Supondo que as correlações mais óbvias já estejam bastante evidentes para quem viu o filme - os níveis da prisão representam os níveis sociais, a Administração é o Estado/Governo, a comida é a riqueza a ser distribuída -, quero comentar sobre o que achei mais sutil e difícil de perceber no filme. Também não explorarei as correspondências entre personagens do filme e do Dom Quixote, obra pela qual alimento profundo amor, pois para mim isso não é o principal e não vejo dificuldade em fazer tais associações para quem leu também o livro, embora os personagens do livro sejam naturalmente muito mais simpáticos e profundos. Quero propor uma interpretação a partir do ponto em que
Imoguiri, que na representação seria uma antiga agente do Estado, tenta convencer, com argumentos pragmáticos e racionais, as pessoas dos níveis inferiores a separarem somente uma certa quantidade de comida para se alimentar, garantindo o mínimo necessário de calorias para se manter e fazendo com que a comida pudesse chegar aos níveis mais baixos. O fracasso dessa tentativa, técnica e típica de um burocrata, no convencimento das pessoas para que se solidarizem espontaneamente é o que faz Goreng começar a pensar que para mudar aquela realidade brutal ele teria que apelar a expedientes brutais também. Quando Imoguiri, representação do planejamento estatal, percebe que seu plano de distribuição de riqueza está fadado ao fracasso e que, literalmente, o buraco é muito mais embaixo, ela cai em desespero e sucumbe, suicidando-se. A próxima etapa se dá com a elaboração e execução de um plano revolucionário por Baharat e Goreng, quando estes estão no nível seis, podendo desfrutar um banquete, após terem encarado o níveis mais profundos, onde se depararam com o mais brutal desespero e violência, gerados pela miséria e fome. Inicialmente, queriam apenas distribuir comida aos níveis mais profundos, onde a comida nunca chegava. Após encontrarem um sábio amigo de Baharat num dos níveis, o objetivo passa a consistir em descer até o último nível com um prato de comida intacto e fazê-lo voltar para cima. Eles basicamente queriam provar que haviam conseguido distribuir a comida de forma igualitária, provar que todos haviam se alimentado, de modo que até sobrara uma pequena sobremesa. Mas de fato, eles não conseguiriam, com isso, demonstrar o surgimento de uma solidariedade espontânea. Eles se utilizaram da violência revolucionária quando estavam no topo para forçar de cima para baixo um ideal de justiça. Mataram brutalmente para isso, a fim de proteger não propriamente as pessoas, mas a comida (ou riqueza). A troca pela menina significaria que no fim eles se deram conta de que o que importava era o ser humano, e não a comida/riqueza em si. No começo do seu projeto revolucionário o Goreng é encarado como o Messias, mas um messias imanentizado, que acredita num ideal de plena justiça realizável naquela realidade brutal. No fim, ele percebe que não é ele que deve passar alguma mensagem, ele não tem legitimidade para mudar aquela realidade e impor seus ideais. A criança funciona como um elemento sobrenatural ali ("os pequeninos herdarão o reino dos céus"), ela é a mensagem. A grande crítica do filme se dirige contra as noções materialistas da realidade e suas teorias políticas e sociais vigentes (capitalismo e socialismo). Ao enviar a criança, modifica-se a imagem de Goreng como um messias imanentizado para um messias sobrenatural, transcendente, que não promete ou propõe uma mudança imposta de fora para dentro do espírito humano (ou seja, surgida a partir do mundo material), mas propõe uma mudança que se inicia no interior do espírito humano. Goreng, no final, é um príncipe Michkin, uma mistura de Jesus Cristo e Dom Quixote - alguns o enxergarão como o modelo de justiça e bondade e iniciarão a mudança em seu interior (entenderam a mensagem, a criança como modelo de pureza, esperança, herdeira do reino dos céus, capaz de inspirar uma profunda mudança no espírito), outros verão nele apenas um idiota (e continuarão agindo como bestas selvagens, para as quais só existe o mundo da matéria, da natureza e dos instintos).
A prova de que é possível um grande feito cinematográfico a partir de um roteiro bastante simples. Uma cena memorável, que marcará a história do cinema. A palavrinha mágica, que todos estão usando, expressa com total justiça a experiência com este filme - imersão. Há cenas poéticas belíssimas. Discordo que o filme seja pretensioso, porque tudo que ele se propõe se materializa com total competência. A escolha do roteiro não pode ser considerada pretensiosa, justamente pela sua simplicidade; e o feito técnico tampouco, justamente pela competência com que se realiza. Aliás, diria que a simplicidade no roteiro e a complexidade da técnica se harmonizam finamente aqui. O que me leva a discordar que o filme seja superficial. Se não há diálogos profundos, se não há extensas análises psicológicas, sociológicas, políticas, existenciais ou seja lá o que for, há a experiência visualmente deslumbrante de praticamente vivenciar um cenário de guerra. Se isto não te faz refletir sobre a guerra, não sei mais o que faria.
Após discutir minha primeira experiência com este filme com algumas pessoas, novamente me aventurei em Bacurau e minhas impressões iniciais não apenas se mantiveram como até se reforçaram. O roteiro é fraquíssimo, não pelo fato de ser simples (o que não é necessariamente um defeito), mas pelo fato de não ter substância. Discute-se que a representação caricatural dos americanos foi proposital, isso me parece óbvio; mas isso não justifica a arbitrariedade e a completa falta de criatividade na elaboração de um roteiro tão pobre quanto o que Bacurau entrega, tão pobre que parece até que se esqueceram dele. O filme te entrega, ou melhor, te empurra goela abaixo a premissa (absurdamente primária) e segue até o fim sem te provocar, sem te propor nada além do que já estava claro desde o início, sem te surpreender e sem te oferecer elementos (nem sequer uma alusão) que te permitam explicar ou imaginar as várias pontas soltas que pululam no roteiro. Já não gosto disso, já não gosto desse tom impositivo, com tudo ali mastigadinho, empacotado e pronto para um espectador passivo aceitar todas as óbvias metáforas, analogias, simbolismos, sem se importar com o desenrolar da narrativa. Isso tudo soa panfletário demais. Muito símbolo, muito abuso metafórico para um roteiro que não está a altura. Soa pretensioso. Há cenas inexplicáveis, aleatórias, desconexas e sem valor algum. Como assistir aquela cena em que
A ausência de uma premissa mais criativa e consistente para a presença dos americanos em Bacurau enfraqueceu todo o filme a ponto de torná-lo pouco convincente e soar consideravelmente forçado, artificial. A impressão é que, no afã de encher um filme de metáforas político-sociais bastante óbvias e pouco profundas, menosprezou-se o roteiro como mero pretexto, um acessório para atacar um certo imperialismo americano, já um tanto ultrapassado no contexto brasileiro ao menos. O que parece valer efetivamente para os diretores são as metáforas; o roteiro pouco importa, mas um filme com roteiro fraco dificilmente se salva por outras tantas qualidades que tenha e é inegável que Bacurau tem suas qualidades. O problema é que as próprias metáforas foram esvaziadas pelo roteiro fraco do filme. Que cena forçada e artificial aquela em que uma dupla americana mata um casal de idosos de Bacurau e celebra o feito praticando sexo no mato. Eu entenderia como uma metáfora de como a cultura norte-americana tende a exaltar a violência e o sexo e como, não raro, ambos se conectam na cultura norte-americana de tal modo que muitas vezes se confundem e geram graves problemas como abusos, estupros e psicopatia, atenuando os limites entre o puro prazer e a violência. De fato, a cena poderia representar bem esse prazer mórbido, muito presente nos filmes e séries americanos, que muito frequentemente se mescla e se confunde com o prazer sexual, de subjugar, humilhar, rebaixar outro indivíduo, especialmente aquele considerado "diferente". Mas, no próprio filme, não encontramos base sólida para fundamentar essa metáfora e a cena, na verdade, só parece querer empurrar goela abaixo do espectador o quanto aquelas pessoas são abomináveis. Ficou artificial demais para um filme que busca metáforas para construir toda uma abrangente crítica política e social. A intenção de Bacurau é interessante, mas o que se vê na tela está aquém do que esperaríamos de um filme com tal tema.
Ao contrário do que muitos dizem, não vejo este filme como sendo uma crítica essencial ao casamento em si e vou mostrar porquê. O que o filme mostra de fato é uma espécie de desajuste e conflito, mas onde se encontra o desajuste? Tudo o que vemos são fatos envolvendo uma sequência de ações imediatistas e não planejadas. Você não vê em nenhum momento o casamento, o filho ou a relação conjugal sendo socialmente imposta aos dois. Bergman é muito avesso a essas fórmulas simplistas, ele vai mais além, muito além. Vemos sim as consequências de escolhas feitas por Lund e Monika, escolhas que lhe ocorreram como a melhor maneira de lidar com os conflitos e problemas aos quais eles se deparavam. A questão é: foram as escolhas corretas? Penso que decididamente não. Foram escolhas precipitadas, essas escolhas foram a tônica do filme inteiro. E eles se viram diante responsabilidades para as quais não estavam preparados; e tudo isso por uma fuga daquilo que os afligia. Lund encontrou em Monika o amor que ele nunca teve de sua mãe falecida precocemente, e de seu pai, visivelmente frio e pouco dado a afetividades. Monika encontrou em Lund o amor que ela não recebia do pai bêbado e da mãe exigente. Mas será que de fato foi amor ou foi só carência que uniu os dois!? Quando a coisa apertou, Monika fugiu novamente. Fugiu por que? Porque não era correspondida ou porque já não havia mais amor por Lund? Ou então: ela não se sentia correspondida e por isso não amava mais o Lund, ou antes ela já não o amava mesmo e a suposta falta de correspondência foi só um pretexto para sua fuga? Essas questões que ficam em aberto para o espectador julgar, Bergman não te dá a resposta mastigadinha. Por isso acho que o cerne da questão não é uma crítica ao casamento em si; o que está sendo julgado em última instância são as ações de ambas as partes do casal.
Conhecer a história do Sebastião Salgado não é apenas conhecer a história do indivíduo ou do fotógrafo Sebastião Salgado. A história de todo grande homem ultrapassa os limites da própria individualidade, dos projetos pessoais e de sua vida íntima. Conhecer a história de um artista como Sebastião, é conhecer a nossa história atual, a história de milhares, ou até milhões, de nossos contemporâneos. A história de quem conheceu o sofrimento humano nas suas formas mais chocantes e degradantes; a história, contada através das lentes, de um mundo devastador, de um mundo angusto, de um mundo que parece ter dado certo para uma parcela muito reduzida de seres humanos privilegiados. Entretanto, como toda grande obra de todo grande artista, nós vislumbramos sempre uma esperança, podemos discernir em cada rosto sofrido, em cada postura, uma dignidade que, embora não consiga se encaixar adequadamente neste mundo, consegue ainda dar a força necessária para seguir batalhando, para seguir acreditando. Tudo na vida do "Tião" reflete essa história, o próprio instituto Terra e o seu último projeto Gênesis representam este sopro final de fé e esperança nas coisas boas que existem no mundo. Sem dúvida temos ,aqui no Brasil, um dos seres humanos mais inspiradores da atualidade.
Bendita seja a época em que até filmes de terror transmitiam os valores supremos que dão sentido à nossa vida e a fazem valer a pena. Hoje é só violência gratuita, tortura e roteiros extremamente precários que banalizam a vida numa barafunda de acontecimentos absurdos e sem sentido. Filme belíssimo.
Há algo do existencialismo de Kierkegaard no silêncio de Elizabeth Vogler. De fato, Bergman foi muito influenciado por Kierkegaard, para quem a existência humana, frente às infinitas possibilidades de "ser no mundo" e aos paradoxos que isso acarreta, culmina numa profunda angústia e impotência. O silêncio de Elizabeth consiste nesta angústia: o ser humano aspira ao Ser, ele quer se encaixar, precisa definir-se e então criam-se as mais variadas expectativas; mas o caráter contingente da existência humana conduz o indivíduo a uma infinidade de modos de ser, infinitas possibilidades e a total liberdade de se tornar algo, de Ser. Entretanto, como o homem não pode assumir essas infinitas possibilidades e sequer pode orientar-se por critérios bem definidos na escolha de uma ou outra possibilidade, é aí que ele se depara com o vazio e com o nada – o desespero do qual fala Kierkegaard, e que está expresso no silêncio de Vogler, é exatamente esta conversão sub-reptícia das infinitas possibilidades de ser, em nada. Como define Sartre, o homem é “o ser que projeta ser Deus”, mas como ele nunca pode abarcar em si a totalidade das coisas, ele se refugia no nada, no não-ser. É isso que faz Vogler silenciar voluntariamente. Ela, atriz, não quer mais representar, ela quer Ser. O que ocorre é que as pessoas estão prontamente solícitas no que diz respeito aos papéis sociais a serem desempenhados, justamente porque, neste caso, são muito previsíveis os modos de agir, visto que são imposições vindas de fora do indivíduo. Quando adentramos no contexto individual, entretanto, faz-se sentir o ser humano em toda a sua ambiguidade. Ambiguidade esta, explorada com uma fina ironia no filme e que será percebida pela enfermeira Alma quando esta descobre que na verdade é ela que está sendo objeto de análise de sua “paciente”. Alma ainda desempenha os papeis que lhe são impostos; quando resolve fazer o jogo de Elizabeth, quando resolve não mais contar fatos e projetos de sua vida... aí já não é mais possível distinguir a linha cada vez mais tênue que separa a personalidade (o ser) de ambas (Alma e Elizabeth). Um livro com o qual se pode fazer um paralelo interessante é o "poema petersburguense" O Duplo, de Dostoiévski, no qual um funcionário público, cuja personalidade vai se desconstruindo aos poucos na medida em que mergulha em si e intensifica as contradições entre "aquilo que ele é" e a imagem que faz de si como ator social, é levado a sua total ruptura, passando a conviver com seu Duplo, que, por fim, o leva a loucura. Mais um exemplo na literatura, entre uma infinidade de outros exemplos que se poderia citar, é o conto William Wilson de Edgar Allan Poe.
paralelo entre Tolstoi e Pasolini vai muito além das breves referências mais explícitas no filme, como a leitura do trecho de uma novela do autor russo e a cena em que, assim como Guerássim apoiava os pés do seu patrão moribundo em seus ombros para fazê-lo sentir-se melhor, o misterioso visitante faz o mesmo com Paolo.
Toda essa análise feita sobre a "crise estrutural do capital", a "falência das instâncias sócio-reprodutivas no sistema do capital" e o consequente declínio no "metabolismo societário da burguesia"; traduzindo para termos mais exatos e menos rebuscados, toda a análise sobre a crise familiar burguesa, ou sobre o declínio do ideal de família burguês é realmente muito interessante. Tolstói já o tinha feito num poderoso argumento de uma breve novela referida no filme - A Morte de Ivan Ilitch. Confrontando o limitado cotidiano de uma família burguesa com a questão mais grandiosa que se impõe ao homem em sua vida - o seu destino, o sentido da vida e a morte -, Tolstoi denuncia a mesquinharia, a baixeza, a vulgaridade e a desumanização num ambiente que sobrepõe a tudo que de mais importante se questiona no âmago de cada indivíduo (que inclusive lhe confere identidade e personalidade) as exigência de ordem prática, tão diminutas diante daquilo que nos torna humanos e nos faz vivos de fato. Parece paradoxal perceber que o único que compreende a situação de Ivan Ilitch no leito de morte e que, portanto, age humana e naturalmente, sem artifícios e mentiras, é justamente o mais simplório dos personagens, o criado Guerássim. É o criado (o proletário, diríamos no jargão marxista de Pasolini) que está ali no momento que o moribundo mais precisa, no momento mais solene e de vital importância. O que difere disso na obra de Pasolini, conferindo-lhe então originalidade? A instância que traz à consciência toda a superficialidade do modo de vida burguês não é a morte, mas o misterioso visitante sem nome. Admito não saber precisamente qual foi a alegoria intencionada na figura do visitante, mas trata-se de um messias que veio fazer emergir tudo aquilo que já estava latente no seio da família ali retratada. Se a questão fundamental que se apresenta a cada indivíduo que vive é o seu destino inexorável - a morte -, Pasolini nos apresenta outra instância universal nesta questão através de dramas individuais - a identidade. No fundo, ambas as instâncias, de Tolstói e de Pasolini, culminam no mesmo drama, porque se é correto dizer, como nos demonstra Borges em O Imortal, que é a mortalidade que nos confere identidade, então nada pode estar mais relacionado que a narração dos últimos dias agônicos de Ivan Ilitch e a espetacular cena final d'O Teorema, onde um homem nu berra desesperadamente no deserto. Em ambos desmorona gradualmente a identidade social que eles assumiram e acreditavam ser a essência de sua própria individualidade.
James Stewart era um dos favoritos de Hitchcock e, quanto mais assisto filmes com este sujeito, mais me convenço de que é o ator que mais gosto de ver atuar - brilhante em todos os filmes. O filme em si só vem reforçar o título de "mestre do suspense" de Hitchcock, a cena do concerto no Albert Hall é fantástica, embora o filme de modo geral não esteja no mesmo nível de suspense e mistério de outros grandes clássicos do diretor.
O filme é esteticamente deslumbrante, um modo de filmar realmente original, metáforas certeiras e canções que cativam. No entanto, o discurso é que me desagrada - todo aquele socialismo romântico somado a um certo cientificismo (que nada mais é do que a romantização da ciência também) dá um tom notadamente ingênuo e enfadonho àqueles "revolucionários ultrapassados".
Fico imaginando a extrema dificuldade de se adaptar uma obra como Crime e Castigo para o cinema, esta que certamente é a obra mais psicológica de Dostoievski. Porque o livro não consiste propriamente numa história sendo contada, mas muito mais nos desdobramentos psicológicos de vários personagens submetidos aos mais diversos tipos de tirania, opressão, vícios, dramas e situações nas quais se fundem o real e o fantástico (traço marcante na literatura do mestre russo). Os pensamentos e monólogos interiores dos personagens são tão ou mais importantes quanto os diálogos, que sempre apresentam a típica duplicidade (do sentido) - naquilo que está sendo dito literalmente e no que fica implícito nas entrelinhas do subconsciente de cada personagem. Com tudo isso, é praticamente impossível transmitir através da tela todo o peso e profundidade do livro. O filme, entretanto, conseguiu, dentro das limitações de um produção cinematográfica baseada numa obra literária tão complexa, atingir um resultado satisfatório, especialmente por parte dos atores, que nesse tipo de adaptação ganham uma importância ainda maior. O semblante desse moço que fez Raskólnikov, o senhor Georgi Taratorkin, consegue nos fazer sentir, ao longo do filme, asco e repugnância em alguns momentos, e compaixão e piedade em outros; exatamente como ocorre durante a leitura do livro. A mocinha que interpretou Sônia, Tatyana Bedova, conseguiu encarnar com maestria toda a doçura tímida da personagem, assim como seu enorme sofrimento e resignação. A moça que fez Dúnia, Viktoriya Fyodorova, também fez perfeitamente bem o papel de sua personagem, mulher altiva e forte. Penso que esses foram os maiores destaques.
"Neste mundo, a bondade é tida como sinônimo de idiotice..." (Hakuchi, Kurosawa)
"A beleza salvará o mundo!" (O Idiota, Dostoievski)
" - Escutem! Eu sei que não é bom falar: o melhor é simplesmente dar um exemplo, o melhor é simplesmente começar... eu já comecei... e - será que realmente se pode ser infeliz? Oh, o que são a minha mágoa e a minha desgraça se eu estou em condição de ser feliz? Sabem, eu não compreendo como se pode passar ao lado de uma árvore e não ficar feliz por vê-la! Conversar com uma pessoa e não se sentir feliz por amá-la! Oh, eu apenas não sei exprimir... mas, a cada passo, quantas coisas maravilhosas existem, que até o mais desconcertado dos homens as acha belas? Olhem para uma criança, olhem para a alvorada de Deus, olhem para a relva do jeito que cresce, olhem para os olhos que os olham e os amam..." (O Idiota, Dostoievski)
Meses depois de terminar um dos grandes romances de Dostoievski - O Idiota -, foi grande a satisfação ao assistir o filme do Kurosawa baseado na obra. O japonês soube captar, com extrema sensibilidade, a essência do que o russo transmitiu em sua obra. A criação de um personagem perfeito, positivamente bom e... idiota! A caracterização do Príncipe Míchkin, como um sujeito idiota pela doença da qual padece, não é acidental. A doença, na verdade, é apenas um pretexto para camuflar algo muito pior. Isso porque o Príncipe é tido como idiota mesmo quando está plenamente saudável e "normal". Acontece que na sociedade, na forma de convívio que se convencionou como dentro da normalidade, a existência de um sujeito naturalmente bondoso e sincero, alguém que não se envergonha de praticar a bondade e não esconde seus sentimentos, aquele que não tem pudor em dizer que ama, que se compadece, que percebe tão naturalmente o que aflige e faz sofrer aos outros e compartilha do mesmo sofrimento e quer amar e enfrentar junto este sofrer... alguém assim é tido como uma raridade, um acontecimento excepcional, talvez até indecente por ser tão puro e tão sem pudor, enfim, alguém realmente idiota, "que ama e sente exageradamente". Aqui os valores se invertem, porque é uma sociedade doente e uma humanidade falida que está a avaliar como idiota um indivíduo assim concebido. Não surpreende que hoje digamos que a bondade deva ser praticada às escondidas, caso contrário, é hipocrisia, caso contrário, é autopromoção. As pessoas sentem-se embaraçadas até mesmo em ajudar o próximo. O egoísmo e a ganância são as novas virtudes. O senso de humanidade parece afrouxar cada vez mais, o homem moderno está embevecido pela técnica, pela racionalidade, pela ciência; ele enaltece a racionalidade e desdenha seus sentimentos, parece até alimentar uma certa volúpia pela ideia de ser uma máquina, um robô, que age pelas simples leis da razão e ignora tudo aquilo que não se encaixa em sua obtusa racionalidade; e que, depois que a máquina terminar de funcionar, ela vai para o buraco; ele se acovardou diante da dificuldade que é viver e ser humano...
"Agora a conclusão, o final, senhores, o final em que consiste a decifração de uma das mais grandiosas perguntas daquela e da nossa época! O criminoso termina denunciando a si mesmo ao clero e entregando-se nas mãos do governo. Pergunta-se: que tormentos o esperavam naquele tempo, que rodas, fogueiras e fogos? Quem o impeliu a ir denunciar-se? Por que não parar simplesmente na casa dos sessenta, mantendo o segredo até o último alento? Por que não largar simplesmente o clero para lá e viver arrependido como um ermitão? Por que, enfim, não ingressar ele mesmo na vida monástica? Aí está a decifração. Quer dizer que houve algo mais forte do que as fogueiras e o fogo e até mais que um hábito de vinte anos! Quer dizer que havia um pensamento mais forte do que todas as desgraças, más colheitas, torturas, lepra, maldições e toda sorte de inferno que a humanidade não suportaria sem um pensamento que concatenasse, orientasse o coração e fertilizasse as fontes da vida! Mostrem-me os senhores algo semelhante a tal força em nosso século de vícios e estradas de ferro... isto é, é preciso dizer, em nosso século dos navios a vapor e das estradas de ferro, mas eu digo: em nosso século de vícios e estradas de ferro, porque eu sou um beberrão, porém justo! Mostrem-me uma ideia que ligue e agregue a atual sociedade humana ao menos com a metade daquela força que havia naqueles séculos. E atrevam-se a dizer, por fim, que não se debilitaram, que não se turvaram as fontes da vida sob essa "estrela", sob essa rede que prende os homens. E não me assustem com o vosso bem-estar, com as vossas riquezas, com a raridade da fome, e a rapidez das vias de comunicação! Há mais riquezas porém menos força; não resta mais uma ideia agregadora; tudo amoleceu, tudo mofou e vai mofar! Todos, todos, todos nós mofaremos!..." O Discurso de Liébediev (O Idiota, Dostoievski)
Enfim, o Príncipe Míchkin não significa outra coisa senão o fato de que se hoje Jesus Cristo aparecesse entre os homens, com os seus ensinamentos tão simples e verdadeiros, que enaltecem e salvaguardam a dignidade da vida humana... se ele aparecesse hoje, entre nós, ele seria tido como um idiota. Feliz Natal para vocês.
Essa é a primeira grande obra do Bergman, até arrisco dizer que é um pouquinho melhor que Juventude, outra grande obra do início de sua monumental carreira. O filme não me surpreendeu tanto, porque eu já havia visto Juventude, que é mais ou menos um filme nos mesmos moldes deste. Surpreendeu-me sim, e novamente, a qualidade com que Bergman trata uma história de amor do modo mais realista, despida de qualquer sentimentalismo barato, mas sem sacrificar com isso toda a sensibilidade e sutilezas de uma relação a dois. Uma vez, alguém definiu Tchekhóv como um cirurgião da alma dentro da literatura; acredito que no cinema ninguém se encaixa melhor nessa definição do que Bergman. Em todos os seus filmes, dos que vi até agora (quase vinte), estão presentes os mergulhos mais profundos na personalidade de cada indivíduo, mesmo o mais ordinário dos indivíduos, pois que psicologia, como diz Dostoievski, não se pode fazer com o homem ordinário! Seja na literatura, seja no cinema, o que esses caras fazem é incrível - de alguns poucos diálogos, através de imagens simples (sejam elas descritas em palavras ou captadas por uma câmera), eles conseguem tecer as mais profundas análises psicológicas do ser humano, aproximando-se, não raro, de discussões filosóficas, as mais fundamentais. E tudo isso explorando apenas o corriqueiro, a realidade que todos nós conhecemos em nosso cotidiano, sem apelar para nada mirabolante e nenhum efeito espetaculoso. Bergman, muito mais que um diretor de cinema, é para aqueles que estão interessados em arte, no sentido pleno dessa palavra.
Enfim, meu comentário acabou sendo mais uma demonstração de satisfação com mais um filme desse gênio do que um comentário sobre o filme em si...
Filme mais complexo do Fellini, mais do que Oito e Meio, porque aqui há quase que uma ausência total de linearidade, esta que sobrevive apenas dentro dos recortes aleatórios que compõe o filme. Fellini é mestre em fazer com que a estrutura narrativa integre aquilo que o filme expressa: a aleatoriedade das cenas e o sacrifício da linearidade fazem o filme perder o sentido e passam a sensação do vazio existencial das pessoas retratadas. No fim, a narrativa anárquica só vem ressaltar a falta de sentido daquele estilo de vida, a mesquinharia, a futilidade hedonista e a superficialidade dos sentimentos e das relações entre as pessoas que se inserem naquele modo de (não)ser. Quando o roteiro parece perder conteúdo, isso, na verdade, só vem reforçar o quão irrisório é o conteúdo da indústria da fama e do mercado das celebridades.
Filme primoroso, lindo, perfeito. Giulietta Masina encantadora. Fellini nos presenteia com uma obra prima neorrealista, contando-nos uma história simplória, mas cheia de sensibilidade; cativante em seu início e desdobramento, comovente em seu desfecho. Favoritado e indicado.
Uma joia do cinema brasileiro, com uma trilha sonora impecável de Villa-Lobos. Este filme prova que o cinema brasileiro tem sim muito do que se orgulhar, talvez tanto quanto os russos podem se orgulhar por seu Encouraçado Potemkin, do qual, aliás, Deus e o Diabo na Terra do Sol sofre influência, notável, sobretudo, na cena do massacre. O filme retrata perfeitamente o homem do sertão que, desamparado pelas instituições eclesiásticas e políticas e muitas vezes sofrendo injustiças por parte das autoridades que as representam, tem de se virar como pode, seja tornando-se devoto de um santo que condena e luta contra os latifundiários opressores do povo, ou aderindo ao cangaço e à justiça feita pelas armas.
Achei o filme dele (do diretor) mais difícil de acompanhar. Não pela complexidade da abordagem em si, mas pelo andamento, porque aqui parece que Bergman dá uma de Antonioni - não somente por fundir o silêncio (elemento que deu nome ao conjunto dos seus três primeiros filmes da década de 60) com a incomunicabilidade, mas também pelos pouquíssimos diálogos e pelas sequências lentas que se prolongam bastante. É também, certamente, o filme onde ele mais explorou o erotismo tão diretamente - até então só havia visto algum componente erótico em Persona e n'O Rito. Por isso, também, acaba sendo talvez o mais polêmico. Como sempre, ele consegue, de forma magistral, mesmo com diálogos exíguos, expor personagens e situações de uma caracterização altamente complexa, que pode render extensas análises psicológicas. Esse é daqueles filmes que você vê e no fim se pergunta: "como esses caras conseguem tirar tanto conteúdo do nada? como conseguem fazer o vazio ser tão denso?" A última cena,
Através de um Espelho me deixou uma impressão muito parecida com o modo como Gritos e Sussurros me impressionou. Gritos e Sussurros é mais pesado, extremo, dramático e sufocante, só que, assim como Através de um Espelho, é um filme que parece sem rumo, parece não se basear em nenhuma premissa, parece não ter algum propósito. Isso vai se mostrando gradativamente, conforme vamos conhecendo aquelas pessoas retratadas no filme, e tudo sofre uma espécie de síntese num desfecho brilhante, impactante e transbordando uma sensibilidade profunda. A simplicidade da cena final de ambos os filmes é comovente. "Papai falou comigo" é uma frase que pode soar boba, banal, sem propósito; mas quem viu o filme não só entende o seu significado, como percebe que todo o filme está magistralmente sintetizado nesta frase. E isso arrepia.
O mais leve que já vi do diretor até agora, mas nem por isso o filme perde em intensidade, porque, de qualquer forma, o roteiro é de uma beleza ímpar. Parece ser o filme mais otimista dele. O próprio tema ajuda neste aspecto, porque a maternidade, apesar de tudo, é uma coisa bela por si só e movida, de qualquer forma, pelo afeto e pela esperança. É ali onde se engendra o mistério inconcebível da vida; tudo se inicia com a maternidade, ali, onde se separa o vivo do não vivo, é o limiar da vida. Este filme reafirma a maestria com que Bergman explora o universo feminino em toda sua plenitude, complexidade e beleza.
E este filme, como todos os outros com Bibi Andersson, repetiu em minha mente a pergunta que sempre me persegue em relação a ela: é possível não se apaixonar?
Filme lindo demais. A primeira parte é algo incomum na filmografia do Bergman, mas não a julgo dispensável de forma alguma. Lindas e certeiras referências a Hamlet. Uma obra monumental, digna para coroar o término da carreira desse grande diretor.
Um filme soberbo. Um dos melhores do diretor, o melhor filme com Ingrid Bergman e uma das melhores atuações de Liv Ullmann. Aliás, Liv Ullmann e Ingrid Bergman parece até que disputam para mostrar quem é a atriz mais brilhante; não há no cinema um paralelo para a atuação dessas duas neste filme. Depois de Sonata de Outono, não há problema nenhum em dizer que são as duas atrizes mais perfeitas e talentosas do cinema! Cada gesto, cada palavra, cada expressão do rosto é uma revelação, das mais profundas, da alma humana. A sensação, ao terminar o filme, como é de praxe na filmografia do diretor sueco, é que nos tornamos íntimos daquelas pessoas, compartilhamos os mesmos dramas vividos e temos nosso próprio espírito desvelado. Neste filme se encontram, talvez, os melhores monólogos de toda filmografia do Bergman. É muito comovente, em particular, a cena inicial do homem falando sobre sua esposa, além do incrível diálogo (quase que um discurso metafísico) em que a filha "explica" para a mãe como ainda sente a presença de seu falecido filho.
Vargtimmen é um filme devastador, impossivel esquecê-lo. A atmosfera toda é opressiva e perturbadora. O filme de terror definitivo, mas não qualquer terror - não espere sentir medo ou apreensão, não espere suspense e sustos. O terror de Vargtimmen apresenta-se sob a forma do desmantelamento das perspectivas que o próprio espectador tem em relação ao filme, perspectivas que são continuamente estilhaçadas e abalam a percepção que temos do filme. A estrutura narrativa, em retalhos, tira o espectador da zona de conforto e o lança sobre o mesmo drama inquietante do protagonista - o limite difuso entre realidade e ilusões já não pode ser estabelecido com precisão; quando vem a tona todo o turbilhão de lembranças, traumas, medos e angústia, a sanidade cede lugar a loucura. O Bergman mais surrealista que já vi.
Brilhante retrato expressionista da humilhação, da impotência e da dor a que o ser humano está sujeito em seu modo de ser e de se relacionar com o mundo. É o verdadeiro espetáculo da degradação moral e do infortúnio em suas diversas facetas. Somente a cena do palhaço traído marca profundamente qualquer amante da sétima arte. Com que maestria Bergman utiliza recursos do cinema mudo, afim de elevar a dramaticidade da cena a níveis exponenciais - as expressões, os risos, que aqui é o único som a quebrar o silêncio angustiante, e a multidão que acompanha o palhaço carregando sua esposa como se fosse a sua cruz - eis a representação de todo o martírio causado pela humilhação, pela traição, pela consciência de sua própria degradação e impotência. Tudo isso em contraste com o circo, ambiente onde se supõe o florescimento das sensações de alegria e contentamento, são sensações estas que, na verdade, escondem sub-repticiamente um mundo de sentimentos e ressentimentos obscuros. Foi mencionada alguma influência de Memórias do Subsolo e realmente é difícil não lembrar do homem do subsolo na cena do teatro, com os insultos do diretor, e na cena do duelo, onde emerge todo o ressentimento de forma tão patética que beira a comicidade e reforça ainda mais a deterioração da dignidade e o peso na consciência do protagonista.
O Poço
3.7 2,1K Assista AgoraSupondo que as correlações mais óbvias já estejam bastante evidentes para quem viu o filme - os níveis da prisão representam os níveis sociais, a Administração é o Estado/Governo, a comida é a riqueza a ser distribuída -, quero comentar sobre o que achei mais sutil e difícil de perceber no filme. Também não explorarei as correspondências entre personagens do filme e do Dom Quixote, obra pela qual alimento profundo amor, pois para mim isso não é o principal e não vejo dificuldade em fazer tais associações para quem leu também o livro, embora os personagens do livro sejam naturalmente muito mais simpáticos e profundos. Quero propor uma interpretação a partir do ponto em que
Imoguiri, que na representação seria uma antiga agente do Estado, tenta convencer, com argumentos pragmáticos e racionais, as pessoas dos níveis inferiores a separarem somente uma certa quantidade de comida para se alimentar, garantindo o mínimo necessário de calorias para se manter e fazendo com que a comida pudesse chegar aos níveis mais baixos. O fracasso dessa tentativa, técnica e típica de um burocrata, no convencimento das pessoas para que se solidarizem espontaneamente é o que faz Goreng começar a pensar que para mudar aquela realidade brutal ele teria que apelar a expedientes brutais também. Quando Imoguiri, representação do planejamento estatal, percebe que seu plano de distribuição de riqueza está fadado ao fracasso e que, literalmente, o buraco é muito mais embaixo, ela cai em desespero e sucumbe, suicidando-se. A próxima etapa se dá com a elaboração e execução de um plano revolucionário por Baharat e Goreng, quando estes estão no nível seis, podendo desfrutar um banquete, após terem encarado o níveis mais profundos, onde se depararam com o mais brutal desespero e violência, gerados pela miséria e fome. Inicialmente, queriam apenas distribuir comida aos níveis mais profundos, onde a comida nunca chegava. Após encontrarem um sábio amigo de Baharat num dos níveis, o objetivo passa a consistir em descer até o último nível com um prato de comida intacto e fazê-lo voltar para cima. Eles basicamente queriam provar que haviam conseguido distribuir a comida de forma igualitária, provar que todos haviam se alimentado, de modo que até sobrara uma pequena sobremesa. Mas de fato, eles não conseguiriam, com isso, demonstrar o surgimento de uma solidariedade espontânea. Eles se utilizaram da violência revolucionária quando estavam no topo para forçar de cima para baixo um ideal de justiça. Mataram brutalmente para isso, a fim de proteger não propriamente as pessoas, mas a comida (ou riqueza). A troca pela menina significaria que no fim eles se deram conta de que o que importava era o ser humano, e não a comida/riqueza em si. No começo do seu projeto revolucionário o Goreng é encarado como o Messias, mas um messias imanentizado, que acredita num ideal de plena justiça realizável naquela realidade brutal. No fim, ele percebe que não é ele que deve passar alguma mensagem, ele não tem legitimidade para mudar aquela realidade e impor seus ideais. A criança funciona como um elemento sobrenatural ali ("os pequeninos herdarão o reino dos céus"), ela é a mensagem. A grande crítica do filme se dirige contra as noções materialistas da realidade e suas teorias políticas e sociais vigentes (capitalismo e socialismo). Ao enviar a criança, modifica-se a imagem de Goreng como um messias imanentizado para um messias sobrenatural, transcendente, que não promete ou propõe uma mudança imposta de fora para dentro do espírito humano (ou seja, surgida a partir do mundo material), mas propõe uma mudança que se inicia no interior do espírito humano. Goreng, no final, é um príncipe Michkin, uma mistura de Jesus Cristo e Dom Quixote - alguns o enxergarão como o modelo de justiça e bondade e iniciarão a mudança em seu interior (entenderam a mensagem, a criança como modelo de pureza, esperança, herdeira do reino dos céus, capaz de inspirar uma profunda mudança no espírito), outros verão nele apenas um idiota (e continuarão agindo como bestas selvagens, para as quais só existe o mundo da matéria, da natureza e dos instintos).
1917
4.2 1,8K Assista AgoraA prova de que é possível um grande feito cinematográfico a partir de um roteiro bastante simples. Uma cena memorável, que marcará a história do cinema. A palavrinha mágica, que todos estão usando, expressa com total justiça a experiência com este filme - imersão. Há cenas poéticas belíssimas. Discordo que o filme seja pretensioso, porque tudo que ele se propõe se materializa com total competência. A escolha do roteiro não pode ser considerada pretensiosa, justamente pela sua simplicidade; e o feito técnico tampouco, justamente pela competência com que se realiza. Aliás, diria que a simplicidade no roteiro e a complexidade da técnica se harmonizam finamente aqui. O que me leva a discordar que o filme seja superficial. Se não há diálogos profundos, se não há extensas análises psicológicas, sociológicas, políticas, existenciais ou seja lá o que for, há a experiência visualmente deslumbrante de praticamente vivenciar um cenário de guerra. Se isto não te faz refletir sobre a guerra, não sei mais o que faria.
Bacurau
4.3 2,7K Assista AgoraApós discutir minha primeira experiência com este filme com algumas pessoas, novamente me aventurei em Bacurau e minhas impressões iniciais não apenas se mantiveram como até se reforçaram. O roteiro é fraquíssimo, não pelo fato de ser simples (o que não é necessariamente um defeito), mas pelo fato de não ter substância. Discute-se que a representação caricatural dos americanos foi proposital, isso me parece óbvio; mas isso não justifica a arbitrariedade e a completa falta de criatividade na elaboração de um roteiro tão pobre quanto o que Bacurau entrega, tão pobre que parece até que se esqueceram dele. O filme te entrega, ou melhor, te empurra goela abaixo a premissa (absurdamente primária) e segue até o fim sem te provocar, sem te propor nada além do que já estava claro desde o início, sem te surpreender e sem te oferecer elementos (nem sequer uma alusão) que te permitam explicar ou imaginar as várias pontas soltas que pululam no roteiro. Já não gosto disso, já não gosto desse tom impositivo, com tudo ali mastigadinho, empacotado e pronto para um espectador passivo aceitar todas as óbvias metáforas, analogias, simbolismos, sem se importar com o desenrolar da narrativa. Isso tudo soa panfletário demais. Muito símbolo, muito abuso metafórico para um roteiro que não está a altura. Soa pretensioso. Há cenas inexplicáveis, aleatórias, desconexas e sem valor algum. Como assistir aquela cena em que
um "casal" americano mata com vários tiros um casal de Bacurau e logo em seguida vai transar no meio do mato para celebrar o massacre
Bacurau
4.3 2,7K Assista AgoraA ausência de uma premissa mais criativa e consistente para a presença dos americanos em Bacurau enfraqueceu todo o filme a ponto de torná-lo pouco convincente e soar consideravelmente forçado, artificial. A impressão é que, no afã de encher um filme de metáforas político-sociais bastante óbvias e pouco profundas, menosprezou-se o roteiro como mero pretexto, um acessório para atacar um certo imperialismo americano, já um tanto ultrapassado no contexto brasileiro ao menos. O que parece valer efetivamente para os diretores são as metáforas; o roteiro pouco importa, mas um filme com roteiro fraco dificilmente se salva por outras tantas qualidades que tenha e é inegável que Bacurau tem suas qualidades. O problema é que as próprias metáforas foram esvaziadas pelo roteiro fraco do filme. Que cena forçada e artificial aquela em que uma dupla americana mata um casal de idosos de Bacurau e celebra o feito praticando sexo no mato. Eu entenderia como uma metáfora de como a cultura norte-americana tende a exaltar a violência e o sexo e como, não raro, ambos se conectam na cultura norte-americana de tal modo que muitas vezes se confundem e geram graves problemas como abusos, estupros e psicopatia, atenuando os limites entre o puro prazer e a violência. De fato, a cena poderia representar bem esse prazer mórbido, muito presente nos filmes e séries americanos, que muito frequentemente se mescla e se confunde com o prazer sexual, de subjugar, humilhar, rebaixar outro indivíduo, especialmente aquele considerado "diferente". Mas, no próprio filme, não encontramos base sólida para fundamentar essa metáfora e a cena, na verdade, só parece querer empurrar goela abaixo do espectador o quanto aquelas pessoas são abomináveis. Ficou artificial demais para um filme que busca metáforas para construir toda uma abrangente crítica política e social. A intenção de Bacurau é interessante, mas o que se vê na tela está aquém do que esperaríamos de um filme com tal tema.
Monika e o Desejo
4.0 120 Assista AgoraAo contrário do que muitos dizem, não vejo este filme como sendo uma crítica essencial ao casamento em si e vou mostrar porquê. O que o filme mostra de fato é uma espécie de desajuste e conflito, mas onde se encontra o desajuste? Tudo o que vemos são fatos envolvendo uma sequência de ações imediatistas e não planejadas. Você não vê em nenhum momento o casamento, o filho ou a relação conjugal sendo socialmente imposta aos dois. Bergman é muito avesso a essas fórmulas simplistas, ele vai mais além, muito além. Vemos sim as consequências de escolhas feitas por Lund e Monika, escolhas que lhe ocorreram como a melhor maneira de lidar com os conflitos e problemas aos quais eles se deparavam. A questão é: foram as escolhas corretas? Penso que decididamente não. Foram escolhas precipitadas, essas escolhas foram a tônica do filme inteiro. E eles se viram diante responsabilidades para as quais não estavam preparados; e tudo isso por uma fuga daquilo que os afligia. Lund encontrou em Monika o amor que ele nunca teve de sua mãe falecida precocemente, e de seu pai, visivelmente frio e pouco dado a afetividades. Monika encontrou em Lund o amor que ela não recebia do pai bêbado e da mãe exigente. Mas será que de fato foi amor ou foi só carência que uniu os dois!? Quando a coisa apertou, Monika fugiu novamente. Fugiu por que? Porque não era correspondida ou porque já não havia mais amor por Lund? Ou então: ela não se sentia correspondida e por isso não amava mais o Lund, ou antes ela já não o amava mesmo e a suposta falta de correspondência foi só um pretexto para sua fuga? Essas questões que ficam em aberto para o espectador julgar, Bergman não te dá a resposta mastigadinha. Por isso acho que o cerne da questão não é uma crítica ao casamento em si; o que está sendo julgado em última instância são as ações de ambas as partes do casal.
O Sal da Terra
4.6 450 Assista AgoraConhecer a história do Sebastião Salgado não é apenas conhecer a história do indivíduo ou do fotógrafo Sebastião Salgado. A história de todo grande homem ultrapassa os limites da própria individualidade, dos projetos pessoais e de sua vida íntima. Conhecer a história de um artista como Sebastião, é conhecer a nossa história atual, a história de milhares, ou até milhões, de nossos contemporâneos. A história de quem conheceu o sofrimento humano nas suas formas mais chocantes e degradantes; a história, contada através das lentes, de um mundo devastador, de um mundo angusto, de um mundo que parece ter dado certo para uma parcela muito reduzida de seres humanos privilegiados. Entretanto, como toda grande obra de todo grande artista, nós vislumbramos sempre uma esperança, podemos discernir em cada rosto sofrido, em cada postura, uma dignidade que, embora não consiga se encaixar adequadamente neste mundo, consegue ainda dar a força necessária para seguir batalhando, para seguir acreditando. Tudo na vida do "Tião" reflete essa história, o próprio instituto Terra e o seu último projeto Gênesis representam este sopro final de fé e esperança nas coisas boas que existem no mundo. Sem dúvida temos ,aqui no Brasil, um dos seres humanos mais inspiradores da atualidade.
A Carruagem Fantasma
4.3 116Bendita seja a época em que até filmes de terror transmitiam os valores supremos que dão sentido à nossa vida e a fazem valer a pena. Hoje é só violência gratuita, tortura e roteiros extremamente precários que banalizam a vida numa barafunda de acontecimentos absurdos e sem sentido. Filme belíssimo.
Quando Duas Mulheres Pecam
4.4 1,1K Assista AgoraHá algo do existencialismo de Kierkegaard no silêncio de Elizabeth Vogler. De fato, Bergman foi muito influenciado por Kierkegaard, para quem a existência humana, frente às infinitas possibilidades de "ser no mundo" e aos paradoxos que isso acarreta, culmina numa profunda angústia e impotência. O silêncio de Elizabeth consiste nesta angústia: o ser humano aspira ao Ser, ele quer se encaixar, precisa definir-se e então criam-se as mais variadas expectativas; mas o caráter contingente da existência humana conduz o indivíduo a uma infinidade de modos de ser, infinitas possibilidades e a total liberdade de se tornar algo, de Ser. Entretanto, como o homem não pode assumir essas infinitas possibilidades e sequer pode orientar-se por critérios bem definidos na escolha de uma ou outra possibilidade, é aí que ele se depara com o vazio e com o nada – o desespero do qual fala Kierkegaard, e que está expresso no silêncio de Vogler, é exatamente esta conversão sub-reptícia das infinitas possibilidades de ser, em nada. Como define Sartre, o homem é “o ser que projeta ser Deus”, mas como ele nunca pode abarcar em si a totalidade das coisas, ele se refugia no nada, no não-ser. É isso que faz Vogler silenciar voluntariamente. Ela, atriz, não quer mais representar, ela quer Ser. O que ocorre é que as pessoas estão prontamente solícitas no que diz respeito aos papéis sociais a serem desempenhados, justamente porque, neste caso, são muito previsíveis os modos de agir, visto que são imposições vindas de fora do indivíduo. Quando adentramos no contexto individual, entretanto, faz-se sentir o ser humano em toda a sua ambiguidade. Ambiguidade esta, explorada com uma fina ironia no filme e que será percebida pela enfermeira Alma quando esta descobre que na verdade é ela que está sendo objeto de análise de sua “paciente”. Alma ainda desempenha os papeis que lhe são impostos; quando resolve fazer o jogo de Elizabeth, quando resolve não mais contar fatos e projetos de sua vida... aí já não é mais possível distinguir a linha cada vez mais tênue que separa a personalidade (o ser) de ambas (Alma e Elizabeth). Um livro com o qual se pode fazer um paralelo interessante é o "poema petersburguense" O Duplo, de Dostoiévski, no qual um funcionário público, cuja personalidade vai se desconstruindo aos poucos na medida em que mergulha em si e intensifica as contradições entre "aquilo que ele é" e a imagem que faz de si como ator social, é levado a sua total ruptura, passando a conviver com seu Duplo, que, por fim, o leva a loucura. Mais um exemplo na literatura, entre uma infinidade de outros exemplos que se poderia citar, é o conto William Wilson de Edgar Allan Poe.
Teorema
4.0 198paralelo entre Tolstoi e Pasolini vai muito além das breves referências mais explícitas no filme, como a leitura do trecho de uma novela do autor russo e a cena em que, assim como Guerássim apoiava os pés do seu patrão moribundo em seus ombros para fazê-lo sentir-se melhor, o misterioso visitante faz o mesmo com Paolo.
Toda essa análise feita sobre a "crise estrutural do capital", a "falência das instâncias sócio-reprodutivas no sistema do capital" e o consequente declínio no "metabolismo societário da burguesia"; traduzindo para termos mais exatos e menos rebuscados, toda a análise sobre a crise familiar burguesa, ou sobre o declínio do ideal de família burguês é realmente muito interessante. Tolstói já o tinha feito num poderoso argumento de uma breve novela referida no filme - A Morte de Ivan Ilitch. Confrontando o limitado cotidiano de uma família burguesa com a questão mais grandiosa que se impõe ao homem em sua vida - o seu destino, o sentido da vida e a morte -, Tolstoi denuncia a mesquinharia, a baixeza, a vulgaridade e a desumanização num ambiente que sobrepõe a tudo que de mais importante se questiona no âmago de cada indivíduo (que inclusive lhe confere identidade e personalidade) as exigência de ordem prática, tão diminutas diante daquilo que nos torna humanos e nos faz vivos de fato. Parece paradoxal perceber que o único que compreende a situação de Ivan Ilitch no leito de morte e que, portanto, age humana e naturalmente, sem artifícios e mentiras, é justamente o mais simplório dos personagens, o criado Guerássim. É o criado (o proletário, diríamos no jargão marxista de Pasolini) que está ali no momento que o moribundo mais precisa, no momento mais solene e de vital importância. O que difere disso na obra de Pasolini, conferindo-lhe então originalidade? A instância que traz à consciência toda a superficialidade do modo de vida burguês não é a morte, mas o misterioso visitante sem nome. Admito não saber precisamente qual foi a alegoria intencionada na figura do visitante, mas trata-se de um messias que veio fazer emergir tudo aquilo que já estava latente no seio da família ali retratada. Se a questão fundamental que se apresenta a cada indivíduo que vive é o seu destino inexorável - a morte -, Pasolini nos apresenta outra instância universal nesta questão através de dramas individuais - a identidade. No fundo, ambas as instâncias, de Tolstói e de Pasolini, culminam no mesmo drama, porque se é correto dizer, como nos demonstra Borges em O Imortal, que é a mortalidade que nos confere identidade, então nada pode estar mais relacionado que a narração dos últimos dias agônicos de Ivan Ilitch e a espetacular cena final d'O Teorema, onde um homem nu berra desesperadamente no deserto. Em ambos desmorona gradualmente a identidade social que eles assumiram e acreditavam ser a essência de sua própria individualidade.
O Homem Que Sabia Demais
3.9 258 Assista AgoraJames Stewart era um dos favoritos de Hitchcock e, quanto mais assisto filmes com este sujeito, mais me convenço de que é o ator que mais gosto de ver atuar - brilhante em todos os filmes. O filme em si só vem reforçar o título de "mestre do suspense" de Hitchcock, a cena do concerto no Albert Hall é fantástica, embora o filme de modo geral não esteja no mesmo nível de suspense e mistério de outros grandes clássicos do diretor.
Salmo Vermelho
3.9 28O filme é esteticamente deslumbrante, um modo de filmar realmente original, metáforas certeiras e canções que cativam. No entanto, o discurso é que me desagrada - todo aquele socialismo romântico somado a um certo cientificismo (que nada mais é do que a romantização da ciência também) dá um tom notadamente ingênuo e enfadonho àqueles "revolucionários ultrapassados".
Crime e Castigo
4.2 32Fico imaginando a extrema dificuldade de se adaptar uma obra como Crime e Castigo para o cinema, esta que certamente é a obra mais psicológica de Dostoievski. Porque o livro não consiste propriamente numa história sendo contada, mas muito mais nos desdobramentos psicológicos de vários personagens submetidos aos mais diversos tipos de tirania, opressão, vícios, dramas e situações nas quais se fundem o real e o fantástico (traço marcante na literatura do mestre russo). Os pensamentos e monólogos interiores dos personagens são tão ou mais importantes quanto os diálogos, que sempre apresentam a típica duplicidade (do sentido) - naquilo que está sendo dito literalmente e no que fica implícito nas entrelinhas do subconsciente de cada personagem. Com tudo isso, é praticamente impossível transmitir através da tela todo o peso e profundidade do livro. O filme, entretanto, conseguiu, dentro das limitações de um produção cinematográfica baseada numa obra literária tão complexa, atingir um resultado satisfatório, especialmente por parte dos atores, que nesse tipo de adaptação ganham uma importância ainda maior. O semblante desse moço que fez Raskólnikov, o senhor Georgi Taratorkin, consegue nos fazer sentir, ao longo do filme, asco e repugnância em alguns momentos, e compaixão e piedade em outros; exatamente como ocorre durante a leitura do livro. A mocinha que interpretou Sônia, Tatyana Bedova, conseguiu encarnar com maestria toda a doçura tímida da personagem, assim como seu enorme sofrimento e resignação. A moça que fez Dúnia, Viktoriya Fyodorova, também fez perfeitamente bem o papel de sua personagem, mulher altiva e forte. Penso que esses foram os maiores destaques.
O Idiota
4.2 31 Assista Agora"Neste mundo, a bondade é tida como sinônimo de idiotice..." (Hakuchi, Kurosawa)
"A beleza salvará o mundo!" (O Idiota, Dostoievski)
" - Escutem! Eu sei que não é bom falar: o melhor é simplesmente dar um exemplo, o melhor é simplesmente começar... eu já comecei... e - será que realmente se pode ser infeliz? Oh, o que são a minha mágoa e a minha desgraça se eu estou em condição de ser feliz? Sabem, eu não compreendo como se pode passar ao lado de uma árvore e não ficar feliz por vê-la! Conversar com uma pessoa e não se sentir feliz por amá-la! Oh, eu apenas não sei exprimir... mas, a cada passo, quantas coisas maravilhosas existem, que até o mais desconcertado dos homens as acha belas? Olhem para uma criança, olhem para a alvorada de Deus, olhem para a relva do jeito que cresce, olhem para os olhos que os olham e os amam..." (O Idiota, Dostoievski)
Meses depois de terminar um dos grandes romances de Dostoievski - O Idiota -, foi grande a satisfação ao assistir o filme do Kurosawa baseado na obra. O japonês soube captar, com extrema sensibilidade, a essência do que o russo transmitiu em sua obra. A criação de um personagem perfeito, positivamente bom e... idiota! A caracterização do Príncipe Míchkin, como um sujeito idiota pela doença da qual padece, não é acidental. A doença, na verdade, é apenas um pretexto para camuflar algo muito pior. Isso porque o Príncipe é tido como idiota mesmo quando está plenamente saudável e "normal". Acontece que na sociedade, na forma de convívio que se convencionou como dentro da normalidade, a existência de um sujeito naturalmente bondoso e sincero, alguém que não se envergonha de praticar a bondade e não esconde seus sentimentos, aquele que não tem pudor em dizer que ama, que se compadece, que percebe tão naturalmente o que aflige e faz sofrer aos outros e compartilha do mesmo sofrimento e quer amar e enfrentar junto este sofrer... alguém assim é tido como uma raridade, um acontecimento excepcional, talvez até indecente por ser tão puro e tão sem pudor, enfim, alguém realmente idiota, "que ama e sente exageradamente". Aqui os valores se invertem, porque é uma sociedade doente e uma humanidade falida que está a avaliar como idiota um indivíduo assim concebido. Não surpreende que hoje digamos que a bondade deva ser praticada às escondidas, caso contrário, é hipocrisia, caso contrário, é autopromoção. As pessoas sentem-se embaraçadas até mesmo em ajudar o próximo. O egoísmo e a ganância são as novas virtudes. O senso de humanidade parece afrouxar cada vez mais, o homem moderno está embevecido pela técnica, pela racionalidade, pela ciência; ele enaltece a racionalidade e desdenha seus sentimentos, parece até alimentar uma certa volúpia pela ideia de ser uma máquina, um robô, que age pelas simples leis da razão e ignora tudo aquilo que não se encaixa em sua obtusa racionalidade; e que, depois que a máquina terminar de funcionar, ela vai para o buraco; ele se acovardou diante da dificuldade que é viver e ser humano...
"Agora a conclusão, o final, senhores, o final em que consiste a decifração de uma das mais grandiosas perguntas daquela e da nossa época! O criminoso termina denunciando a si mesmo ao clero e entregando-se nas mãos do governo. Pergunta-se: que tormentos o esperavam naquele tempo, que rodas, fogueiras e fogos? Quem o impeliu a ir denunciar-se? Por que não parar simplesmente na casa dos sessenta, mantendo o segredo até o último alento? Por que não largar simplesmente o clero para lá e viver arrependido como um ermitão? Por que, enfim, não ingressar ele mesmo na vida monástica? Aí está a decifração. Quer dizer que houve algo mais forte do que as fogueiras e o fogo e até mais que um hábito de vinte anos! Quer dizer que havia um pensamento mais forte do que todas as desgraças, más colheitas, torturas, lepra, maldições e toda sorte de inferno que a humanidade não suportaria sem um pensamento que concatenasse, orientasse o coração e fertilizasse as fontes da vida! Mostrem-me os senhores algo semelhante a tal força em nosso século de vícios e estradas de ferro... isto é, é preciso dizer, em nosso século dos navios a vapor e das estradas de ferro, mas eu digo: em nosso século de vícios e estradas de ferro, porque eu sou um beberrão, porém justo! Mostrem-me uma ideia que ligue e agregue a atual sociedade humana ao menos com a metade daquela força que havia naqueles séculos. E atrevam-se a dizer, por fim, que não se debilitaram, que não se turvaram as fontes da vida sob essa "estrela", sob essa rede que prende os homens. E não me assustem com o vosso bem-estar, com as vossas riquezas, com a raridade da fome, e a rapidez das vias de comunicação! Há mais riquezas porém menos força; não resta mais uma ideia agregadora; tudo amoleceu, tudo mofou e vai mofar! Todos, todos, todos nós mofaremos!..." O Discurso de Liébediev (O Idiota, Dostoievski)
Enfim, o Príncipe Míchkin não significa outra coisa senão o fato de que se hoje Jesus Cristo aparecesse entre os homens, com os seus ensinamentos tão simples e verdadeiros, que enaltecem e salvaguardam a dignidade da vida humana... se ele aparecesse hoje, entre nós, ele seria tido como um idiota. Feliz Natal para vocês.
Rumo à Felicidade
3.9 21Essa é a primeira grande obra do Bergman, até arrisco dizer que é um pouquinho melhor que Juventude, outra grande obra do início de sua monumental carreira. O filme não me surpreendeu tanto, porque eu já havia visto Juventude, que é mais ou menos um filme nos mesmos moldes deste. Surpreendeu-me sim, e novamente, a qualidade com que Bergman trata uma história de amor do modo mais realista, despida de qualquer sentimentalismo barato, mas sem sacrificar com isso toda a sensibilidade e sutilezas de uma relação a dois. Uma vez, alguém definiu Tchekhóv como um cirurgião da alma dentro da literatura; acredito que no cinema ninguém se encaixa melhor nessa definição do que Bergman. Em todos os seus filmes, dos que vi até agora (quase vinte), estão presentes os mergulhos mais profundos na personalidade de cada indivíduo, mesmo o mais ordinário dos indivíduos, pois que psicologia, como diz Dostoievski, não se pode fazer com o homem ordinário! Seja na literatura, seja no cinema, o que esses caras fazem é incrível - de alguns poucos diálogos, através de imagens simples (sejam elas descritas em palavras ou captadas por uma câmera), eles conseguem tecer as mais profundas análises psicológicas do ser humano, aproximando-se, não raro, de discussões filosóficas, as mais fundamentais. E tudo isso explorando apenas o corriqueiro, a realidade que todos nós conhecemos em nosso cotidiano, sem apelar para nada mirabolante e nenhum efeito espetaculoso. Bergman, muito mais que um diretor de cinema, é para aqueles que estão interessados em arte, no sentido pleno dessa palavra.
Enfim, meu comentário acabou sendo mais uma demonstração de satisfação com mais um filme desse gênio do que um comentário sobre o filme em si...
A Doce Vida
4.2 316 Assista AgoraFilme mais complexo do Fellini, mais do que Oito e Meio, porque aqui há quase que uma ausência total de linearidade, esta que sobrevive apenas dentro dos recortes aleatórios que compõe o filme. Fellini é mestre em fazer com que a estrutura narrativa integre aquilo que o filme expressa: a aleatoriedade das cenas e o sacrifício da linearidade fazem o filme perder o sentido e passam a sensação do vazio existencial das pessoas retratadas. No fim, a narrativa anárquica só vem ressaltar a falta de sentido daquele estilo de vida, a mesquinharia, a futilidade hedonista e a superficialidade dos sentimentos e das relações entre as pessoas que se inserem naquele modo de (não)ser. Quando o roteiro parece perder conteúdo, isso, na verdade, só vem reforçar o quão irrisório é o conteúdo da indústria da fama e do mercado das celebridades.
A Estrada da Vida
4.3 228 Assista AgoraFilme primoroso, lindo, perfeito. Giulietta Masina encantadora. Fellini nos presenteia com uma obra prima neorrealista, contando-nos uma história simplória, mas cheia de sensibilidade; cativante em seu início e desdobramento, comovente em seu desfecho. Favoritado e indicado.
Deus e o Diabo na Terra do Sol
4.1 427 Assista AgoraUma joia do cinema brasileiro, com uma trilha sonora impecável de Villa-Lobos. Este filme prova que o cinema brasileiro tem sim muito do que se orgulhar, talvez tanto quanto os russos podem se orgulhar por seu Encouraçado Potemkin, do qual, aliás, Deus e o Diabo na Terra do Sol sofre influência, notável, sobretudo, na cena do massacre. O filme retrata perfeitamente o homem do sertão que, desamparado pelas instituições eclesiásticas e políticas e muitas vezes sofrendo injustiças por parte das autoridades que as representam, tem de se virar como pode, seja tornando-se devoto de um santo que condena e luta contra os latifundiários opressores do povo, ou aderindo ao cangaço e à justiça feita pelas armas.
O Silêncio
4.1 110Achei o filme dele (do diretor) mais difícil de acompanhar. Não pela complexidade da abordagem em si, mas pelo andamento, porque aqui parece que Bergman dá uma de Antonioni - não somente por fundir o silêncio (elemento que deu nome ao conjunto dos seus três primeiros filmes da década de 60) com a incomunicabilidade, mas também pelos pouquíssimos diálogos e pelas sequências lentas que se prolongam bastante. É também, certamente, o filme onde ele mais explorou o erotismo tão diretamente - até então só havia visto algum componente erótico em Persona e n'O Rito. Por isso, também, acaba sendo talvez o mais polêmico. Como sempre, ele consegue, de forma magistral, mesmo com diálogos exíguos, expor personagens e situações de uma caracterização altamente complexa, que pode render extensas análises psicológicas. Esse é daqueles filmes que você vê e no fim se pergunta: "como esses caras conseguem tirar tanto conteúdo do nada? como conseguem fazer o vazio ser tão denso?" A última cena,
aquela em que Anna se deixa banhar pela chuva
Através de um Espelho
4.3 249Através de um Espelho me deixou uma impressão muito parecida com o modo como Gritos e Sussurros me impressionou. Gritos e Sussurros é mais pesado, extremo, dramático e sufocante, só que, assim como Através de um Espelho, é um filme que parece sem rumo, parece não se basear em nenhuma premissa, parece não ter algum propósito. Isso vai se mostrando gradativamente, conforme vamos conhecendo aquelas pessoas retratadas no filme, e tudo sofre uma espécie de síntese num desfecho brilhante, impactante e transbordando uma sensibilidade profunda. A simplicidade da cena final de ambos os filmes é comovente. "Papai falou comigo" é uma frase que pode soar boba, banal, sem propósito; mas quem viu o filme não só entende o seu significado, como percebe que todo o filme está magistralmente sintetizado nesta frase. E isso arrepia.
No Limiar Da Vida
4.1 42 Assista AgoraO mais leve que já vi do diretor até agora, mas nem por isso o filme perde em intensidade, porque, de qualquer forma, o roteiro é de uma beleza ímpar. Parece ser o filme mais otimista dele. O próprio tema ajuda neste aspecto, porque a maternidade, apesar de tudo, é uma coisa bela por si só e movida, de qualquer forma, pelo afeto e pela esperança. É ali onde se engendra o mistério inconcebível da vida; tudo se inicia com a maternidade, ali, onde se separa o vivo do não vivo, é o limiar da vida. Este filme reafirma a maestria com que Bergman explora o universo feminino em toda sua plenitude, complexidade e beleza.
E este filme, como todos os outros com Bibi Andersson, repetiu em minha mente a pergunta que sempre me persegue em relação a ela: é possível não se apaixonar?
Fanny e Alexander
4.3 215Filme lindo demais. A primeira parte é algo incomum na filmografia do Bergman, mas não a julgo dispensável de forma alguma. Lindas e certeiras referências a Hamlet. Uma obra monumental, digna para coroar o término da carreira desse grande diretor.
Sonata de Outono
4.5 491Um filme soberbo. Um dos melhores do diretor, o melhor filme com Ingrid Bergman e uma das melhores atuações de Liv Ullmann. Aliás, Liv Ullmann e Ingrid Bergman parece até que disputam para mostrar quem é a atriz mais brilhante; não há no cinema um paralelo para a atuação dessas duas neste filme. Depois de Sonata de Outono, não há problema nenhum em dizer que são as duas atrizes mais perfeitas e talentosas do cinema! Cada gesto, cada palavra, cada expressão do rosto é uma revelação, das mais profundas, da alma humana. A sensação, ao terminar o filme, como é de praxe na filmografia do diretor sueco, é que nos tornamos íntimos daquelas pessoas, compartilhamos os mesmos dramas vividos e temos nosso próprio espírito desvelado. Neste filme se encontram, talvez, os melhores monólogos de toda filmografia do Bergman. É muito comovente, em particular, a cena inicial do homem falando sobre sua esposa, além do incrível diálogo (quase que um discurso metafísico) em que a filha "explica" para a mãe como ainda sente a presença de seu falecido filho.
A Hora do Lobo
4.2 308Vargtimmen é um filme devastador, impossivel esquecê-lo. A atmosfera toda é opressiva e perturbadora. O filme de terror definitivo, mas não qualquer terror - não espere sentir medo ou apreensão, não espere suspense e sustos. O terror de Vargtimmen apresenta-se sob a forma do desmantelamento das perspectivas que o próprio espectador tem em relação ao filme, perspectivas que são continuamente estilhaçadas e abalam a percepção que temos do filme. A estrutura narrativa, em retalhos, tira o espectador da zona de conforto e o lança sobre o mesmo drama inquietante do protagonista - o limite difuso entre realidade e ilusões já não pode ser estabelecido com precisão; quando vem a tona todo o turbilhão de lembranças, traumas, medos e angústia, a sanidade cede lugar a loucura. O Bergman mais surrealista que já vi.
Noites de Circo
3.9 49Brilhante retrato expressionista da humilhação, da impotência e da dor a que o ser humano está sujeito em seu modo de ser e de se relacionar com o mundo. É o verdadeiro espetáculo da degradação moral e do infortúnio em suas diversas facetas. Somente a cena do palhaço traído marca profundamente qualquer amante da sétima arte. Com que maestria Bergman utiliza recursos do cinema mudo, afim de elevar a dramaticidade da cena a níveis exponenciais - as expressões, os risos, que aqui é o único som a quebrar o silêncio angustiante, e a multidão que acompanha o palhaço carregando sua esposa como se fosse a sua cruz - eis a representação de todo o martírio causado pela humilhação, pela traição, pela consciência de sua própria degradação e impotência. Tudo isso em contraste com o circo, ambiente onde se supõe o florescimento das sensações de alegria e contentamento, são sensações estas que, na verdade, escondem sub-repticiamente um mundo de sentimentos e ressentimentos obscuros. Foi mencionada alguma influência de Memórias do Subsolo e realmente é difícil não lembrar do homem do subsolo na cena do teatro, com os insultos do diretor, e na cena do duelo, onde emerge todo o ressentimento de forma tão patética que beira a comicidade e reforça ainda mais a deterioração da dignidade e o peso na consciência do protagonista.