Sendo baseado no roteiro adaptado pelo veterano James Ivory da obra homônima aclamada de Aciman, é inevitável categorizar ‘Call Me By Your Name’ como um coming-of-age apesar de o filme apenas retratar um verão na vida de seus personagens (o livro vai cobrir pelo menos mais uma década de interação entre os protagonistas), ele encerra a trilogia do Desejo do realizador Luca Guadagnino que começa com I Am Love (2009) e continua em A Bigger Splash (2015). O filme se mostra o produto direto da maturação e aperfeiçoamento da identidade estilística de ambos: seu roteirista e seu realizador.
Seguindo uma premissa quase inerente ao gênero de tão clichê: um romance de verão que se inicia numa locação quimérica e afastada e que irá afetar enormemente o desenvolvimento futuro de toda a trama, o filme mostra a destreza e experiência do diretor a não optar por escolhas já tão óbvias, focando na construção egrégia de personagens ricos, realisticamente sensíveis e multifacetados. A trama é essencialmente uma fábula burguesa, centrada em um universo versado em haute-culture, que discute etimologia clássica árabe e bizantina em italiano, francês e inglês em um cenário campestre idílico, em meio a jantares preenchidos por pequenos concertos e debates politizados, o que faz com que convenientemente Elio seja transformado em um personagem bastante maduro e intelectualmente precoce para a sua idade. Com a chegada do doutorando que irá assistir o seu pai durante o trabalho de verão, a dinâmica de recepção a qual a família já está acostumada há anos ganha novos contornos. Oliver é um americano com trejeitos culturais característicos que contrastam visivelmente dos aristocráticos hábitos dos Perlman. Ele é espontâneo e autocentrado o que faz com que Elio o veja como arrogante, essa observação inicial somada à popularidade instantânea que o estrangeiro adquiriu em seu ciclo social faz com que ele passe a trata-lo com certa aversão. Eventualmente ele passa a analisar melhor seus sentimentos quando se sente culpado por ter sido rude com Oliver e então seu tortuoso papel como anfitrião se transforma em um tortuoso martírio para tentar entender e exprimir seus sentimentos. Isso tudo enquanto paralelamente desenvolve um relacionamento com a amiga Marzia. Como já dito anteriormente, a trama se desenrola em um formato narrativo bastante ordinário, é como se a audiência inconscientemente já estivesse preparada para todo o desenrolar da história com apenas a epifania do monólogo do doutor Perlman fugindo do lugar comum. A forma cuidadosa, terna e ao mesmo tempo realista com a qual o pai de Elio fala da importância de se permitir viver a experiência completa de prazeres, angústias e indulgências da juventude traduz o seu vislumbre do amor de uma forma que abraça universalmente todos os que passam ou já passaram daquele momento. Sua postura permissiva em relação à situação corrobora o fato de que muito do que havia acontecido só foi possível graças ao universo intelectual e liberal no qual esses personagens estão inseridos, assim como também a possibilidade de que ele próprio, em sua juventude, ter experimentado sentimentos parecidos, mas nunca ter tido a coragem de expressar e viver seus desejos (“ I may have come close, but I never had what you had. Something always held me back or stood in the way”), o que indicaria que ele o compreende por uma perspectiva ainda mais pessoal e, por isso, não quer que Elio se reprima e se frustre no futuro.
Com a exclusão desse ápice narrativo, o filme pouco traz de inovador para o corolário cinematográfico e acaba por se sustentar grandemente em um espectro narrativo já datado e sua inerente proeza estética e técnica, mostra-se uma obra simples que exala beleza, mas falta enormemente com originalidade. Obviamente a obra não tem obrigação alguma de traduzir ou interpretar o zeitgeist, mas um ano depois de ‘Moonlight’, a premissa dessa obra soa quase que como uma involução, não apresentando nem ao menos o apelo do conflito de castas de ‘Maurice’ (do mesmo roteirista). ‘Call Me By Your Name’ parece apenas o retrato de uma fuga burguesa extremamente hermética e até certo ponto, sensível. Se apenas a obra tivesse surgido com alguns anos de antecedência, engendrasse mérito e um legado memorável, ela é infelizmente demasiadamente simples para a contemporaneidade.
Não seria auxese dizer que ‘Dunkirk’ foi a mais aguardada produção de 2017, e isso se deve a um alguns fatores: a começar pelo roteirista-realizador, o veterano estelar e cultuado Christopher Nolan (que assina o trabalho sozinho dessa vez deixando um tom mais autoral e particular), o fato de ser um filme sobre um dos momentos mais emblemáticos e relevantes da II GM, assim como também é simbólico o fato de o Reino Unido estar passando pelo Brexit (fenômeno que se pode relacionar, ironicamente, ao ressurgimento pujante de uma nova onda conservadora e nacionalista interna).
E ‘Dunkirk’ definitivamente faz o trabalho na parte técnica. Uma produção que visualmente arrebata pela sobriedade onde todos os detalhes e recursos técnicos foram aplicados de forma excelente para maximizar a experiência imersiva em um relato de guerra bastante contido e sem exegeses com firulas narrativas de cunho patriótico (um detalhe interessante por exemplo é que o inimigo nazista nunca é explicitamente mostrado) reforçando ainda mais o cunho impessoal da obra, que por vezes parece objetivar uma neutralização de uma possível representação estereotipada dos lados da guerra. Nolan parece aproveitar a oportunidade para explorar o extremo oposto de seu estilo de escrita extremamente prolixo, que por vezes lembra os vícios cinematográficos herdados do teatro por Bergman, por exemplo. Em ‘Dunkirk’, os diálogos são extremamente reduzidos e sucintos e grande parte deles são entregues como informação (dos rumos da guerra, negociações nos bastidores e real situação dos soldados estacionados na praia) pelo personagem de Kenneth Branagh no molhe (quase um purgatório figurativo) usado para o embarque das tropas. A narrativa foi fatiada em 3 janelas de tempo: 1 semana, 1 dia e 1 hora, talvez para tentar traduzir a falta da noção de temporalidade experimentada por soldados em guerra, e vão sendo costuradas de forma paralela até o ápice, quase uma hora depois. Esse formato se mostra um pouco confuso e somente a linearidade temporal é um indicador da convergência das histórias nesse primeiro momento, ao mesmo tempo, explorar o conteúdo dessa forma se mostra a única maneira eficaz de aproximar a audiência dos personagens (a maioria nem ao menos tem nome) e, de uma certa forma, gerar empatia pelos mesmos. Outro destaque de suma relevância para o êxito sensorial que é ‘Dunkirk’ é a música. A composição do colaborador veterano Hans Zimmer, construída na base na escala Shepard e executadas seguindo o efeito Risset Glissando, uma ilusão auditiva que faz com que as escalas musicais possam se prolongar em um crescendo infinito, ajuda enormemente na construção da opressiva tensão exposta na tela, além da repentina e inesperada cacofonia causada pela artilharia, motores e explosões que pontuam a trama de forma paulatina e orgânica (o que por si só já é um feito em um filme de guerra contemporâneo). ‘Dunkirk’ se baseia em registros históricos contundentes para desenvolver a base do relato e o filme já se inicia com uma ação intensa, um pequeno vislumbre do horror prático que logo mais irá ser substituído pelo marasmo e a espera torturante pelo resgate que apesar de ser um esforço conjunto entre anglos e normandos, no início apenas visava combatentes britânicos. Filmagens reais na praia que podem facilmente ser achadas no YouTube, mostram que a atmosfera na praia retratada no filme é realmente fidedigna e honra a marcante temperança britânica mesmo quando numa situação excepcional como essa. Dessa premissa de construção gradual e em loop da tensão, a história sustentará uma fuga frenética e desesperada de jovens soldados que apesar da tenra idade, já sabem que serão recebidos com hostilidade e como derrotados na pátria, do lançamento deliberado de civis ao mar para participar dos esforços de resgate e que tornaram possível a evacuação massiva e bem-sucedida (infelizmente nenhuma menção ao Medway Queen) e dos pilotos que são a única chance de retaliação e defesa prática pelas centenas de milhares de homens na praia. Após a percepção da maestria com a qual o realizador aplica diversas técnicas e recursos visando a imersão da audiência nesse teatro de guerra, surge também, com o passar do filme, a percepção de sua maior fraqueza que é exatamente o caráter impessoal imprimido pelo tom lacônico que Nolan tenta passar. Na sua própria busca pessoal para sair de sua zona de conforto explorando o discurso para manejar o tom emocional de seu filme, ou tentar desesperadamente fugir do caráter melodramático de Hollywood no gênero, o diretor tenta transformar a obra em um filme emocionalmente “quase minimalista”, mas vale lembrar que esses soldados acabaram de experimentar os horrores da guerra e estão fugindo, acuados e derrotados, a questão do trauma psicológico parece ser quase que completamente ignorada sendo que era muito provavelmente a questão mais imperiosa nesse cenário. A tentativa de individualizar e ao mesmo tempo neutralizar as narrativas dos homens extraordinários de Dunkirk, sem explorar de forma efetiva nem o background e nem as consequências causadas pela guerra que obviamente atingiram esses homens durante as semanas de ócio e apatia na praia acabam por fazerem com que o filme falhe em gerar uma apatia que deveria ser óbvia e mais ou menos simples em um filme do gênero. A construção da narrativa para um clímax convergente também parece prolongar o filme além do necessário e faz com os quase 11 minutos de ação real acabem não justificando a longa espera. No fim, o verdadeiro drama de ‘Dunkirk’ acaba virando uma hipérbole que não se materializa por uma opção narrativa do diretor de se distanciar de seu lugar comum, e em um filme com uma temática ainda tão relevante e com uma plataforma tão importante para explorar e meditar sobre a experiência humana em face à uma situação tão extrema.
É uma lástima que tenha se usado tanto para expandir a tentame no aspecto técnico e sido tão frugal com o fator humano.
Darren está de volta aos temas (nesse caso: alegoria) bíblicos, o diretor que também assina o roteiro, conseguiu construir uma história extremamente sucinta, simples, com uma mensagem clara e que se revela de forma tão orgânica e bem marcadas pela montagem afiadíssima (por vezes até um pouco frenética) mas que compreende o filme em um espectro perfeito de 120 minutos onde absolutamente nada parece ter sido desperdiçado ou usado de forma aleatória ou abnormal. Cada espaço, artefato, momento tem uma relevância simbólica para a construção da narrativa que se sustenta em grande parte nessa semiose que vislumbra o divino, o espiritual, o sobrenatural através do trivial de forma tão simples que o conceito do filme se revela em pouco mais de alguns minutos decorridos.
O texto de “Mother” parece ser sobretudo uma ode de cuidado e respeito à Mãe Natureza (Terra), e da sua jornada rumo ao horror, medo e loucura por causa dos nossos pecados e da vaidade e egolatria do deus cristão. Essa é a fórmula que o realizador usa para pautar o conto da criação, passando pela aliança com a humanidade, a redenção com o Novo Testamente e o sacrifício de seu primogênito até o apocalipse (e uma posterior restauração da mesma dinâmica que se revela como sendo um ciclo eterno). A construção dessa fantasia se dá com a história de um casal formado por um escritor de meia idade e sua jovem esposa em uma idílica locação isolada do resto do mundo. O lugar parecer ter sido sítio de um episódio que o destruí parcialmente. A devotada esposa passa seus dias dedicada a reconstrução da casa do marido enquanto lhe relega tempo para tentar contornar o bloqueio criativo que lhe acomete. Logo a tranquilidade é interrompida pela chegada de um homem que é recebido com total aceitação por parte do esposo, mas com desconfiança por parte da esposa (os personagens não têm nome). Em determinado momento, o homem esconde uma cicatriz em seu torso (Adão) (que é a representação da costela retirada para criar a mulher (Eva) que vai aparecer na manhã seguinte). Em uma sequência ágil de eventos, são abordados diversos pontos do mito da criação cristã (a consumação do fruto proibido, a ira de deus, a vergonha, a descoberta da sexualidade por parte dos humanos, os dois filhos do casal [Caim e Abel], a morte).
Nesse ponto, já é possível identificar os dois anfitriões como sendo deus e Gaia (sua própria criação, o que explica o porquê da devoção quase-cega). Uma rápida comparação com outra obra que aborda de maneira diferente o mesmo tema (A Árvore da Vida, 2011), nos permite vislumbrar a função que a construção dos papéis de gênero incluiu em nosso imaginário judaico-cristão, com a figura do homem, pai, forte, altivo, austero e senhoril e da mulher, mãe, frágil e dependente, afetiva, altruísta e permissiva. Na obra de Malick, a mesma dinâmica se faz presente, mas dessa vez com a mulher representando a graça divina, o éter, e o homem como sendo a natureza imprevisível e dona de sua própria vontade. Nos momentos seguintes a despedida de um dos irmãos que se dá justamente na casa invadida por diversos desconhecidos que apenas relegam apatia aos ensejos da dona da casa, o conto do dilúvio e da extinção da raça humana se dá por meio da representação de um encanamento quebrado. Mais uma vez a apatia e desconsideração de deus reforçam o seu desejo primal por adoração e entrega total. Com a fecundação da mãe com o filho de deus (momento que é aludido pela transformação da paisagem) e a inspiração repentina que o mesmo tem para criar o que vai vir a ser sua obra magna, as coisas parecem voltar ao estado de graça do período inicial, até o momento da publicação da obra, o momento em que a ‘palavra’ chega ao mundo, e novamente a necessidade de deus por adoração engendra mais dor e sofrimento a mãe de seu filho. A tormenta causada pela invasão do culto do criador das palavras divinas remete a toda a história humana marcada pela religião e pelos conflitos que essa engendrou em nossa história, com a protagonista, a terra, apenas tentando sobreviver as demandas constantes dos invasores e do seu consorte. O simbolismo do sacrifício do filho único e divino de deus e da consumação de seu corpo por esses vagantes perdidos e também violentados, laureiam o a analogia marcada pelo uso de artífices simples, mas de profundidade simbólica que são contastes na obra, encerrada magistralmente com ainda mais uma demanda da egoística figura masculina, e da entrega definitiva da mulher, uma referência que reverbera familiar por toda a nossa história. A riqueza de conteúdo e a perspicácia na condensação dos mesmos numa obra relativamente sucinta e tão rica em detalhes quanto essa só favorecem a ideia do realizador-escritor de difundir suas próprias observações de um mundo ainda marcado pelas consequências desse mito
. Uma obra com uma história tão rica, contada através de recursos tão simples mas tão bem detalhados e que consegue transmitir tudo isso como uma parábola que se utiliza de nuances emocionais orgânicas e palatáveis é um feito de um mestre como Buñuel em ‘O Anjo Exterminador (1968)’. Talvez na nossa era, marcada por um cinema que polariza e segrega o ato da narrativa fantasiosa ou em heroísmo ou em horror, ‘Mother!’ tenha uma abrangência e aporte cultural muito amplo para caber. Talvez, esse filme pertença a uma outra era. Talvez.
Baseada nos fatídicos acontecimentos do distrito de Sugamo nos arredores de Tóquio em 1988, esta obra acabou por suplantar o interesse inicial do realizador de unicamente criar um relato factual desse escândalo animosamente abafado pelo governo e imprensa japoneses à época, transformando-se em um de seus mais simbólicos filmes e gerando os mais acalorados debates no mais íntimo e importante âmbito da tradicionalíssima sociedade japonesa: a família.
Tendo o mérito se suscitar tão relevante questão e expor tamanho problema ao resto do mundo, o filme gerou muita controvérsia no próprio Japão, a começar pelo fato de que até então, a sociedade nipônica era vista como uma das mais avançadas do mundo em termos de coesão social e bem-estar geral. Fato é, que na cultura japonesa, tal como todas as outras desenvolvidas a partir da égide cultural chinesa, existe uma forte inclinação à coesão familiar bem mais que uma preocupação com direitos ou o bem-estar individual. Para os japoneses, todos os indivíduos possuem uma dívida de vida para com a sociedade que só é paga quando os deveres sociais do trabalho, matrimônio e geração de descendentes são devidamente cumpridos (descendentes legítimos).
Importante também ressaltar que tais deveres possuem uma dimensão muito mais sacralizada para os japoneses que para os ocidentais atualmente. Não que o paradigma judaico-cristão seja menos rígido, mas com a evolução do capitalismo e o desenvolvimento histórico diferenciado do Ocidente, a instituição matrimonial acaba perdendo muito do seu sentido mais esotérico atingindo um nível de quase-conveniência nas sociedades mais avançadas do mundo anglo/latino. Além disso, o cerne de nossa filosofia privilegia o indivíduo e a conquista pessoal, o completo oposto da filosofia oriental sustentada em grande parte pelos preceitos morais de harmonia comunal e da submissão da vontade individual ao bem-estar coletivo do confucionismo.
E ainda, a contemporaneidade acabou por induzir ainda mais papéis às mulheres japonesas que na esmagadora maioria são as únicas efetivamente presentes na educação das crianças. O próprio diretor chegou a relatar que com tantas responsabilidades, algumas não suportam a pressão, o que explicaria o fato de que são as mães na quase totalidade de vezes, as responsáveis pelo abandono familiar.
Sendo assim, fica mais fácil compreender porque crianças geradas fora do matrimônio sofrem tanta aversão, apesar dos esforços do governo em silenciar a mídia sobre tais escândalos e manter o verniz de nação extremamente civilizada e harmônica, desde 1988 os casos reportados de abandono familiar se multiplicaram vertiginosamente, o que claramente indica um sintoma social. O ápice da polêmica se deu em 2007 com a criação do projeto pioneiro: “Baby Box” do hospital Kumamoto que passou a receber crianças indesejadas e encaminhá-las para a adoção. Para muitos uma ofensa gravíssima à nação, mas o que realmente fica evidente é que os próprios japoneses continuam negligenciando o problema em prol dos bons costumes.
Partindo dessa problemática, Kore-eda (roteirista e diretor) trabalhou o projeto na perspectiva de um docudrama que lembra muito as produções da NHK. O drama do filme se insinua tímido e vai evoluindo de uma forma tão autêntica e orgânica que é praticamente impossível detectar problemas narrativos ou contradições na história.
Mesmo em situações que podem parecer narrativamente adversas aos expectadores ocidentais como o silêncio dos poucos personagens adultos que tem ciência da situação na verdade, são bem realistas no contexto japonês.
A persona da mãe é brilhantemente construída pela atriz de TV e comediante You que foge a todos os maniqueísmos esperados e se mostra presente e afetuosa agindo de forma muito típica. Apesar da constante noção de seus deslizes de personalidade e de uma notória impessoalidade crescente de sua personagem que atinge o ápice na cena do telefonema de Akira, não demonstra em nenhum momento algum aspecto ressentido e/ou irascível que indique suas ações posteriores além da priorização do auxílio na maturação de Akira e de ele ser o único a quem é permitido o ensino (provavelmente preparando-o para o comando doméstico uma vez que a mãe já se ausenta com certa frequência por longos períodos), além de as outras crianças não possuírem registro de nascimento.
A onipresente beleza que emana da atmosfera infantil, apesar dos reveses é pouco maculada, mesmo em momentos mais críticos do filme. Percebe-se uma preocupação premente em relação à estética e manter o filme aprazível, mesmo sendo um declive dramático sem volta. Tais triunfos só poderiam ser encontrados em uma produção japonesa dada a priorização do universo infantil tão forte nucleando e modulando a modernidade cultural daquele país.
E por isso, temos personagens infantis que apesar de parecerem estereotipadas, são na verdade extremamente fieis à realidade. A retraída e solicita Kyoko, o hílare Shigeru e a extremamente afável Yuki são retratações bastante fieis de como são criadas as crianças japonesas, seguindo um estrito código de diferenciação etária e de gênero. Apenas Akira destoa do quadro geral, pelos motivos anteriormente citados. Tendo sempre que prover tudo para os irmãos e sendo privado do convívio de outros garotos da mesma idade, Akira já age de forma bastante madura para a idade. Essa privação inclusive, se torna evidente quando ele finalmente faz amigos e passa a viver um tipo de “infância tardia” e se torna extremamente influenciável. Um fato que favoreceu a trama é que nesse ínterim, o ator Yuya Yagira (Akira) apresentou os primeiros sinais de amadurecimento púbere, durante o filme percebemos a alteração em seu tom de voz, por exemplo (Yuya recebeu no ano posterior o prêmio de melhor ator em Cannes por esse trabalho, sendo o mais jovem, título que ainda detém).
Há ainda os pequenos dramas superficialmente explorados como o bullying sofrido pela amiga de Akira, Saki, que está sempre agindo de modo soturno e suspeito até conhecer as crianças, com quem desenvolve cumplicidade e se torna uma parte essencial da trama. A solidão do funcionário do minimercado e a vida fracassada enfrentada pelo funcionário do pachinko que supostamente é o pai de Akira.
Com a constante na degradação do estilo de vida das crianças, é interessante notar a inocência deles para com o julgamento alheio quando são forçados a saírem de casa para obter água. Outra crítica interessante se revela quando Akira e Shigeru estão voltando com água para casa e na mesma rua se vem crianças da mesma idade voltando da escola.
Ao atingir o clímax, o aspecto mais intrigante é a dúvida que muitos ocidentais podem sentir da falta de comoção dos irmãos para com o ocorrido. Seria a típica contenção emotiva dos japoneses? Ou simplesmente falta de noção da gravidade dos acontecimentos? Qualquer uma das alternativas só maximiza ainda mais o drama.
O realismo cru do realizador atinge seu ápice nessa obra, se amaina em “Aruitemo Aruitemo” (2007) e praticamente desaparece em “Air Doll” (2009), tornando o filme indispensável por exibir o exímio talento documental de Kore-eda e a ótima opção por uma obra estritamente orgânica e documental, tornando o drama ainda mais factual e palpável. Uma obra importante por mostrar o outro lado de uma contemporaneidade tão celebrada e abrir debates tão relevantes em uma sociedade tão restritiva como a japonesa, convergindo para que a coletividade possa ao menos reconhecer, e passar a pensar em um futuro melhor para esses excluídos.
Desert Flower, baseado no livro de memórias homônimo da ex-top model somali Waris Dirie, possui um discurso e uma crítica tão intensos que não precisaria ser um filme tecnicamente excepcional ou bem produzido para chamar a atenção do mundo. Felizmente não foi o que a diretora e roteirista Sherry Hormann fez ao se incumbir da missão de levar as telas esse genuíno relato de horror e superação que se tornou icônico dos anos 90 (sobretudo no hemisfério norte) após a fatídica entrevista de Waris à Marie Claire.
O filme é esteticamente original e fidedigno à contemporaneidade do roteiro, as minúcias e os detalhes étnicos são ricamente trabalhados, sem falar da opulência plástica da fotografia, ambientando devidamente os cenários da narrativa. Há uma pureza exuberante nas ricas cores da obra que tramitam entre o deserto, Mogadíscio e Londres e acabam por conferir ao intimismo literal de Dirie, uma dimensão visual de beleza ímpar, contrastando à sobriedade e a introversão dessa personagem.
Mas muito mais que isso, Flor do Deserto é um conto de horror que legitima em qualquer nível possível a essência do discurso da equidade sexual tão achincalhado no Ocidente. Derruba qualquer argumento de “particularidade cultural” e pode ser considerado um importante manifesto sobre a tragédia que é nascer mulher no mundo islâmico da Sharia. Uma inception da reivindicação dessas mulheres pelo protagonismo e autonomia sobre suas próprias vidas em verdadeiros paraísos de misoginia.
A FGM é muito provavelmente o mais aterrador e cruel ritual a qual se pode se submeter uma mulher, uma castração simbólica na grande maioria das vezes, em tenra idade, justamente para impossibilitar qualquer objeção retórica e/ou argumentativa uma vez que, o Alcorão não cita a prática em nenhum momento. Uma imolação que acaba por adequar a imagem da mulher como propriedade de propósito servil a interesses alheios a sua vontade, à família, à pátria, à religião (em sua totalidade, instituições controladas por homens), o que fica muito claro no filme na seqüência em que Waris é levada ao hospital com dores (que sente constantemente) e é veemente repreendida por um enfermeiro conterrâneo ao buscar tratamento ao seu estigma.
Muito do apelo da obra se pauta em seu efeito “Cinderela”, Waris é uma jovem refugiada perdida e sozinha que sofreu dos piores martírios que as mulheres podem sofrem em suas vidas ainda mesmo na infância, cruzou um deserto a pé, completamente desorientada e deixou a família sem saber se um dia iria poder voltar a vê-los. Após anos na marginalidade depois do colapso político de seu país, e dependente da compaixão de estranhos, sua vida toma um contorno excepcional, quase que como uma fábula, e ela se torna ao lado de Iman, um dos mais icônicos e representativos rostos da África. Mas é o seu segredo que a mantém tão refém da solidão e do medo.
Deve-se ter em mente que tendo sido criada de uma forma muito estrita a partir dos princípios de sua religião, uma parte importante da construção da jornada da personagem é a constante busca por força e voz internas em contraponto a severa moral que cerceia toda a sua vida. Há um embate simbólico intrínseco à personagem muito interessante de acompanhar. Mas não é como se a sua tendência a questionar os dogmas tivesse apenas surgido ao entrar em contato com o Ocidente maravilha, elas sempre estiveram lá, o seu rancor por ter nascido mulher, a sua capacidade de contestar, a sua coragem para fugir. De forma empírica, Waris sempre foi subversiva e autônoma, e em uma sociedade mais plural e democrática, aprendeu que a admiração atribuída a sua persona está diretamente vinculada ao que ela faz com sua voz de cidadã e de que forma contribui para a sociedade.
No fim, o relato quase surreal daquela jovem que tinha todas as possibilidades apontando para a tragédia eminente, se metaforiza e se mescla em diversos contos e diversas morais. Uma homenagem aos inconformados, aos menosprezados aos oprimidos, um estímulo a subversão de um mundo onde todo o dia é dia de misoginia e de castração simbólica ou física, um mundo que se divide em crimes de honra acometidos no corpo, e os que perduram em forma de tortura moral por anos, um estímulo ao combate diário de todas as formas de violência e degradação independente de país ou cultura.
A vida precisa persistir como um valor sacro imaculável frente a todas as formas ritualísticas de opressão, sobretudo como disse Waris em seu discurso final, alegando que são as mesmas mulheres que compõe a “espinha dorsal” da África que estão sendo mutiladas e silenciadas há três milênios e que elas antes de qualquer um, precisam reconhecer seu próprio valor e combater qualquer forma de injustiça e iniqüidade, e que nesse ínterim, os homens entendam que as mulheres foram retiradas da “costela” de Adão, não da cabeça ou dos pés, mas da costela, para serem iguais.
Mais uma obra que potencializa a discussão sociopolítica no âmbito do cinema, e que gera discussões extremamente válidas e urgentes, mas, sobretudo, uma inquestionável ode ao gênero feminino, que olha para a opressão do passado buscando inspiração para a luta do futuro.
Um dos mais clássicos exemplos de um filme que, inicialmente ojerizado, alcançou um status de culto anos depois, e muito disso, por mérito próprio. Essa obra de 1971 é uma abstração de um momento político e cultural efervescente, de rompimento com os valores prementes. Apesar de uma aparente apatia política, a obra levanta questionamentos morais e reflexões tão válidas à época, como são hoje, mas, por causa do já citado momento político vivido no mundo: Guerra Fria e os consequentes conflitos na Coréia, Vietnã, Afeganistão, a tensão com Cuba, as guerras pela descolonização na Ásia e África, o inverno ditatorial latino-americano (suprassumo da política do big stick), os efeitos de 1967, o surgimento do movimento hippie, a expansão do movimento feminista, as primeiras manifestações pelos direitos homossexuais, o surgimento do partido dos Panteras-negras nos EUA, Watergate e muitos outros importantíssimos acontecimentos que viriam a definir o século XX, a tornaram tão icônica para a época (apesar dos fracassos comercial e de crítica inicial, principalmente pelo tabu coetâneo da relação intergeracional, e do tipo de humor caracteristicamente “britânico” não muito bem recebido nos EUA).
Muito do encanto de Harold & Maude se deve a sua estrutura narrativa que funciona como uma fábula, uma metáfora política contemporânea, com um implícito discurso esquerdista coordenado a partir de uma brilhante direção de Hal Ashby, mestre em contenção de recursos técnicos e discrição nos discursos políticos, o resultado efetivo é um ótimo filme, uma experiência tragicômica perspicaz e inovadora e mesmo assim, leve o suficiente para todos os públicos.
Relacionando diametralmente os núcleos das personagens em polos opostos, quase que comprimidos em espaços preenchidos por esteriótipos para então, desenvolver a dinâmica clássica do “choque de mundos” - um maniqueísmo que até pode ser clichê, mas manifesta uma funcionalidade extremamente coesa e necessária à história - a partir disso temos Harold: filho único de uma socialite viúva e sobrinho de um militar de alta patente caracterizado com toda a rigidez e austeridade inerentes à sua posição, essas personagens podem ser interpretadas como claras referências as esferas de poder do Estado: a esfera econômica (mercado): provedor de recursos, autocentrado e negligente às demandas de outrem ou de qualquer outra ordem que não seja monetária; e a esfera policial (exército): força repressora, constante histórica, manifestação-mor do espírito beligerante humano, da necessidade de poder e dominação.
Vale lembrar que esse contexto faz muito sentido para os Estados Unidos, sendo assim, Harold resume bem o espírito jovem da ápoca, coagido pela violência do mercado livre e a truculência militar (vide o alistamento compulsório característico do período da Guerra do Vietnã),
um jovem totalmente negligenciado, que manifesta a sua desesperada necessidade de atenção materna de forma gradualmente grotesca. Mesmo assim, tudo o que o jovem consegue, é mais distanciamento, o que obviamente acaba por retroalimentar um ciclo vicioso e autodestrutivo. Harold também cresce em um ambiente que é coadjuvante na sua formação identitária, um ambiente extremamente mórbido, gótico e opressivo, ajudando-o a se tornar uma figura extremamente altiva, excênctrica, fantasmagórica, um jovem Nosferatu ainda atormentado pelo seu fracassado complexo de Édipo que desenvolveu um gosto pelo fúnebre.
É nesse ínterim de não-acontecimentos da vida do jovem que ele conhece a mais excêntrica ainda Maude, com uma persona construída para ser o oposto da dele, vívida, imprevisível, desprendida e desvinculado de toda e qualquer regra social ou bem material, um tanto budista. A ironia reside nas posições assumidas pelos personagens Harold, extremamente jovem, buscando incessantemente a morte (mesmo que um falseamento, da ideia de fuga abstraída de sua vida esmagadoramente monótona), e Maude, que vive intensamente cada dia, descompromissada mesmo quando isso afeta negativamente outras pessoas, como um manifestação prática da filosofia hippie, ela desenvolve uma relação espiritualizada com a natureza e todos os seres vivos, como que uma extração ideológica da vida.
Com o desenvolvimento da relação dos dois, a vivacidade e espontaneidade de Maude passam a enfim, causar alguma comoção no jovem que ironicamente, passa a se desprender de todas as tentativas de aproximação da mãe através de eventos sociais e encontros arranjados. Com sabedoria e espírito livre, a senhora incuti em Harold, um vislumbre muito mais humanizado da vida. A cumplicidade dos dois vai evoluindo ao ponto de ela então revelar o doloroso segredo de ser uma sobrevivente do Holocausto em uma das mais belas e desconhecidas sequências do cinema mostrada de forma muito contida, como sempre opta o realizador.
A relação chega enfim, ao nível romântico, provavelmente o mais polêmico do filme, levantando importantes questões de ordem psicológica como, inclusive, é apontada pelo analista de Harold. É nesse ponto que o filme ratifica de sobremaneira a sua intenção em discutir e romper com as normas vigentes, com a mesma abordagem estético-narrativa leve apresentada durante todo o filme. Maude não só tornou-se professora, mãe, avó, amiga, cúmplice do jovem, ela se torna a sua amante, e a figura feminina mais relevante de sua vida até então, e o que importa se ela tem 80 e ele 20?! O retrato de sua relação, tão bela, genuína e positiva para ambos, acaba por legitimar o amor mútuo.
O filme termina de uma forma pouco natural, mas mesmo assim, concisa ao todo. Acaba por ser uma fábula por justamente sobrepor uma lição de vida, não um discurso vazio e arcaico, mas uma verdade que precisa ser cada vez mais aprendida e reproduzida em nosso mundo de constantes injustiças. A epifania que Maude representa, é uma abstração possível da esperança na utopia interrelacional e social.
inclusive na interação da fotografia com o desenvolvimento do enredo, que vai se tornando mais claro, agradável e menos opressor, seguindo a lógica crescente da relação dos protagonistas.
Ponto forte também na trilha sonora completamente baseada no trabalho de Cat Stevens (hoje Yusuf Islam), à época já um ícone pop, a trilha sonora inclusive ganhou status de culto muito antes do filme, e hoje ainda, é reverenciada e brindada em diversas versões ao redor do mundo. O interessante é que muitas das músicas foram retiradas de trabalhos anteriores do artista.
Por fim, um conto de fadas tão moderno quanto foi há 40 anos, mas, mais que isso, uma obra atemporal, que só prova cada vez que é assistida, o porquê de ser cada vez mais, indispensável.
Sendo fruto de uma mente tão reconhecidamente brilhante e inventiva como a de Kleber Mendonça Filho, seu primeiro longa não tardou a virar o filme-fetiche do ano. De forma impressionante, sobretudo pelo escasso marketing acerca de sua estréia e pelo mérito de ter rompido barreiras mercadológicas e ter chegado a diversas salas de exibição Brasil afora - um feito para um filme nacional com o seu teor crítico -, o filme foi alçado ao panteão das obras-primas do cinema nacional sendo constantemente reverenciado como um marco, um divisor de águas no “pouco copioso e tímido” panorama de produções brasileiras que não são concebidos como comédias populescas.
Obviamente o filme tem inúmeros méritos, o primeiro deles é que em certo grau, rompe com uma moratória metodológica em sua concepção, com uma intensidade e visceralidade que não víamos desde: “Os cantos de trabalho” e “Megalopolis”, ambos de Hirszman e feitos na década de 1970 e convergindo para a mesma temática. Apesar da distância temporal gritante, essas obras permanecem extremamente atuais e, sobretudo, factuais. Mas desses, o assombrosamente belo: “Maioria Absoluta” parece ser o filme do diretor que melhor dialoga com “Som ao Redor”, esse poderia ser descrito como a versão entendida da intrigante introdução da obra mais recente, concentrado no tradicionalíssimo sistema feudal dos latifúndios do Nordeste brasileiro, nossa Arcádia às avessas, “uma terra mítica” do caos e da inópia no imaginário popular.
“Som ao redor” salta 40 anos e vem contextualizar a contemporaneidade brasileira anestesiada por um suposto milagre econômico traduzido em uma ascensão social à chinesa e em toda a sorte de mudanças que essa abarca tais como: a segmentação gritante e semicriminosa da nova ocupação espacial da cidade, privatizando os espaços anteriormente públicos e minando as periferias; o maior poder de compra refletido nos insustentáveis índices de vendas de automóveis que inflarão e desarticularão a mobilidade urbana e a necessidade de mais garantias de auto-suficiência e segurança energética e os conseqüentes conflitos ideológico-ambientais que tais demandas usualmente acarretam.
Em suma, uma história sem lugar-comum, que poderia ocorrer em qualquer grande cidade terceiro-mundista em decorrência da universalidade de seus problemas e contextos.
É interessante notar a opção do realizador por explorar subjetivamente as questões relativas ao boom imobiliário intenso vivido no país nos últimos anos, gerando enclaves urbanos de bem-estar exclusivos, alterando de forma direta o traçado urbano e a dinâmica espacial econômica com uma enorme demanda por serviços diversos: trabalho doméstico, entregas domiciliares, educação caseira, vigilância e até os serviços mais ilícitos.
Mais interessante ainda, é o vislumbre dessas relações de poder estabelecidas a partir do perene desdobramento das castas e aprofundamento das tensões sociais entre patrões e empregados, ricos / novos ricos versus pobres.
E nesse aspecto, há o mérito da obra de reproduzir fidedignamente tanto a figura do núcleo tradicionalmente mais abastado, como os mais recentes integrantes da classe média, até o núcleo mais explorado e menos favorecido. Como se as relações coloniais persistissem, tivessem sido cristalizadas e as estivéssemos vislumbrando em sua materialização ímpar de realidade. Prova disso é a relação de extrema plasticidade entre João, sua empregada e os entes desta, que comungam do espaço do patrão de forma curiosa. João inclusive é uma referência clássica aos jovens liberais de famílias argentárias que ao retornarem dos estudos na Europa, vinham com idéias liberais e abolicionistas, trata de forma compassiva e benevolente os seus empregados, os conhece, os entende e intercede por ele, como na sequência da reunião de condôminos. Há seu primo que é basicamente sua antítese, o rebelde e inconseqüente herdeiro que, blindado pelo poder e influência da família, se anuncia como um retrato de horror de um futuro senhor sem complacência ou piedade, uma efígie do conservadorismo e do desespero elitista em frear os avanços da classe média e manter o status quo.
Mas a figura mor, o mais fiel caricatura da imutabilidade da regra social frente ao tempo, é o avô dos dois, Seu Francisco, que não à toa, é senhorio da maioria dos imóveis da rua, mão-de-ferro, reproduz na contemporaneidade a brutalidade e o desmando do coronelismo. Perpetua seu poder, riqueza e influência sobre a privação dos outros. Nesses novos tempos de mudança, o arraial constitui-se em uma rua, e o coronel, é o arrendador local, a quem todos conhecem e temem. Seu poder incólume é largamente reconhecido na sequência em que o trio: o avô, João e a namorada Sofia visitam o engenho da família. O outrora glorioso cerne da vida familiar tradicional, agora abandonado e esquecido, construído sobre a desgraça dos mais pobres, mortos, roubados e expulsos de suas terras para dar lugar ao rico senhor, agora dá lugar as ruínas e ao ostracismo. Mesmo assim, ainda ecoam os gritos de horror e desespero, na pobreza reproduzida na filmagem da escola e do velho cinema abandonado, mas, a mais impressionante metáfora usada para relativizar esse conjunto de forças, é a sequência na cachoeira, quando o fluxo de água repentinamente, transforma-se em sangue, simbolizando todas as vidas tiradas para que aquele senhor e sua família pudessem usufruir e engendrar mais riqueza. Nesse ponto, o filme dialoga diretamente com o magnânimo “A Febre” (2004) de Carlo Gabriel Nero, que discursa sobre a história das relações de poder, do consumo e fetichismo societário e dos crimes ocorridos no passado e que reverberam na reprodução da pobreza e miséria do mundo atual. Há também nesse núcleo, a avulsa figura da antipaticíssima Sofia, socialmente despenhada, um rateio dos resquícios de uma vida privilegiada, sem carisma algum, praticamente dispensável na trama.
Mas, nesse novo contexto, há novos atores sociais que dinamizam a trama, como dito na ótima crítica do ilustre anônimo André Felipe em reposta a “exageradamente positiva” resenha de Zanin no O Globo: “é como se agora, entre a Casa Grande e Senzala, houvesse a classe média”.
E assim se materializa a figura dos suburbanos de Setúbal, em ascensão, com demandas, mas arredia e aterrorizada pela horda de miseráveis que segregou do espaço. Confinada em seus enclaves aprumados de nomes extravagantes, pela ostensiva segurança e o medo constante de que os mais pobres se revoltem e invadam seus espaços – coisa que ocorre corriqueiramente -, maculando-os e saqueando-os. Medo esse, aludido no pesadelo da filha de Bianca, quando da invasão de sua casa por uma gangue.
Ao longo da trama, são expostas de forma inteligente e perspicaz as implicações psicológicas dessa estratificação e segmentação socioespacial que sufoca, engole e anula o espaço individual, e, que podem ser percebidas nos subterfúgios desenvolvidos pelos personagens e pela busca generalizada pela privacidade e isolamento
e/ou, por meios de expressar sua subjetividade espoliando o espaço público decantado pela uniformidade e frieza fórmica e gráfica, como nos momentos em que se nos deparamos com os pequenos crimes burgueses ou, quando se lê uma declaração escrita no asfalto, o que de certa forma, metaforiza esse grito desesperado do indivíduo abafado pela demasiada concentração demográfica.
Tudo isso, reproduzido ao passo de uma sonoridade pulsante, esse, provavelmente um dos aspectos mais extraordinários do filme, é um diferencial que o relega a uma categoria única. Os sons da película funcionam como um segmento projetivo de semelhante importância, delineando um cenário, uma situação, explorando o lugar e, quando fundidos à imagem, formando um quadro fiel e uma experiência de realidade extrema, ou, por vezes, uma escapula abstrata necessária para se abster da opressora vida na metrópole.
Mas, apesar de toda a pujança e inovação aqui vistas, “Som ao Redor” também padece de males pouco explorados devido à expressiva ode de empolgados críticos. Como escreveu Eduardo Escorel, da revista Piauí, em um quase surto de sobriedade se comparada a sua resenha a diversas outras, escreve que: "ao se transformarem em surto de ufanismo patrioteiro, porém, os elogios podem acabar mais prejudicando do que beneficiando o filme, seu autor e eventuais leitores".
Sobretudo porque como já evidenciado, apesar da fidedignidade aos perfis sociais construídos, o filme exagera nos maniqueísmos, as representações de certo e errado e os caminhos pelos quais muitas situações enveredam, geram um sentimento de juízo de valores onipresente, e, como já citado anteriormente, existe sim, um crônico problema de não-causas, não acontecimentos, rumos que chegam a lugar algum, há uma incômoda segregação nuclear e um desencontro narrativo profuso, as histórias desconexas, sem garantia de que realmente chegaram a algum lugar, o filme adquire um espoco extremamente sociológico, didático, menos lúdico, e as tentativas de fazer rir, frustrantes, e é aí justamente, onde deságua o mais flagrante desacerto do realizador, o desfecho da história.
Após um exaustivo e bem elaborado trabalho de pesquisa e concepção, o final do filme nos deixa com uma sensação profunda de inacabamento, de falta de mérito. A inclusão de personagens e situações como efeito surpresa em desfechos de caráter abrupto, comumente caracterizam obras exaustivas, mas que comungam do problema de chegarem a um fim insatisfatório, vide o exemplo maior: Crime e Castigo. Um infeliz demérito a uma obra tão ricamente construída, talvez por culpa de como o filme foi vendido através da sinopse relacionando a chegada de uma milícia à uma tensão previamente inexistente, o que não é bem verdade.
Contudo, dada as honras, pela análise objetivamente crítica e por retratar de forma tão real essa nova experiência brasileira do global para o local, é um ótimo filme e diz muito dos e para os brasileiros.
Particularmente, esse filme, quando anunciado em 2009 foi a mais grata promessa do ano. A influência e a universalidade do filmes de John Hughes são simbólicas, sua indiscutível destreza narrativa somadas ao desejo de reaver o espírito rebelde juvenil que germinou na Hollywood dos anos 50 e teve como expoentes o James Dean de Rebel without a cause (1955) e o Marlon Brando de The Wild One (1953) praticamente criaram um subgênero cinematográfico e um novo nicho de mercado a ser explorado pela indústria: os teen movies. Obviamente, no período posterior aos anos 50, outros clássicos com temática próxima foram produzidos como: Freaky Friday (1976), Grease (1978), To sir with Love (1966) entre outros, mas nesse ínterim de quase 30 anos, pode-se afirmar com convicção, que não houve um movimento cinematográfico centrado na juventude tão intenso ou analítico como houvera na época dos proto punks em Hollywood, ou como a onda que viria nos anos 80 com os filmes de Hughes. O que ocorreu desde a retirada e o auto-exílio do diretor por motivos de incompatibilidade ideológica com o padrão de grandes estúdios em Hollywood foi uma contínua decadência na qualidade das produções voltadas para o público e, por fim, uma completa exaustão, ao menos no âmbito estadunidense, efeito traduzido nos péssimos filmes colegiais do final dos anos 90, recheados de estereótipos, cada vez mais apelativos e feitos por e para uma juventude completamente acéfala. A influência de Hughes na cultura pop é obviamente ainda maior, através de seus filmes, ele sintetizou e influenciou muito do que viria a ser a estética do zeitgeist juvenil oitentista. As escolhas musicais, visuais, de vestuário e artísticas mostradas em seus filmes dão uma ideia da essência cultural da época.
Parafraseando um dos entrevistados no filme: “Não sabemos ao certo se nós o copiamos, ou se ele nos captou”. Em outro momento, um entrevistado afirma: “Qualquer pessoa que pense em fazer um filme adolescente hoje em dia, obrigatoriamente assiste a uma obra de Hughes, e isso é bom e ruim. Bom, porque é muito inspirador, ruim, porque por mais que você se esforce, não conseguirá fazer melhor que ele”.
A compreensão do fenômeno cultural irradiado quase que de forma solitária por John Hughes nos legou mais que um panteão de entidades excêntricas cheias de maniqueísmos, John foi pioneiro em mostrar as angústias, aflições, anseios e questões fidedignas dos jovens mostrando-os como indivíduos complexos, emaranhados em relações sociais majoritariamente orgânicas, legitimados pelos medos concirnais a sua idade: do futuro, do fracasso, da invisibilidade social, do juízo de valores, das transformações. É inegável o fato de que a globalização acaba por difundir valores que antes não tínhamos. No caso, muitos dos preceitos culturais estadunidenses como: a divisão social da escola em classes (atletas, geeks, hipsters, punks, populares...), bailes de formatura, status social pautado em um consumismo torpe, recursos culturais que não necessariamente se ajustam à nossa realidade como: música, filmes, livros e, até mesmo, um bizarro imperativo de relações familiares até abusivas dentro de nosso padrão latino. Mas o cerne da temática de Hughes continua sendo a análise e compreensão do jovem inserido na sociedade na fase de doutrinação e concepção do pensamento que é a fase escolar. O cineasta sempre fez questão de apontar o insucesso dos pais e professores em se comunicar e buscar entender os jovens e suas questões. Há uma inoperância na comunicação intergeracional e o pioneirismo do realizador reside em sua busca e compreensão do mundo juvenil geralmente banalizado pelos adultos, esses por sua vez, são geralmente vistos pelos jovens como um assustador vislumbre do futuro: alienados e frustrados. O argumento-mor de Hughes, e funciona tão bem porque a adolescência e o medo do futuro, são condições genéricas ao ser humano, não são valores, são convenções constituídas biológica e socialmente e universalizadas, e seus filmes, se corroboraram por meio daquilo que valida a arte: a sua aplicabilidade na vida. Nesse caso, seus filmes não deram respostas aos adolescentes sobre a eterna questão da identidade, mas, mais do que isso, mostraram que eles (nós), não estavam (mos) sozinhos. Dito isso, é óbvio que a importância e a essência artística de John Hughes, e seu subseqüente auto-exílio, gesto máximo do intento de supressão artística, tornou-o, como é regra, em uma lenda viva. Era questão de tempo que buscassem fazer um filme sobre sua figura. E é essa a premissa de “Don´t you forget about me” – provavelmente o melhor título que poderiam escolher – gerado por quatro jovens realizadores canadenses que cresceram fortemente influenciados pelos filmes desse senhor. A obra, obviamente concebeu alguns triunfos nominais embasados em uma ótima premissa de entrevista tanto de atores, produtores e colegas de trabalho do homenageado; críticos, cineastas e produtores influenciados por ele e até mesmo de jovens em idade escolar na tentativa de gerar um comparativo entre os seus filmes e os contemporâneos com a mesma temática.
Em algum ponto, alguém fala que: “com John Hughes, filmes adolescentes deixaram de ser subestimados e passaram a ter uma conotação mais respeitosa”. Triste verdade é comprovar que a posterioridade dissipou essa conquista, barateando o foco narrativo e transformando tais filmes em odes a um hedonismo prosaico e um estilo de vida ordinário.
Apesar das boas intenções e das conquistas de se entrevistar gente como: Richard Roeper, Kevin Smith e Alan Ruck, o filme tem problemas estruturais e metodológicos abissais que comprometem e muito o resultado. Em primeiro lugar, os aspectos técnicos depauperados, entrevistas filmadas em ângulos terríveis, luz empobrecida, uma edição fraca traduzida nos excessivos cortes e gravações televisivas, os adolescentes entrevistados não são creditados e algumas filmagens que poderiam ter sido dispensadas na edição final vide a seqüência da conversa dos realizadores no campo, da passagem pelo posto de fronteira, dos momentos de preparação técnica das entrevistas nos hotéis e no restaurante. Depois, é irreparável a falta de Matthew Broderick, Anthony Michael Hall, Macaulay Culkin e da musa Molly Ringwald, provavelmente impossibilitados por contratempos, mas mesmo assim, muito sentidos. Terceiro ponto, o fracasso técnico do filme recai justamente sobre o despreparo de seus realizadores, exposto na própria película, há muita confusão no grupo quanto a cada decisão, há muitas conversas triviais, há um visível descuidado em relação à abordagem ao cineasta, há um amadorismo latente e, em alguns momentos, percebe-se em momentos artificialmente dramatizados pelos jovens, sua necessidade supérflua de protagonismo.
Infelizmente, a qualidade do filme fica completamente comprometida pelo descuido e imaturidade de seus realizadores e a progressiva falta de foco que o filme adquire. O que poderia ser um vislumbre final da beleza e genuinidade da obra de Hughes virou um alarido de egos e pretensão. É até icônico o fato de Hughes ter se abstido de entrevistas e da vida pública, ao menos assim, evitou comprometer sua arte e o constrangimento de participar de algo tão amador.
Klass é um triunfo em diversos aspectos, primeiro por seu uma produção destacável de um país tão desconhecido e obscurecido por seu passado e por seus vizinhos, depois por mérito próprio: é um filme construído e costurado de maneira inteligentíssima, e, mesmo que o tema que aborde não o seja, ele muito facilmente se sobressai, superando todos, basicamente todos os outros filmes que já abordaram bullying na escola, tem um ritmo frenético e nauseante, é um filme estilizado, com fotografia, planos e trilha sonora coerentes com o contexto da trama. Um triunfo também se considerarmos que o filme teve orçamento de pouco mais de R$ 100.000,00 euros e teve apenas 12 dias para ser filmado.
Outro ponto extremamente relevante é que o filme simplesmente abandona todo o maniqueísmo normativo de filmes similares que tendem a limitar a questão ao macroambiente em que esses jovens estão inseridos: ausência de estrutura familiar, , superexposição à violência midiática (TV, internet, jogos) e, vide Elephant de Gus Van Sant, mesmo à questões individuais como desvios de conduta resultantes de lacunas de ordem psíquica, fatores esses que acabam por propender a audiência a dividir os indivíduos mise en scène em epigeneticamente nascidos bons ou maus. Klass é um tanto revolucionário por ir a fundo na questão da violência e delinquência juvenil.
O roteirista e diretor Ilmar Raag criou o argumento a partir de casos de violência midiatizados na Europa inspirando-se também em casos estadunidenses como o de Columbine (CO) e o de Edinboro (PA), a ideia a partir disso, era reunir diferentes jovens de toda a Estônia para que contribuíssem de forma voluntária com o roteiro relatando casos de violência em suas respectivas escolas. A base dos relatos engendrou as diversas situações de conflito do filme, mas, mais que isso, a intenção de Raag era buscar a origem dos problemas que acarretavam tais resultados. Obviamente uma tarefa analítica de extrema valia e ao mesmo tempo, de muita responsabilidade.
Ilmar Raag foi,muito provavelmente, o primeiro a olhar exclusivamente para as condições concernentes ao contexto de um adolescente comum - a falta de referências a ícones nacionais ajuda a reforçar a ideia de universalidade do filme neutralizando contra-argumentos de cunho cultural -, buscando apenas o essencial para criar as personagens e, enfim, dinamizar a trama com as relações sucessivamente estabelecidas. O resultado é um relato da composição social do mundo infanto-juvenil no ambiente escolar, e de como se estabelece a rígida hierarquia social nesse grupo.
Partindo do princípio da sociabilidade humana instintiva ou zoon politikon de Marx, tal como nos estados modernos e do mesmo jeito que em sociedades mais primitivas, a escola é apresentada como um ambiente hostil, sendo regido por meio do medo e da coerção dos mais fortes, os indivíduos medianos acabam por se alinhar por razão de sobrevivência e o restante, fora dos padrões de aceitabilidade do grupo, tornam-se os marginais, os excluídos. Nesse caso específico, o que torna a situação de Joosep extraordinária é o fato de que toda a turma se alinhou contra ele, e parte do processo de integração social, torna-se um macabro rito de humilhação constante contra o jovem.
O filme foi dividido em um período de 7 dias, a ideia era deixá-lo o mais documental possível, de forma que o expectador acompanhasse a vida de Joosep e de toda a turma de forma rotineira, com esse intuito, foram também inseridos pequenos cortes de filmagens aleatórias em escolas com crianças se relacionando, na maioria das vezes, em conflito, onde sempre prevalece a figura do opressor. A intenção de Raag é, deveras, mostrar a formação dos indivíduos em ambiente escolar envoltos em um meio onde agressões são uma constante.
Apesar da prioridade com que trata a relação entre a assustadora crescente nos índices de violência entre jovens e o bullying intrajuvenil como fator decisivo para a proliferação dessa tipo de violência, o diretor não negligencia de forma alguma as outras esferas de relações as quais esses jovens estão submetidos. São abordados ainda a falta de preparo técnico das escolas para evitar tais convulsões, a falta de diálogo e entendimento familiar e as tensões geradas por relações familiares pouco saudáveis (no caso de Joosep, também abusivas).
Joosep inclusive, foi moldado como um jovem anormalmente apático e indiferente à perversidade a qual é submetido para que se trabalhasse de forma menos digressa o possível a ideia de que a sociopatia pode ser adquirida. Mas um fator cultural relevante precisa ser exposto: em algumas sociedades, indivíduos que demonstrem excepcional destreza física (macho alfa), submetendo os mais fracos ao seu domínio, como é o caso da estadunidense, onde se consagra a figura do campeão em detrimento de figuras intelectualizadas (nerds, geeks), nota-se uma disparidade nos casos de ultra violência, (como é o caso de chacinas em escolas) em relação a sociedades mais equitativas nesse aspecto, como no caso do Brasil por exemplo.
Por fim, o filme atinge um clímax previsível, mas não sem antes se tornar uma via crucis tortuosa e extremamente agonizante para o expectador. Uma mistura sombria de sofrimento e ansiedade. Um trunfo do cinema, sobretudo no âmbito da manipulação sentimental, o filme é, verdadeiramente, uma tortura psicológica absurda, em determinado ponto, a necessidade de vingança se torna um sentimento imperioso, e é justamente a partir desse momento que o discurso ético e a afetividade humana conflituam-se em um dilema social que precisa urgentemente ser debatido. E o mais importante, o filme argumenta com a verdade, isso o torna tão legítimo e necessário. Chega a ser decepcionante a pouca atenção que o filme recebeu, Klass é uma propaganda apolítica e atemporal inteligentíssima, é um esboço do entendimento de juventude confusa e desnorteada, é sobretudo um grito por socorro desesperado.
Interessante o fato de quase 3 décadas depois, essa citação do clássico Breakfast Club de John Hughes, parece se encaixar perfeitamente na proposta do filme: "...E essas crianças em que você cospe, enquanto elas tentam mudar seus mundos, são imunes às suas consultas. Elas sabem muito bem pelo que passam...” de David Bowie.
Indiscutivelmente, um dos maiores clássicos do cinema brasileiro, com um realismo e genuinidade argumentativa e visual que dispensa as exageses de Gláuber e Sérgio (Duarte sempre nutriu uma certa inimizade com os cinemanovistas), filme matriz de um contexto social e político único, e, provavelmente um dos três melhores filmes feitos na história desse país. É inclusive em sua essência simples que reside a genialidade da trama porque é justamente nesse ponto crucial que os aspectos mais importantes da história do Brasil e da própria Igreja Romana são implicitamente abordados e se manifestam de uma forma brutal e estigmatizadora e ainda assim, extremamente orgânica . Em menos de 30 min o filme já abordou a subcultura dos ritos africanos, sua influência, o sincretismo com o cristianismo, o desprezo e aversão da Igreja Católica por esse sincretismo, a eterna tensão social entre o camponês e o urbano e o mais importante de tudo, todos esses aspectos brilhantemente costurados pela existência ingênua de Zé, que, por sua vez, representa o sertanejo comum: extremamente devoto, reprimido, miserável, ignorante, uma entidade que apesar de seu labor fundamental, é uma sombra social. De uma certa forma, um roteiro tão inteligente e original torna completamente dispensável o uso de recursos visuais e narrativos (muitas vezes desnecessários) usados concomitamente em algumas produções mais neorrealistas (caracterizadas como o Cinema Novo). Mesmo assim, o filme apresenta ângulos inovadores e simbolismos característicos da cultura baiana (que para brasileiros de outra parte, são de um exotismo ímpar) que o tornam um deslumbre visual. O destaque que são as atuação de Leonardo Villar (reza a lenda que o jovem com fama de bon-vivant lutou com todas as forças por esse papel) e Dionísio Azevedo e a tensão criada pelos seus personagens, as metáforas que podemos abstrair das enredadas e complexas relações entre os coadjuvantes que acabam como tropos para a Igreja e as forças armadas como núcleos do Estado repressor, a imprensa marrom como a propaganda antiética institucionalizada e com vício messiânico, e a sociedade pobre, marginalizada, cerceada, representada pela resistência dos moleques tunantes da capoeira - essa mesma, manifestação cultural que lutou contra todo o preconceito social de séculos de estigma de incapacidade psicossocial que sofreram os africanos e seus descendentes até tornar-se patrimônio cultural brasileiro – derrocam na martírio imprevisto de Zé na crítica pura e cruel de que desde que existe um(ns) deus(ses), as pessoas morrem e matam em nome dele(s). É a história pura e viva se manifestando da forma mais natural na vida daqueles indivíduos tão comuns e mesmo assim, tão diametralmente complexos em suas próprias especificidades. Um incrível retrato de uma sociedade estabelecida através de um paradigma dogmatizador e restritivo tendo que conviver com o pluralismo vigente através de séculos de genocídio e escravidão e frutificados por vítimas e mártires, como o próprio protagonista. Um filme mais que fundamental, necessário, por levantar questões e evocar um debate ainda inexistente na sociedade brasileira sobre o seu futuro como nação laica e pluricultural, um filme que deveria ser exibido nas escolas, não só por ser uma obra de inestimável valor artístico e ainda assim, extremamente inteligível para o grande público, mas, também, por levantar problemáticas tão atuais ao Brasil contemporâneo como o eram há mais de meio século. Total merecedor do Palm d’Or e de todos os prêmios que ganhou, porque além da honestidade que apresentou o exótico Brasil ao mundo, possui um domínio político muito mais atuante e menos místico que o ótimo Anjo Exterminador (1962). Da palavra ao espírito, do espírito à política.
Clássico da Nouvelle Vague japonesa, de um experimentalismo ímpar e força criativa invejável, com certeza um dos filmes mais injustiçados da história do Cinema Mundial. Bara no Soretsu é um deleite visual único, e um banquete em referências literárias, politicas e críticas sociais. E o feito mais impressionante com certeza, é a forma como foi construído, o filme jorra tanta informação de diferentes âmbitos, que ainda é um mistério como não se tornou uma obra sobeja. Ao contrário de todas as expectativas, é um filme extremamente conciso, relativamente simples, que ganha pela genialidade de sua trama e produção. Um feito que muito provavelmente só foi possível graças ao detalhismo e obsessão japonesa pela perfeição. Na experiência que é assistir-ló, o telespectador com certeza se pegará ruminando sobre o quanto cada aspecto da produção foi detalhadamente pensado e concebido.
De acordo com um pensamento comum no meio cinematográfico na década de 1960, os japoneses foram bem mais longe que seus equivalentes contemporâneos na Europa e Estados Unidos, a Nouvelle vague japonesa, apesar de pouco prolífica se comparada ao cenário europeu à época, é comumente considerada superior em diversos aspectos. Bara no Soretsu é a ratificação exata da sentença acima, com sua estética avant-garde e sua essência assustadoramente atual, precede e influencia muitas das obras experimentais de caráter existencialista mais importantes da passagem dos 60/70, Kubrick inclusive, teria declarado que esse era um de seus filmes favoritos, além de uma forte influência para Laranja Mecânica (1971).
Mergulhando na vida de Eddie, uma jovem travesti que se tornou recentemente a atração principal do bar Genet (homenagem ao diretor Jean Genet), o filme acompanha o cotidiano dessa personagem, de uma trupe de boêmios que estão produzindo um filme sobre o universo gay de Tóquio, sua rival e seu amante – com esses dois últimos, forma um triângulo amoroso – e acaba servindo de pano de fundo para expor um pouco do panorama sócio-político da época, com enfoques que vão desde o papel dos transgêneros na rígida sociedade nipônica até o trauma nuclear japonês brilhantemente mostrado em uma das sequencias mais dicotomicamente belas já vista.
A trama, apesar de se estruturar no mito de Édipo Rei de Sófocles, apenas deságua nessa referência em seu surpreendente fim. Mesmo assim, a obra é inegavelmente um resgate da tradição dramática clássica estando repleta de amores proibidos, vícios capitais, seres oprimidos, e o suprassumo das tragédias gregas: o antagonismo entre as personagens principais. Tragédia grega com sabor japonês otimizada por recursos técnico/visuais que jorram da tela como na genial cena do embate entre as divas, ou dos os orgísticos encontros dos núcleos.
Com uma personalidade marcada pelo abandono, uma melancolia dramatizada de forma refinadíssima e com um estilo de vida que alude ao turbilhão cultural que foi o período retratado, Eddie é o total oposto de sua nêmesis: Leda. Um ponto interessante quanto a isso, é que as personagens parecem ter sido moldadas de forma simbólica, polarizando comportamentos conflitantes na sociedade japonesa em meados do século passado. Enquanto , Eddie é joverm, bela, intensa e com poucos escrúpulos, Leda é mais velha, experiente, tradicionalista, dramática de forma inveterada, com um apelo de gueisha, parece um clichê Kabuki que recita haikais e estuda Ikebana. Eddie é o novo, o moderno, sintetiza a estética vanguardista de Shibuya, Leda remete diretamente ao classicismo japonês da Era Edo. Seu objeto de desejo, Gonda, representa o arquétipo de cafetão meio mafioso, com o charme cavalheresco de um bon-vivant noir.
Outro ponto interessantíssimo, a relação filme-sobre-filme se desenvolve de tal maneira, que em determinado ponto, as barreiras entre ficção e realidade se rompem, e nós ficamos sem saber se o que está a acontecer é relativo a suas vidas ou ao papéis que devem desempenhar. Mesmo por optar por essa imersão dimensional, o fime continua bastante crível, especialmente por estar contextuaizado de forma muito específica, vertendo pelos infâmes recursos estilísticos caracteristicos dos japoneses nos diálogos, maneirismos, na abordagem dos dramas pessoais, na violência bizarra, consegue confluir todas essa influências de forma equilibrada. Continua ainda um mistério para mim, a forma como conseguiram desenvolver personagens tão interessantes e conjecturá-los em relações mais intensas ainda.
Provavelmente, “Bara no Soretsu”é uma moldura perfeita da Tóquio underground dos anos 60, um feito corajosíssimo se considerarmos o quão mais repressora é a sociedade japonesa. Respondendo à ditatura corporativista e a truculência do Estado da época com subversividade, o filme reproduz de forma fiel a juventude transviada na década das revoluções (na música, nas artes plásticas, nas ideias, nas drogas e no sexo). Sem sombra de dúvida, um marco, que merece ser visto por sua indiscutível qualidade, e pela sua assombrosa atualidade. Dimanando em uma trama digna e em um experimentalismo digesto, com certeza, um filme que merece muito mais atenção do que já recebeu.
Ótima premissa, relativa fidelidade ao formato original, notável crítica social e em última análise, excelente estudo das nuances psico-antropológicas inerentes ás sociedades. A história em si, obviamente sorve de elementos literários clássicos, que foram inteligentemente condensados e compactados para os moldes modernos, fazendo com que assim, pudesse dialogar com as novas gerações, falando de um obscuro passado não muito distante.
Interessante é que a história em si, parece ter sido convenientemente criada para Fukusatsu, que aos 15 anos, viveu a realidade dos bombardeios e perdas na II GM, muitos de seus amigos e familiares morreram e ele, a partir de então, passou a nutrir um forte sentimento de aversão e vingança contra os adultos ao descobrir que a propaganda de guerra mentia quanto a realidade do Japão no conflito. Décadas depois, descobriu a história de Takami Koushun, que parecia metaforizar de forma excepcional sua própria frustração juvenil, fazendo uma forte alusão ao embates entre movimentos anarquistas e o parlamentarismo com traços fascistas do Japão no pós-guerra, sobretudo na década de 60. Sendo também, um assombro retrato da sociedade japonesa moderna, com uma juventude cada vez mais violenta.
O mais interessante sobre Battle Royale, é que é uma obra essencialmente (ou estritamente) japonesa. Possui fortes características fundamentadas no senso estético e narrativo tradicional daquele país, e isso o torna um filme muito difícil de ser analisado com os instrumentos que estamos acostumados a usar para analisar e rotular obras ocidentais. É uma história obviamente ficcional, mas está inserida em um contexto muito realista para ser ignorado, além de geralmente fugir de opções mais convencionais, e de, certamente, abusar da violência em termos visuais, o que, para quem conhece cinema japonês, é extremamente comum, tanto que na maioria dos países, a classificação da faixa etária é de 18 anos, no Japão, é de 14.
Sendo assim, Battle Royale sintetiza muito da cultura japonesa, nos exageros e maneirismos de seus personagens, no modo de agir e pensar, nos “saltos” fora da realidade, mas mesmo assim, consegue ser em sua maior parte, extremamente crível. É claro que muitos de nós gostaríamos que os dramas pessoais fossem melhor desenvolvidos, mas isso provavelmente alongaria demais a história a ponto de tornar-la enfadonha, ou perder-se em um mar de críticas sociais e pecar por não chegar a lugar algum.
Junto a Suicide Club (2002), e Audition (2000), Battle Royale tornou-se decisivo para o cinema japonês, e esses 3 filmes juntos, sintetizam um ótimo momento de produções de ação inteligente e pouco óbvia. É, ainda hoje, um dos filmes japoneses mais influentes do novo século, estabelecendo os parâmetros de violência usados por Takashi Miike e Quentin Tarantino (inclusive algumas referências) e, por isso mesmo, uma ótima oportunidade de conhecer mais dos preceitos artísticos e estéticos recorrentes em filmes japoneses, o que para mim particularmente, é a mais proveitosa das propriedades que cinema oferece, é, através dessa faculdade que conseguimos aprender um pouco mais sobre o outro, sobre seu modo de agir e de pensar, livrando-nos de preconceitos, e amarras intelectuais. Ora, quão justo é julgar a atuação de um artista japonês, de uma matriz cultural completamente diferente da ocidental, pela perspectiva da tradição dramática greco-romana ? Ao invés disso, deveríamos poder ver como uma oportunidade de conhecer e apreciar as diferenças que esta abordagem estilística tem da nossa, pois no fim, é só uma maneira diferente, de chegar ao mesmo resultado.
Esse é o filme, sobretudo da desesperança, do desamparo e, tem o grande mérito de carregar algo que pouco vimos desde que as produções europeias passaram a competir cada vez mais por maniqueísmos experimentais técnicos, o que após assistir filmes como esse, percebemos que vem chegado à exaustão. Há dias, comentei sobre o também necessário : “Twilight Portrait”, filme russo que merece atenção pela capacidade de dialogar com tabus de forma inovadora, com uma sagacidade que chega a beirar o cinismo, um jogo tenebroso, obscuro, sujo e... sensual, e em parte, só consegue ser assim, por seu um filme russo, sobre histórias russas. Sabemos todos que Liljya 4-ever é um filme sueco, mas duvido que atingisse tamanho nível de dramaticidade se fosse sobre uma história ambientada na Escandinávia moderna, a Valhalla do mundo.
É obviamente, o mais forte e mais intenso filme do realizador, que também escreveu o roteiro. Perto deste, outros títulos do diretor como: Container e Fucking Amal viram dramas banais, no caso do último, superficial e dispensável .
O roteiro foi adaptado da história de Danguole Rasalaite, de 16 anos, morta dias após a tentativa de suicídio, a lituana de 16 teve sua história revelada através das cartas que carregava consigo, uma vida marcada pelo pobreza, violência e abuso por parte dos pais. Sua história gerou forte comoção na Suécia, e Lilja 4-ever foi incluído na lista de filmes do programa da UNICEF para as metas do milênio nos itens: erradicação da pobreza, erradicação da exploração laboral e sexual e, igualdade entre gêneros.
Com poucas alterações no script, chama a atenção na tela, a opção por maneirismos narrativos que tendem ao melodrama, o que acabou por se tornar polêmico no filme.
O uso de “clichês”normativos de produções infantis com moral ao final gerou uma certa hostilidade por parte dos puristas do Novo cinema-arte europeu experimental, de filmes em sua grande maioria, feitos para a crítica. E é justamente nesse ponto que reside a força de Lilja 4-ever, na indiferença generalizada, que acaba dando força a permissividade da crueldade banalizada pela máfia semi-institucionalizada da nova Europa do Leste, a história se firma como um estandarte contra todo o tipo de violência, de abuso e violação, um discurso que não deve sair de moda jamais.
O que fica muito claro desde o início, é que tudo nesse filme foi criado com a intenção torturar o telespectador, um processo de agonia que se inicia logo nos primeiros minutos, denunciando o fim da história. A escuridão, o frio, a sujeira, tudo, absolutamente tudo tem um tom depressivo, mas não uma depressão metafísica, ligada aos efeitos da solidão e dos mistérios da existência, uma depressão real, fisiológica, causada pelas necessidade básicas não atendidas, pela degradação moral e social dos seres humanos, pelo cenário de escatologia generalizado e pela entrega deliberada de violência de todas as formas. Esses fatores são intensificados pelo realismo brutal constante jogado à nossa frente em doses cavalares, pesado, pesadíssimo aliás. Apesar de ser um patrimônio comum, um registro de utilidade pública, de como já foi exaustivamente dito: um filme que todos deveriam assistir, não é tão facilmente recomendável.
Aos 10 min, o filme já atingiu o clímax de um horror angustiante, daí pra pior. Da famigerada cena do abandono - uma das mais perturbadoras já vistas – a decadência absoluta da personagem, é certa. A constante de negatividade é tão grande no filme que por pouco, ele não se transforma em um explotation bem produzido (vide Serbian Film), não fosse o seu foco narrativo e seu realismo simplesmente indigesto.
Li em muitos comentários (alguns extremamente apaixonados), que Lilja e Volodja eram crianças angelicais e pueris. Devo discordar, eram sim crianças, mas de modo algum tão inocentes, até porque, apesar de tenra idade, os 2 já haviam sido expostos aos piores tipos de experiências imagináveis, eram produtos de seu degradante meio social. Assim como muitos “vilões”do filme, que representam sínteses ignóbeis de um ambiente e de um contexto que tendem única e somente para a tragédia.
Um ciclo contínuo, uma sociedade destituída de qualquer suporte benéfico. A visão real não é falseada pelo filme, a vida nos antigos cantões sovietes e justamente essa: salve-se quem puder. Não que isso justifique as expressões deliberadas de violência mútua entre os núcleos da história, mas no reino animal, um dia é da caça... !
A podridão, a pobreza, a falta de perspectivas e o frio que cercam Lilja tornam qualquer uma de suas escolhas pouco criticáveis. A sensação é a mesma, em todos com quem conversei sobre o filme, em todos que escreveram críticas sobre. Não há outra saída, não há escapatória, a desesperança, toma o lugar. A ideia de sair dali, mesmo que pareça irreal e pouco confiável, é tentadora demais para alguém tão pobre, tão sozinha, tão faminta e que foi tão pouco à escola.
O cacofonia techno nauseante e desesperada dá lugar ao frio aristocrático escandinavo, Lilja chega ao novo país, tão organizado, tão civilizado, tão perto da Rússia e, ainda assim, tão distante da barbaridade eslava, a cacofonia se esvai, o desespero não. Tomando noção da real intenção do seu “chefe” e sendo confrontada com uma vida de mais violência diária, difícil imaginar outra resolução definitiva para o problema do que a achada pela protagonista.
Em uma determinada sequência, ambientada em um shopping, é interessante perceber a atitude evasiva, assustada e desesperada de Lilja, quase gritando por socorro usando apenas os olhos, tudo em vão, se a barbárie generalizada dominava a sua arcaica terra natal, no admirável mundo novo escandinavo, a indiferença é a regra da casa.
Com o final já esperado, Lilja 4-ever mostra ser um filme necessário, menos pelos aspectos artísticos que pode agregar, e mais, muito mais, pelo quanto pode comover e servir de forma benéfica ao combate ao mal denunciado. Talvez para atenuar a história como um todo, o diretor opta por exibir também, um final alternativo, feliz. Como fez com as escapadas surrealistas envolvendo anjos e promessas.
Verdade é, Danguole Resalaite teve de conceber seus próprios subterfúgios emocionais ao inferno que viveu durante toda a vida. Provavelmente um anjo não lhe levou aos céus lhe entregando o mundo de presente. Se ela fez o que fez, é porque simplesmente não havia mais anjo algum em sua vida.
Por fim, uma falha constante que se cai ao tentar analisar o filme, é argumentar que o suicídio é apresentado de forma quase-positiva. Ora, convenhamos que enredar pelo complexo conceito do suicídio enquanto categoria filosófica (como reverberado pelos especialistas: a única verdadeiramente séria), provavelmente não foi a intenção do realizador. Vale lembrar que esse história é não ficcional, realmente aconteceu, e era preciso retratar seu desfecho tal qual o ocorrido.
Outro dia, encontrei uma imagem emblemática do filme, acho interessante pela questões que ela traz consigo, Lilja, em preto e branco, ao meio dos símbolos da ex-URSS e da bandeira estadunidense, em uma clara referencia ao contexto histórico em que viveu. Nenhuma das duas salvou sua vida.
Filmes que retratam particularidades históricas através de tramas pessoais já possuem vantagem narrativa e apelo idiossincrático naturais, mesmo assim, é necessário cautela e habilidade para que não acabem caindo nas armadilhas dos clichês romantizados pela história e pelo imaginário popular. Além de conduzir com maestria e muita técnica, a diretora Claudia Llosa traz à obra um aspecto realista-fantástico magnânimo, sobretudo, se considerarmos o panorama das produções latino-americanas recentes. Inovador, sensível e intenso, “La teta asustada” é singular em termos estéticos, tudo no filme parece ter sido meticulosamente planejado para criar uma atmosfera agonizante, com um foco superior onipresente, luz branda e ângulos intimistas.
A trama não poderia ser mais criativa e instigante, nascida de uma vítima da guerra terrorista do Peru, Fausta herda toda a miséria e angústia através do leite de sua mãe, o que lhe relega uma personalidade extremamente fechada, pouco social e, mesmo assim, determinada e subversiva, uma metáfora brilhante para a própria história da América Latina, marcada pelo conflito eterno entre capitalismo e socialismo, Fausta personifica essa metáfora brilhantemente, exótica, púdica, amedrontada, solitária. O seu medo é simbólico, e como um trauma atípico de uma geração que não viveu os horrores das ditaduras e das milícias que marcaram com muito sangue o continente nas últimas décadas. Tanto que sua aversão quase fanática ao sexo oposto, simplesmente não faz sentido algum para a sociedade moderna, o que faz o filme parecer as vezes, um esforço contínuo (e louvável) para que as gerações mais jovens não repitam os mesmos erros do passado. Isso é percebido logo no início do filme, com o relato cantado de sua mãe. Dessa forma, a trama flui de forma contudente, como um retrato dos conflitos ideológicos entre o antigo e o moderno, entre supertsição e ciência, o que vai moldando a própria caminhada de Fausta, que começa como uma figura extremamente fechada e auto-protetiva: “Esse é meu escudo”, confessa ela, se referindo à fécula que a lacra, que a protege da violência. Ao fim, cansada do medo, da fuga, do olhar baixo constante, ela opta por sua remoção. Outro ponto marcante, é como as cores são utilizadas ao longo do filme, como um contraponto a opressão imprimida pelos céus, pelas montanhas e pelo deserto. As cores, parecem ser usadas para combater, mesmo que psicologicamente, as dificuldades da vida nesse mundo infértil. A verdadeira aquarela pintanda pelo credo popular, vibrante, intensa, é como uma busca constante por uma saída daquele cenário tão hostil, da miséria sintetizada pela paisagem. Tal qual a agente funerária se refere ao Oceano Pacífico no início do filme: “a visão dele, lava a alma”. Na sequência do casamento por exemplo, o contraste entre a pintura da cachoeira em meio a floresta tropical (usada como fundo para as fotos) e a verdadeira paisagem desértica da região simboliza esse sentimento. A chegada á casa grande também é emblemática nesse ponto, apesar do entorno desértico e hostil, o lugar se ergue como um oásis, com jardins exuberantes e cheios de vida, onde simplesmente não deveria haver. O conflito entre classes torna-se simbólico, metaforizado pela hierarquia do trabalho: a senhoria do lugar é branca, a governanta é negra, Fausta, a empregada, descende dos habitantes mais antigos da região, mesmo assim, ocupa a base da pirâmide, uma metáfora brilhante aos resquícios do colonialismo em que esteve pautada a exploração da América Latina. Outra metáfora interessante, é a do relacionamento desenvolvido por Fausta e Noé. Apesar da aversão a homens, ela permite que ele se aproxime, que compartilhe de suas memórias e de seu medo. Talvez não tenha sido intencional, mas tive a impressão que apenas um homem delicado e cuidadoso como Noé, que trabalha com flores (na cultura inca a flor representa a mulher) poderia criar laços tão fortes, considerando o histórico de relações da moça.
Acredito eu, que esse filme é um grande feito, sobretudo pela visibilidade que teve, além de ser um esboço da história recente regional, é um feito pela forma dinâmica e crível que registra o condicionamento humano frente a barbárie. É um feito pelo resgate tão profundo e honesto da tradição oral, pela abordagem popular á memória através do canto, em quíchua, assim como se fazia há mais de mil anos. É como se, ao assumir sua identidade indígena, o país estivesse finalmente aceitando abordar e tratar dos seus traumas. Por fim, é preciso dizer que esse filme é sobretudo, da atriz Magaly Solier, em uma atuação brilhante, a moça traz à personagem, o pavor, a fragilidade e a coragem necessárias para uma história fantástica, relacionada a uma realidade infelizmente, factual.
O cinema russo contemporâneo vem sido marcado paulatinamente por um precisão visual e argumentativa extremamente sombria, por vezes doentia, o que parece caracterizar um novo movimento artístico no país. É claro que essa é uma ideia extremamente imatura e generalizante, obtida através de uma percepção muito categórica e simplista das coisas, mas caso estivesse nascendo um novo tipo de escola cinematográfica na Rússia, a considerar pelo que já foi produzido, com certeza se pode esperar obras extremamente polêmicas, histórias social e moralmente subversivas e personagens controversas.
Vide o épico bestial : A minha alegria (2011), "Twilight Portrait" representa singularmente essa nova safra russa. com todas as características marcantes anteriormente citadas, e com o diferencial de ter sido idealizado e dirigido por uma mulher. *(A protagonista: Olga Dykhovichnaya também colaborou no roteiro).
Um dos fatos que muito me vem intrigando quanto a esse novo cinema russo, é o lugar comum argumentativo de onde o protagonista nos é apresentado em uma situação de decadência generalizada e após toda a trama e as reviravoltas necessárias, termina na mesma situação, parece uma constante a degeneração psicológica, social e moral humana, o que com certeza, gera um sentimento de angústia opressivo e dilacerante no telespectador.
O que é importante citar, é que coincidentemente ou não, desde a dissolução do império soviético e a implantação das Troikas, a vida na Rússia pouco melhorou, as disparidades sociais aumentaram exponencialmente e o liberalismo gerou uma horda de marginalizados e índices de violência sem precedentes. Aparte de um debate político, o sentimento de desesperança e desolação tal como o sofrimento das privações vem acompanhado o povo soviético há mais de um século, sendo o Estado Russo conhecido nominalmente como um estado mafioso, o futuro da nação parece sombrio. Esse panorama desolador serve de inspiração para muitas histórias intrigantes, mas dramaticamente reais, o que ratifica a máxima do: "quanto mais triste, mas bonito soa", e, nos incute a ideia de que o russo é em si, psicologicamente perturbado por uma opressão constante da geografia, da terra, do Estado, e, que passou de um faminto escravizado pelo comunismo, para um agente afetado, combalido e enlouquecido pela nova sociedade capitalista.
Talvez daí, a interessante ideia de situar a protagonista Marina, em uma classe social privilegiada, à parte da miséria do resto da cidade, surge vestida de forma extravagante e contrasta nitidamente com o todo ao seu redor. É curioso perceber que um estupro ocorre logo no início do filme, no decorrer da trama, através da dramatização - um tanto caricatural - do funcionamento dos órgãos públicos e da corrupção cavalar, surge a constatação da inexistência de uma rede de seguridade social que proteja os cidadãos, em decorrência disso pouco, ou nada seria feito para punir os criminosos.
Mais curioso ainda, é perceber que, essa situação, que parece previamente relegada as esferas burocráticas, é na verdade, o retrato da sociedade como um todo, revelado em situações rotineiras de perigo a qual é exposta a protagonista. Marina tropeça, quebra o sapato, se machuca, é assaltada e surpreendentemente, ninguém vem em seu auxílio, apesar de a própria pedir por ajuda diversas vezes. Parece ser o retrato de um sociedade doente, vil, egoísta, talvez seja um ponto um tanto exagerado pela produção, mas que não deixa o filme menos crível.
Outra tirada muito inteligente, foi conceber a contradição de Marina como uma moca rica, ter escolhido ser assistente social, em favos dos oprimidos . Então a trama descortina-se como um interessante estudo do combate mais clássico de todos: ricos vs. pobres.
Após o incidente que muda sua vida, Marina segue com sua rotina de forma conformista, o que é muito comum em vítimas desse tipo de violência, mas sua vida mudou, tendo sido exposta a violência que lida todos os dias, ela logo confronta a própria bolha em que foi criada, na figura de seus amigos e marido, destila verdades inconvenientes em um ato simbólico de libertação da vida moralista burguesa de polidez e adestramento comportamental.
É a partir desse momento que o filme ganha um interessantíssimo escopo psico-antropológico, por ironia do destino, a jovem reencontra os seus algozes. Em um ato impulsivo - julgamentos à parte - resolve seguir um deles, até então, tem se a nítida impressão que o objetivo primordial é a vingança, mas quando tem acesso a seu alvo, ela acaba por se entregar, a luxúria, mudança de rumo sintetizada quando ela deixa cair o gargalo da garrafa no chão enquanto pratica sexo. Obviamente remontando ao clássico de Imamura: Akai Satsui (1964), e pronto, o filme ganha a coroa do tabu. Síndrome de Estolcomo ? Complexo de culpa ?
Considerando os fatos: Marina estava completamente insatisfeita com a vida conjugal, a despeito de sua frígida vida em casa, ela já vinha cometendo adultério, assim como em Desejo Profano, era uma mulher com uma vida extremamente monótona, vivia a aflição extenuante e nociva da rotina, da desventura, das obrigações sociais.
E daí, surge um debate interessantíssimo, alguns argumentam que o filme é extremamente sexista, outros, que é preciso analisar as condicionantes e tentar entender a verdade em tudo aquilo, alguns, que é extremamente relativista. Pode ser, mas é válido lembrar que o argumento foi criado por duas mulheres, não que isso o inviabilize de certos questionamentos morais, mas duas mulheres que cresceram em uma sociedade notavelmente machista como a russa, é difícil acreditar em um "apelo" sexista.
É claro que há espaços não preenchidos pela trama, como o fato de haver a questão de que os criminosos continuam atuando, mesmo com ela se entregando espontaneamente a animosidade de uma relação com seu verdugo. O inesperado ápice surge nos momentos de entrega sexual deliberada, em que em inflamado êxtase, Marina confessa amar o homem que a violou. Pode-se constatar a autenticidade de seus sentimentos que parecem reforçados após descobrir a trágica infância de seu objeto de desejo.
É claro, há também a questão de Marina trabalhar com traumas alheios, que com certeza, influí no argumento de que ela, na verdade, está estudando o perfil de seu agressor, e confesso, não havia pensado nessa hipótese, mas o que me parece bem claro, é que a história gira em torno de um bizarro caso de dependência afetiva, de busca por subterfúgios frente a massacrante vida em sociedade.
A medida em que vai se desenrolando como um conto de fadas às avessas, as personagens parecem mudar sua essência, uma dinâmica interessante de expectativas superadas ou frustradas vai se desenrolando. Será condenável torcer para que Marina viva da forma que escolheu, será possível que seja correspondida.
Com certeza, uma interessante imersão na psiquê humana, revelando a animalidade do homem, que apesar de se encontrar em uma condição domesticada, reage a agressão de uma forma totalmente contrária aquela esperada pela sociedade. Um martírio que gerou uma patologia ? Ou despertou o instinto primitivo de um sapiens ?
Quanto aos aspectos técnicos, e relevante dizer que o filme foi produzido sem orçamento algum, com câmeras emprestadas, e alguns atores amadores. A julgar pela fotografia claustrofóbica, e que gradualmente vai ganhando um aspecto soturno, a agressividade visual das cores funciona muitíssimo bem.
Esse é o primeiro filme do realizador ao qual eu assisto e, sinceramente, a julgar pelo que foi posto, melhor, sobreposto aqui, Dolan ainda tem um longo caminho de amadurecimento para percorrer. Apesar da boa intenção explícita de retratar os desencontros amorosos e o desatino gradual que esse sentimento nos relega, o filme possui uma narrativa e enredo fracos, por vezes, desconexo,
boa foi a iniciativa de inserir relatos de pessoas que sofreram e sofrem por amor, seus devaneios e os absurdos a que se propõem para seguir a pessoa amada, deu um ar bem documental ao filme, mas acaba que muitos dos depoimentos acabam revelando idéias (e pessoas) bem imaturas, incoerentes, patologicamente carentes e acaba por diluir a boa intenção inicial em algo próximo a uma grosseira representação de amores impossíveis na vida real.
A parte técnica foi bem trabalhada, a equipe de arte criou um ambiente plasticamente bem regular, por vezes, destoante do conceito geral, mas, com o mérito de criar com qualidade a atmosfera retro do mundo de Francis e a estética Noir do de Marie, e juntá-los, em uma mistura prolixa, mas digesta. Aspectos como a trilha sonora e os efeitos especiais foram um grande pecado do filme, ao optar por trabalhar na perspectiva de um clássico noir, Dolan prova toda sua imaturidade e inexperiência no cinema,
a reprodução de slow motions caracterizados pela música repetitiva, pela fumaça dos cigarros, por uma pop art confusa e de cores nauseante e pela sobreposição de camadas, revelam uma forte referência a Wong Kar Wai, caso isso não tenha sido uma homenagem (um tanto mal sucedida), foi um feito sofrível do realizador.
Em termos objetivos, o filme pouco acrescenta à longa filmografia sobre o tema, mas o pior, é que ao optar por recriar o glamour do Noir, em um mundo de pós-adolescentes ainda extremamente imaturos, com pouco envolvimento, uma tensão maquinada, torpe, apenas a idealização que Francis e Marie criam de Nicolas é elogiável.
Apesar de conceber um Francis perfeitamente crível: solitário, idealista, fraco,
Dolan não funciona com sua coadjuvante. Marie, que é uma entidade irritantemente construída para ser o clichê mais pretensioso possível. Inicialmente apática, a personagem vai ganhando contornos forçadamente estereotipados, em um esforço constrangedor para transformá-la em uma femme fatale de Clouzot, a personagem perde substancialmente a qualidade, ao caminhar para o fim, torna-se uma psicótica irritadiça deplorável, desprezível, também o é o esforço em conceber – lá : as cores, o vestuário, os maneirismos, os chás, bibelôs, preferências,
(a carta datilografada chega a ser ridícula depois de tantos cúmulos desnecessários)
. Por fim, Marie é profundamente irritante. O desfecho, realista e sóbrio, tenta resgatar alguma dignidade ao filme que simplesmente se perdeu após os primeiros 40 minutos, e até tem êxito, mas apenas se você conseguir assistir-lo até aí.
É necessário esclarecer antes de qualquer coisa que para discorrer sobre essa história, você precisa discernir bastante os elementos reais do livro, e os artifícios usados no filme. A versão cinematográfica possui, sem dúvidas, a mesma base contextual do livro, mas opta por dar uma dimensão bastante diferenciada, o que chega a ser bastante injusto à memória de Van Dantzig, uma vez que o próprio se identificava como tendo sido vítima de um predador sexual. O filme estrutura-se basicamente como um flashback,
os eventos que antecedem a Libertação pelos Aliados são um tanto monótonos, especialmente ao tentar externar as dificuldades de adaptação do garoto a vida na Frísia, com costumes e dialeto distintos. Com a chegada dos Aliados, o filme realmente ganha escopo, por causa da relação crescente do garoto com o soldado, uma tensão surge, e todos os personagens são diametralmente afetados, sobretudo o pai adotivo de Jeroen. Algo realmente incômodo é que, apesar de muitos perceberem e terem plena consciência do que está acontecendo entre os 2, ninguém faz nada, mas esse não é um fator presente apenas no filme, no livro, Dantzig relata uma situação semelhante. Desde o desembarque na Normandia, muitos soldados aliados desenvolveram relações de caráter unicamente sexual com moças, e alguns, com rapazes por onde passassem, esses relacionamentos eram vistos como efêmeros e, as vezes, muitas famílias fantasiavam que suas filhas pudessem arranjar um marido estadunidense, o que lhe garantiria uma vida melhor longe da Europa destroçada, por isso, além da Igreja, pouquíssimas pessoas se contrapunham a eles. Após o ato carnal e a partida de Walt, muitos espectadores podem se sentir solidários a Jeroen, e esse, é basicamente o grande trunfo do filme: glamourizar a relação pederástica existente. O modo como o Walt do filme é composto (jovem, pulcro, solitário, melancólico) parece objetivar que a audiência o veja menos como soldado, e mais como uma vítima da guerra, o que o próprio expressa em um diálogo com Jeroen (O Walt de Dantzig era um homem muito mais velho, com aspecto assustador e comportamento extremamente impróprio). Mas o filme também é fiel a alguns aspectos recorrentes no livro, o que indicam claramente a natureza predatória de Walt, ele está sempre munido de doces, participa de atividades em que tenha acesso livre a crianças e busca agir de forma a garantir a confiança dos responsáveis.
O que fica bem claro no filme são as profundas feridas psicológicas deixadas por aquele relacionamento, sobretudo, por seu abrupto fim, mas mesmo depois de vários anos, Jeroen não se percebe como sendo uma vítima de um predador, na verdade, toda a as vida foi direcionada para que ele um dia pudesse rever Walt, como se nutrisse amor pelo soldado, na história real, após algum tempo, Jeroen toma dimensão de tudo o que viveu, e compreende que foi molestado por um homem que não sustentou por ele qualquer tipo de sentimento. Existem algumas passagens bem obscuras que demonstram isso, em determinado ponto, Jeroen relata que na noite após a cópula, enquanto dormia no quarto do soldado, esse o acordou e levou até a saída, lhe desejou boa noite e entrou de volta.
É interessante ver como a versão cinematográfica acaba pecando por omitir fatos como esse, talvez propositalmente, uma vez que fica bem claro que a intenção de Kerbosch nunca foi tratar da história em sua forma real, e sim, criar uma fantasia de um intenso romance de verão, não sei com Dantzig reagiu a ver sua história sendo tão amplamente distorcida, mas com certeza, a frase final de seu livro, nunca soou tão adequada : “I rub my body dry as I use to dry me tears.”
Obs. : Alguém além de mim percebeu o quanto o ator que interpreta Walt (Andrew Kelley) se parece com Carlos Alberto Riccelli ?
O que eu também absorvi do filme e que alguém já comentou aqui é justamente o fato de possuir uma atmosfera profundamente existencialista. Sem querer soar pretensioso, mas acredito que é basicamente por isso que a maioria das pessoas fez comentários negativos ou não o entendeu. O filme, mais que filosófico, é essencialmente metafísico, como o próprio conceito de vida, por isso, não é qualquer pessoa que terá propensão a sorver de sua beleza abissal ou de sua profundidade conceitual.
Antes de tudo, vale lembrar que Terrence Malick é filósofo, e que suas obras cinematográficas servem como plataforma para a manifestação não só de seus preceitos artísticos, mas também, de seu estudo profundo da vida humana e de suas tangentes em relação ao ambiente no qual estamos inseridos. Ele o fez em produções anteriores como: “Terra de ninguém”, no qual as personagens estão submersas em um mundo de negação agressiva ao macrossistema social no qual estão inseridas. Em “O Novo Mundo” e “Árvore da Vida”, ele demonstra um crescimento gradual de sua preocupação com a existência humana e com toda a sorte de males e a bonança que esta implica, curiosamente, o culto a natureza também se mostra muito presente nessas obras. Como todo bom filósofo, Malick é profundamente intrigado pela idéia de uma dualidade simbólica e universal que a consciência nos relega, em “O Novo Mundo”, está dualidade é representada pela natureza pueril, graciosa e por vezes, tola, que se manifesta através da cultura ameríndia nativa, e, principalmente, nos momentos solitários de Pocahontas em meio a relva, uma graça e harmonia que chegam a ser caricatas. O mundo moderno, a riqueza, a ostentação e a negação de tudo o que é natural, selvagem, livre, é representado pelo mundo de John Smith, sua civilização avançada, presa à burocracia, às vicissitudes e, nomeadamente, à ganância. Esse antagonismo também se reflete em “A Árvore da Vida”, mas, dessa vez, definido de outra forma.
Logo no início do filme, somos apresentados as duas forças cósmicas que permearam toda a trama: a graça (pura, gentil, benevolente e que nunca pede nada em troca), e a natureza, (dessa vez, retratada com severa, intransigente, violenta, quase vil), propositalmente representadas em ângulos estritamente opostos, pelas duas forças nominais da trama, a mãe (a graça), e o pai (a natureza). Essa dualidade irá se manifestar durante toda a história, nos momentos de imersão do personagem de Sean Penn em seus traumas e alegrias infantis, que acabaram relegando a ele próprio uma personalidade confusa, perdida, prolixa. Em termos mais dinâmicos, é o clássico, a razão VS. o misticismo. Eu particularmente acho interessante pensar no Sr. O’Brien como uma metáfora à racionalidade, à destreza humana, à ambição e à austeridade, ele representa a natureza maculada, mecanizada, doutrinada, mas nem por isso, deixa não-selvagem, a Sra. O’Brien por outro lado, é a personificação da graça divina, uma caricatura do gênero feminino, com todos os clichês possíveis, dotada de todas as qualidades que a sociedade exige da mulher: amorosa, dedicada, bondosa, benevolente, circunspecta e subserviente, quase que não humana de tão apática, um verdadeiro ser mítico. Há aí, um aspecto importante do filme, ele é abertamente inspirado na própria infância do diretor no Texas, a forma como ele constrói as personagens, de forma tão opressoramente moldadas, remete as suas próprias lembranças, no ambiente bucólico, tradicional, idílico.
É importante dizer também, que o filme está paulatinamente marcado por imagens epifânicas construídas da mais bela forma possível, acompanhada pela primorosa música de Smetana, Malick nos apresenta a tirania da consciência, do livre pensamento, mas, também, da religião. Com algumas das mais belas imagens de eventos que datam do início ao fim do Universo, e da miséria humana, da pequenez de nossa espécie, aprisionada em um canto obscuro em meio a um sistema muitíssimo maior, relegada a uma sobrevivência medíocre, diria até inútil, em um planeta que sucumbirá tão rápido quanto surgiu, (notaram o laço de amizade com outra obra existencial notável?). O início e o fim dos tempos, e toda a sorte de infortúnios compreendidos nesse intervalo, ajudam a construir um panorama lacônico, subjetivamente riquíssimo da natureza e da graça, em perfeita harmonia, mais no universo apenas, onde quem sabe, Deus pode existir. Na escala humana, estamos sujeitos apenas a brevidade da vida, a efemeridade das coisas, a desgraças, a morte e a algumas pequenas alegrias. Ao ponto em que a Natureza, rígida e justa cria o Universo, subjugando tudo a suas leis, a graça, sempre afável, ensina, ama, e perdoa todas as transgressões, como o bandido preso, nascido e criado na severidade da natureza, onde quem vence são os mais fortes, recebe das mãos da graça, no momento de seu suplício, um pouco de água, um olhar de compaixão.
Por fim, há o emaranhado de visões oníricas do paraíso, um doce brinde a ingenuidade humana em querer viver eternamente, livre de todas as dores, tormentos, perto de Deus, da mãe amorosa, dos amores pedidos, da redenção. A mãe liga tudo, é a Árvore que dá a seus frutos a vida, é através da mãe que estamos diretamente ligados a Deus, ou ao infinito, só os seus galhos os atingem, só a mãe, em sua dor, em seu cansaço, nos dá o transe na gloria da Vida, nos dá redenção na Morte, o pai, engendra o sofrimento que compreende este intervalo, assim como nós, em nossa suprema ignorância e insignificância, preenchemos com dor, o pequeníssimo mundo que temos, até o momento derradeiro, o fim do Universo, pode-se abstrair então a metáfora mais importante do filme talvez, a mãe e o pai, Deus e a Razão, são nossos próprios pais, são a quem recorremos nos momentos de dor, de infortúnio, para aliviar o medo que temos do desconhecido, do inevitável fim, da morte.
Enfim, eu particularmente, sempre acho um pouco a mais de sentido sempre que assisto a essa obra, para mim ela é verdadeiramente inspiradora, e, parte disso, se dá principalmente pela inconexão de suas partes, que se petrificadas em um plano cronológico retilíneo, talvez não funcionassem tão bem. A Árvore da Vida, infelizmente, não é um filme em celebração ao espírito humano, é justamente a celebração do que é maior, do que é épico, do que nos rege, mas ao menos, nos relega um lugar privilegiado, um lugar de onde, das maneiras mais inesperadas e rotineiras, o épico, o místico, o universo inteiro e Deus, se manifestam, e isso, inegavelmente, está traduzido em suas imagens.
Quanto ao filme: Zhang Yimou é reconhecido por retratar as mulheres no cerne da cultura chinesa de forma ímpar, foi justamente o que lhe rendeu tanto esmero internacional, uma vez que suas personagens femininas são fortes e quase sempre independentes, o cineasta faz isso de forma única, quase sempre sem pecar pelo exagero de transformar a mulher em uma caricatura heróica com coragem e valentia sobre humanas, ele o fez em: “Sorgo Vermelho”, “Tempo de Viver” e na obra-prima “Nenhum a menos”, com certeza não o fez em: “O clã das adagas voadoras” e “Lanterna Vermelha”. A fotografia do filme também é tão característica do diretor quanto o é a constituição dos personagens, os contrastes de cores claras em meio a um panorama de caos, escuro e sombrio, como o fez em: “O clã ...” e sobretudo, em “Tempo de viver” e “Operação Xangai”, estabelecendo um tipo de paradigma para os realizadores conterrâneos e contemporâneos. E aí, chegasse a um ponto crucial nesse filme que resume bem a intenção do diretor. Nas artes chinesas a mulher é geralmente retratada como uma flor, sensível, delicada, vulnerável, cheia de cor e com período certo para desabrochar, mesmo com todas as infelicidades da vida. A importância da metáfora não se dá por uma razão de referência cultural somente, mas também, pelo fato de as personagens carregarem uma espécie de luz própria, inicialmente apenas de beleza e luxúria, mas que com o decorrer da história, percebemos que foi construída sobre seus próprios traumas e misérias, como uma flor, que desabrocha nos cantos dos muros de pedra, sob o céu cinza das cidades também cinzas da China Imperial, a
s mulheres do lendário rio Qui Huai, representam esse desabrochar, esse fluir de vida, de cores, de representações simbólicas, não só como meretrizes, mas como artistas versadas, articuladas, sedutoras, aliás, não só as mulheres desse grupo, como todas durante o filme, seja em seus deslumbrantes vestidos Cheongsam, seja sendo vislumbradas pela perspectiva dos coloridos vitrais coloniais. A tradição chinesa impõe submissão e discrição a elas, mas não Zhang Yimou, isso, ele nunca fez. Inicialmente representadas como a antítese das meretrizes refugiadas, existem as meninas puras e inocentes do convento, protegidas até então por sua cristandade, e finalmente expostas aos horrores da guerra e da violência epidêmica contra os mais fracos. Essas crianças são subjetivamente moldadas para não possuírem identidades destoantes, elas possuem convergências primárias, mas são objetivamente como telas em branco, sendo finalmente tocadas, infelizmente, pelas atrocidades da guerra. Há um breu cronológico importante aí, nos deparamos com uma importante colocação quanto à divergência dos grupos, no primeiro, se temos mulheres voluptuosas ironicamente pintadas em uma aquarela pulsante e vívida justamente por seus traumas e tristezas, no segundo, temos crianças sem experiência alguma de vida, que são obrigadas a crescer justamente naquele cenário cruel. O que era pra ser motivo primário de conflitos acaba tornando-se o ponto principal de toda a trama. John Miller (Christian Bale) é obviamente, o maior pecado do filme, o personagem é um clichê absurdo de filmes Western, um homem solitário e também traumatizado, que acha sua própria rendição em um momento de extraordinária crueldade e acaba encontrando redenção, mas mesmo o seu personagem, com todo o desconforto dessa influência subversiva do gênero se faz necessário. Finalmente chega-se a um personagem a qual, infelizmente, não vi muitas citações: o garoto George, a antítese do personagem de Christian Bale, jovem, responsável, extraordinariamente disciplinado, calculista e, especialmente, íntegro, sendo apenas uma criança, mas que foi salvo da miséria, e como manda a velha tradição oriental, deve ao seu salvador, a própria vida. A coragem e intrepidez de George funcionam como um contrapeso a desvirtuada moral de John (Christian Bale), o clássico confronto ideológico entre Oriente e Ocidente, entre tradição milenar e vanguardismo torpe. Há também, o heroísmo do Major Li, protegendo até o último momento mulheres e crianças, seu idealismo e brilhantismo militar se revelam em mais um momento de cores e beleza em meio à brutalidade explosiva da guerra.
Por fim, um merecido filme chinês para os chineses, é obviamente um contexto sócio-político que não poderíamos compreender. Realizado não como uma homenagem pálida, não como uma resposta paliativa aos fantasmas negligenciados da Ásia, mas como um manifesto feminino, uma homenagem á coragem e benevolência do mais oprimido dos gêneros na mais intrigante das culturas.
Eu particularmente sempre almejei assistir a um filme que retratasse os fatídicos acontecimentos do que ficou conhecido como "O Estupro de Nanking", sobretudo porque ficou conhecido como um momento crucial da provação do povo chinês, o que Hobsbawm chamou de: "O Holocausto Esquecido". É válido lembrar que, até hoje, o Japão não fez um pedido de desculpas formal pelas atrocidades cometidas contra civis. Sendo a China, até 1970 um país extremamente dependente dos investimentos japoneses, um filme que os retratasse como sádicos cruéis seria no mínimo, um estorvo à suas relações comerciais, então, eu encaro o feito de Zhang Yimou, como uma homenagem a todo o povo chinês, meio que um clamor contra a negligência japonesa aos fatos ocorridos (as atrocidades cometidas por soldados japoneses são omitidas dos livros escolares do país) e ao silêncio e subserviência de seu próprio governo. De certa forma, o avanço econômico chinês, e sua consequente emancipação do capital japonês e estadunidense possibilitou que essa ferida não cicatrizada pudesse ser retratada como já o foi no recente “Cidade da Vida e da Morte”, quanto por um cineasta e elenco estelares desse projeto, e desse maior visibilidade para a causa das chamadas: "Damas de conforto."
Me Chame Pelo Seu Nome
4.1 2,6K Assista AgoraSendo baseado no roteiro adaptado pelo veterano James Ivory da obra homônima aclamada de Aciman, é inevitável categorizar ‘Call Me By Your Name’ como um coming-of-age apesar de o filme apenas retratar um verão na vida de seus personagens (o livro vai cobrir pelo menos mais uma década de interação entre os protagonistas), ele encerra a trilogia do Desejo do realizador Luca Guadagnino que começa com I Am Love (2009) e continua em A Bigger Splash (2015). O filme se mostra o produto direto da maturação e aperfeiçoamento da identidade estilística de ambos: seu roteirista e seu realizador.
Seguindo uma premissa quase inerente ao gênero de tão clichê: um romance de verão que se inicia numa locação quimérica e afastada e que irá afetar enormemente o desenvolvimento futuro de toda a trama, o filme mostra a destreza e experiência do diretor a não optar por escolhas já tão óbvias, focando na construção egrégia de personagens ricos, realisticamente sensíveis e multifacetados. A trama é essencialmente uma fábula burguesa, centrada em um universo versado em haute-culture, que discute etimologia clássica árabe e bizantina em italiano, francês e inglês em um cenário campestre idílico, em meio a jantares preenchidos por pequenos concertos e debates politizados, o que faz com que convenientemente Elio seja transformado em um personagem bastante maduro e intelectualmente precoce para a sua idade.
Com a chegada do doutorando que irá assistir o seu pai durante o trabalho de verão, a dinâmica de recepção a qual a família já está acostumada há anos ganha novos contornos. Oliver é um americano com trejeitos culturais característicos que contrastam visivelmente dos aristocráticos hábitos dos Perlman. Ele é espontâneo e autocentrado o que faz com que Elio o veja como arrogante, essa observação inicial somada à popularidade instantânea que o estrangeiro adquiriu em seu ciclo social faz com que ele passe a trata-lo com certa aversão. Eventualmente ele passa a analisar melhor seus sentimentos quando se sente culpado por ter sido rude com Oliver e então seu tortuoso papel como anfitrião se transforma em um tortuoso martírio para tentar entender e exprimir seus sentimentos. Isso tudo enquanto paralelamente desenvolve um relacionamento com a amiga Marzia.
Como já dito anteriormente, a trama se desenrola em um formato narrativo bastante ordinário, é como se a audiência inconscientemente já estivesse preparada para todo o desenrolar da história com apenas a epifania do monólogo do doutor Perlman fugindo do lugar comum. A forma cuidadosa, terna e ao mesmo tempo realista com a qual o pai de Elio fala da importância de se permitir viver a experiência completa de prazeres, angústias e indulgências da juventude traduz o seu vislumbre do amor de uma forma que abraça universalmente todos os que passam ou já passaram daquele momento. Sua postura permissiva em relação à situação corrobora o fato de que muito do que havia acontecido só foi possível graças ao universo intelectual e liberal no qual esses personagens estão inseridos, assim como também a possibilidade de que ele próprio, em sua juventude, ter experimentado sentimentos parecidos, mas nunca ter tido a coragem de expressar e viver seus desejos (“ I may have come close, but I never had what you had. Something always held me back or stood in the way”), o que indicaria que ele o compreende por uma perspectiva ainda mais pessoal e, por isso, não quer que Elio se reprima e se frustre no futuro.
Com a exclusão desse ápice narrativo, o filme pouco traz de inovador para o corolário cinematográfico e acaba por se sustentar grandemente em um espectro narrativo já datado e sua inerente proeza estética e técnica, mostra-se uma obra simples que exala beleza, mas falta enormemente com originalidade. Obviamente a obra não tem obrigação alguma de traduzir ou interpretar o zeitgeist, mas um ano depois de ‘Moonlight’, a premissa dessa obra soa quase que como uma involução, não apresentando nem ao menos o apelo do conflito de castas de ‘Maurice’ (do mesmo roteirista).
‘Call Me By Your Name’ parece apenas o retrato de uma fuga burguesa extremamente hermética e até certo ponto, sensível. Se apenas a obra tivesse surgido com alguns anos de antecedência, engendrasse mérito e um legado memorável, ela é infelizmente demasiadamente simples para a contemporaneidade.
Dunkirk
3.8 2,0K Assista AgoraNão seria auxese dizer que ‘Dunkirk’ foi a mais aguardada produção de 2017, e isso se deve a um alguns fatores: a começar pelo roteirista-realizador, o veterano estelar e cultuado Christopher Nolan (que assina o trabalho sozinho dessa vez deixando um tom mais autoral e particular), o fato de ser um filme sobre um dos momentos mais emblemáticos e relevantes da II GM, assim como também é simbólico o fato de o Reino Unido estar passando pelo Brexit (fenômeno que se pode relacionar, ironicamente, ao ressurgimento pujante de uma nova onda conservadora e nacionalista interna).
E ‘Dunkirk’ definitivamente faz o trabalho na parte técnica. Uma produção que visualmente arrebata pela sobriedade onde todos os detalhes e recursos técnicos foram aplicados de forma excelente para maximizar a experiência imersiva em um relato de guerra bastante contido e sem exegeses com firulas narrativas de cunho patriótico (um detalhe interessante por exemplo é que o inimigo nazista nunca é explicitamente mostrado) reforçando ainda mais o cunho impessoal da obra, que por vezes parece objetivar uma neutralização de uma possível representação estereotipada dos lados da guerra.
Nolan parece aproveitar a oportunidade para explorar o extremo oposto de seu estilo de escrita extremamente prolixo, que por vezes lembra os vícios cinematográficos herdados do teatro por Bergman, por exemplo. Em ‘Dunkirk’, os diálogos são extremamente reduzidos e sucintos e grande parte deles são entregues como informação (dos rumos da guerra, negociações nos bastidores e real situação dos soldados estacionados na praia) pelo personagem de Kenneth Branagh no molhe (quase um purgatório figurativo) usado para o embarque das tropas.
A narrativa foi fatiada em 3 janelas de tempo: 1 semana, 1 dia e 1 hora, talvez para tentar traduzir a falta da noção de temporalidade experimentada por soldados em guerra, e vão sendo costuradas de forma paralela até o ápice, quase uma hora depois. Esse formato se mostra um pouco confuso e somente a linearidade temporal é um indicador da convergência das histórias nesse primeiro momento, ao mesmo tempo, explorar o conteúdo dessa forma se mostra a única maneira eficaz de aproximar a audiência dos personagens (a maioria nem ao menos tem nome) e, de uma certa forma, gerar empatia pelos mesmos.
Outro destaque de suma relevância para o êxito sensorial que é ‘Dunkirk’ é a música. A composição do colaborador veterano Hans Zimmer, construída na base na escala Shepard e executadas seguindo o efeito Risset Glissando, uma ilusão auditiva que faz com que as escalas musicais possam se prolongar em um crescendo infinito, ajuda enormemente na construção da opressiva tensão exposta na tela, além da repentina e inesperada cacofonia causada pela artilharia, motores e explosões que pontuam a trama de forma paulatina e orgânica (o que por si só já é um feito em um filme de guerra contemporâneo).
‘Dunkirk’ se baseia em registros históricos contundentes para desenvolver a base do relato e o filme já se inicia com uma ação intensa, um pequeno vislumbre do horror prático que logo mais irá ser substituído pelo marasmo e a espera torturante pelo resgate que apesar de ser um esforço conjunto entre anglos e normandos, no início apenas visava combatentes britânicos. Filmagens reais na praia que podem facilmente ser achadas no YouTube, mostram que a atmosfera na praia retratada no filme é realmente fidedigna e honra a marcante temperança britânica mesmo quando numa situação excepcional como essa.
Dessa premissa de construção gradual e em loop da tensão, a história sustentará uma fuga frenética e desesperada de jovens soldados que apesar da tenra idade, já sabem que serão recebidos com hostilidade e como derrotados na pátria, do lançamento deliberado de civis ao mar para participar dos esforços de resgate e que tornaram possível a evacuação massiva e bem-sucedida (infelizmente nenhuma menção ao Medway Queen) e dos pilotos que são a única chance de retaliação e defesa prática pelas centenas de milhares de homens na praia.
Após a percepção da maestria com a qual o realizador aplica diversas técnicas e recursos visando a imersão da audiência nesse teatro de guerra, surge também, com o passar do filme, a percepção de sua maior fraqueza que é exatamente o caráter impessoal imprimido pelo tom lacônico que Nolan tenta passar. Na sua própria busca pessoal para sair de sua zona de conforto explorando o discurso para manejar o tom emocional de seu filme, ou tentar desesperadamente fugir do caráter melodramático de Hollywood no gênero, o diretor tenta transformar a obra em um filme emocionalmente “quase minimalista”, mas vale lembrar que esses soldados acabaram de experimentar os horrores da guerra e estão fugindo, acuados e derrotados, a questão do trauma psicológico parece ser quase que completamente ignorada sendo que era muito provavelmente a questão mais imperiosa nesse cenário.
A tentativa de individualizar e ao mesmo tempo neutralizar as narrativas dos homens extraordinários de Dunkirk, sem explorar de forma efetiva nem o background e nem as consequências causadas pela guerra que obviamente atingiram esses homens durante as semanas de ócio e apatia na praia acabam por fazerem com que o filme falhe em gerar uma apatia que deveria ser óbvia e mais ou menos simples em um filme do gênero.
A construção da narrativa para um clímax convergente também parece prolongar o filme além do necessário e faz com os quase 11 minutos de ação real acabem não justificando a longa espera. No fim, o verdadeiro drama de ‘Dunkirk’ acaba virando uma hipérbole que não se materializa por uma opção narrativa do diretor de se distanciar de seu lugar comum, e em um filme com uma temática ainda tão relevante e com uma plataforma tão importante para explorar e meditar sobre a experiência humana em face à uma situação tão extrema.
Mãe!
4.0 3,9K Assista AgoraDarren está de volta aos temas (nesse caso: alegoria) bíblicos, o diretor que também assina o roteiro, conseguiu construir uma história extremamente sucinta, simples, com uma mensagem clara e que se revela de forma tão orgânica e bem marcadas pela montagem afiadíssima (por vezes até um pouco frenética) mas que compreende o filme em um espectro perfeito de 120 minutos onde absolutamente nada parece ter sido desperdiçado ou usado de forma aleatória ou abnormal.
Cada espaço, artefato, momento tem uma relevância simbólica para a construção da narrativa que se sustenta em grande parte nessa semiose que vislumbra o divino, o espiritual, o sobrenatural através do trivial de forma tão simples que o conceito do filme se revela em pouco mais de alguns minutos decorridos.
O texto de “Mother” parece ser sobretudo uma ode de cuidado e respeito à Mãe Natureza (Terra), e da sua jornada rumo ao horror, medo e loucura por causa dos nossos pecados e da vaidade e egolatria do deus cristão. Essa é a fórmula que o realizador usa para pautar o conto da criação, passando pela aliança com a humanidade, a redenção com o Novo Testamente e o sacrifício de seu primogênito até o apocalipse (e uma posterior restauração da mesma dinâmica que se revela como sendo um ciclo eterno).
A construção dessa fantasia se dá com a história de um casal formado por um escritor de meia idade e sua jovem esposa em uma idílica locação isolada do resto do mundo. O lugar parecer ter sido sítio de um episódio que o destruí parcialmente. A devotada esposa passa seus dias dedicada a reconstrução da casa do marido enquanto lhe relega tempo para tentar contornar o bloqueio criativo que lhe acomete.
Logo a tranquilidade é interrompida pela chegada de um homem que é recebido com total aceitação por parte do esposo, mas com desconfiança por parte da esposa (os personagens não têm nome). Em determinado momento, o homem esconde uma cicatriz em seu torso (Adão) (que é a representação da costela retirada para criar a mulher (Eva) que vai aparecer na manhã seguinte). Em uma sequência ágil de eventos, são abordados diversos pontos do mito da criação cristã (a consumação do fruto proibido, a ira de deus, a vergonha, a descoberta da sexualidade por parte dos humanos, os dois filhos do casal [Caim e Abel], a morte).
Nesse ponto, já é possível identificar os dois anfitriões como sendo deus e Gaia (sua própria criação, o que explica o porquê da devoção quase-cega). Uma rápida comparação com outra obra que aborda de maneira diferente o mesmo tema (A Árvore da Vida, 2011), nos permite vislumbrar a função que a construção dos papéis de gênero incluiu em nosso imaginário judaico-cristão, com a figura do homem, pai, forte, altivo, austero e senhoril e da mulher, mãe, frágil e dependente, afetiva, altruísta e permissiva. Na obra de Malick, a mesma dinâmica se faz presente, mas dessa vez com a mulher representando a graça divina, o éter, e o homem como sendo a natureza imprevisível e dona de sua própria vontade.
Nos momentos seguintes a despedida de um dos irmãos que se dá justamente na casa invadida por diversos desconhecidos que apenas relegam apatia aos ensejos da dona da casa, o conto do dilúvio e da extinção da raça humana se dá por meio da representação de um encanamento quebrado. Mais uma vez a apatia e desconsideração de deus reforçam o seu desejo primal por adoração e entrega total. Com a fecundação da mãe com o filho de deus (momento que é aludido pela transformação da paisagem) e a inspiração repentina que o mesmo tem para criar o que vai vir a ser sua obra magna, as coisas parecem voltar ao estado de graça do período inicial, até o momento da publicação da obra, o momento em que a ‘palavra’ chega ao mundo, e novamente a necessidade de deus por adoração engendra mais dor e sofrimento a mãe de seu filho.
A tormenta causada pela invasão do culto do criador das palavras divinas remete a toda a história humana marcada pela religião e pelos conflitos que essa engendrou em nossa história, com a protagonista, a terra, apenas tentando sobreviver as demandas constantes dos invasores e do seu consorte. O simbolismo do sacrifício do filho único e divino de deus e da consumação de seu corpo por esses vagantes perdidos e também violentados, laureiam o a analogia marcada pelo uso de artífices simples, mas de profundidade simbólica que são contastes na obra, encerrada magistralmente com ainda mais uma demanda da egoística figura masculina, e da entrega definitiva da mulher, uma referência que reverbera familiar por toda a nossa história.
A riqueza de conteúdo e a perspicácia na condensação dos mesmos numa obra relativamente sucinta e tão rica em detalhes quanto essa só favorecem a ideia do realizador-escritor de difundir suas próprias observações de um mundo ainda marcado pelas consequências desse mito
Talvez na nossa era, marcada por um cinema que polariza e segrega o ato da narrativa fantasiosa ou em heroísmo ou em horror, ‘Mother!’ tenha uma abrangência e aporte cultural muito amplo para caber. Talvez, esse filme pertença a uma outra era. Talvez.
Ninguém Pode Saber
4.3 227Baseada nos fatídicos acontecimentos do distrito de Sugamo nos arredores de Tóquio em 1988, esta obra acabou por suplantar o interesse inicial do realizador de unicamente criar um relato factual desse escândalo animosamente abafado pelo governo e imprensa japoneses à época, transformando-se em um de seus mais simbólicos filmes e gerando os mais acalorados debates no mais íntimo e importante âmbito da tradicionalíssima sociedade japonesa: a família.
Tendo o mérito se suscitar tão relevante questão e expor tamanho problema ao resto do mundo, o filme gerou muita controvérsia no próprio Japão, a começar pelo fato de que até então, a sociedade nipônica era vista como uma das mais avançadas do mundo em termos de coesão social e bem-estar geral. Fato é, que na cultura japonesa, tal como todas as outras desenvolvidas a partir da égide cultural chinesa, existe uma forte inclinação à coesão familiar bem mais que uma preocupação com direitos ou o bem-estar individual. Para os japoneses, todos os indivíduos possuem uma dívida de vida para com a sociedade que só é paga quando os deveres sociais do trabalho, matrimônio e geração de descendentes são devidamente cumpridos (descendentes legítimos).
Importante também ressaltar que tais deveres possuem uma dimensão muito mais sacralizada para os japoneses que para os ocidentais atualmente. Não que o paradigma judaico-cristão seja menos rígido, mas com a evolução do capitalismo e o desenvolvimento histórico diferenciado do Ocidente, a instituição matrimonial acaba perdendo muito do seu sentido mais esotérico atingindo um nível de quase-conveniência nas sociedades mais avançadas do mundo anglo/latino. Além disso, o cerne de nossa filosofia privilegia o indivíduo e a conquista pessoal, o completo oposto da filosofia oriental sustentada em grande parte pelos preceitos morais de harmonia comunal e da submissão da vontade individual ao bem-estar coletivo do confucionismo.
E ainda, a contemporaneidade acabou por induzir ainda mais papéis às mulheres japonesas que na esmagadora maioria são as únicas efetivamente presentes na educação das crianças. O próprio diretor chegou a relatar que com tantas responsabilidades, algumas não suportam a pressão, o que explicaria o fato de que são as mães na quase totalidade de vezes, as responsáveis pelo abandono familiar.
Sendo assim, fica mais fácil compreender porque crianças geradas fora do matrimônio sofrem tanta aversão, apesar dos esforços do governo em silenciar a mídia sobre tais escândalos e manter o verniz de nação extremamente civilizada e harmônica, desde 1988 os casos reportados de abandono familiar se multiplicaram vertiginosamente, o que claramente indica um sintoma social. O ápice da polêmica se deu em 2007 com a criação do projeto pioneiro: “Baby Box” do hospital Kumamoto que passou a receber crianças indesejadas e encaminhá-las para a adoção. Para muitos uma ofensa gravíssima à nação, mas o que realmente fica evidente é que os próprios japoneses continuam negligenciando o problema em prol dos bons costumes.
Partindo dessa problemática, Kore-eda (roteirista e diretor) trabalhou o projeto na perspectiva de um docudrama que lembra muito as produções da NHK. O drama do filme se insinua tímido e vai evoluindo de uma forma tão autêntica e orgânica que é praticamente impossível detectar problemas narrativos ou contradições na história.
Mesmo em situações que podem parecer narrativamente adversas aos expectadores ocidentais como o silêncio dos poucos personagens adultos que tem ciência da situação na verdade, são bem realistas no contexto japonês.
A persona da mãe é brilhantemente construída pela atriz de TV e comediante You que foge a todos os maniqueísmos esperados e se mostra presente e afetuosa agindo de forma muito típica. Apesar da constante noção de seus deslizes de personalidade e de uma notória impessoalidade crescente de sua personagem que atinge o ápice na cena do telefonema de Akira, não demonstra em nenhum momento algum aspecto ressentido e/ou irascível que indique suas ações posteriores além da priorização do auxílio na maturação de Akira e de ele ser o único a quem é permitido o ensino (provavelmente preparando-o para o comando doméstico uma vez que a mãe já se ausenta com certa frequência por longos períodos), além de as outras crianças não possuírem registro de nascimento.
A onipresente beleza que emana da atmosfera infantil, apesar dos reveses é pouco maculada, mesmo em momentos mais críticos do filme. Percebe-se uma preocupação premente em relação à estética e manter o filme aprazível, mesmo sendo um declive dramático sem volta. Tais triunfos só poderiam ser encontrados em uma produção japonesa dada a priorização do universo infantil tão forte nucleando e modulando a modernidade cultural daquele país.
E por isso, temos personagens infantis que apesar de parecerem estereotipadas, são na verdade extremamente fieis à realidade. A retraída e solicita Kyoko, o hílare Shigeru e a extremamente afável Yuki são retratações bastante fieis de como são criadas as crianças japonesas, seguindo um estrito código de diferenciação etária e de gênero. Apenas Akira destoa do quadro geral, pelos motivos anteriormente citados. Tendo sempre que prover tudo para os irmãos e sendo privado do convívio de outros garotos da mesma idade, Akira já age de forma bastante madura para a idade. Essa privação inclusive, se torna evidente quando ele finalmente faz amigos e passa a viver um tipo de “infância tardia” e se torna extremamente influenciável. Um fato que favoreceu a trama é que nesse ínterim, o ator Yuya Yagira (Akira) apresentou os primeiros sinais de amadurecimento púbere, durante o filme percebemos a alteração em seu tom de voz, por exemplo (Yuya recebeu no ano posterior o prêmio de melhor ator em Cannes por esse trabalho, sendo o mais jovem, título que ainda detém).
Há ainda os pequenos dramas superficialmente explorados como o bullying sofrido pela amiga de Akira, Saki, que está sempre agindo de modo soturno e suspeito até conhecer as crianças, com quem desenvolve cumplicidade e se torna uma parte essencial da trama. A solidão do funcionário do minimercado e a vida fracassada enfrentada pelo funcionário do pachinko que supostamente é o pai de Akira.
Com a constante na degradação do estilo de vida das crianças, é interessante notar a inocência deles para com o julgamento alheio quando são forçados a saírem de casa para obter água. Outra crítica interessante se revela quando Akira e Shigeru estão voltando com água para casa e na mesma rua se vem crianças da mesma idade voltando da escola.
Ao atingir o clímax, o aspecto mais intrigante é a dúvida que muitos ocidentais podem sentir da falta de comoção dos irmãos para com o ocorrido. Seria a típica contenção emotiva dos japoneses? Ou simplesmente falta de noção da gravidade dos acontecimentos? Qualquer uma das alternativas só maximiza ainda mais o drama.
O realismo cru do realizador atinge seu ápice nessa obra, se amaina em “Aruitemo Aruitemo” (2007) e praticamente desaparece em “Air Doll” (2009), tornando o filme indispensável por exibir o exímio talento documental de Kore-eda e a ótima opção por uma obra estritamente orgânica e documental, tornando o drama ainda mais factual e palpável. Uma obra importante por mostrar o outro lado de uma contemporaneidade tão celebrada e abrir debates tão relevantes em uma sociedade tão restritiva como a japonesa, convergindo para que a coletividade possa ao menos reconhecer, e passar a pensar em um futuro melhor para esses excluídos.
Flor do Deserto
4.2 274Desert Flower, baseado no livro de memórias homônimo da ex-top model somali Waris Dirie, possui um discurso e uma crítica tão intensos que não precisaria ser um filme tecnicamente excepcional ou bem produzido para chamar a atenção do mundo. Felizmente não foi o que a diretora e roteirista Sherry Hormann fez ao se incumbir da missão de levar as telas esse genuíno relato de horror e superação que se tornou icônico dos anos 90 (sobretudo no hemisfério norte) após a fatídica entrevista de Waris à Marie Claire.
O filme é esteticamente original e fidedigno à contemporaneidade do roteiro, as minúcias e os detalhes étnicos são ricamente trabalhados, sem falar da opulência plástica da fotografia, ambientando devidamente os cenários da narrativa. Há uma pureza exuberante nas ricas cores da obra que tramitam entre o deserto, Mogadíscio e Londres e acabam por conferir ao intimismo literal de Dirie, uma dimensão visual de beleza ímpar, contrastando à sobriedade e a introversão dessa personagem.
Mas muito mais que isso, Flor do Deserto é um conto de horror que legitima em qualquer nível possível a essência do discurso da equidade sexual tão achincalhado no Ocidente. Derruba qualquer argumento de “particularidade cultural” e pode ser considerado um importante manifesto sobre a tragédia que é nascer mulher no mundo islâmico da Sharia. Uma inception da reivindicação dessas mulheres pelo protagonismo e autonomia sobre suas próprias vidas em verdadeiros paraísos de misoginia.
A FGM é muito provavelmente o mais aterrador e cruel ritual a qual se pode se submeter uma mulher, uma castração simbólica na grande maioria das vezes, em tenra idade, justamente para impossibilitar qualquer objeção retórica e/ou argumentativa uma vez que, o Alcorão não cita a prática em nenhum momento. Uma imolação que acaba por adequar a imagem da mulher como propriedade de propósito servil a interesses alheios a sua vontade, à família, à pátria, à religião (em sua totalidade, instituições controladas por homens), o que fica muito claro no filme na seqüência em que Waris é levada ao hospital com dores (que sente constantemente) e é veemente repreendida por um enfermeiro conterrâneo ao buscar tratamento ao seu estigma.
Muito do apelo da obra se pauta em seu efeito “Cinderela”, Waris é uma jovem refugiada perdida e sozinha que sofreu dos piores martírios que as mulheres podem sofrem em suas vidas ainda mesmo na infância, cruzou um deserto a pé, completamente desorientada e deixou a família sem saber se um dia iria poder voltar a vê-los. Após anos na marginalidade depois do colapso político de seu país, e dependente da compaixão de estranhos, sua vida toma um contorno excepcional, quase que como uma fábula, e ela se torna ao lado de Iman, um dos mais icônicos e representativos rostos da África. Mas é o seu segredo que a mantém tão refém da solidão e do medo.
Deve-se ter em mente que tendo sido criada de uma forma muito estrita a partir dos princípios de sua religião, uma parte importante da construção da jornada da personagem é a constante busca por força e voz internas em contraponto a severa moral que cerceia toda a sua vida. Há um embate simbólico intrínseco à personagem muito interessante de acompanhar. Mas não é como se a sua tendência a questionar os dogmas tivesse apenas surgido ao entrar em contato com o Ocidente maravilha, elas sempre estiveram lá, o seu rancor por ter nascido mulher, a sua capacidade de contestar, a sua coragem para fugir. De forma empírica, Waris sempre foi subversiva e autônoma, e em uma sociedade mais plural e democrática, aprendeu que a admiração atribuída a sua persona está diretamente vinculada ao que ela faz com sua voz de cidadã e de que forma contribui para a sociedade.
No fim, o relato quase surreal daquela jovem que tinha todas as possibilidades apontando para a tragédia eminente, se metaforiza e se mescla em diversos contos e diversas morais. Uma homenagem aos inconformados, aos menosprezados aos oprimidos, um estímulo a subversão de um mundo onde todo o dia é dia de misoginia e de castração simbólica ou física, um mundo que se divide em crimes de honra acometidos no corpo, e os que perduram em forma de tortura moral por anos, um estímulo ao combate diário de todas as formas de violência e degradação independente de país ou cultura.
A vida precisa persistir como um valor sacro imaculável frente a todas as formas ritualísticas de opressão, sobretudo como disse Waris em seu discurso final, alegando que são as mesmas mulheres que compõe a “espinha dorsal” da África que estão sendo mutiladas e silenciadas há três milênios e que elas antes de qualquer um, precisam reconhecer seu próprio valor e combater qualquer forma de injustiça e iniqüidade, e que nesse ínterim, os homens entendam que as mulheres foram retiradas da “costela” de Adão, não da cabeça ou dos pés, mas da costela, para serem iguais.
Mais uma obra que potencializa a discussão sociopolítica no âmbito do cinema, e que gera discussões extremamente válidas e urgentes, mas, sobretudo, uma inquestionável ode ao gênero feminino, que olha para a opressão do passado buscando inspiração para a luta do futuro.
Ensina-me a Viver
4.3 873 Assista AgoraUm dos mais clássicos exemplos de um filme que, inicialmente ojerizado, alcançou um status de culto anos depois, e muito disso, por mérito próprio. Essa obra de 1971 é uma abstração de um momento político e cultural efervescente, de rompimento com os valores prementes. Apesar de uma aparente apatia política, a obra levanta questionamentos morais e reflexões tão válidas à época, como são hoje, mas, por causa do já citado momento político vivido no mundo: Guerra Fria e os consequentes conflitos na Coréia, Vietnã, Afeganistão, a tensão com Cuba, as guerras pela descolonização na Ásia e África, o inverno ditatorial latino-americano (suprassumo da política do big stick), os efeitos de 1967, o surgimento do movimento hippie, a expansão do movimento feminista, as primeiras manifestações pelos direitos homossexuais, o surgimento do partido dos Panteras-negras nos EUA, Watergate e muitos outros importantíssimos acontecimentos que viriam a definir o século XX, a tornaram tão icônica para a época (apesar dos fracassos comercial e de crítica inicial, principalmente pelo tabu coetâneo da relação intergeracional, e do tipo de humor caracteristicamente “britânico” não muito bem recebido nos EUA).
Muito do encanto de Harold & Maude se deve a sua estrutura narrativa que funciona como uma fábula, uma metáfora política contemporânea, com um implícito discurso esquerdista coordenado a partir de uma brilhante direção de Hal Ashby, mestre em contenção de recursos técnicos e discrição nos discursos políticos, o resultado efetivo é um ótimo filme, uma experiência tragicômica perspicaz e inovadora e mesmo assim, leve o suficiente para todos os públicos.
Relacionando diametralmente os núcleos das personagens em polos opostos, quase que comprimidos em espaços preenchidos por esteriótipos para então, desenvolver a dinâmica clássica do “choque de mundos” - um maniqueísmo que até pode ser clichê, mas manifesta uma funcionalidade extremamente coesa e necessária à história - a partir disso temos Harold: filho único de uma socialite viúva e sobrinho de um militar de alta patente caracterizado com toda a rigidez e austeridade inerentes à sua posição, essas personagens podem ser interpretadas como claras referências as esferas de poder do Estado: a esfera econômica (mercado): provedor de recursos, autocentrado e negligente às demandas de outrem ou de qualquer outra ordem que não seja monetária; e a esfera policial (exército): força repressora, constante histórica, manifestação-mor do espírito beligerante humano, da necessidade de poder e dominação.
Vale lembrar que esse contexto faz muito sentido para os Estados Unidos, sendo assim, Harold resume bem o espírito jovem da ápoca, coagido pela violência do mercado livre e a truculência militar (vide o alistamento compulsório característico do período da Guerra do Vietnã),
um jovem totalmente negligenciado, que manifesta a sua desesperada necessidade de atenção materna de forma gradualmente grotesca. Mesmo assim, tudo o que o jovem consegue, é mais distanciamento, o que obviamente acaba por retroalimentar um ciclo vicioso e autodestrutivo. Harold também cresce em um ambiente que é coadjuvante na sua formação identitária, um ambiente extremamente mórbido, gótico e opressivo, ajudando-o a se tornar uma figura extremamente altiva, excênctrica, fantasmagórica, um jovem Nosferatu ainda atormentado pelo seu fracassado complexo de Édipo que desenvolveu um gosto pelo fúnebre.
É nesse ínterim de não-acontecimentos da vida do jovem que ele conhece a mais excêntrica ainda Maude, com uma persona construída para ser o oposto da dele, vívida, imprevisível, desprendida e desvinculado de toda e qualquer regra social ou bem material, um tanto budista. A ironia reside nas posições assumidas pelos personagens Harold, extremamente jovem, buscando incessantemente a morte (mesmo que um falseamento, da ideia de fuga abstraída de sua vida esmagadoramente monótona), e Maude, que vive intensamente cada dia, descompromissada mesmo quando isso afeta negativamente outras pessoas, como um manifestação prática da filosofia hippie, ela desenvolve uma relação espiritualizada com a natureza e todos os seres vivos, como que uma extração ideológica da vida.
Com o desenvolvimento da relação dos dois, a vivacidade e espontaneidade de Maude passam a enfim, causar alguma comoção no jovem que ironicamente, passa a se desprender de todas as tentativas de aproximação da mãe através de eventos sociais e encontros arranjados. Com sabedoria e espírito livre, a senhora incuti em Harold, um vislumbre muito mais humanizado da vida. A cumplicidade dos dois vai evoluindo ao ponto de ela então revelar o doloroso segredo de ser uma sobrevivente do Holocausto em uma das mais belas e desconhecidas sequências do cinema mostrada de forma muito contida, como sempre opta o realizador.
A relação chega enfim, ao nível romântico, provavelmente o mais polêmico do filme, levantando importantes questões de ordem psicológica como, inclusive, é apontada pelo analista de Harold. É nesse ponto que o filme ratifica de sobremaneira a sua intenção em discutir e romper com as normas vigentes, com a mesma abordagem estético-narrativa leve apresentada durante todo o filme. Maude não só tornou-se professora, mãe, avó, amiga, cúmplice do jovem, ela se torna a sua amante, e a figura feminina mais relevante de sua vida até então, e o que importa se ela tem 80 e ele 20?! O retrato de sua relação, tão bela, genuína e positiva para ambos, acaba por legitimar o amor mútuo.
O filme termina de uma forma pouco natural, mas mesmo assim, concisa ao todo. Acaba por ser uma fábula por justamente sobrepor uma lição de vida, não um discurso vazio e arcaico, mas uma verdade que precisa ser cada vez mais aprendida e reproduzida em nosso mundo de constantes injustiças. A epifania que Maude representa, é uma abstração possível da esperança na utopia interrelacional e social.
Brilhante em todos os aspectos,
inclusive na interação da fotografia com o desenvolvimento do enredo, que vai se tornando mais claro, agradável e menos opressor, seguindo a lógica crescente da relação dos protagonistas.
Por fim, um conto de fadas tão moderno quanto foi há 40 anos, mas, mais que isso, uma obra atemporal, que só prova cada vez que é assistida, o porquê de ser cada vez mais, indispensável.
O Som ao Redor
3.8 1,1K Assista AgoraSendo fruto de uma mente tão reconhecidamente brilhante e inventiva como a de Kleber Mendonça Filho, seu primeiro longa não tardou a virar o filme-fetiche do ano. De forma impressionante, sobretudo pelo escasso marketing acerca de sua estréia e pelo mérito de ter rompido barreiras mercadológicas e ter chegado a diversas salas de exibição Brasil afora - um feito para um filme nacional com o seu teor crítico -, o filme foi alçado ao panteão das obras-primas do cinema nacional sendo constantemente reverenciado como um marco, um divisor de águas no “pouco copioso e tímido” panorama de produções brasileiras que não são concebidos como comédias populescas.
Obviamente o filme tem inúmeros méritos, o primeiro deles é que em certo grau, rompe com uma moratória metodológica em sua concepção, com uma intensidade e visceralidade que não víamos desde: “Os cantos de trabalho” e “Megalopolis”, ambos de Hirszman e feitos na década de 1970 e convergindo para a mesma temática. Apesar da distância temporal gritante, essas obras permanecem extremamente atuais e, sobretudo, factuais. Mas desses, o assombrosamente belo: “Maioria Absoluta” parece ser o filme do diretor que melhor dialoga com “Som ao Redor”, esse poderia ser descrito como a versão entendida da intrigante introdução da obra mais recente, concentrado no tradicionalíssimo sistema feudal dos latifúndios do Nordeste brasileiro, nossa Arcádia às avessas, “uma terra mítica” do caos e da inópia no imaginário popular.
“Som ao redor” salta 40 anos e vem contextualizar a contemporaneidade brasileira anestesiada por um suposto milagre econômico traduzido em uma ascensão social à chinesa e em toda a sorte de mudanças que essa abarca tais como: a segmentação gritante e semicriminosa da nova ocupação espacial da cidade, privatizando os espaços anteriormente públicos e minando as periferias; o maior poder de compra refletido nos insustentáveis índices de vendas de automóveis que inflarão e desarticularão a mobilidade urbana e a necessidade de mais garantias de auto-suficiência e segurança energética e os conseqüentes conflitos ideológico-ambientais que tais demandas usualmente acarretam.
É interessante notar a opção do realizador por explorar subjetivamente as questões relativas ao boom imobiliário intenso vivido no país nos últimos anos, gerando enclaves urbanos de bem-estar exclusivos, alterando de forma direta o traçado urbano e a dinâmica espacial econômica com uma enorme demanda por serviços diversos: trabalho doméstico, entregas domiciliares, educação caseira, vigilância e até os serviços mais ilícitos.
Mais interessante ainda, é o vislumbre dessas relações de poder estabelecidas a partir do perene desdobramento das castas e aprofundamento das tensões sociais entre patrões e empregados, ricos / novos ricos versus pobres.
E nesse aspecto, há o mérito da obra de reproduzir fidedignamente tanto a figura do núcleo tradicionalmente mais abastado, como os mais recentes integrantes da classe média, até o núcleo mais explorado e menos favorecido. Como se as relações coloniais persistissem, tivessem sido cristalizadas e as estivéssemos vislumbrando em sua materialização ímpar de realidade. Prova disso é a relação de extrema plasticidade entre João, sua empregada e os entes desta, que comungam do espaço do patrão de forma curiosa. João inclusive é uma referência clássica aos jovens liberais de famílias argentárias que ao retornarem dos estudos na Europa, vinham com idéias liberais e abolicionistas, trata de forma compassiva e benevolente os seus empregados, os conhece, os entende e intercede por ele, como na sequência da reunião de condôminos. Há seu primo que é basicamente sua antítese, o rebelde e inconseqüente herdeiro que, blindado pelo poder e influência da família, se anuncia como um retrato de horror de um futuro senhor sem complacência ou piedade, uma efígie do conservadorismo e do desespero elitista em frear os avanços da classe média e manter o status quo.
Mas a figura mor, o mais fiel caricatura da imutabilidade da regra social frente ao tempo, é o avô dos dois, Seu Francisco, que não à toa, é senhorio da maioria dos imóveis da rua, mão-de-ferro, reproduz na contemporaneidade a brutalidade e o desmando do coronelismo. Perpetua seu poder, riqueza e influência sobre a privação dos outros. Nesses novos tempos de mudança, o arraial constitui-se em uma rua, e o coronel, é o arrendador local, a quem todos conhecem e temem. Seu poder incólume é largamente reconhecido na sequência em que o trio: o avô, João e a namorada Sofia visitam o engenho da família. O outrora glorioso cerne da vida familiar tradicional, agora abandonado e esquecido, construído sobre a desgraça dos mais pobres, mortos, roubados e expulsos de suas terras para dar lugar ao rico senhor, agora dá lugar as ruínas e ao ostracismo. Mesmo assim, ainda ecoam os gritos de horror e desespero, na pobreza reproduzida na filmagem da escola e do velho cinema abandonado, mas, a mais impressionante metáfora usada para relativizar esse conjunto de forças, é a sequência na cachoeira, quando o fluxo de água repentinamente, transforma-se em sangue, simbolizando todas as vidas tiradas para que aquele senhor e sua família pudessem usufruir e engendrar mais riqueza. Nesse ponto, o filme dialoga diretamente com o magnânimo “A Febre” (2004) de Carlo Gabriel Nero, que discursa sobre a história das relações de poder, do consumo e fetichismo societário e dos crimes ocorridos no passado e que reverberam na reprodução da pobreza e miséria do mundo atual. Há também nesse núcleo, a avulsa figura da antipaticíssima Sofia, socialmente despenhada, um rateio dos resquícios de uma vida privilegiada, sem carisma algum, praticamente dispensável na trama.
Mas, nesse novo contexto, há novos atores sociais que dinamizam a trama, como dito na ótima crítica do ilustre anônimo André Felipe em reposta a “exageradamente positiva” resenha de Zanin no O Globo: “é como se agora, entre a Casa Grande e Senzala, houvesse a classe média”.
E assim se materializa a figura dos suburbanos de Setúbal, em ascensão, com demandas, mas arredia e aterrorizada pela horda de miseráveis que segregou do espaço. Confinada em seus enclaves aprumados de nomes extravagantes, pela ostensiva segurança e o medo constante de que os mais pobres se revoltem e invadam seus espaços – coisa que ocorre corriqueiramente -, maculando-os e saqueando-os. Medo esse, aludido no pesadelo da filha de Bianca, quando da invasão de sua casa por uma gangue.
Ao longo da trama, são expostas de forma inteligente e perspicaz as implicações psicológicas dessa estratificação e segmentação socioespacial que sufoca, engole e anula o espaço individual, e, que podem ser percebidas nos subterfúgios desenvolvidos pelos personagens e pela busca generalizada pela privacidade e isolamento
e/ou, por meios de expressar sua subjetividade espoliando o espaço público decantado pela uniformidade e frieza fórmica e gráfica, como nos momentos em que se nos deparamos com os pequenos crimes burgueses ou, quando se lê uma declaração escrita no asfalto, o que de certa forma, metaforiza esse grito desesperado do indivíduo abafado pela demasiada concentração demográfica.
Tudo isso, reproduzido ao passo de uma sonoridade pulsante, esse, provavelmente um dos aspectos mais extraordinários do filme, é um diferencial que o relega a uma categoria única. Os sons da película funcionam como um segmento projetivo de semelhante importância, delineando um cenário, uma situação, explorando o lugar e, quando fundidos à imagem, formando um quadro fiel e uma experiência de realidade extrema, ou, por vezes, uma escapula abstrata necessária para se abster da opressora vida na metrópole.
Mas, apesar de toda a pujança e inovação aqui vistas, “Som ao Redor” também padece de males pouco explorados devido à expressiva ode de empolgados críticos. Como escreveu Eduardo Escorel, da revista Piauí, em um quase surto de sobriedade se comparada a sua resenha a diversas outras, escreve que: "ao se transformarem em surto de ufanismo patrioteiro, porém, os elogios podem acabar mais prejudicando do que beneficiando o filme, seu autor e eventuais leitores".
Sobretudo porque como já evidenciado, apesar da fidedignidade aos perfis sociais construídos, o filme exagera nos maniqueísmos, as representações de certo e errado e os caminhos pelos quais muitas situações enveredam, geram um sentimento de juízo de valores onipresente, e, como já citado anteriormente, existe sim, um crônico problema de não-causas, não acontecimentos, rumos que chegam a lugar algum, há uma incômoda segregação nuclear e um desencontro narrativo profuso, as histórias desconexas, sem garantia de que realmente chegaram a algum lugar, o filme adquire um espoco extremamente sociológico, didático, menos lúdico, e as tentativas de fazer rir, frustrantes, e é aí justamente, onde deságua o mais flagrante desacerto do realizador, o desfecho da história.
Após um exaustivo e bem elaborado trabalho de pesquisa e concepção, o final do filme nos deixa com uma sensação profunda de inacabamento, de falta de mérito. A inclusão de personagens e situações como efeito surpresa em desfechos de caráter abrupto, comumente caracterizam obras exaustivas, mas que comungam do problema de chegarem a um fim insatisfatório, vide o exemplo maior: Crime e Castigo. Um infeliz demérito a uma obra tão ricamente construída, talvez por culpa de como o filme foi vendido através da sinopse relacionando a chegada de uma milícia à uma tensão previamente inexistente, o que não é bem verdade.
Don't You Forget About Me
3.8 40Particularmente, esse filme, quando anunciado em 2009 foi a mais grata promessa do ano. A influência e a universalidade do filmes de John Hughes são simbólicas, sua indiscutível destreza narrativa somadas ao desejo de reaver o espírito rebelde juvenil que germinou na Hollywood dos anos 50 e teve como expoentes o James Dean de Rebel without a cause (1955) e o Marlon Brando de The Wild One (1953) praticamente criaram um subgênero cinematográfico e um novo nicho de mercado a ser explorado pela indústria: os teen movies. Obviamente, no período posterior aos anos 50, outros clássicos com temática próxima foram produzidos como: Freaky Friday (1976), Grease (1978), To sir with Love (1966) entre outros, mas nesse ínterim de quase 30 anos, pode-se afirmar com convicção, que não houve um movimento cinematográfico centrado na juventude tão intenso ou analítico como houvera na época dos proto punks em Hollywood, ou como a onda que viria nos anos 80 com os filmes de Hughes. O que ocorreu desde a retirada e o auto-exílio do diretor por motivos de incompatibilidade ideológica com o padrão de grandes estúdios em Hollywood foi uma contínua decadência na qualidade das produções voltadas para o público e, por fim, uma completa exaustão, ao menos no âmbito estadunidense, efeito traduzido nos péssimos filmes colegiais do final dos anos 90, recheados de estereótipos, cada vez mais apelativos e feitos por e para uma juventude completamente acéfala.
A influência de Hughes na cultura pop é obviamente ainda maior, através de seus filmes, ele sintetizou e influenciou muito do que viria a ser a estética do zeitgeist juvenil oitentista. As escolhas musicais, visuais, de vestuário e artísticas mostradas em seus filmes dão uma ideia da essência cultural da época.
Parafraseando um dos entrevistados no filme: “Não sabemos ao certo se nós o copiamos, ou se ele nos captou”. Em outro momento, um entrevistado afirma: “Qualquer pessoa que pense em fazer um filme adolescente hoje em dia, obrigatoriamente assiste a uma obra de Hughes, e isso é bom e ruim. Bom, porque é muito inspirador, ruim, porque por mais que você se esforce, não conseguirá fazer melhor que ele”.
A compreensão do fenômeno cultural irradiado quase que de forma solitária por John Hughes nos legou mais que um panteão de entidades excêntricas cheias de maniqueísmos, John foi pioneiro em mostrar as angústias, aflições, anseios e questões fidedignas dos jovens mostrando-os como indivíduos complexos, emaranhados em relações sociais majoritariamente orgânicas, legitimados pelos medos concirnais a sua idade: do futuro, do fracasso, da invisibilidade social, do juízo de valores, das transformações.
É inegável o fato de que a globalização acaba por difundir valores que antes não tínhamos. No caso, muitos dos preceitos culturais estadunidenses como: a divisão social da escola em classes (atletas, geeks, hipsters, punks, populares...), bailes de formatura, status social pautado em um consumismo torpe, recursos culturais que não necessariamente se ajustam à nossa realidade como: música, filmes, livros e, até mesmo, um bizarro imperativo de relações familiares até abusivas dentro de nosso padrão latino. Mas o cerne da temática de Hughes continua sendo a análise e compreensão do jovem inserido na sociedade na fase de doutrinação e concepção do pensamento que é a fase escolar. O cineasta sempre fez questão de apontar o insucesso dos pais e professores em se comunicar e buscar entender os jovens e suas questões. Há uma inoperância na comunicação intergeracional e o pioneirismo do realizador reside em sua busca e compreensão do mundo juvenil geralmente banalizado pelos adultos, esses por sua vez, são geralmente vistos pelos jovens como um assustador vislumbre do futuro: alienados e frustrados.
O argumento-mor de Hughes, e funciona tão bem porque a adolescência e o medo do futuro, são condições genéricas ao ser humano, não são valores, são convenções constituídas biológica e socialmente e universalizadas, e seus filmes, se corroboraram por meio daquilo que valida a arte: a sua aplicabilidade na vida. Nesse caso, seus filmes não deram respostas aos adolescentes sobre a eterna questão da identidade, mas, mais do que isso, mostraram que eles (nós), não estavam (mos) sozinhos.
Dito isso, é óbvio que a importância e a essência artística de John Hughes, e seu subseqüente auto-exílio, gesto máximo do intento de supressão artística, tornou-o, como é regra, em uma lenda viva. Era questão de tempo que buscassem fazer um filme sobre sua figura. E é essa a premissa de “Don´t you forget about me” – provavelmente o melhor título que poderiam escolher – gerado por quatro jovens realizadores canadenses que cresceram fortemente influenciados pelos filmes desse senhor.
A obra, obviamente concebeu alguns triunfos nominais embasados em uma ótima premissa de entrevista tanto de atores, produtores e colegas de trabalho do homenageado; críticos, cineastas e produtores influenciados por ele e até mesmo de jovens em idade escolar na tentativa de gerar um comparativo entre os seus filmes e os contemporâneos com a mesma temática.
Em algum ponto, alguém fala que: “com John Hughes, filmes adolescentes deixaram de ser subestimados e passaram a ter uma conotação mais respeitosa”. Triste verdade é comprovar que a posterioridade dissipou essa conquista, barateando o foco narrativo e transformando tais filmes em odes a um hedonismo prosaico e um estilo de vida ordinário.
Apesar das boas intenções e das conquistas de se entrevistar gente como: Richard Roeper, Kevin Smith e Alan Ruck, o filme tem problemas estruturais e metodológicos abissais que comprometem e muito o resultado. Em primeiro lugar, os aspectos técnicos depauperados, entrevistas filmadas em ângulos terríveis, luz empobrecida, uma edição fraca traduzida nos excessivos cortes e gravações televisivas, os adolescentes entrevistados não são creditados e algumas filmagens que poderiam ter sido dispensadas na edição final vide a seqüência da conversa dos realizadores no campo, da passagem pelo posto de fronteira, dos momentos de preparação técnica das entrevistas nos hotéis e no restaurante. Depois, é irreparável a falta de Matthew Broderick, Anthony Michael Hall, Macaulay Culkin e da musa Molly Ringwald, provavelmente impossibilitados por contratempos, mas mesmo assim, muito sentidos. Terceiro ponto, o fracasso técnico do filme recai justamente sobre o despreparo de seus realizadores, exposto na própria película, há muita confusão no grupo quanto a cada decisão, há muitas conversas triviais, há um visível descuidado em relação à abordagem ao cineasta, há um amadorismo latente e, em alguns momentos, percebe-se em momentos artificialmente dramatizados pelos jovens, sua necessidade supérflua de protagonismo.
Infelizmente, a qualidade do filme fica completamente comprometida pelo descuido e imaturidade de seus realizadores e a progressiva falta de foco que o filme adquire. O que poderia ser um vislumbre final da beleza e genuinidade da obra de Hughes virou um alarido de egos e pretensão. É até icônico o fato de Hughes ter se abstido de entrevistas e da vida pública, ao menos assim, evitou comprometer sua arte e o constrangimento de participar de algo tão amador.
The Class
4.1 177Klass é um triunfo em diversos aspectos, primeiro por seu uma produção destacável de um país tão desconhecido e obscurecido por seu passado e por seus vizinhos, depois por mérito próprio: é um filme construído e costurado de maneira inteligentíssima, e, mesmo que o tema que aborde não o seja, ele muito facilmente se sobressai, superando todos, basicamente todos os outros filmes que já abordaram bullying na escola, tem um ritmo frenético e nauseante, é um filme estilizado, com fotografia, planos e trilha sonora coerentes com o contexto da trama. Um triunfo também se considerarmos que o filme teve orçamento de pouco mais de R$ 100.000,00 euros e teve apenas 12 dias para ser filmado.
Outro ponto extremamente relevante é que o filme simplesmente abandona todo o maniqueísmo normativo de filmes similares que tendem a limitar a questão ao macroambiente em que esses jovens estão inseridos: ausência de estrutura familiar, , superexposição à violência midiática (TV, internet, jogos) e, vide Elephant de Gus Van Sant, mesmo à questões individuais como desvios de conduta resultantes de lacunas de ordem psíquica, fatores esses que acabam por propender a audiência a dividir os indivíduos mise en scène em epigeneticamente nascidos bons ou maus. Klass é um tanto revolucionário por ir a fundo na questão da violência e delinquência juvenil.
O roteirista e diretor Ilmar Raag criou o argumento a partir de casos de violência midiatizados na Europa inspirando-se também em casos estadunidenses como o de Columbine (CO) e o de Edinboro (PA), a ideia a partir disso, era reunir diferentes jovens de toda a Estônia para que contribuíssem de forma voluntária com o roteiro relatando casos de violência em suas respectivas escolas. A base dos relatos engendrou as diversas situações de conflito do filme, mas, mais que isso, a intenção de Raag era buscar a origem dos problemas que acarretavam tais resultados. Obviamente uma tarefa analítica de extrema valia e ao mesmo tempo, de muita responsabilidade.
Ilmar Raag foi,muito provavelmente, o primeiro a olhar exclusivamente para as condições concernentes ao contexto de um adolescente comum - a falta de referências a ícones nacionais ajuda a reforçar a ideia de universalidade do filme neutralizando contra-argumentos de cunho cultural -, buscando apenas o essencial para criar as personagens e, enfim, dinamizar a trama com as relações sucessivamente estabelecidas. O resultado é um relato da composição social do mundo infanto-juvenil no ambiente escolar, e de como se estabelece a rígida hierarquia social nesse grupo.
Partindo do princípio da sociabilidade humana instintiva ou zoon politikon de Marx, tal como nos estados modernos e do mesmo jeito que em sociedades mais primitivas, a escola é apresentada como um ambiente hostil, sendo regido por meio do medo e da coerção dos mais fortes, os indivíduos medianos acabam por se alinhar por razão de sobrevivência e o restante, fora dos padrões de aceitabilidade do grupo, tornam-se os marginais, os excluídos. Nesse caso específico, o que torna a situação de Joosep extraordinária é o fato de que toda a turma se alinhou contra ele, e parte do processo de integração social, torna-se um macabro rito de humilhação constante contra o jovem.
O filme foi dividido em um período de 7 dias, a ideia era deixá-lo o mais documental possível, de forma que o expectador acompanhasse a vida de Joosep e de toda a turma de forma rotineira, com esse intuito, foram também inseridos pequenos cortes de filmagens aleatórias em escolas com crianças se relacionando, na maioria das vezes, em conflito, onde sempre prevalece a figura do opressor. A intenção de Raag é, deveras, mostrar a formação dos indivíduos em ambiente escolar envoltos em um meio onde agressões são uma constante.
Apesar da prioridade com que trata a relação entre a assustadora crescente nos índices de violência entre jovens e o bullying intrajuvenil como fator decisivo para a proliferação dessa tipo de violência, o diretor não negligencia de forma alguma as outras esferas de relações as quais esses jovens estão submetidos. São abordados ainda a falta de preparo técnico das escolas para evitar tais convulsões, a falta de diálogo e entendimento familiar e as tensões geradas por relações familiares pouco saudáveis (no caso de Joosep, também abusivas).
Joosep inclusive, foi moldado como um jovem anormalmente apático e indiferente à perversidade a qual é submetido para que se trabalhasse de forma menos digressa o possível a ideia de que a sociopatia pode ser adquirida. Mas um fator cultural relevante precisa ser exposto: em algumas sociedades, indivíduos que demonstrem excepcional destreza física (macho alfa), submetendo os mais fracos ao seu domínio, como é o caso da estadunidense, onde se consagra a figura do campeão em detrimento de figuras intelectualizadas (nerds, geeks), nota-se uma disparidade nos casos de ultra violência, (como é o caso de chacinas em escolas) em relação a sociedades mais equitativas nesse aspecto, como no caso do Brasil por exemplo.
Por fim, o filme atinge um clímax previsível, mas não sem antes se tornar uma via crucis tortuosa e extremamente agonizante para o expectador. Uma mistura sombria de sofrimento e ansiedade. Um trunfo do cinema, sobretudo no âmbito da manipulação sentimental, o filme é, verdadeiramente, uma tortura psicológica absurda, em determinado ponto, a necessidade de vingança se torna um sentimento imperioso, e é justamente a partir desse momento que o discurso ético e a afetividade humana conflituam-se em um dilema social que precisa urgentemente ser debatido. E o mais importante, o filme argumenta com a verdade, isso o torna tão legítimo e necessário. Chega a ser decepcionante a pouca atenção que o filme recebeu, Klass é uma propaganda apolítica e atemporal inteligentíssima, é um esboço do entendimento de juventude confusa e desnorteada, é sobretudo um grito por socorro desesperado.
Interessante o fato de quase 3 décadas depois, essa citação do clássico Breakfast Club de John Hughes, parece se encaixar perfeitamente na proposta do filme: "...E essas crianças em que você cospe, enquanto elas tentam mudar seus mundos, são imunes às suas consultas. Elas sabem muito bem pelo que passam...” de David Bowie.
O Pagador de Promessas
4.3 363 Assista AgoraIndiscutivelmente, um dos maiores clássicos do cinema brasileiro, com um realismo e genuinidade argumentativa e visual que dispensa as exageses de Gláuber e Sérgio (Duarte sempre nutriu uma certa inimizade com os cinemanovistas), filme matriz de um contexto social e político único, e, provavelmente um dos três melhores filmes feitos na história desse país. É inclusive em sua essência simples que reside a genialidade da trama porque é justamente nesse ponto crucial que os aspectos mais importantes da história do Brasil e da própria Igreja Romana são implicitamente abordados e se manifestam de uma forma brutal e estigmatizadora e ainda assim, extremamente orgânica . Em menos de 30 min o filme já abordou a subcultura dos ritos africanos, sua influência, o sincretismo com o cristianismo, o desprezo e aversão da Igreja Católica por esse sincretismo, a eterna tensão social entre o camponês e o urbano e o mais importante de tudo, todos esses aspectos brilhantemente costurados pela existência ingênua de Zé, que, por sua vez, representa o sertanejo comum: extremamente devoto, reprimido, miserável, ignorante, uma entidade que apesar de seu labor fundamental, é uma sombra social.
De uma certa forma, um roteiro tão inteligente e original torna completamente dispensável o uso de recursos visuais e narrativos (muitas vezes desnecessários) usados concomitamente em algumas produções mais neorrealistas (caracterizadas como o Cinema Novo). Mesmo assim, o filme apresenta ângulos inovadores e simbolismos característicos da cultura baiana (que para brasileiros de outra parte, são de um exotismo ímpar) que o tornam um deslumbre visual.
O destaque que são as atuação de Leonardo Villar (reza a lenda que o jovem com fama de bon-vivant lutou com todas as forças por esse papel) e Dionísio Azevedo e a tensão criada pelos seus personagens, as metáforas que podemos abstrair das enredadas e complexas relações entre os coadjuvantes que acabam como tropos para a Igreja e as forças armadas como núcleos do Estado repressor, a imprensa marrom como a propaganda antiética institucionalizada e com vício messiânico, e a sociedade pobre, marginalizada, cerceada, representada pela resistência dos moleques tunantes da capoeira - essa mesma, manifestação cultural que lutou contra todo o preconceito social de séculos de estigma de incapacidade psicossocial que sofreram os africanos e seus descendentes até tornar-se patrimônio cultural brasileiro – derrocam na martírio imprevisto de Zé na crítica pura e cruel de que desde que existe um(ns) deus(ses), as pessoas morrem e matam em nome dele(s). É a história pura e viva se manifestando da forma mais natural na vida daqueles indivíduos tão comuns e mesmo assim, tão diametralmente complexos em suas próprias especificidades.
Um incrível retrato de uma sociedade estabelecida através de um paradigma dogmatizador e restritivo tendo que conviver com o pluralismo vigente através de séculos de genocídio e escravidão e frutificados por vítimas e mártires, como o próprio protagonista. Um filme mais que fundamental, necessário, por levantar questões e evocar um debate ainda inexistente na sociedade brasileira sobre o seu futuro como nação laica e pluricultural, um filme que deveria ser exibido nas escolas, não só por ser uma obra de inestimável valor artístico e ainda assim, extremamente inteligível para o grande público, mas, também, por levantar problemáticas tão atuais ao Brasil contemporâneo como o eram há mais de meio século.
Total merecedor do Palm d’Or e de todos os prêmios que ganhou, porque além da honestidade que apresentou o exótico Brasil ao mundo, possui um domínio político muito mais atuante e menos místico que o ótimo Anjo Exterminador (1962). Da palavra ao espírito, do espírito à política.
O Funeral das Rosas
4.3 69 Assista AgoraClássico da Nouvelle Vague japonesa, de um experimentalismo ímpar e força criativa invejável, com certeza um dos filmes mais injustiçados da história do Cinema Mundial. Bara no Soretsu é um deleite visual único, e um banquete em referências literárias, politicas e críticas sociais. E o feito mais impressionante com certeza, é a forma como foi construído, o filme jorra tanta informação de diferentes âmbitos, que ainda é um mistério como não se tornou uma obra sobeja. Ao contrário de todas as expectativas, é um filme extremamente conciso, relativamente simples, que ganha pela genialidade de sua trama e produção. Um feito que muito provavelmente só foi possível graças ao detalhismo e obsessão japonesa pela perfeição. Na experiência que é assistir-ló, o telespectador com certeza se pegará ruminando sobre o quanto cada aspecto da produção foi detalhadamente pensado e concebido.
De acordo com um pensamento comum no meio cinematográfico na década de 1960, os japoneses foram bem mais longe que seus equivalentes contemporâneos na Europa e Estados Unidos, a Nouvelle vague japonesa, apesar de pouco prolífica se comparada ao cenário europeu à época, é comumente considerada superior em diversos aspectos. Bara no Soretsu é a ratificação exata da sentença acima, com sua estética avant-garde e sua essência assustadoramente atual, precede e influencia muitas das obras experimentais de caráter existencialista mais importantes da passagem dos 60/70, Kubrick inclusive, teria declarado que esse era um de seus filmes favoritos, além de uma forte influência para Laranja Mecânica (1971).
Mergulhando na vida de Eddie, uma jovem travesti que se tornou recentemente a atração principal do bar Genet (homenagem ao diretor Jean Genet), o filme acompanha o cotidiano dessa personagem, de uma trupe de boêmios que estão produzindo um filme sobre o universo gay de Tóquio, sua rival e seu amante – com esses dois últimos, forma um triângulo amoroso – e acaba servindo de pano de fundo para expor um pouco do panorama sócio-político da época, com enfoques que vão desde o papel dos transgêneros na rígida sociedade nipônica até o trauma nuclear japonês brilhantemente mostrado em uma das sequencias mais dicotomicamente belas já vista.
A trama, apesar de se estruturar no mito de Édipo Rei de Sófocles, apenas deságua nessa referência em seu surpreendente fim. Mesmo assim, a obra é inegavelmente um resgate da tradição dramática clássica estando repleta de amores proibidos, vícios capitais, seres oprimidos, e o suprassumo das tragédias gregas: o antagonismo entre as personagens principais. Tragédia grega com sabor japonês otimizada por recursos técnico/visuais que jorram da tela como na genial cena do embate entre as divas, ou dos os orgísticos encontros dos núcleos.
Com uma personalidade marcada pelo abandono, uma melancolia dramatizada de forma refinadíssima e com um estilo de vida que alude ao turbilhão cultural que foi o período retratado, Eddie é o total oposto de sua nêmesis: Leda. Um ponto interessante quanto a isso, é que as personagens parecem ter sido moldadas de forma simbólica, polarizando comportamentos conflitantes na sociedade japonesa em meados do século passado. Enquanto , Eddie é joverm, bela, intensa e com poucos escrúpulos, Leda é mais velha, experiente, tradicionalista, dramática de forma inveterada, com um apelo de gueisha, parece um clichê Kabuki que recita haikais e estuda Ikebana. Eddie é o novo, o moderno, sintetiza a estética vanguardista de Shibuya, Leda remete diretamente ao classicismo japonês da Era Edo. Seu objeto de desejo, Gonda, representa o arquétipo de cafetão meio mafioso, com o charme cavalheresco de um bon-vivant noir.
Outro ponto interessantíssimo, a relação filme-sobre-filme se desenvolve de tal maneira, que em determinado ponto, as barreiras entre ficção e realidade se rompem, e nós ficamos sem saber se o que está a acontecer é relativo a suas vidas ou ao papéis que devem desempenhar. Mesmo por optar por essa imersão dimensional, o fime continua bastante crível, especialmente por estar contextuaizado de forma muito específica, vertendo pelos infâmes recursos estilísticos caracteristicos dos japoneses nos diálogos, maneirismos, na abordagem dos dramas pessoais, na violência bizarra, consegue confluir todas essa influências de forma equilibrada. Continua ainda um mistério para mim, a forma como conseguiram desenvolver personagens tão interessantes e conjecturá-los em relações mais intensas ainda.
Provavelmente, “Bara no Soretsu”é uma moldura perfeita da Tóquio underground dos anos 60, um feito corajosíssimo se considerarmos o quão mais repressora é a sociedade japonesa. Respondendo à ditatura corporativista e a truculência do Estado da época com subversividade, o filme reproduz de forma fiel a juventude transviada na década das revoluções (na música, nas artes plásticas, nas ideias, nas drogas e no sexo). Sem sombra de dúvida, um marco, que merece ser visto por sua indiscutível qualidade, e pela sua assombrosa atualidade. Dimanando em uma trama digna e em um experimentalismo digesto, com certeza, um filme que merece muito mais atenção do que já recebeu.
Batalha Real
3.6 588 Assista AgoraÓtima premissa, relativa fidelidade ao formato original, notável crítica social e em última análise, excelente estudo das nuances psico-antropológicas inerentes ás sociedades. A história em si, obviamente sorve de elementos literários clássicos, que foram inteligentemente condensados e compactados para os moldes modernos, fazendo com que assim, pudesse dialogar com as novas gerações, falando de um obscuro passado não muito distante.
Interessante é que a história em si, parece ter sido convenientemente criada para Fukusatsu, que aos 15 anos, viveu a realidade dos bombardeios e perdas na II GM, muitos de seus amigos e familiares morreram e ele, a partir de então, passou a nutrir um forte sentimento de aversão e vingança contra os adultos ao descobrir que a propaganda de guerra mentia quanto a realidade do Japão no conflito. Décadas depois, descobriu a história de Takami Koushun, que parecia metaforizar de forma excepcional sua própria frustração juvenil, fazendo uma forte alusão ao embates entre movimentos anarquistas e o parlamentarismo com traços fascistas do Japão no pós-guerra, sobretudo na década de 60. Sendo também, um assombro retrato da sociedade japonesa moderna, com uma juventude cada vez mais violenta.
O mais interessante sobre Battle Royale, é que é uma obra essencialmente (ou estritamente) japonesa. Possui fortes características fundamentadas no senso estético e narrativo tradicional daquele país, e isso o torna um filme muito difícil de ser analisado com os instrumentos que estamos acostumados a usar para analisar e rotular obras ocidentais. É uma história obviamente ficcional, mas está inserida em um contexto muito realista para ser ignorado, além de geralmente fugir de opções mais convencionais, e de, certamente, abusar da violência em termos visuais, o que, para quem conhece cinema japonês, é extremamente comum, tanto que na maioria dos países, a classificação da faixa etária é de 18 anos, no Japão, é de 14.
Sendo assim, Battle Royale sintetiza muito da cultura japonesa, nos exageros e maneirismos de seus personagens, no modo de agir e pensar, nos “saltos” fora da realidade, mas mesmo assim, consegue ser em sua maior parte, extremamente crível. É claro que muitos de nós gostaríamos que os dramas pessoais fossem melhor desenvolvidos, mas isso provavelmente alongaria demais a história a ponto de tornar-la enfadonha, ou perder-se em um mar de críticas sociais e pecar por não chegar a lugar algum.
Junto a Suicide Club (2002), e Audition (2000), Battle Royale tornou-se decisivo para o cinema japonês, e esses 3 filmes juntos, sintetizam um ótimo momento de produções de ação inteligente e pouco óbvia. É, ainda hoje, um dos filmes japoneses mais influentes do novo século, estabelecendo os parâmetros de violência usados por Takashi Miike e Quentin Tarantino (inclusive algumas referências) e, por isso mesmo, uma ótima oportunidade de conhecer mais dos preceitos artísticos e estéticos recorrentes em filmes japoneses, o que para mim particularmente, é a mais proveitosa das propriedades que cinema oferece, é, através dessa faculdade que conseguimos aprender um pouco mais sobre o outro, sobre seu modo de agir e de pensar, livrando-nos de preconceitos, e amarras intelectuais. Ora, quão justo é julgar a atuação de um artista japonês, de uma matriz cultural completamente diferente da ocidental, pela perspectiva da tradição dramática greco-romana ? Ao invés disso, deveríamos poder ver como uma oportunidade de conhecer e apreciar as diferenças que esta abordagem estilística tem da nossa, pois no fim, é só uma maneira diferente, de chegar ao mesmo resultado.
Para Sempre Lilya
4.2 869Esse é o filme, sobretudo da desesperança, do desamparo e, tem o grande mérito de carregar algo que pouco vimos desde que as produções europeias passaram a competir cada vez mais por maniqueísmos experimentais técnicos, o que após assistir filmes como esse, percebemos que vem chegado à exaustão. Há dias, comentei sobre o também necessário : “Twilight Portrait”, filme russo que merece atenção pela capacidade de dialogar com tabus de forma inovadora, com uma sagacidade que chega a beirar o cinismo, um jogo tenebroso, obscuro, sujo e... sensual, e em parte, só consegue ser assim, por seu um filme russo, sobre histórias russas. Sabemos todos que Liljya 4-ever é um filme sueco, mas duvido que atingisse tamanho nível de dramaticidade se fosse sobre uma história ambientada na Escandinávia moderna, a Valhalla do mundo.
É obviamente, o mais forte e mais intenso filme do realizador, que também escreveu o roteiro. Perto deste, outros títulos do diretor como: Container e Fucking Amal viram dramas banais, no caso do último, superficial e dispensável .
O roteiro foi adaptado da história de Danguole Rasalaite, de 16 anos, morta dias após a tentativa de suicídio, a lituana de 16 teve sua história revelada através das cartas que carregava consigo, uma vida marcada pelo pobreza, violência e abuso por parte dos pais. Sua história gerou forte comoção na Suécia, e Lilja 4-ever foi incluído na lista de filmes do programa da UNICEF para as metas do milênio nos itens: erradicação da pobreza, erradicação da exploração laboral e sexual e, igualdade entre gêneros.
Com poucas alterações no script, chama a atenção na tela, a opção por maneirismos narrativos que tendem ao melodrama, o que acabou por se tornar polêmico no filme.
O que fica muito claro desde o início, é que tudo nesse filme foi criado com a intenção torturar o telespectador, um processo de agonia que se inicia logo nos primeiros minutos, denunciando o fim da história. A escuridão, o frio, a sujeira, tudo, absolutamente tudo tem um tom depressivo, mas não uma depressão metafísica, ligada aos efeitos da solidão e dos mistérios da existência, uma depressão real, fisiológica, causada pelas necessidade básicas não atendidas, pela degradação moral e social dos seres humanos, pelo cenário de escatologia generalizado e pela entrega deliberada de violência de todas as formas. Esses fatores são intensificados pelo realismo brutal constante jogado à nossa frente em doses cavalares, pesado, pesadíssimo aliás. Apesar de ser um patrimônio comum, um registro de utilidade pública, de como já foi exaustivamente dito: um filme que todos deveriam assistir, não é tão facilmente recomendável.
Aos 10 min, o filme já atingiu o clímax de um horror angustiante, daí pra pior. Da famigerada cena do abandono - uma das mais perturbadoras já vistas – a decadência absoluta da personagem, é certa. A constante de negatividade é tão grande no filme que por pouco, ele não se transforma em um explotation bem produzido (vide Serbian Film), não fosse o seu foco narrativo e seu realismo simplesmente indigesto.
Li em muitos comentários (alguns extremamente apaixonados), que Lilja e Volodja eram crianças angelicais e pueris. Devo discordar, eram sim crianças, mas de modo algum tão inocentes, até porque, apesar de tenra idade, os 2 já haviam sido expostos aos piores tipos de experiências imagináveis, eram produtos de seu degradante meio social. Assim como muitos “vilões”do filme, que representam sínteses ignóbeis de um ambiente e de um contexto que tendem única e somente para a tragédia.
Um ciclo contínuo, uma sociedade destituída de qualquer suporte benéfico. A visão real não é falseada pelo filme, a vida nos antigos cantões sovietes e justamente essa: salve-se quem puder. Não que isso justifique as expressões deliberadas de violência mútua entre os núcleos da história, mas no reino animal, um dia é da caça... !
A podridão, a pobreza, a falta de perspectivas e o frio que cercam Lilja tornam qualquer uma de suas escolhas pouco criticáveis. A sensação é a mesma, em todos com quem conversei sobre o filme, em todos que escreveram críticas sobre. Não há outra saída, não há escapatória, a desesperança, toma o lugar. A ideia de sair dali, mesmo que pareça irreal e pouco confiável, é tentadora demais para alguém tão pobre, tão sozinha, tão faminta e que foi tão pouco à escola.
O cacofonia techno nauseante e desesperada dá lugar ao frio aristocrático escandinavo, Lilja chega ao novo país, tão organizado, tão civilizado, tão perto da Rússia e, ainda assim, tão distante da barbaridade eslava, a cacofonia se esvai, o desespero não. Tomando noção da real intenção do seu “chefe” e sendo confrontada com uma vida de mais violência diária, difícil imaginar outra resolução definitiva para o problema do que a achada pela protagonista.
Em uma determinada sequência, ambientada em um shopping, é interessante perceber a atitude evasiva, assustada e desesperada de Lilja, quase gritando por socorro usando apenas os olhos, tudo em vão, se a barbárie generalizada dominava a sua arcaica terra natal, no admirável mundo novo escandinavo, a indiferença é a regra da casa.
Com o final já esperado, Lilja 4-ever mostra ser um filme necessário, menos pelos aspectos artísticos que pode agregar, e mais, muito mais, pelo quanto pode comover e servir de forma benéfica ao combate ao mal denunciado. Talvez para atenuar a história como um todo, o diretor opta por exibir também, um final alternativo, feliz. Como fez com as escapadas surrealistas envolvendo anjos e promessas.
Verdade é, Danguole Resalaite teve de conceber seus próprios subterfúgios emocionais ao inferno que viveu durante toda a vida. Provavelmente um anjo não lhe levou aos céus lhe entregando o mundo de presente. Se ela fez o que fez, é porque simplesmente não havia mais anjo algum em sua vida.
Por fim, uma falha constante que se cai ao tentar analisar o filme, é argumentar que o suicídio é apresentado de forma quase-positiva. Ora, convenhamos que enredar pelo complexo conceito do suicídio enquanto categoria filosófica (como reverberado pelos especialistas: a única verdadeiramente séria), provavelmente não foi a intenção do realizador. Vale lembrar que esse história é não ficcional, realmente aconteceu, e era preciso retratar seu desfecho tal qual o ocorrido.
Outro dia, encontrei uma imagem emblemática do filme, acho interessante pela questões que ela traz consigo, Lilja, em preto e branco, ao meio dos símbolos da ex-URSS e da bandeira estadunidense, em uma clara referencia ao contexto histórico em que viveu. Nenhuma das duas salvou sua vida.
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A Teta Assustada
3.7 170Filmes que retratam particularidades históricas através de tramas pessoais já possuem vantagem narrativa e apelo idiossincrático naturais, mesmo assim, é necessário cautela e habilidade para que não acabem caindo nas armadilhas dos clichês romantizados pela história e pelo imaginário popular. Além de conduzir com maestria e muita técnica, a diretora Claudia Llosa traz à obra um aspecto realista-fantástico magnânimo, sobretudo, se considerarmos o panorama das produções latino-americanas recentes. Inovador, sensível e intenso, “La teta asustada” é singular em termos estéticos, tudo no filme parece ter sido meticulosamente planejado para criar uma atmosfera agonizante, com um foco superior onipresente, luz branda e ângulos intimistas.
A trama não poderia ser mais criativa e instigante, nascida de uma vítima da guerra terrorista do Peru, Fausta herda toda a miséria e angústia através do leite de sua mãe, o que lhe relega uma personalidade extremamente fechada, pouco social e, mesmo assim, determinada e subversiva, uma metáfora brilhante para a própria história da América Latina, marcada pelo conflito eterno entre capitalismo e socialismo, Fausta personifica essa metáfora brilhantemente, exótica, púdica, amedrontada, solitária. O seu medo é simbólico, e como um trauma atípico de uma geração que não viveu os horrores das ditaduras e das milícias que marcaram com muito sangue o continente nas últimas décadas. Tanto que sua aversão quase fanática ao sexo oposto, simplesmente não faz sentido algum para a sociedade moderna, o que faz o filme parecer as vezes, um esforço contínuo (e louvável) para que as gerações mais jovens não repitam os mesmos erros do passado. Isso é percebido logo no início do filme, com o relato cantado de sua mãe.
Dessa forma, a trama flui de forma contudente, como um retrato dos conflitos ideológicos entre o antigo e o moderno, entre supertsição e ciência, o que vai moldando a própria caminhada de Fausta, que começa como uma figura extremamente fechada e auto-protetiva: “Esse é meu escudo”, confessa ela, se referindo à fécula que a lacra, que a protege da violência. Ao fim, cansada do medo, da fuga, do olhar baixo constante, ela opta por sua remoção.
Outro ponto marcante, é como as cores são utilizadas ao longo do filme, como um contraponto a opressão imprimida pelos céus, pelas montanhas e pelo deserto. As cores, parecem ser usadas para combater, mesmo que psicologicamente, as dificuldades da vida nesse mundo infértil. A verdadeira aquarela pintanda pelo credo popular, vibrante, intensa, é como uma busca constante por uma saída daquele cenário tão hostil, da miséria sintetizada pela paisagem. Tal qual a agente funerária se refere ao Oceano Pacífico no início do filme: “a visão dele, lava a alma”. Na sequência do casamento por exemplo, o contraste entre a pintura da cachoeira em meio a floresta tropical (usada como fundo para as fotos) e a verdadeira paisagem desértica da região simboliza esse sentimento.
A chegada á casa grande também é emblemática nesse ponto, apesar do entorno desértico e hostil, o lugar se ergue como um oásis, com jardins exuberantes e cheios de vida, onde simplesmente não deveria haver. O conflito entre classes torna-se simbólico, metaforizado pela hierarquia do trabalho: a senhoria do lugar é branca, a governanta é negra, Fausta, a empregada, descende dos habitantes mais antigos da região, mesmo assim, ocupa a base da pirâmide, uma metáfora brilhante aos resquícios do colonialismo em que esteve pautada a exploração da América Latina.
Outra metáfora interessante, é a do relacionamento desenvolvido por Fausta e Noé. Apesar da aversão a homens, ela permite que ele se aproxime, que compartilhe de suas memórias e de seu medo. Talvez não tenha sido intencional, mas tive a impressão que apenas um homem delicado e cuidadoso como Noé, que trabalha com flores (na cultura inca a flor representa a mulher) poderia criar laços tão fortes, considerando o histórico de relações da moça.
Acredito eu, que esse filme é um grande feito, sobretudo pela visibilidade que teve, além de ser um esboço da história recente regional, é um feito pela forma dinâmica e crível que registra o condicionamento humano frente a barbárie. É um feito pelo resgate tão profundo e honesto da tradição oral, pela abordagem popular á memória através do canto, em quíchua, assim como se fazia há mais de mil anos. É como se, ao assumir sua identidade indígena, o país estivesse finalmente aceitando abordar e tratar dos seus traumas.
Por fim, é preciso dizer que esse filme é sobretudo, da atriz Magaly Solier, em uma atuação brilhante, a moça traz à personagem, o pavor, a fragilidade e a coragem necessárias para uma história fantástica, relacionada a uma realidade infelizmente, factual.
Retrato no Crepúsculo
3.4 28O cinema russo contemporâneo vem sido marcado paulatinamente por um precisão visual e argumentativa extremamente sombria, por vezes doentia, o que parece caracterizar um novo movimento artístico no país. É claro que essa é uma ideia extremamente imatura e generalizante, obtida através de uma percepção muito categórica e simplista das coisas, mas caso estivesse nascendo um novo tipo de escola cinematográfica na Rússia, a considerar pelo que já foi produzido, com certeza se pode esperar obras extremamente polêmicas, histórias social e moralmente subversivas e personagens controversas.
Vide o épico bestial : A minha alegria (2011), "Twilight Portrait" representa singularmente essa nova safra russa. com todas as características marcantes anteriormente citadas, e com o diferencial de ter sido idealizado e dirigido por uma mulher. *(A protagonista: Olga Dykhovichnaya também colaborou no roteiro).
Um dos fatos que muito me vem intrigando quanto a esse novo cinema russo, é o lugar comum argumentativo de onde o protagonista nos é apresentado em uma situação de decadência generalizada e após toda a trama e as reviravoltas necessárias, termina na mesma situação, parece uma constante a degeneração psicológica, social e moral humana, o que com certeza, gera um sentimento de angústia opressivo e dilacerante no telespectador.
O que é importante citar, é que coincidentemente ou não, desde a dissolução do império soviético e a implantação das Troikas, a vida na Rússia pouco melhorou, as disparidades sociais aumentaram exponencialmente e o liberalismo gerou uma horda de marginalizados e índices de violência sem precedentes. Aparte de um debate político, o sentimento de desesperança e desolação tal como o sofrimento das privações vem acompanhado o povo soviético há mais de um século, sendo o Estado Russo conhecido nominalmente como um estado mafioso, o futuro da nação parece sombrio. Esse panorama desolador serve de inspiração para muitas histórias intrigantes, mas dramaticamente reais, o que ratifica a máxima do: "quanto mais triste, mas bonito soa", e, nos incute a ideia de que o russo é em si, psicologicamente perturbado por uma opressão constante da geografia, da terra, do Estado, e, que passou de um faminto escravizado pelo comunismo, para um agente afetado, combalido e enlouquecido pela nova sociedade capitalista.
Talvez daí, a interessante ideia de situar a protagonista Marina, em uma classe social privilegiada, à parte da miséria do resto da cidade, surge vestida de forma extravagante e contrasta nitidamente com o todo ao seu redor. É curioso perceber que um estupro ocorre logo no início do filme, no decorrer da trama, através da dramatização - um tanto caricatural - do funcionamento dos órgãos públicos e da corrupção cavalar, surge a constatação da inexistência de uma rede de seguridade social que proteja os cidadãos, em decorrência disso pouco, ou nada seria feito para punir os criminosos.
Mais curioso ainda, é perceber que, essa situação, que parece previamente relegada as esferas burocráticas, é na verdade, o retrato da sociedade como um todo, revelado em situações rotineiras de perigo a qual é exposta a protagonista. Marina tropeça, quebra o sapato, se machuca, é assaltada e surpreendentemente, ninguém vem em seu auxílio, apesar de a própria pedir por ajuda diversas vezes. Parece ser o retrato de um sociedade doente, vil, egoísta, talvez seja um ponto um tanto exagerado pela produção, mas que não deixa o filme menos crível.
Outra tirada muito inteligente, foi conceber a contradição de Marina como uma moca rica, ter escolhido ser assistente social, em favos dos oprimidos . Então a trama descortina-se como um interessante estudo do combate mais clássico de todos: ricos vs. pobres.
Após o incidente que muda sua vida, Marina segue com sua rotina de forma conformista, o que é muito comum em vítimas desse tipo de violência, mas sua vida mudou, tendo sido exposta a violência que lida todos os dias, ela logo confronta a própria bolha em que foi criada, na figura de seus amigos e marido, destila verdades inconvenientes em um ato simbólico de libertação da vida moralista burguesa de polidez e adestramento comportamental.
É a partir desse momento que o filme ganha um interessantíssimo escopo psico-antropológico, por ironia do destino, a jovem reencontra os seus algozes. Em um ato impulsivo - julgamentos à parte - resolve seguir um deles, até então, tem se a nítida impressão que o objetivo primordial é a vingança, mas quando tem acesso a seu alvo, ela acaba por se entregar, a luxúria, mudança de rumo sintetizada quando ela deixa cair o gargalo da garrafa no chão enquanto pratica sexo. Obviamente remontando ao clássico de Imamura: Akai Satsui (1964), e pronto, o filme ganha a coroa do tabu. Síndrome de Estolcomo ? Complexo de culpa ?
Considerando os fatos: Marina estava completamente insatisfeita com a vida conjugal, a despeito de sua frígida vida em casa, ela já vinha cometendo adultério, assim como em Desejo Profano, era uma mulher com uma vida extremamente monótona, vivia a aflição extenuante e nociva da rotina, da desventura, das obrigações sociais.
E daí, surge um debate interessantíssimo, alguns argumentam que o filme é extremamente sexista, outros, que é preciso analisar as condicionantes e tentar entender a verdade em tudo aquilo, alguns, que é extremamente relativista. Pode ser, mas é válido lembrar que o argumento foi criado por duas mulheres, não que isso o inviabilize de certos questionamentos morais, mas duas mulheres que cresceram em uma sociedade notavelmente machista como a russa, é difícil acreditar em um "apelo" sexista.
É claro que há espaços não preenchidos pela trama, como o fato de haver a questão de que os criminosos continuam atuando, mesmo com ela se entregando espontaneamente a animosidade de uma relação com seu verdugo. O inesperado ápice surge nos momentos de entrega sexual deliberada, em que em inflamado êxtase, Marina confessa amar o homem que a violou. Pode-se constatar a autenticidade de seus sentimentos que parecem reforçados após descobrir a trágica infância de seu objeto de desejo.
É claro, há também a questão de Marina trabalhar com traumas alheios, que com certeza, influí no argumento de que ela, na verdade, está estudando o perfil de seu agressor, e confesso, não havia pensado nessa hipótese, mas o que me parece bem claro, é que a história gira em torno de um bizarro caso de dependência afetiva, de busca por subterfúgios frente a massacrante vida em sociedade.
A medida em que vai se desenrolando como um conto de fadas às avessas, as personagens parecem mudar sua essência, uma dinâmica interessante de expectativas superadas ou frustradas vai se desenrolando. Será condenável torcer para que Marina viva da forma que escolheu, será possível que seja correspondida.
Com certeza, uma interessante imersão na psiquê humana, revelando a animalidade do homem, que apesar de se encontrar em uma condição domesticada, reage a agressão de uma forma totalmente contrária aquela esperada pela sociedade. Um martírio que gerou uma patologia ? Ou despertou o instinto primitivo de um sapiens ?
Quanto aos aspectos técnicos, e relevante dizer que o filme foi produzido sem orçamento algum, com câmeras emprestadas, e alguns atores amadores. A julgar pela fotografia claustrofóbica, e que gradualmente vai ganhando um aspecto soturno, a agressividade visual das cores funciona muitíssimo bem.
Enfim, um filme que precisa ser visto !
Amores Imaginários
3.8 1,5KEsse é o primeiro filme do realizador ao qual eu assisto e, sinceramente, a julgar pelo que foi posto, melhor, sobreposto aqui, Dolan ainda tem um longo caminho de amadurecimento para percorrer. Apesar da boa intenção explícita de retratar os desencontros amorosos e o desatino gradual que esse sentimento nos relega, o filme possui uma narrativa e enredo fracos, por vezes, desconexo,
boa foi a iniciativa de inserir relatos de pessoas que sofreram e sofrem por amor, seus devaneios e os absurdos a que se propõem para seguir a pessoa amada, deu um ar bem documental ao filme, mas acaba que muitos dos depoimentos acabam revelando idéias (e pessoas) bem imaturas, incoerentes, patologicamente carentes e acaba por diluir a boa intenção inicial em algo próximo a uma grosseira representação de amores impossíveis na vida real.
A parte técnica foi bem trabalhada, a equipe de arte criou um ambiente plasticamente bem regular, por vezes, destoante do conceito geral, mas, com o mérito de criar com qualidade a atmosfera retro do mundo de Francis e a estética Noir do de Marie, e juntá-los, em uma mistura prolixa, mas digesta.
Aspectos como a trilha sonora e os efeitos especiais foram um grande pecado do filme, ao optar por trabalhar na perspectiva de um clássico noir, Dolan prova toda sua imaturidade e inexperiência no cinema,
a reprodução de slow motions caracterizados pela música repetitiva, pela fumaça dos cigarros, por uma pop art confusa e de cores nauseante e pela sobreposição de camadas, revelam uma forte referência a Wong Kar Wai, caso isso não tenha sido uma homenagem (um tanto mal sucedida), foi um feito sofrível do realizador.
Em termos objetivos, o filme pouco acrescenta à longa filmografia sobre o tema, mas o pior, é que ao optar por recriar o glamour do Noir, em um mundo de pós-adolescentes ainda extremamente imaturos, com pouco envolvimento, uma tensão maquinada, torpe, apenas a idealização que Francis e Marie criam de Nicolas é elogiável.
Apesar de conceber um Francis perfeitamente crível: solitário, idealista, fraco,
(a carta datilografada chega a ser ridícula depois de tantos cúmulos desnecessários)
O desfecho, realista e sóbrio, tenta resgatar alguma dignidade ao filme que simplesmente se perdeu após os primeiros 40 minutos, e até tem êxito, mas apenas se você conseguir assistir-lo até aí.
Para um Soldado Perdido
3.6 77É necessário esclarecer antes de qualquer coisa que para discorrer sobre essa história, você precisa discernir bastante os elementos reais do livro, e os artifícios usados no filme. A versão cinematográfica possui, sem dúvidas, a mesma base contextual do livro, mas opta por dar uma dimensão bastante diferenciada, o que chega a ser bastante injusto à memória de Van Dantzig, uma vez que o próprio se identificava como tendo sido vítima de um predador sexual.
O filme estrutura-se basicamente como um flashback,
os eventos que antecedem a Libertação pelos Aliados são um tanto monótonos, especialmente ao tentar externar as dificuldades de adaptação do garoto a vida na Frísia, com costumes e dialeto distintos.
Com a chegada dos Aliados, o filme realmente ganha escopo, por causa da relação crescente do garoto com o soldado, uma tensão surge, e todos os personagens são diametralmente afetados, sobretudo o pai adotivo de Jeroen.
Algo realmente incômodo é que, apesar de muitos perceberem e terem plena consciência do que está acontecendo entre os 2, ninguém faz nada, mas esse não é um fator presente apenas no filme, no livro, Dantzig relata uma situação semelhante. Desde o desembarque na Normandia, muitos soldados aliados desenvolveram relações de caráter unicamente sexual com moças, e alguns, com rapazes por onde passassem, esses relacionamentos eram vistos como efêmeros e, as vezes, muitas famílias fantasiavam que suas filhas pudessem arranjar um marido estadunidense, o que lhe garantiria uma vida melhor longe da Europa destroçada, por isso, além da Igreja, pouquíssimas pessoas se contrapunham a eles.
Após o ato carnal e a partida de Walt, muitos espectadores podem se sentir solidários a Jeroen, e esse, é basicamente o grande trunfo do filme: glamourizar a relação pederástica existente. O modo como o Walt do filme é composto (jovem, pulcro, solitário, melancólico) parece objetivar que a audiência o veja menos como soldado, e mais como uma vítima da guerra, o que o próprio expressa em um diálogo com Jeroen (O Walt de Dantzig era um homem muito mais velho, com aspecto assustador e comportamento extremamente impróprio). Mas o filme também é fiel a alguns aspectos recorrentes no livro, o que indicam claramente a natureza predatória de Walt, ele está sempre munido de doces, participa de atividades em que tenha acesso livre a crianças e busca agir de forma a garantir a confiança dos responsáveis.
O que fica bem claro no filme são as profundas feridas psicológicas deixadas por aquele relacionamento, sobretudo, por seu abrupto fim, mas mesmo depois de vários anos, Jeroen não se percebe como sendo uma vítima de um predador, na verdade, toda a as vida foi direcionada para que ele um dia pudesse rever Walt, como se nutrisse amor pelo soldado, na história real, após algum tempo, Jeroen toma dimensão de tudo o que viveu, e compreende que foi molestado por um homem que não sustentou por ele qualquer tipo de sentimento.
Existem algumas passagens bem obscuras que demonstram isso, em determinado ponto, Jeroen relata que na noite após a cópula, enquanto dormia no quarto do soldado, esse o acordou e levou até a saída, lhe desejou boa noite e entrou de volta.
Obs. : Alguém além de mim percebeu o quanto o ator que interpreta Walt (Andrew Kelley) se parece com Carlos Alberto Riccelli ?
A Árvore da Vida
3.4 3,1K Assista AgoraO que eu também absorvi do filme e que alguém já comentou aqui é justamente o fato de possuir uma atmosfera profundamente existencialista. Sem querer soar pretensioso, mas acredito que é basicamente por isso que a maioria das pessoas fez comentários negativos ou não o entendeu. O filme, mais que filosófico, é essencialmente metafísico, como o próprio conceito de vida, por isso, não é qualquer pessoa que terá propensão a sorver de sua beleza abissal ou de sua profundidade conceitual.
Antes de tudo, vale lembrar que Terrence Malick é filósofo, e que suas obras cinematográficas servem como plataforma para a manifestação não só de seus preceitos artísticos, mas também, de seu estudo profundo da vida humana e de suas tangentes em relação ao ambiente no qual estamos inseridos. Ele o fez em produções anteriores como: “Terra de ninguém”, no qual as personagens estão submersas em um mundo de negação agressiva ao macrossistema social no qual estão inseridas. Em “O Novo Mundo” e “Árvore da Vida”, ele demonstra um crescimento gradual de sua preocupação com a existência humana e com toda a sorte de males e a bonança que esta implica, curiosamente, o culto a natureza também se mostra muito presente nessas obras. Como todo bom filósofo, Malick é profundamente intrigado pela idéia de uma dualidade simbólica e universal que a consciência nos relega, em “O Novo Mundo”, está dualidade é representada pela natureza pueril, graciosa e por vezes, tola, que se manifesta através da cultura ameríndia nativa, e, principalmente, nos momentos solitários de Pocahontas em meio a relva, uma graça e harmonia que chegam a ser caricatas. O mundo moderno, a riqueza, a ostentação e a negação de tudo o que é natural, selvagem, livre, é representado pelo mundo de John Smith, sua civilização avançada, presa à burocracia, às vicissitudes e, nomeadamente, à ganância. Esse antagonismo também se reflete em “A Árvore da Vida”, mas, dessa vez, definido de outra forma.
Logo no início do filme, somos apresentados as duas forças cósmicas que permearam toda a trama: a graça (pura, gentil, benevolente e que nunca pede nada em troca), e a natureza, (dessa vez, retratada com severa, intransigente, violenta, quase vil), propositalmente representadas em ângulos estritamente opostos, pelas duas forças nominais da trama, a mãe (a graça), e o pai (a natureza). Essa dualidade irá se manifestar durante toda a história, nos momentos de imersão do personagem de Sean Penn em seus traumas e alegrias infantis, que acabaram relegando a ele próprio uma personalidade confusa, perdida, prolixa. Em termos mais dinâmicos, é o clássico, a razão VS. o misticismo. Eu particularmente acho interessante pensar no Sr. O’Brien como uma metáfora à racionalidade, à destreza humana, à ambição e à austeridade, ele representa a natureza maculada, mecanizada, doutrinada, mas nem por isso, deixa não-selvagem, a Sra. O’Brien por outro lado, é a personificação da graça divina, uma caricatura do gênero feminino, com todos os clichês possíveis, dotada de todas as qualidades que a sociedade exige da mulher: amorosa, dedicada, bondosa, benevolente, circunspecta e subserviente, quase que não humana de tão apática, um verdadeiro ser mítico. Há aí, um aspecto importante do filme, ele é abertamente inspirado na própria infância do diretor no Texas, a forma como ele constrói as personagens, de forma tão opressoramente moldadas, remete as suas próprias lembranças, no ambiente bucólico, tradicional, idílico.
É importante dizer também, que o filme está paulatinamente marcado por imagens epifânicas construídas da mais bela forma possível, acompanhada pela primorosa música de Smetana, Malick nos apresenta a tirania da consciência, do livre pensamento, mas, também, da religião. Com algumas das mais belas imagens de eventos que datam do início ao fim do Universo, e da miséria humana, da pequenez de nossa espécie, aprisionada em um canto obscuro em meio a um sistema muitíssimo maior, relegada a uma sobrevivência medíocre, diria até inútil, em um planeta que sucumbirá tão rápido quanto surgiu, (notaram o laço de amizade com outra obra existencial notável?). O início e o fim dos tempos, e toda a sorte de infortúnios compreendidos nesse intervalo, ajudam a construir um panorama lacônico, subjetivamente riquíssimo da natureza e da graça, em perfeita harmonia, mais no universo apenas, onde quem sabe, Deus pode existir. Na escala humana, estamos sujeitos apenas a brevidade da vida, a efemeridade das coisas, a desgraças, a morte e a algumas pequenas alegrias. Ao ponto em que a Natureza, rígida e justa cria o Universo, subjugando tudo a suas leis, a graça, sempre afável, ensina, ama, e perdoa todas as transgressões, como o bandido preso, nascido e criado na severidade da natureza, onde quem vence são os mais fortes, recebe das mãos da graça, no momento de seu suplício, um pouco de água, um olhar de compaixão.
Por fim, há o emaranhado de visões oníricas do paraíso, um doce brinde a ingenuidade humana em querer viver eternamente, livre de todas as dores, tormentos, perto de Deus, da mãe amorosa, dos amores pedidos, da redenção.
A mãe liga tudo, é a Árvore que dá a seus frutos a vida, é através da mãe que estamos diretamente ligados a Deus, ou ao infinito, só os seus galhos os atingem, só a mãe, em sua dor, em seu cansaço, nos dá o transe na gloria da Vida, nos dá redenção na Morte, o pai, engendra o sofrimento que compreende este intervalo, assim como nós, em nossa suprema ignorância e insignificância, preenchemos com dor, o pequeníssimo mundo que temos, até o momento derradeiro, o fim do Universo, pode-se abstrair então a metáfora mais importante do filme talvez, a mãe e o pai, Deus e a Razão, são nossos próprios pais, são a quem recorremos nos momentos de dor, de infortúnio, para aliviar o medo que temos do desconhecido, do inevitável fim, da morte.
Enfim, eu particularmente, sempre acho um pouco a mais de sentido sempre que assisto a essa obra, para mim ela é verdadeiramente inspiradora, e, parte disso, se dá principalmente pela inconexão de suas partes, que se petrificadas em um plano cronológico retilíneo, talvez não funcionassem tão bem. A Árvore da Vida, infelizmente, não é um filme em celebração ao espírito humano, é justamente a celebração do que é maior, do que é épico, do que nos rege, mas ao menos, nos relega um lugar privilegiado, um lugar de onde, das maneiras mais inesperadas e rotineiras, o épico, o místico, o universo inteiro e Deus, se manifestam, e isso, inegavelmente, está traduzido em suas imagens.
Flores do Oriente
4.2 774 Assista AgoraQuanto ao filme: Zhang Yimou é reconhecido por retratar as mulheres no cerne da cultura chinesa de forma ímpar, foi justamente o que lhe rendeu tanto esmero internacional, uma vez que suas personagens femininas são fortes e quase sempre independentes, o cineasta faz isso de forma única, quase sempre sem pecar pelo exagero de transformar a mulher em uma caricatura heróica com coragem e valentia sobre humanas, ele o fez em: “Sorgo Vermelho”, “Tempo de Viver” e na obra-prima “Nenhum a menos”, com certeza não o fez em: “O clã das adagas voadoras” e “Lanterna Vermelha”. A fotografia do filme também é tão característica do diretor quanto o é a constituição dos personagens, os contrastes de cores claras em meio a um panorama de caos, escuro e sombrio, como o fez em: “O clã ...” e sobretudo, em “Tempo de viver” e “Operação Xangai”, estabelecendo um tipo de paradigma para os realizadores conterrâneos e contemporâneos. E aí, chegasse a um ponto crucial nesse filme que resume bem a intenção do diretor. Nas artes chinesas a mulher é geralmente retratada como uma flor, sensível, delicada, vulnerável, cheia de cor e com período certo para desabrochar, mesmo com todas as infelicidades da vida. A importância da metáfora não se dá por uma razão de referência cultural somente, mas também, pelo fato de as personagens carregarem uma espécie de luz própria, inicialmente apenas de beleza e luxúria, mas que com o decorrer da história, percebemos que foi construída sobre seus próprios traumas e misérias, como uma flor, que desabrocha nos cantos dos muros de pedra, sob o céu cinza das cidades também cinzas da China Imperial, a
s mulheres do lendário rio Qui Huai, representam esse desabrochar, esse fluir de vida, de cores, de representações simbólicas, não só como meretrizes, mas como artistas versadas, articuladas, sedutoras, aliás, não só as mulheres desse grupo, como todas durante o filme, seja em seus deslumbrantes vestidos Cheongsam, seja sendo vislumbradas pela perspectiva dos coloridos vitrais coloniais. A tradição chinesa impõe submissão e discrição a elas, mas não Zhang Yimou, isso, ele nunca fez. Inicialmente representadas como a antítese das meretrizes refugiadas, existem as meninas puras e inocentes do convento, protegidas até então por sua cristandade, e finalmente expostas aos horrores da guerra e da violência epidêmica contra os mais fracos. Essas crianças são subjetivamente moldadas para não possuírem identidades destoantes, elas possuem convergências primárias, mas são objetivamente como telas em branco, sendo finalmente tocadas, infelizmente, pelas atrocidades da guerra. Há um breu cronológico importante aí, nos deparamos com uma importante colocação quanto à divergência dos grupos, no primeiro, se temos mulheres voluptuosas ironicamente pintadas em uma aquarela pulsante e vívida justamente por seus traumas e tristezas, no segundo, temos crianças sem experiência alguma de vida, que são obrigadas a crescer justamente naquele cenário cruel. O que era pra ser motivo primário de conflitos acaba tornando-se o ponto principal de toda a trama. John Miller (Christian Bale) é obviamente, o maior pecado do filme, o personagem é um clichê absurdo de filmes Western, um homem solitário e também traumatizado, que acha sua própria rendição em um momento de extraordinária crueldade e acaba encontrando redenção, mas mesmo o seu personagem, com todo o desconforto dessa influência subversiva do gênero se faz necessário. Finalmente chega-se a um personagem a qual, infelizmente, não vi muitas citações: o garoto George, a antítese do personagem de Christian Bale, jovem, responsável, extraordinariamente disciplinado, calculista e, especialmente, íntegro, sendo apenas uma criança, mas que foi salvo da miséria, e como manda a velha tradição oriental, deve ao seu salvador, a própria vida. A coragem e intrepidez de George funcionam como um contrapeso a desvirtuada moral de John (Christian Bale), o clássico confronto ideológico entre Oriente e Ocidente, entre tradição milenar e vanguardismo torpe. Há também, o heroísmo do Major Li, protegendo até o último momento mulheres e crianças, seu idealismo e brilhantismo militar se revelam em mais um momento de cores e beleza em meio à brutalidade explosiva da guerra.
Flores do Oriente
4.2 774 Assista AgoraEu particularmente sempre almejei assistir a um filme que retratasse os fatídicos acontecimentos do que ficou conhecido como "O Estupro de Nanking", sobretudo porque ficou conhecido como um momento crucial da provação do povo chinês, o que Hobsbawm chamou de: "O Holocausto Esquecido". É válido lembrar que, até hoje, o Japão não fez um pedido de desculpas formal pelas atrocidades cometidas contra civis. Sendo a China, até 1970 um país extremamente dependente dos investimentos japoneses, um filme que os retratasse como sádicos cruéis seria no mínimo, um estorvo à suas relações comerciais, então, eu encaro o feito de Zhang Yimou, como uma homenagem a todo o povo chinês, meio que um clamor contra a negligência japonesa aos fatos ocorridos (as atrocidades cometidas por soldados japoneses são omitidas dos livros escolares do país) e ao silêncio e subserviência de seu próprio governo. De certa forma, o avanço econômico chinês, e sua consequente emancipação do capital japonês e estadunidense possibilitou que essa ferida não cicatrizada pudesse ser retratada como já o foi no recente “Cidade da Vida e da Morte”, quanto por um cineasta e elenco estelares desse projeto, e desse maior visibilidade para a causa das chamadas: "Damas de conforto."