu no filme, mas que não foi mostrado no roteiro? É o que me parece. "Três" Hectors aparecem na história. Quando vemos o primeiro Hector sendo conduzido à máquina do tempo, isso já ocorre sob estímulo do segundo Hector (lembrem-se de que o segundo persegue o primeiro até que este entre na máquina). Como essa poderia ter sido "a primeira vez" em que Hector entrou na máquina? É preciso que Hector tenha inicialmente nela entrado de outra maneira, sem a manipulação de um "segundo Hector" (afinal, antes que a máquina do tempo tenha sido utilizada, não há como existir "dois Hectors" no mesmo ponto temporal). O provável é que o início do filme já seja uma "realidade transformada", isto é, uma realidade que "apagou" o acontecimento originário (a primeira vez em que, de fato, Hector entrou na máquina do tempo, em circunstâncias desconhecidas pelo espectador). Provavelmente, o segundo Hector (ao ver-se numa nova realidade temporal, no passado) quis "adiantar" a ida do "primeiro Hector" à máquina do tempo (com o propósito de que eles existissem simultaneamente o mínimo de tempo possível). Essa ação de promover esse adiantamento teria levado aos acontecimentos do filme e "apagado" a verdadeira primeira ida de Hector à máquina.
[spoiler][/spoiler] O interessante no filme é notar como somos capazes de olhar para a realidade de maneira distorcida (por exemplo, vendo como normal situações de abuso). Por conta do ambiente em que está, a protagonista assimila como natural a ideia de se tornar adulta precocemente. Assim, ao mesmo tempo em que ainda apresenta nítidos traços de infantilidade em seu comportamento, ela procura se apresentar aos outros de forma madura (o que é fruto, também, de confusões em relação à sua autoimagem). Vive simultaneamente entre crianças e a realidade do bordel. Isso provoca uma confusão na forma com que a personagem do fotógrafo olha para ela. Às vezes, ele a vê como apenas uma criança; outras vezes, levado pelos gestos supostamente maduros da garota (que, dentre outras coisas, se insinua para ele) a vê como mulher. Num momento, sente a necessidade de protegê-la de interesses sexuais dos adultos; no outro, ele mesmo dorme com ela. Num momento, diz que uma criança não deve ser agredida; no outro, ele mesmo bate nela (age aí como aquele que quer "disciplinar a criança" ou aquele que "agride a mulher" por esta não se submeter?). Mas seriam verdadeiramente maduros esses gestos "tipicamente adultos" de Violet? Ou, ao contrário, a garota estaria - por força das circunstâncias - reproduzindo mimeticamente, numa espécie de encenação, esses gestos? Em outras palavras: Violet, ainda essencialmente uma criança, estaria "brincando" de ser adulta (como é comum entre crianças, aliás) e, graças à naturalização de suas condições de vida, fazendo com que os adultos (imaturos ao seu modo) acreditassem em sua falsa maturidade? Não é por acaso a profissão do homem com quem Violet acaba se casando. O fotógrafo é aquele que produz representações da realidade, isto é, que cria "cópias da realidade". Mas as representações dessa personagem são reproduções fiéis ou distorções da realidade? Não pode o fotógrafo manipular a realidade, sugerir que a realidade seria algo diferente do que verdadeiramente é? Se numa fotografia Violet pode ser representada como uma criança segurando uma boneca, na outra pode ser representada como uma mulher nua. Depende de como o cenário para a fotografia é preparado. O curioso é que Violet não era nem uma coisa nem outra; isto é, nem a criança que fruiu plenamente de sua infância e nem uma mulher amadurecida. A cena em que Violet estraga propositadamente os filmes do marido me parece extremamente simbólica: estaria ela, naquele ato infantil, desconstruindo aquela perspectiva segundo a qual a garota estava pronta para um relacionamento adulto? A meu ver, Louis Malle procura trabalhar essa questão da distorção interpretativa sobretudo em relação ao espectador do filme. É muito provável que diversos espectadores, assistindo ao longa, oscilem entre ver Violet como criança e adulta, transitando entre a repulsa por observar a relação abusiva entre adulto e criança e a ideia de um romance consensual (até adocicado, sob certos aspectos). Pode-se discutir se utilizar a nudez de uma atriz tão nova é, eticamente falando, um recurso válido. Por outro lado, acusar Malle de "erotizar a criança" não seria uma interpretação que já caiu nas garras da distorção interpretativa, isto é, que de certa maneira prova "a tese" do filme? Afinal, se Violet é só uma criança, o que temos em sua nudez é apenas um corpo de criança (que, aliás, sequer desenvolveu os seios). Nesse caso, não estaria havendo a exposição de algo intrinsecamente erótico. Para que esse corpo seja visto de maneira erotizada, é preciso que subjetivamente essa representação "tome o lugar da realidade". A erotização não estaria, então, exatamente na câmera que capta a nudez de Violet, mas naquele que é receptor da imagem e vê nesta algo a mais do que um corpo infantil. Analogamente, poder-se-ia dizer que à imagem captada pela fotografia tirada pelo fotógrafo é acrescentada uma interpretação pessoal do que é visto, uma interpretação que pode ser uma espécie de falseamento da realidade. Trata-se, novamente, de um campo aberto para pensar a validade de nossos juízos frente ao que vemos. Daí eu acreditar que Malle não caiu em nenhuma espécie de "romantização do abuso"; ou ainda, de que não houve, no olhar do diretor, nenhuma compactuação com a ideia de que Violet era realmente uma garota amadurecida. Há no filme diversas pistas de que a menina mantém, apesar de todo o seu comportamento, traços infantis e de que os adultos ao redor erroneamente "adultizaram a criança". A cena final explicita que a infância de Violet foi roubada e que, talvez somente naquele momento melancólico da última fotografia, ela tenha (pelas marcas da vida) amadurecido um pouco (paradoxalmente, justamente no momento em que a permitiram - até de forma imperativa - que ela "fosse uma criança").
Tenho a impressão de que todo grande diretor de cinema tende a ser meio monotemático. Isto é, que todo gênio da sétima arte pega uma ideia básica e através dela norteia sua carreira. Curioso como Woody Allen sempre inventa novas (e interessantes) histórias para abordar o mesmo tema filosófico, a saber, o da suposta falta de sentido para a existência humana. Assim, o Woody Allen de Magia ao Luar, sua produção mais recente, é o mesmo de longas como Poderosa Afrodite, Hannah e Suas Irmãs, Match Point, Crimes e Pecados, Tudo Pode Dar Certo, dentre outros filmes. Quem acompanha sua filmografia certamente já reparou que Woody Allen aparenta nutrir uma visão de mundo “desencantada”, niilista, segundo a qual não existiria nenhuma espécie de Deus e/ou mundo metafísico (logo, nenhum sentido apriorístico para a vida). Se suas histórias por vezes possuem um final feliz, e por vezes um final trágico, é sempre igualmente pelo aleatório característico de um universo caótico e sem governo, jamais por qualquer espécie de providência. Allen poderia ser comparado ao já falecido cineasta Ingmar Bergman, não fosse o fato deste apresentar a temática do niilismo sempre de maneira carregada, envolta por um atmosfera sombria. Ao contrário de Bergman, Allen propõe uma abordagem mais leve, frequentemente cômica (lembrando que o diretor, também ator, iniciou sua carreira de artista fazendo apresentações de stand-up).
No cinema de Woody Allen, conforme se verifica mais explicitamente em um filme como Poderosa Afrodite, tragédia e comédia são elementos que surgem conjuntados. Daí a espirituosa cena final do mencionado longa, na qual um coro trágico (menção aos coros das antigas tragédias gregas), de maneira cômica, canta uma canção auto-ajudística de “ode à vida” (ironia proposital). Woody Allen se apresenta, sim, como o homem amargurado, covarde (covardia corajosamente exposta), hipocondríaco, assustado diante da possível ausência de sentido para a existência – tão presente em personagens frequentemente interpretados pelo próprio diretor. Mas, em meio a tal tragicidade, se mostra também capaz de fazer humor, de ridicularizar a si mesmo. Por isso, Woody Allen sempre representa papéis de homens atrapalhados, meio ridículos (e é preciso ser um gênio como Dostoiévski ou Fernando Pessoa para grandiosamente se admitir ridículo) – ridículo que caracterizaria toda a espécie humana. Mais especificamente, a posição frágil do homem perante sua precaridade de conhecimento, perante sua inevitável finitude, perante um vasto universo, silencioso e misterioso; posição assumida com aquela “alegria trágica” recomendada por Nietzsche e pelo Zaratustra nietzscheano, o que “escala elevados montes” e “ri-se de todas as tragédias da cena e da vida”. Alegria (combinada com a dor) de quem diz um “sim” à vida sem negar sua precariedade.
Magia ao Luar é capaz de fazer rir e pensar ao mesmo tempo. O enredo apresenta um mágico (Stanley) incumbido da missão de desmascarar uma jovem (Sophie) que afirma ser médium. Racionalista que só toma a ciência como critério de verdade, Stanley recusa com convicção a possibilidade de existir qualquer mundo metafísico. Assim, não cogita a ocorrência de qualquer evento sobrenatural. Não por acaso, Woody Allen fez de seu protagonista um mágico: mais do que ninguém, Stanley acredita que qualquer evento aparentemente sobrenatural só pode ser um mero truque de ilusionista. Seu encontro com Sophie inicia um duelo que, poder-se-ia dizer, espelha um embate entre fé e ciência fundamental na história da filosofia. Ele acusando-a de farsante e tentando desmascará-la. Ela tentando convencê-lo de que realmente possui dons sobrenaturais. Em Magia ao Luar, Woody Allen parece novamente se colocar na posição de crítico nietzscheano: embora apresente – através do personagem Stanley – certa suspeita em relação ao misticismo de Sophie, também não se mostra convicto de que a racionalidade científica possa explicar plenamente a existência (conforme alguns pensadores modernos, tão criticados por Nietzsche quanto os metafísicos antigos e medievais, chegaram a acreditar). Em determinados momentos do filme, o misticismo de Sophie parece atender necessidades humanas que poderiam ser racionalmente explicadas, sobretudo, a de amparo (conforme argumentação de Freud). Em outros, o cientificismo de Stanley – de tão irredutível – se assemelha a uma fé; uma fé radical na ciência, capaz até mesmo de recusar uma possível veracidade do misticismo ainda que este se legitimasse epistemologicamente através de evidências empíricas. A síntese dessa dialética é o improvável amor que vai surgindo entre as personagens. Síntese, pois o amor (mistério que pensadores como Platão e Schopenhauer procuraram desvendar), na ótica de Woody Allen, parece dotado de uma magia intrínseca ao mundo fenomênico, isto é, desaparentado de qualquer mundo transcendental, mas ultrapassando toda possibilidade de explicação por meio da racionalidade científica.
[spoiler][/spoiler] Achei um filme realmente muito interessante, rico em possibilidades no que se refere à interpretação de pontos específicos, em ambiguidades, em pistas, em simbologias e em questões comportamentais a serem pensadas. Tenho certeza que não peguei todos esses detalhes (para isso, creio eu, seria preciso assisti-lo mais de uma vez). De todo modo, fiquei tão intrigado com ele que resolvi comentar aqui algumas coisas a respeito:
1) Suspeitei no início do filme que o “estupro” sofrido pela protagonista fosse, na verdade, uma fantasia combinada previamente (de modo que ela sempre soube quem era o seu “estuprador”). Tanto pela forma calma com que a protagonista age após a suposta violência quanto pelo fato de não querer chamar a polícia para investigar o caso. Há uma dica logo no começo do filme, quando a protagonista entra em uma banheira após o suposto “estupro”: a mancha de sangue que vem de sua vagina forma um coração. Minha suspeita provavelmente foi estimulada também pela escolha da própria atriz. Huppert atuou em um filme chamado “A Professora de Piano”, interpretando uma mulher dotada de fantasias sexuais que implicavam sofrer agressões físicas. Numa comparação entre ambos os filmes, achei “Elle” mais rico. Em “A Professora de Piano”, o filme parece-me limitado à ideia de mostrar que tais fantasias existem e que elas poderiam ser, por assim dizer, “legítimas”. Já “Elle” desenvolve – a meu ver, com sucesso – um suspense a partir de tais fantasias.
2) Há uma segunda possibilidade de interpretação: a protagonista realmente foi estuprada e, ao invés de chamar a polícia, decidiu se vingar arrastando seu estuprador (identificado posteriormente) para um jogo que acabaria desembocando em sua morte. Esse jogo implicaria a protagonista fingir que gostou do estupro e, posteriormente, armar uma cilada para o seu estuprador. O momento em que o suposto estuprador é golpeado na cabeça e perplexo pergunta “por quê?” se encaixaria tanto na primeira quanto na segunda tese (ou o estuprador combinou aquela fantasia desde o começo, ou combinou posteriormente, apostando erroneamente na ideia de que a protagonista aprovou o estupro real, fantasia de todo agressor sexual e até mesmo de muitos homens comuns quando inseridos numa cultura de banalização da violência contra a mulher). Esta me parece, porém, uma hipótese bem mais fraca se comparada à primeira.
3) Voltando à primeira tese: gostei muito da simbologia presente na profissão da protagonista. O fato dela trabalhar com jogos de videogame (e, neste caso específico, jogos de videogame que implicam fantasias de violência) acaba sendo uma metáfora do seu comportamento sexual, em que ela joga e fantasia situações de violência. Num jogo de videogame, você “atua” e manipula um “personagem", assim como a protagonista faz na vida real.
4) O filme é também eficiente ao dar algumas pistas falsas, preservando a possibilidade de suspense. Ao procurar saber quem fez um jogo de videogame usando (numa montagem) o seu rosto, a protagonista não visava descobrir a identidade do seu estuprador. De acordo com a primeira hipótese aqui levantada, a protagonista já sabia quem era ele desde o começo (o próprio momento em que ela arranca a máscara do “estuprador” e “o descobre”, a meu ver, é parte da fantasia previamente combinada). O que a protagonista fazia, na verdade, era procurar uma nova pessoa que pudesse participar de seus jogos sexuais. No raciocínio da protagonista, uma pessoa “doentia” (a palavra não é muito boa neste contexto, mas não consegui encontrar uma melhor) o suficiente para fazer um jogo de videogame do tipo seria uma pessoa apta a se abrir aos jogos sexuais em questão. Ela só desiste de envolver o autor da montagem nesses jogos ao perceber que seu órgão sexual não a interessa.
5) Achei interessante notar no filme a dualidade submissão-controle. O filme dá toda a pinta de que a protagonista é masoquista. O que se percebe progressivamente, porém, é que na verdade a protagonista é sádica (ao menos, esse é o aspecto de sua personalidade que prevalece). Ao simular situações em que se submete a violências, a protagonista se vê no controle (no decorrer do filme, fica claro como ela manipula todos os demais personagens). Simbolicamente, o poder absoluto se faz justamente na medida em que o “eu” controla sua própria submissão (Rousseau teve essa intuição ao pensar o binômio natureza-civilização, em termos mais propriamente políticos, quando viu no “contrato social” apto a garantir a liberdade do indivíduo uma cláusula de “alienação absoluta ao corpo coletivo”). No caso do filme, temos o controle da própria dor através das fantasias violentas. Há teorias psicanalíticas que tentam explicar fantasias sexuais do tipo. Lembro agora de um livro chamado “The Denial of Death”, escrito pelo antropólogo Ernest Becker. O livro não é, na verdade, sobre fantasias sexuais. Grosso modo, a obra desenvolve a tese de que a psique humana está, fundamentalmente, ocupada em negar a ideia da morte. Em meio ao “desamparo” de não poder controlar as coisas (a morte seria, nessa linha de raciocínio, um mal incontrolável), as fantasias sexuais atuariam como uma tentativa de exercer esse controle (há no filme, inclusive, uma cena na qual a protagonista se “finge de morta” numa relação sexual). Dito de outro modo, fantasiar sexualmente com uma agressão (tanto na perspectiva masoquista quanto na sádica) significaria inverter a relação de controle existente entre “eu” e “dor”. Becker chega a dizer, ainda, que as fantasias teriam como função dar certa “ludicidade” ao ato sexual (penso agora não apenas as fantasias violentas, mas as fantasias sexuais de modo geral). Isto é, também nesse caso teríamos aí uma busca por controle em relação à natureza. Incrementar o ato sexual com fantasias implica, nessa ótica, tirá-lo de sua “banalidade” natural. Nas palavras do próprio Becker, significa “dar-lhe certa sacralidade”, algo próximo de um rito religioso. Note que esse elemento religioso aparece de forma muito nítida no filme. Pode-se pensar que há algo de ritualisticamente religioso nos jogos realizados pela personagem central. A meu ver, essa é uma das razões pelas quais a religião aparece com certo destaque no filme (mais adiante, mencionarei a outra).
6) Ainda pensando essa dualidade submissão-controle, é interessante notar que a protagonista não aceita nenhuma espécie de dominação masculina. Ela não aceita que a mãe seja controlada por um jovem rapaz, provavelmente interesseiro. Nitidamente, ela tem com seu filho uma postura extremamente controladora (tanto que o manipula para levá-lo ao ato final, em que o “estuprador” é morto). Há nesse segundo caso uma ambiguidade interessante: o desejo de controle pessoal da protagonista é tão grande que ela chega a proteger seu filho da dominação a que este visivelmente se submete perante sua esposa (provavelmente, para que o controle materno possa se realizar sem outro controle que o inviabilize). Vale mencionar também a razão pela qual a protagonista se separa do pai de seu filho: ele a agrediu. Ou seja, a extrema agressividade é tolerada quando consensual, quando “parte do jogo” que a protagonista manipula. Quando, porém, a violência se manifesta como opressão real, ela é rechaçada.
7) Outro questionamento interessante pode ser feito em relação ao filho da protagonista. Até que ponto a nítida postura de submissão perante a esposa é real? É muito possível que o filho reproduzisse de alguma maneira as fantasias de falsa submissão da mãe. Possivelmente, a postura hostil da esposa e até mesmo a gravidez de outro homem eram parte de uma fantasia consensual entre o casal. Há dois sinais nessa direção: a) o provável pai do bebê aparece na maternidade. O que ele estava fazendo ali? b) No final do filme, após desentendimentos aparentemente graves, o casal parece estar bem. Talvez a própria mãe, ciente dessa fantasia, apoiasse estimulando, isto é, jogando na cara do filho que o bebê "não era seu".
8) Qual é o significado da morte do “estuprador”? Por que a protagonista preparou a cena para que isso acontecesse? Essa é uma pergunta que o próprio “estuprador” se faz antes de morrer. Por quê? A meu ver, a resposta não é clara nem simples. Poderíamos, seguindo a segunda hipótese que levantei aqui, pensar numa vingança perante alguém que lhe estuprou realmente (isto é, de forma “não fantasiada”). A mim, aceitar essa tese é ver no filme um propósito um pouco mais superficial. A ideia de que esse desfecho trágico era parte da fantasia violenta da protagonista (logo, da fantasia de controle e dominação absoluta) me parece muito mais interessante. Entre masoquistas/sádicos existem, segundo pesquisas, dois grupos: os que se estabilizam num nível x de violência, “seguro”, e os que entram num caminho de violência crescente e perigoso. Provavelmente, o segundo caso era o da protagonista e seu “estuprador” de mentira.
9) Sobre o item anterior, poderíamos ainda levantar uma hipótese mais perturbadora: o “por quê?” do “estuprador” no momento de sua morte era um questionamento real ou um questionamento encenado, teatral? Tendo em vista as fantasias em questão, não penso que devemos tomar como absurda a ideia de que o “estuprador” – de forma suicida – fantasiou um desfecho que o levaria à morte. Isto é, que sua morte também fizesse parte “do roteiro” previamente estabelecido. Existem casos reais em que isso acontece. Além disso, esse “por quê?” tem uma simbologia muito forte no filme. É o “por quê?” que representa outros porquês do filme. Por que as pessoas podem agir dessa maneira? O que leva a tais comportamentos? É o mesmo "por quê?" que o filme propõe em relação ao pai da protagonista.
10) Essas questões nos levam ao que, em minha opinião, há de mais interessante no filme: a relação da protagonista com o seu pai. Sob esse aspecto, gostei de como o roteiro não é didático (deixando ao espectador a possibilidade de teorizar). Não ficamos sabendo exatamente o que aconteceu, nem as motivações. Só sabemos que o pai, um belo dia, resolveu fazer uma chacina; e ainda, que a filha o ajudou a queimar a casa e teria tido alguma participação, “obscura”, nos crimes. Qual seria aí a exata relação de causalidade em relação aos comportamentos? O comportamento do pai determinou os comportamentos que a filha cristalizou quando adulta? A menina ficou traumatizada pelos crimes cometidos pelo pai? Algo de importante aconteceu entre pai e filha? O pai tinha alguma espécie de fantasia sexual em relação à filha? O pai era alguém que abusava sexualmente da filha? O pai, por algum desses motivos (ou outros, de natureza semelhante), “enlouqueceu” e resolveu matar pessoas? Ou ainda, a filha (naturalmente disposta a isso) teria – tal como fez posteriormente com outros personagens do filme – manipulado o pai (prendendo-o numa teia de jogos) a ponto dele cometer esses crimes? O que teria acontecido a ponto do pai preferir a morte ao rever a filha? Quem era, de fato, a “parte fraca” dessa relação? A filha sempre foi uma manipuladora ou passou a reproduzir uma possível personalidade manipuladora do pai? Certas fantasias e “perversidades” podem brotar espontaneamente num ser humano ou tratam-se necessariamente de “comportamentos aprendidos”? Pensar no pai como naturalmente manipulador é o resultado de uma manipulação das próprias circunstâncias? Pensar na filha como naturalmente manipuladora é o resultado de uma manipulação das próprias circunstâncias? Em outras palavras, pensamos no pai como naturalmente manipulador por uma espécie de falsificação da cultura, isto é, na medida em que não aceitamos (limitados por códigos morais estabelecidos) a possibilidade de pessoas naturalmente terem fantasias “perversas”? Pensamos na filha como naturalmente manipuladora por uma espécie de falsificação da cultura, que tende a responsabilizar as mulheres por violências sexuais sofridas? (Na cena em que se masturba na janela, não fica claro se a excitação da protagonista vem apenas do seu falso estuprador ou se é também motivada pelo presépio de Natal que ele está montando no jardim. Nesse segundo caso, seria possível pensar, em termos psicológicos, um desejo de afrontar a paternidade, noção central nas religiões monoteístas. A ideia de “paternidade corrompida” aparece também no filho da protagonista, cuja esposa gera um bebê de outro homem.)
11) A ideia de que a protagonista adquiriu “fantasias de violência” por supostamente ter sido abusada pelo pai é discutível. Há nessa hipótese algo que pode restringir a análise de tais fantasias ao campo moral (por seus aspectos essencialmente culturais, a moral tende a nos afastar daquelas análises voltadas especificamente ao entendimento universal do ser humano). Isto é, de acordo com essa linha de raciocínio, tais fantasias seriam “essencialmente negativas” e só poderiam brotar no espírito humano a partir de um ato originário essencialmente negativo (por exemplo, o abuso sexual). A meu ver, podemos pensar a existência de tais fantasias em pessoas que jamais sofreram qualquer tipo de violência. Essas fantasias me parecem até mais espontaneamente possíveis do que, por exemplo, o comportamento adotado pela protagonista de “Repulsa ao Sexo” (Polanski) – este sim claramente motivado pelo abuso. No caso da protagonista de “Elle”, porém, podemos pensar um nexo de causalidade diferente e mais consistente: a filha adquire tais preferências sexuais a partir de um abuso originário do pai, não porque tais fantasias sejam ilegítimas e necessariamente resultado de um ato “essencialmente negativo”, mas porque o abuso originário pode potencialmente estimular uma reação de desejo desesperado de controle. É o caso em que, tendo sido subjugada, a protagonista reativamente fantasia situações em que possa exercer o controle absoluto – tão absoluto que o “eu” domina sua própria subjugação e sua própria dor. Haveria aí uma ambiguidade fundamental: ao mesmo tempo em que a carga de manipulação frequentemente implicada no abuso sexual seria aí negada repetidamente, ela também estaria sendo reproduzida na tentativa perene de dominar outras pessoas. O interessante do filme é que, apesar dessa hipótese ser bastante plausível, passa longe de ser a única interpretação possível.
[spoiler][/spoiler] Alguém mais achou que a revelação feita por Blanche (ao final do filme) sobre o seu acidente pode não ser verdadeira? Talvez, sabendo que Jane tinha problemas com distorção de realidade, Blanche tenha optado por mentir. Mentir poderia fazer com que a irmã "baixasse a guarda" naquele momento final, na praia. A opção pela mentira poderia ter ainda um propósito generoso: Blanche sabia que Jane seria pega por seus crimes e quis dar a ela um último alívio psicológico, uma última "declaração de inocência" (nota-se durante o filme que Jane age como uma criança, a mesma criança mimada que um dia foi). Afinal, Blanche seria "a irmã generosa", a que perdoou mesmo após ter sido atacada. O próprio título do filme parece-me uma pista de que Blanche pode ter mentido. O que realmente aconteceu? De qualquer forma, acho muito interessante notar as contraditórias possibilidades em relação ao caráter de Blanche: seria ela, de fato, a irmã generosa, a que perdoou a irmã, a acolheu em sua casa e, ao final de tudo, ainda a poupou de uma verdade dolorosa? Ou, ao contrário, Blanche nunca deixou de ser aquela criança invejosa (como era antes de sua fama, quando Jane se destacava), visivelmente preterida pelo pai, alguém que mesmo tendo "virado a mesa" ao alcançar o sucesso jamais conseguiu superar esse trauma inicial, que atacou a irmã e posteriormente procurou torturá-la psicologicamente ao lhe atribuir uma culpa inexistente?
Me Chame Pelo Seu Nome
4.1 2,6K Assista AgoraO filme tem lá seu propósito, uma bela fotografia, mas para mim faltou mais conteúdo. Gosto de filmes com sutilezas e esse é um filme cheio delas, mas acho que houve um exagero nesse sentido. A premissa é interessante, mas o desenvolvimento não me cativou.
[spoiler][/spoiler] O melhor momento, sem dúvida, é o diálogo final com o pai.
Crimes Temporais
3.7 323[spoiler][/spoiler]
Fica uma questão para se pensar sobre esse filme: teria havido um acontecimento originário, responsável por tudo o que ocorreu no filme, mas que não foi mostrado no roteiro? É o que me parece. "Três" Hectors aparecem na história. Quando vemos o primeiro Hector sendo conduzido à máquina do tempo, isso já ocorre sob estímulo do segundo Hector (lembrem-se de que o segundo persegue o primeiro até que este entre na máquina). Como essa poderia ter sido "a primeira vez" em que Hector entrou na máquina? É preciso que Hector tenha inicialmente nela entrado de outra maneira, sem a manipulação de um "segundo Hector" (afinal, antes que a máquina do tempo tenha sido utilizada, não há como existir "dois Hectors" no mesmo ponto temporal). O provável é que o início do filme já seja uma "realidade transformada", isto é, uma realidade que "apagou" o acontecimento originário (a primeira vez em que, de fato, Hector entrou na máquina do tempo, em circunstâncias desconhecidas pelo espectador). Provavelmente, o segundo Hector (ao ver-se numa nova realidade temporal, no passado) quis "adiantar" a ida do "primeiro Hector" à máquina do tempo (com o propósito de que eles existissem simultaneamente o mínimo de tempo possível). Essa ação de promover esse adiantamento teria levado aos acontecimentos do filme e "apagado" a verdadeira primeira ida de Hector à máquina.
Pretty Baby: Menina Bonita
3.5 138[spoiler][/spoiler] O interessante no filme é notar como somos capazes de olhar para a realidade de maneira distorcida (por exemplo, vendo como normal situações de abuso). Por conta do ambiente em que está, a protagonista assimila como natural a ideia de se tornar adulta precocemente. Assim, ao mesmo tempo em que ainda apresenta nítidos traços de infantilidade em seu comportamento, ela procura se apresentar aos outros de forma madura (o que é fruto, também, de confusões em relação à sua autoimagem). Vive simultaneamente entre crianças e a realidade do bordel. Isso provoca uma confusão na forma com que a personagem do fotógrafo olha para ela. Às vezes, ele a vê como apenas uma criança; outras vezes, levado pelos gestos supostamente maduros da garota (que, dentre outras coisas, se insinua para ele) a vê como mulher. Num momento, sente a necessidade de protegê-la de interesses sexuais dos adultos; no outro, ele mesmo dorme com ela. Num momento, diz que uma criança não deve ser agredida; no outro, ele mesmo bate nela (age aí como aquele que quer "disciplinar a criança" ou aquele que "agride a mulher" por esta não se submeter?). Mas seriam verdadeiramente maduros esses gestos "tipicamente adultos" de Violet? Ou, ao contrário, a garota estaria - por força das circunstâncias - reproduzindo mimeticamente, numa espécie de encenação, esses gestos? Em outras palavras: Violet, ainda essencialmente uma criança, estaria "brincando" de ser adulta (como é comum entre crianças, aliás) e, graças à naturalização de suas condições de vida, fazendo com que os adultos (imaturos ao seu modo) acreditassem em sua falsa maturidade? Não é por acaso a profissão do homem com quem Violet acaba se casando. O fotógrafo é aquele que produz representações da realidade, isto é, que cria "cópias da realidade". Mas as representações dessa personagem são reproduções fiéis ou distorções da realidade? Não pode o fotógrafo manipular a realidade, sugerir que a realidade seria algo diferente do que verdadeiramente é? Se numa fotografia Violet pode ser representada como uma criança segurando uma boneca, na outra pode ser representada como uma mulher nua. Depende de como o cenário para a fotografia é preparado. O curioso é que Violet não era nem uma coisa nem outra; isto é, nem a criança que fruiu plenamente de sua infância e nem uma mulher amadurecida. A cena em que Violet estraga propositadamente os filmes do marido me parece extremamente simbólica: estaria ela, naquele ato infantil, desconstruindo aquela perspectiva segundo a qual a garota estava pronta para um relacionamento adulto? A meu ver, Louis Malle procura trabalhar essa questão da distorção interpretativa sobretudo em relação ao espectador do filme. É muito provável que diversos espectadores, assistindo ao longa, oscilem entre ver Violet como criança e adulta, transitando entre a repulsa por observar a relação abusiva entre adulto e criança e a ideia de um romance consensual (até adocicado, sob certos aspectos). Pode-se discutir se utilizar a nudez de uma atriz tão nova é, eticamente falando, um recurso válido. Por outro lado, acusar Malle de "erotizar a criança" não seria uma interpretação que já caiu nas garras da distorção interpretativa, isto é, que de certa maneira prova "a tese" do filme? Afinal, se Violet é só uma criança, o que temos em sua nudez é apenas um corpo de criança (que, aliás, sequer desenvolveu os seios). Nesse caso, não estaria havendo a exposição de algo intrinsecamente erótico. Para que esse corpo seja visto de maneira erotizada, é preciso que subjetivamente essa representação "tome o lugar da realidade". A erotização não estaria, então, exatamente na câmera que capta a nudez de Violet, mas naquele que é receptor da imagem e vê nesta algo a mais do que um corpo infantil. Analogamente, poder-se-ia dizer que à imagem captada pela fotografia tirada pelo fotógrafo é acrescentada uma interpretação pessoal do que é visto, uma interpretação que pode ser uma espécie de falseamento da realidade. Trata-se, novamente, de um campo aberto para pensar a validade de nossos juízos frente ao que vemos. Daí eu acreditar que Malle não caiu em nenhuma espécie de "romantização do abuso"; ou ainda, de que não houve, no olhar do diretor, nenhuma compactuação com a ideia de que Violet era realmente uma garota amadurecida. Há no filme diversas pistas de que a menina mantém, apesar de todo o seu comportamento, traços infantis e de que os adultos ao redor erroneamente "adultizaram a criança". A cena final explicita que a infância de Violet foi roubada e que, talvez somente naquele momento melancólico da última fotografia, ela tenha (pelas marcas da vida) amadurecido um pouco (paradoxalmente, justamente no momento em que a permitiram - até de forma imperativa - que ela "fosse uma criança").
Magia ao Luar
3.4 569 Assista AgoraTenho a impressão de que todo grande diretor de cinema tende a ser meio monotemático. Isto é, que todo gênio da sétima arte pega uma ideia básica e através dela norteia sua carreira. Curioso como Woody Allen sempre inventa novas (e interessantes) histórias para abordar o mesmo tema filosófico, a saber, o da suposta falta de sentido para a existência humana. Assim, o Woody Allen de Magia ao Luar, sua produção mais recente, é o mesmo de longas como Poderosa Afrodite, Hannah e Suas Irmãs, Match Point, Crimes e Pecados, Tudo Pode Dar Certo, dentre outros filmes. Quem acompanha sua filmografia certamente já reparou que Woody Allen aparenta nutrir uma visão de mundo “desencantada”, niilista, segundo a qual não existiria nenhuma espécie de Deus e/ou mundo metafísico (logo, nenhum sentido apriorístico para a vida). Se suas histórias por vezes possuem um final feliz, e por vezes um final trágico, é sempre igualmente pelo aleatório característico de um universo caótico e sem governo, jamais por qualquer espécie de providência. Allen poderia ser comparado ao já falecido cineasta Ingmar Bergman, não fosse o fato deste apresentar a temática do niilismo sempre de maneira carregada, envolta por um atmosfera sombria. Ao contrário de Bergman, Allen propõe uma abordagem mais leve, frequentemente cômica (lembrando que o diretor, também ator, iniciou sua carreira de artista fazendo apresentações de stand-up).
No cinema de Woody Allen, conforme se verifica mais explicitamente em um filme como Poderosa Afrodite, tragédia e comédia são elementos que surgem conjuntados. Daí a espirituosa cena final do mencionado longa, na qual um coro trágico (menção aos coros das antigas tragédias gregas), de maneira cômica, canta uma canção auto-ajudística de “ode à vida” (ironia proposital). Woody Allen se apresenta, sim, como o homem amargurado, covarde (covardia corajosamente exposta), hipocondríaco, assustado diante da possível ausência de sentido para a existência – tão presente em personagens frequentemente interpretados pelo próprio diretor. Mas, em meio a tal tragicidade, se mostra também capaz de fazer humor, de ridicularizar a si mesmo. Por isso, Woody Allen sempre representa papéis de homens atrapalhados, meio ridículos (e é preciso ser um gênio como Dostoiévski ou Fernando Pessoa para grandiosamente se admitir ridículo) – ridículo que caracterizaria toda a espécie humana. Mais especificamente, a posição frágil do homem perante sua precaridade de conhecimento, perante sua inevitável finitude, perante um vasto universo, silencioso e misterioso; posição assumida com aquela “alegria trágica” recomendada por Nietzsche e pelo Zaratustra nietzscheano, o que “escala elevados montes” e “ri-se de todas as tragédias da cena e da vida”. Alegria (combinada com a dor) de quem diz um “sim” à vida sem negar sua precariedade.
Magia ao Luar é capaz de fazer rir e pensar ao mesmo tempo. O enredo apresenta um mágico (Stanley) incumbido da missão de desmascarar uma jovem (Sophie) que afirma ser médium. Racionalista que só toma a ciência como critério de verdade, Stanley recusa com convicção a possibilidade de existir qualquer mundo metafísico. Assim, não cogita a ocorrência de qualquer evento sobrenatural. Não por acaso, Woody Allen fez de seu protagonista um mágico: mais do que ninguém, Stanley acredita que qualquer evento aparentemente sobrenatural só pode ser um mero truque de ilusionista. Seu encontro com Sophie inicia um duelo que, poder-se-ia dizer, espelha um embate entre fé e ciência fundamental na história da filosofia. Ele acusando-a de farsante e tentando desmascará-la. Ela tentando convencê-lo de que realmente possui dons sobrenaturais. Em Magia ao Luar, Woody Allen parece novamente se colocar na posição de crítico nietzscheano: embora apresente – através do personagem Stanley – certa suspeita em relação ao misticismo de Sophie, também não se mostra convicto de que a racionalidade científica possa explicar plenamente a existência (conforme alguns pensadores modernos, tão criticados por Nietzsche quanto os metafísicos antigos e medievais, chegaram a acreditar). Em determinados momentos do filme, o misticismo de Sophie parece atender necessidades humanas que poderiam ser racionalmente explicadas, sobretudo, a de amparo (conforme argumentação de Freud). Em outros, o cientificismo de Stanley – de tão irredutível – se assemelha a uma fé; uma fé radical na ciência, capaz até mesmo de recusar uma possível veracidade do misticismo ainda que este se legitimasse epistemologicamente através de evidências empíricas. A síntese dessa dialética é o improvável amor que vai surgindo entre as personagens. Síntese, pois o amor (mistério que pensadores como Platão e Schopenhauer procuraram desvendar), na ótica de Woody Allen, parece dotado de uma magia intrínseca ao mundo fenomênico, isto é, desaparentado de qualquer mundo transcendental, mas ultrapassando toda possibilidade de explicação por meio da racionalidade científica.
(Rafael Issa)
Elle
3.8 886[spoiler][/spoiler]
Achei um filme realmente muito interessante, rico em possibilidades no que se refere à interpretação de pontos específicos, em ambiguidades, em pistas, em simbologias e em questões comportamentais a serem pensadas. Tenho certeza que não peguei todos esses detalhes (para isso, creio eu, seria preciso assisti-lo mais de uma vez). De todo modo, fiquei tão intrigado com ele que resolvi comentar aqui algumas coisas a respeito:
1) Suspeitei no início do filme que o “estupro” sofrido pela protagonista fosse, na verdade, uma fantasia combinada previamente (de modo que ela sempre soube quem era o seu “estuprador”). Tanto pela forma calma com que a protagonista age após a suposta violência quanto pelo fato de não querer chamar a polícia para investigar o caso. Há uma dica logo no começo do filme, quando a protagonista entra em uma banheira após o suposto “estupro”: a mancha de sangue que vem de sua vagina forma um coração. Minha suspeita provavelmente foi estimulada também pela escolha da própria atriz. Huppert atuou em um filme chamado “A Professora de Piano”, interpretando uma mulher dotada de fantasias sexuais que implicavam sofrer agressões físicas. Numa comparação entre ambos os filmes, achei “Elle” mais rico. Em “A Professora de Piano”, o filme parece-me limitado à ideia de mostrar que tais fantasias existem e que elas poderiam ser, por assim dizer, “legítimas”. Já “Elle” desenvolve – a meu ver, com sucesso – um suspense a partir de tais fantasias.
2) Há uma segunda possibilidade de interpretação: a protagonista realmente foi estuprada e, ao invés de chamar a polícia, decidiu se vingar arrastando seu estuprador (identificado posteriormente) para um jogo que acabaria desembocando em sua morte. Esse jogo implicaria a protagonista fingir que gostou do estupro e, posteriormente, armar uma cilada para o seu estuprador. O momento em que o suposto estuprador é golpeado na cabeça e perplexo pergunta “por quê?” se encaixaria tanto na primeira quanto na segunda tese (ou o estuprador combinou aquela fantasia desde o começo, ou combinou posteriormente, apostando erroneamente na ideia de que a protagonista aprovou o estupro real, fantasia de todo agressor sexual e até mesmo de muitos homens comuns quando inseridos numa cultura de banalização da violência contra a mulher). Esta me parece, porém, uma hipótese bem mais fraca se comparada à primeira.
3) Voltando à primeira tese: gostei muito da simbologia presente na profissão da protagonista. O fato dela trabalhar com jogos de videogame (e, neste caso específico, jogos de videogame que implicam fantasias de violência) acaba sendo uma metáfora do seu comportamento sexual, em que ela joga e fantasia situações de violência. Num jogo de videogame, você “atua” e manipula um “personagem", assim como a protagonista faz na vida real.
4) O filme é também eficiente ao dar algumas pistas falsas, preservando a possibilidade de suspense. Ao procurar saber quem fez um jogo de videogame usando (numa montagem) o seu rosto, a protagonista não visava descobrir a identidade do seu estuprador. De acordo com a primeira hipótese aqui levantada, a protagonista já sabia quem era ele desde o começo (o próprio momento em que ela arranca a máscara do “estuprador” e “o descobre”, a meu ver, é parte da fantasia previamente combinada). O que a protagonista fazia, na verdade, era procurar uma nova pessoa que pudesse participar de seus jogos sexuais. No raciocínio da protagonista, uma pessoa “doentia” (a palavra não é muito boa neste contexto, mas não consegui encontrar uma melhor) o suficiente para fazer um jogo de videogame do tipo seria uma pessoa apta a se abrir aos jogos sexuais em questão. Ela só desiste de envolver o autor da montagem nesses jogos ao perceber que seu órgão sexual não a interessa.
5) Achei interessante notar no filme a dualidade submissão-controle. O filme dá toda a pinta de que a protagonista é masoquista. O que se percebe progressivamente, porém, é que na verdade a protagonista é sádica (ao menos, esse é o aspecto de sua personalidade que prevalece). Ao simular situações em que se submete a violências, a protagonista se vê no controle (no decorrer do filme, fica claro como ela manipula todos os demais personagens). Simbolicamente, o poder absoluto se faz justamente na medida em que o “eu” controla sua própria submissão (Rousseau teve essa intuição ao pensar o binômio natureza-civilização, em termos mais propriamente políticos, quando viu no “contrato social” apto a garantir a liberdade do indivíduo uma cláusula de “alienação absoluta ao corpo coletivo”). No caso do filme, temos o controle da própria dor através das fantasias violentas. Há teorias psicanalíticas que tentam explicar fantasias sexuais do tipo. Lembro agora de um livro chamado “The Denial of Death”, escrito pelo antropólogo Ernest Becker. O livro não é, na verdade, sobre fantasias sexuais. Grosso modo, a obra desenvolve a tese de que a psique humana está, fundamentalmente, ocupada em negar a ideia da morte. Em meio ao “desamparo” de não poder controlar as coisas (a morte seria, nessa linha de raciocínio, um mal incontrolável), as fantasias sexuais atuariam como uma tentativa de exercer esse controle (há no filme, inclusive, uma cena na qual a protagonista se “finge de morta” numa relação sexual). Dito de outro modo, fantasiar sexualmente com uma agressão (tanto na perspectiva masoquista quanto na sádica) significaria inverter a relação de controle existente entre “eu” e “dor”. Becker chega a dizer, ainda, que as fantasias teriam como função dar certa “ludicidade” ao ato sexual (penso agora não apenas as fantasias violentas, mas as fantasias sexuais de modo geral). Isto é, também nesse caso teríamos aí uma busca por controle em relação à natureza. Incrementar o ato sexual com fantasias implica, nessa ótica, tirá-lo de sua “banalidade” natural. Nas palavras do próprio Becker, significa “dar-lhe certa sacralidade”, algo próximo de um rito religioso. Note que esse elemento religioso aparece de forma muito nítida no filme. Pode-se pensar que há algo de ritualisticamente religioso nos jogos realizados pela personagem central. A meu ver, essa é uma das razões pelas quais a religião aparece com certo destaque no filme (mais adiante, mencionarei a outra).
6) Ainda pensando essa dualidade submissão-controle, é interessante notar que a protagonista não aceita nenhuma espécie de dominação masculina. Ela não aceita que a mãe seja controlada por um jovem rapaz, provavelmente interesseiro. Nitidamente, ela tem com seu filho uma postura extremamente controladora (tanto que o manipula para levá-lo ao ato final, em que o “estuprador” é morto). Há nesse segundo caso uma ambiguidade interessante: o desejo de controle pessoal da protagonista é tão grande que ela chega a proteger seu filho da dominação a que este visivelmente se submete perante sua esposa (provavelmente, para que o controle materno possa se realizar sem outro controle que o inviabilize). Vale mencionar também a razão pela qual a protagonista se separa do pai de seu filho: ele a agrediu. Ou seja, a extrema agressividade é tolerada quando consensual, quando “parte do jogo” que a protagonista manipula. Quando, porém, a violência se manifesta como opressão real, ela é rechaçada.
7) Outro questionamento interessante pode ser feito em relação ao filho da protagonista. Até que ponto a nítida postura de submissão perante a esposa é real? É muito possível que o filho reproduzisse de alguma maneira as fantasias de falsa submissão da mãe. Possivelmente, a postura hostil da esposa e até mesmo a gravidez de outro homem eram parte de uma fantasia consensual entre o casal. Há dois sinais nessa direção: a) o provável pai do bebê aparece na maternidade. O que ele estava fazendo ali? b) No final do filme, após desentendimentos aparentemente graves, o casal parece estar bem. Talvez a própria mãe, ciente dessa fantasia, apoiasse estimulando, isto é, jogando na cara do filho que o bebê "não era seu".
8) Qual é o significado da morte do “estuprador”? Por que a protagonista preparou a cena para que isso acontecesse? Essa é uma pergunta que o próprio “estuprador” se faz antes de morrer. Por quê? A meu ver, a resposta não é clara nem simples. Poderíamos, seguindo a segunda hipótese que levantei aqui, pensar numa vingança perante alguém que lhe estuprou realmente (isto é, de forma “não fantasiada”). A mim, aceitar essa tese é ver no filme um propósito um pouco mais superficial. A ideia de que esse desfecho trágico era parte da fantasia violenta da protagonista (logo, da fantasia de controle e dominação absoluta) me parece muito mais interessante. Entre masoquistas/sádicos existem, segundo pesquisas, dois grupos: os que se estabilizam num nível x de violência, “seguro”, e os que entram num caminho de violência crescente e perigoso. Provavelmente, o segundo caso era o da protagonista e seu “estuprador” de mentira.
9) Sobre o item anterior, poderíamos ainda levantar uma hipótese mais perturbadora: o “por quê?” do “estuprador” no momento de sua morte era um questionamento real ou um questionamento encenado, teatral? Tendo em vista as fantasias em questão, não penso que devemos tomar como absurda a ideia de que o “estuprador” – de forma suicida – fantasiou um desfecho que o levaria à morte. Isto é, que sua morte também fizesse parte “do roteiro” previamente estabelecido. Existem casos reais em que isso acontece. Além disso, esse “por quê?” tem uma simbologia muito forte no filme. É o “por quê?” que representa outros porquês do filme. Por que as pessoas podem agir dessa maneira? O que leva a tais comportamentos? É o mesmo "por quê?" que o filme propõe em relação ao pai da protagonista.
10) Essas questões nos levam ao que, em minha opinião, há de mais interessante no filme: a relação da protagonista com o seu pai. Sob esse aspecto, gostei de como o roteiro não é didático (deixando ao espectador a possibilidade de teorizar). Não ficamos sabendo exatamente o que aconteceu, nem as motivações. Só sabemos que o pai, um belo dia, resolveu fazer uma chacina; e ainda, que a filha o ajudou a queimar a casa e teria tido alguma participação, “obscura”, nos crimes. Qual seria aí a exata relação de causalidade em relação aos comportamentos? O comportamento do pai determinou os comportamentos que a filha cristalizou quando adulta? A menina ficou traumatizada pelos crimes cometidos pelo pai? Algo de importante aconteceu entre pai e filha? O pai tinha alguma espécie de fantasia sexual em relação à filha? O pai era alguém que abusava sexualmente da filha? O pai, por algum desses motivos (ou outros, de natureza semelhante), “enlouqueceu” e resolveu matar pessoas? Ou ainda, a filha (naturalmente disposta a isso) teria – tal como fez posteriormente com outros personagens do filme – manipulado o pai (prendendo-o numa teia de jogos) a ponto dele cometer esses crimes? O que teria acontecido a ponto do pai preferir a morte ao rever a filha? Quem era, de fato, a “parte fraca” dessa relação? A filha sempre foi uma manipuladora ou passou a reproduzir uma possível personalidade manipuladora do pai? Certas fantasias e “perversidades” podem brotar espontaneamente num ser humano ou tratam-se necessariamente de “comportamentos aprendidos”? Pensar no pai como naturalmente manipulador é o resultado de uma manipulação das próprias circunstâncias? Pensar na filha como naturalmente manipuladora é o resultado de uma manipulação das próprias circunstâncias? Em outras palavras, pensamos no pai como naturalmente manipulador por uma espécie de falsificação da cultura, isto é, na medida em que não aceitamos (limitados por códigos morais estabelecidos) a possibilidade de pessoas naturalmente terem fantasias “perversas”? Pensamos na filha como naturalmente manipuladora por uma espécie de falsificação da cultura, que tende a responsabilizar as mulheres por violências sexuais sofridas? (Na cena em que se masturba na janela, não fica claro se a excitação da protagonista vem apenas do seu falso estuprador ou se é também motivada pelo presépio de Natal que ele está montando no jardim. Nesse segundo caso, seria possível pensar, em termos psicológicos, um desejo de afrontar a paternidade, noção central nas religiões monoteístas. A ideia de “paternidade corrompida” aparece também no filho da protagonista, cuja esposa gera um bebê de outro homem.)
11) A ideia de que a protagonista adquiriu “fantasias de violência” por supostamente ter sido abusada pelo pai é discutível. Há nessa hipótese algo que pode restringir a análise de tais fantasias ao campo moral (por seus aspectos essencialmente culturais, a moral tende a nos afastar daquelas análises voltadas especificamente ao entendimento universal do ser humano). Isto é, de acordo com essa linha de raciocínio, tais fantasias seriam “essencialmente negativas” e só poderiam brotar no espírito humano a partir de um ato originário essencialmente negativo (por exemplo, o abuso sexual). A meu ver, podemos pensar a existência de tais fantasias em pessoas que jamais sofreram qualquer tipo de violência. Essas fantasias me parecem até mais espontaneamente possíveis do que, por exemplo, o comportamento adotado pela protagonista de “Repulsa ao Sexo” (Polanski) – este sim claramente motivado pelo abuso. No caso da protagonista de “Elle”, porém, podemos pensar um nexo de causalidade diferente e mais consistente: a filha adquire tais preferências sexuais a partir de um abuso originário do pai, não porque tais fantasias sejam ilegítimas e necessariamente resultado de um ato “essencialmente negativo”, mas porque o abuso originário pode potencialmente estimular uma reação de desejo desesperado de controle. É o caso em que, tendo sido subjugada, a protagonista reativamente fantasia situações em que possa exercer o controle absoluto – tão absoluto que o “eu” domina sua própria subjugação e sua própria dor. Haveria aí uma ambiguidade fundamental: ao mesmo tempo em que a carga de manipulação frequentemente implicada no abuso sexual seria aí negada repetidamente, ela também estaria sendo reproduzida na tentativa perene de dominar outras pessoas. O interessante do filme é que, apesar dessa hipótese ser bastante plausível, passa longe de ser a única interpretação possível.
O Que Terá Acontecido a Baby Jane?
4.4 830 Assista Agora[spoiler][/spoiler]
Alguém mais achou que a revelação feita por Blanche (ao final do filme) sobre o seu acidente pode não ser verdadeira? Talvez, sabendo que Jane tinha problemas com distorção de realidade, Blanche tenha optado por mentir. Mentir poderia fazer com que a irmã "baixasse a guarda" naquele momento final, na praia. A opção pela mentira poderia ter ainda um propósito generoso: Blanche sabia que Jane seria pega por seus crimes e quis dar a ela um último alívio psicológico, uma última "declaração de inocência" (nota-se durante o filme que Jane age como uma criança, a mesma criança mimada que um dia foi). Afinal, Blanche seria "a irmã generosa", a que perdoou mesmo após ter sido atacada. O próprio título do filme parece-me uma pista de que Blanche pode ter mentido. O que realmente aconteceu? De qualquer forma, acho muito interessante notar as contraditórias possibilidades em relação ao caráter de Blanche: seria ela, de fato, a irmã generosa, a que perdoou a irmã, a acolheu em sua casa e, ao final de tudo, ainda a poupou de uma verdade dolorosa? Ou, ao contrário, Blanche nunca deixou de ser aquela criança invejosa (como era antes de sua fama, quando Jane se destacava), visivelmente preterida pelo pai, alguém que mesmo tendo "virado a mesa" ao alcançar o sucesso jamais conseguiu superar esse trauma inicial, que atacou a irmã e posteriormente procurou torturá-la psicologicamente ao lhe atribuir uma culpa inexistente?