Filme espetacular, recomendadíssimo..... Traz uma excelente reflexão atual sobre a questão da privatização e nos mostra como que a história acaba se repetindo sobre outros rostos e contextos.
Filme fantástico para conhecer um pouco mais sobre os bastidores dos poderes bancários!!
"Agora enriqueço os ricos e empobreço os pobres. Sou um banqueiro normal... Meus amigos, eu sou o Robin Hood Moderno, vou continuar roubando dos pobres para dar aos ricos. "
Ditadura do proletariado em Gotham City: Artigo de Slavoj Žižek sobre o novo Batman.
Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge confirma mais uma vez como os blockbusters de Hollywood são indicadores precisos da situação ideológica da nossa sociedade. A narrativa (resumida) se dá da seguinte maneira. Oito anos depois dos eventos de Batman – O Cavaleiro das Trevas, capítulo anterior da saga Batman, a lei e a ordem prevalecem em Gotham City: sob os extraordinários poderes do Ato Dent, o comissário Gordon praticamente erradicou o crime violento e organizado. No entanto, ele se sente culpado pela cobertura dos crimes de Harvey Dent (Dent morreu ao tentar matar o filho de Gordon, salvo por Batman, que assumiu a culpa em nome da manutenção do mito de Dent, levando a uma demonização de Batman como vilão de Gotham) e planeja admitir a conspiração em um evento público de celebração a Dent, mas acaba concluindo que a cidade não está preparada para a verdade. Bruce Wayne, que não atua mais como Batman, vive isolado na própria Mansão enquanto sua empresa desmorona depois de ter investido em um projeto de energia limpa criado para aproveitar a energia nuclear, mas encerrado quando ele descobriu que o núcleo poderia ser transformado em uma bomba. A lindíssima Miranda Tate, membra do conselho administrativo da Wayne Enterprises, convence Wayne a refazer a sociedade e continuar com seus trabalhos filantrópicos.
Aqui entra o (primeiro) vilão do filme: Bane, líder terrorista e antigo membro da Liga das Sombras, consegue a cópia do discurso de Gordon. Depois que as tramas financeiras de Bane quase levam a empresa de Wayne à falência, Wayne confia a Miranda a tarefa de controlar seus negócios, além de ter com ela um breve caso amoroso. (Nesse aspecto ela compete com a gata-ladra Selina Kyle, que rouba dos ricos para redistribuir a riqueza, mas acaba se juntando a Wayne e às forças da lei e da ordem.) Ao descobrir a movimentação de Bane, Wayne retorna como Batman e confronta Bane, que afirma ter assumido a Liga das Sombras após a morte de Ra’s Al Ghul. Depois de deixar Batman gravemente ferido em um combate corpo a corpo, Bane o coloca numa prisão de onde é praticamente impossível fugir. Seus companheiros de prisão contam para Wayne a história da única pessoa que conseguiu escapar: uma criança motivada pela necessidade e pela mera força de vontade. Enquanto o prisioneiro Wayne se recupera dos ferimentos e se prepara para ser Batman de novo, Bane consegue transformar Gotham City em uma cidade-Estado isolada. Primeiro ele atrai para o subsolo a maior parte dos policiais de Gotham e os prende lá; depois provoca explosões que destroem a maioria das pontes que conectavam Gotham City ao continente, anunciando que qualquer tentativa de deixar a cidade resultaria na detonação do núcleo de Wayne, do qual se apoderou e transformou em uma bomba.
Chegamos então ao momento crucial do filme: a tomada de poder por parte de Bane acontece junto com uma vasta ofensiva político-ideológica. Bane revela publicamente o acobertamento da morte de Dent e liberta os prisioneiros detidos pelo Ato Dent. Condenando os ricos e poderosos, ele promete devolver o poder ao povo, convocando as pessoas comuns a “tomarem a cidade de volta” – Bane revela-se como “o manifestante definitivo do Occupy Wall Street, convocando os 99% a se juntarem para derrubar as elites sociais”[1]. Segue-se então a ideia do filme de poder do povo: uma sequência mostra uma série de julgamentos e execuções dos ricos, as ruas tomadas pelo crime e pela vilania… alguns meses depois, enquanto Gotham City continua sofrendo o terror popular, Wayne consegue fugir da prisão, retorna a Gotham como Batman e convoca os amigos para ajudá-lo a libertar a cidade e desarmar a bomba nuclear antes que ela exploda. Batman confronta e domina Bane, mas Miranda intervém e apunhala Batman – a benfeitora social revela-se como Talia al Ghul, filha de Ra’s: foi ela que escapou da prisão quando criança e foi Bane que a ajudou a fugir. Depois de comunicar seu plano de terminar a tarefa do pai de destruir Gotham, Talia foge. Na confusão que se segue, Gordon destrói o dispositivo que permitia a detonação remota da bomba enquanto Selina mata Bane, permitindo que Batman vá atrás de Talia. Ele tenta forçá-la a levar a bomba para a câmara de fusão onde pode ser estabilizada, mas Talia inunda a câmara. Talia morre quando seu caminhão bate, confiante de que a bomba não pode ser detida. Usando um helicóptero especial, Batman transporta a bomba para além dos limites da cidade, onde ela explode sobre o oceano e supostamente o mata.
Agora Batman é celebrado como um herói cujo sacrifício salvou Gotham City, enquanto Wayne é tido como morto nos motins. Após seus bens serem divididos, Alfred vê Bruce e Selina juntos em um café em Florença, enquanto Blake, jovem policial honesto que conhecia a identidade de Batman, herda a Batcaverna. Em suma, “Batman salva a situação, aparece incólume e continua com uma vida normal, enquanto outro o substitui no papel de defender o sistema”[2]. A primeira pista dos fundamentos ideológicos desse final é dada por Gordon, que, no (suposto) enterro de Wayne, lê as últimas linhas de Um conto de duas cidades, de Dickens: “Esta é, sem dúvida, a melhor coisa que faço e que jamais fiz; este é, sem dúvida, o melhor descanso que terei e que jamais tive”. Alguns críticos do filme interpretaram essa citação como um indício de que o filme “atinge o nível mais nobre da arte ocidental. O filme apela para o centro da tradição norte-americana – o ideal do nobre sacrifício pelo povo comum. Batman deve se humilhar para ser exaltado e renunciar à própria vida para encontrar uma nova. […] Como máxima figura de Cristo, Batman sacrifica a si para salvar os outros”[3].
Dessa perspectiva, com efeito, Dickens está apenas a um passo de distância de Cristo no Calvário: “Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?” (Mt 16:25-26 da Bíblia de Jerusalém). O sacrifício de Batman como repetição da morte de Cristo? Essa ideia não seria comprometida pela última cena do filme (Wayne com Selina em um café em Florença)? O equivalente religioso desse final não seria a conhecida ideia blasfema de que Cristo realmente sobreviveu à crucificação e teve uma vida longa e pacífica (na Índia, ou talvez no Tibete, de acordo com algumas fontes)? A única maneira de remir essa cena final seria interpretá-la como um devaneio (alucinação) de Alfred, que se senta sozinho em um café em Florença. Outra característica dickensiana do filme é a queixa despolitizada sobre a lacuna entre ricos e pobres – no início do filme, Selina sussurra para Wayne enquanto eles dançam em um baile exclusivo da elite: “Está vindo uma tempestade, sr. Wayne. É melhor que estejam preparados. Pois quando ela chegar, todos se perguntarão como acharam que poderiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto”. Nolan, como todo bom liberal, está “preocupado” com essa disparidade e reconhece que essa preocupação impregnou o filme:
O que vejo do filme relacionado ao mundo real é a ideia de desonestidade. O filme inteiro trata da chegada do seu ponto crítico. […] A ideia de justiça econômica perpassa o filme, e por duas razões. Primeiro, Bruce Wayne é um bilionário. Isso tem de ser levado em conta. […] E segundo, há muitas coisas na vida, e a economia é uma delas, em que precisamos confiar em grande parte do que nos dizem, pois a maioria de nós se sente desprovida das ferramentas analíticas para saber o que está acontecendo. […] Não acho que existe uma perspectiva de direita ou de esquerda no filme. Ele faz apenas uma avaliação honesta, ou uma exploração honesta, do mundo em que vivemos – de coisas que nos preocupam.[4]
Por mais que os espectadores saibam que Wayne é extremamente rico, eles tendem a se esquecer de onde vem a riqueza dele: fabricação de armas e especulação financeira, e é por isso que as jogadas de Bane na Bolsa de Valores podem destruir seu império – traficante de armas e especulador, esse é o verdadeiro segredo por trás da máscara do Batman. De que modo o filme lida com isso? Ressuscitando o tema arquetípico dickensiano do bom capitalista que se envolve no financiamento de orfanatos (Wayne) versus o mau e ganancioso capitalista (Stryver, como em Dickens). Nessa moralização dickensiana excessiva, a disparidade econômica é traduzida na “desonestidade” que deveria ser “honestamente” analisada, embora não tenhamos nenhum mapeamento cognitivo confiável, e uma abordagem “honesta” como essa nos leva a mais um paralelo com Dickens – é como afirmou Jonathan (corroteirista), irmão de Christopher Nolan, sem rodeios: “Para mim, Um conto de duas cidades foi o retrato mais angustiante de uma civilização reconhecível e descritível que se desintegrou completamente em pedaços. Com os terrores em Paris, na França daquela época, não é difícil imaginar que as coisas dariam tão errado assim”[5]. As cenas do vingativo levante populista no filme (uma multidão sedenta pelo sangue dos ricos que os ignoraram e exploraram) evocam a descrição de Dickens do Reino do Terror, tanto que, embora não tenha nada a ver com política, o filme segue o romance de Dickens ao retratar “honestamente” os revolucionários como fanáticos possuídos, e assim fornece
a caricatura do que, na vida real, seriam revolucionários comprometidos ideologicamente no combate da injustiça estrutural. Hollywood conta o que o establishment quer que saibamos – que os revolucionários são criaturas brutais, sem nenhum respeito pela vida humana. Apesar da retórica emancipatória sobre a libertação, eles têm projetos sinistros por trás. Portanto, quaisquer que sejam as razões, elas precisam ser eliminadas.[6]
Tom Charity destacou corretamente “a defesa que o filme faz do establishment na forma de bilionários filantrópicos e uma polícia corrupta” – na sua desconfiança das pessoas que resolvem as coisas com as próprias mãos, o filme “demonstra tanto o desejo por justiça social quanto o medo do que realmente pode parecer nas mãos de uma multidão”[7]. Aqui, Karthick levanta uma questão bem clara sobre a imensa popularidade da figura do Coringa no filme anterior: qual o motivo de uma atitude tão hostil para com Bane quando o Coringa foi tratado com tanta mansidão no filme anterior? A resposta é simples e convincente:
O Coringa, que clama por anarquia na sua mais pura manifestação, enfatiza a hipocrisia da civilização burguesa como ela existe, mas é impossível traduzir suas visões em uma ação de massa. Bane, por outro lado, representa uma ameaça existencial ao sistema de opressão. […] Sua força não é apenas a psique, mas também sua capacidade de comandar as pessoas e mobilizá-las rumo a um objetivo político. Ele representa a vanguarda, o representante organizado dos oprimidos que promove a luta política em nome deles para gerar mudanças sociais. Tamanha força, com o maior dos potenciais subversivos, não tem lugar dentro do sistema. Ela precisa ser eliminada.[8]
No entanto, ainda que Bane não tenha o fascínio do Coringa de Heath Ledger, há uma característica que o distingue desse último: o amor incondicional, a mesma fonte da sua dureza. Em uma cena curta mas comovente, vemos como, em um ato de amor no meio do sofrimento terrível, Bane salvou a garota Talia sem se importar com as consequências e pagando um preço terrível por isso (foi espancado quase até a morte por defendê-la). Karthick tem toda razão ao situar esse acontecimento dentro da longa tradição, de Cristo a Che Guevara, que exalta a violência como uma “obra do amor”, como nas famosas palavras do diário de Che Guevara: “Devo dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa qualidade”[9]. O que encontramos aqui nem é tanto a “cristificação de Che”, mas sim uma “cheização do próprio Cristo” – o Cristo cujas palavras “escandalosas” de Lucas (“se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” [Lc 14:26]) apontam exatamente na mesma direção que a famosa citação de Che: “É preciso ser duro, mas sem perder a ternura”. A afirmação de que “o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor” deveria ser interpretada juntamente com a declaração muito mais “problemática” de Guevara sobre os revolucionários como “máquinas de matar”:
O ódio é um elemento da luta; o ódio impiedoso do inimigo que nos ergue acima e além das limitações naturais do homem e nos transforma em eficazes, violentas, seletivas e frias máquinas de matar. Assim devem ser nossos soldados; um povo sem ódio não derrota um inimigo brutal.
Ou, parafraseando Kant e Robespierre mais uma vez: o amor sem crueldade é impotente; a crueldade sem amor é cega, paixão efêmera que perde todo seu vigor. Guevara está parafraseando as declarações de Cristo sobre a unidade do amor e da espada – em ambos os casos, o paradoxo subjacente consiste nisto: o que torna o amor angelical, o que o eleva acima da mera sentimentalidade instável e patética, é essa mesma crueldade, o seu elo com a violência – é esse elo que eleva o amor acima e além das limitações naturais do homem e o transforma em pulsão incondicional. É por isso que, voltando a O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o único amor autêntico no filme é o de Bane, o “amor do terrorista”, em nítido contraste a Batman.
Nesse mesmo viés, a figura de Ra’s, pai de Talia, merece um exame mais cuidadoso. Ra’s é uma mistura de características árabes e orientais, um agente do virtuoso terror lutando para contrabalancear a corrompida civilização ocidental. O personagem é interpretado por Liam Neeson, ator cuja persona na tela geralmente irradia uma nobre bondade e sabedoria (ele faz o papel de Zeus em Fúria de Titãs), e que também representa Qui-Gon Jinn em A Ameaça Fantasma, primeiro episódio da série Star Wars. Qui-Gon é um cavaleiro Jedi, mentor de Obi-Wan Kenobi, bem como o descobridor de Anakin Skywalker, acreditando que Anakin é O Escolhido que restituirá o equilíbrio do universo, ignorando os alertas de Yoda sobre a natureza instável de Anakin; no final de A Ameaça Fantasma, Qui-Gon é morto por Darth Maul[10].
Na trilogia Batman, Ra’s também é professor do jovem Wayne: em Batman Begins, ele encontra Wayne em uma prisão chinesa; apresentando-se como Henri Ducard, ele oferece um “caminho” para o garoto. Depois que Wayne é libertado, ele segue até a fortaleza da Liga das Sombras, onde Ra’s está esperando, embora se apresente como servo de outro homem chamado Ra’s Al Ghul. Depois de um longo e doloroso treinamento, Ra’s explica que Bruce deve fazer o que for preciso para combater o mal, embora revele que eles treinaram Bruce para liderar a Liga com o intuito de destruir Gotham City, que eles acreditam ter se tornado irremediavelmente corrupta. Portanto, Ra’s não é a simples encarnação do Mal: ele representa a combinação de virtude e terror, a disciplina igualitária que combate um império corrupto, e assim pertence ao fio condutor (na ficção recente) que vai de Paul Atreides em Duna até Leônidas em 300 de Esparta. E é crucial que Wayne seja seu discípulo: Wayne foi formado como Batman por ele.
Duas críticas do senso-comum se apresentam aqui. A primeira é de que houve violência e matanças monstruosas nas revoluções reais, desde o estalinismo ao Khmer Vermelho, por isso está claro que o filme não está apenas engajado na imaginação revolucionária. A segunda, oposta, é esta: o atual movimento Occupy Wall Street não foi violento, seu objetivo definitivamente não era um novo reino do terror; na medida em que se espera que a revolta de Bane extrapole a tendência imanente do movimento OWS, o filme, portanto, deturpa de maneira absurda seus objetivos e estratégias. Os atuais protestos antiglobalistas são o exato oposto do terror brutal de Bane: este representa a imagem espelhada do terror estatal, uma seita fundamentalista e homicida dominada e controlada pelo terror, e não a sua superação por meio da auto-organização popular… As duas críticas compartilham a rejeição da figura de Bane. A resposta a essas duas críticas é múltipla.
Primeiro, devemos esclarecer o atual escopo da violência – a melhor resposta para a afirmação de que a reação violenta da multidão à opressão é pior que a opressão original foi dada por Mark Twain no seu Um ianque na corte do rei Artur: “Houve dois ‘Reinos do Terror’, se bem nos lembramos; um forjado na incandescente paixão, outro no desumano sangue frio. […] Mas todos os nossos temores, que os tenhamos pelo menor terror, o momentâneo, por assim dizer; pois o que é o terror da morte súbita pelo machado se comparado à morte em toda uma vida de fome, frio, insulto, crueldade e desilusão? O cemitério de qualquer cidade pode bem conter os caixões cheios desse breve terror, que todos aprendemos com afinco a temer e lamentar; mas a França inteira mal conteria os caixões cheios daquele outro terror, mais antigo e verdadeiro, o terror de amargura e atrocidade indizíveis, que nenhum de nós aprendeu a encarar em toda sua amplitude ou desprezo que merece”.
Depois, deveríamos desmistificar o problema da violência, rejeitando afirmações simplistas de que o comunismo do século XX agiu com uma violência homicida excessiva demais, e de que deveríamos tomar cuidado para não cair mais uma vez nessa armadilha. Com efeito, trata-se de uma terrível verdade – mas esse foco voltado diretamente para a violência obscurece uma questão basilar: o que houve de errado no projeto comunista do século XX como tal, qual foi o ponto fraco imanente desse projeto que impulsionou o comunismo a recorrer (não só) aos comunistas no poder para a violência irrestrita? Em outras palavras, não basta dizer que os comunistas “negligenciaram o problema da violência”: foi um aspecto sócio-político mais profundo que os impulsionou à violência. (O mesmo se aplica à ideia de que os comunistas “negligenciaram a democracia”: seu projeto geral de transformação social impôs sobre eles esse “negligenciar”.) Portanto, não é apenas o filme de Nolan que foi incapaz de imaginar o poder autêntico do povo – os próprios movimentos “reais” de emancipação radical também não o fizeram e continuam presos nas coordenadas da antiga sociedade, e, por essa razão, muitas vezes o efetivo “poder do povo” foi esse horror violento.
E, por último, mas não menos importante, é muito simples dizer que não há potencial violento no movimento OWS e similares – há sim uma violência em jogo em todo processo emancipatório autêntico: o problema com o filme é que ele traduziu essa violência de uma maneira errada em terror homicida. Qual é, então, a sublime violência em relação à qual até mesmo o mais brutal assassinato é um ato de fraqueza? Façamos uma digressão em Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, que conta a história dos estranhos eventos na capital sem nome de um país democrático não identificado. Quando a manhã do dia das eleições é arruinada por chuvas torrenciais, a quantidade de eleitores presentes é extremamente baixa, mas o tempo melhora no meio da tarde e a população segue em massa para as seções eleitorais. No entanto, o alívio do governo logo acaba quando a contagem de votos revela que 70% das cédulas na capital foram deixados em branco. Frustrado por esse aparente lapso civil, o governo dá aos cidadãos a chance de refazer o fato uma semana depois, em mais um dia de eleição. O resultado é pior: agora 83% dos votos foram brancos. Os dois principais partidos políticos – o governante partido da direita (p.d.d.) e seu principal adversário, o partido do meio (p.d.m.) – entram em pânico, enquanto o infeliz e marginalizado partido da esquerda (p.d.e.) apresenta uma análise afirmando que os votos brancos são, essencialmente, um voto por sua agenda progressiva. Sem saber como responder a um protesto benigno, mas certo de que existe uma conspiração antidemocrática, o governo rapidamente rotula o movimento de “terrorismo puro e duro” e declara estado de emergência, permitindo a suspensão de todas as garantias constitucionais e adotando uma série de medidas cada vez mais drásticas: os cidadãos são apanhados aleatoriamente e desaparecem em interrogatórios secretos, a polícia e a sede do governo saem da capital, proibindo a entrada e a saída da cidade e, por fim, fabricando seu próprio líder terrorista. A cidade toda continua funcionando quase normalmente, as pessoas se esquivam de todas as ofensivas do governo com uma harmonia inexplicável e com um verdadeiro nível gandhiano de resistência não violenta… isso, a abstenção dos eleitores, é um exemplo de “violência divina” verdadeiramente radical que desperta reações de pânico brutal nos detentores do poder.
Voltando a Nolan, a trilogia dos filmes do Batman, portanto, segue uma lógica imanente. Em Batman Begins, o herói continua dentro dos limites de uma ordem liberal: o sistema pode ser defendido com métodos moralmente aceitáveis. O Cavaleiro das Trevas é de fato uma nova versão de dois clássicos de faroeste de John Ford (Sangue de Heróis e O Homem Que Matou o Facínora) que retratam como, para civilizar o ocidente selvagem, é preciso “publicar a lenda” e ignorar a verdade – em suma, como nossa civilização tem de se fundamentar em uma Mentira: é preciso quebrar as regras para defender o sistema. Ou, dito de outra forma, em Batman Begins, o herói é simplesmente uma figura clássica do vigilante urbano que pune os criminosos naquilo que a polícia não pode; o problema é que a polícia, órgão responsável pela imposição das leis, relaciona-se de maneira ambígua à ajuda de Batman: enquanto admite sua eficácia, ela também considera Batman uma ameaça ao seu monopólio do poder e uma testemunha da sua ineficácia. No entanto, a transgressão de Batman aqui é puramente formal, consiste em agir em nome da lei sem a legitimação para fazê-lo: nos seus atos, ele nunca viola a lei. O Cavaleiro das Trevas muda essas coordenadas: o verdadeiro rival de Batman não é o Coringa, seu oponente, mas Harvey Dent, o “cavaleiro branco”, o novo e agressivo promotor público, um tipo de vigilante oficial cuja batalha fanática contra o crime o conduz ao assassinato de pessoas inocentes e o destrói. É como se Dent fosse a resposta à ordem legal da ameaça de Batman: contra a vigilante luta de Batman, o sistema gera seu próprio excesso ilegal, seu próprio vigilante, muito mais violento que Batman, violando diretamente a lei. Desse modo, há uma justiça poética no fato de que, quando Bruce planeja revelar ao público sua identidade como Batman, Dent o interrompe e se apresenta como Batman – ele é “mais Batman que o próprio Batman”, efetivando a tentação à qual Batman ainda era capaz de resistir. Então quando, no final do filme, Batman assume os crimes cometidos por Dent para salvar a reputação do herói popular que incorpora a esperança para o povo comum, seu ato modesto tem uma ponta de verdade: Batman, de certa forma, devolve o favor a Dent. Seu ato é um gesto de troca simbólica: primeiro Dent toma para si a identidade de Batman, e depois Wayne – o Batman verdadeiro – toma para si os crimes de Dent.
Por fim, O Cavaleiro das Trevas Ressurge ultrapassa ainda mais os limites: Bane não seria Dent levado ao extremo, à sua autonegação? Dent que chega à conclusão de que o sistema é injusto, de modo que, para combater a injustiça com eficácia, é preciso atacar diretamente o sistema e destruí-lo? E, como parte da mesma atitude, Dent que perde as últimas inibições e está pronto para usar toda sua brutalidade assassina para atingir esse objetivo? O advento dessa figura muda a constelação inteira: para todos os participantes, inclusive Batman, a moralidade é relativizada, torna-se uma questão de conveniência, algo determinado pelas circunstâncias: é uma guerra de classes aberta, tudo é permitido para defender o sistema quando estamos lidando não só com gângsteres malucos, mas com uma revolta popular.
Será, então, que isso é tudo? O filme deveria ser categoricamente rejeitado por quem se envolve em lutas emancipatórias radicais? As coisas são mais ambíguas, e é preciso interpretar o filme da maneira que se interpreta um poema político chinês: as ausências e as presenças surpreendentes também contam. Recordemos a antiga história francesa sobre uma esposa que reclama do melhor amigo do marido, dizendo que o amigo tem se insinuado sexualmente para ela: leva algum tempo para que o amigo surpreso entenda a mensagem – de uma maneira invertida, ela o está incitando a seduzi-la… É como o inconsciente freudiano que não conhece a negação: o que importa não é um juízo negativo sobre algo, mas o simples fato de que esse algo seja mencionado – em O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o poder do povo ESTÁ AQUI, encenado como um Evento, em um passo fundamental dado a partir dos oponentes habituais de Batman (criminosos megacapitalistas, gângsteres e terroristas).
Temos aqui a primeira pista – a perspectiva de que o movimento OWS tome o poder e estabeleça a democracia do povo em Manhattan é nítida e completamente tão absurda e irreal que não podemos deixar de fazer a seguinte pergunta: POR QUE UM IMPORTANTE BLOCKBUSTER DE HOLLYWOOD SONHA COM ISSO, POR QUE EVOCA ESSE ESPECTRO? Por que sequer sonhar com o OWS culminando em uma violenta tomada de poder? A resposta óbvia (manchar o OWS com acusações de que ele guarda um potencial terrorista totalitário) não é o bastante para explicar a estranha atração exercida pela perspectiva do “poder do povo”. Não admira que o funcionamento apropriado desse poder continue branco, ausente: nenhum detalhe é dado sobre como funciona esse poder do povo, sobre o que as pessoas mobilizadas estão fazendo (é preciso lembrar que Bane diz que as pessoas podem fazer o que quiserem – ele não impõe sobre elas a sua própria ordem).
É por isso que a crítica externa do filme (“sua retratação do reino do OWS é uma caricatura ridícula”) não basta – a crítica tem de ser imanente, tem de situar dentro do próprio filme uma multiplicidade de sinais que aponte para o Evento autêntico. (Recordemos, por exemplo, que Bane não é apenas um terrorista brutal, mas sim uma pessoa de profundo amor e sacrifício.) Em suma, a ideologia pura não é possível, a autenticidade de Bane TEM de deixar rastros na tecitura do filme. É por isso que o filme merece uma leitura mais íntima: o Evento – a “república do povo de Gotham City”, a ditadura do proletariado sobre Manhattan – é imanente ao filme, é o seu centro ausente.
[1] Tyler O’Neil, “Dark Knight and Occupy Wall Street: The Humble Rise”, Hillsdale Natural Law Review, 21 de julho de 2012.
[2] Karthick RM, “The Dark Knight Rises a ‘Fascist’?”, Society and Culture, 21 de julho de 2012.
[3] Tyler O’Neil, cit.
[4] Christopher Nolan, entrevista na Entertainment 1216 (julho de 2012), p. 34.
[5] Entrevista de Christopher e Jonathan Nolan ao Buzzine Film.
[6] Karthick, cit.
[7] Forrest Whitman, “The Dickensian Aspects of The Dark Knight Rises”, 21 de julho de 2012.
[8] Karthick, cit.
[9] Citado em Jon Lee Anderton, Che Guevara: A Revolutionary Life, New York: Grove 1997, p. 636-637.
[10] Notemos a ironia do fato de que o filho de Neeson é um xiita devoto, e que o próprio Neeson às vezes fala sobre a sua futura conversão ao islamismo.
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009) e os mais recentes Em defesa das causas perdidas e Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011).
Há tempos esperávamos por um filme como Pantera Negra, mas Pantera Negra não parece ser o filme pelo qual esperávamos… ou será que é?
O primeiro sinal de alerta que indica que estamos em terreno ambíguo é o fato de que o filme foi recebido com entusiasmo praticamente de ponta a ponta no espectro político: dos partidários da emancipação negra que viram nele uma importante afirmação hollywoodiana de representatividade e valores de empoderamento negro, passando por liberais de esquerda mais modestos que simpatizaram com a resolução razoável do enredo (educação e ajuda, ao invés de luta), até chegar a adeptos da nova direita alternativa do “alt-right” que logo reconheceram na afirmação da identidade e modo de vida negros outra versão do slogan “America first” [“Os Estados Unidos em primeiro lugar”] entoado por Trump (aliás, não é à toa que Robert Mugabe, antes de ter perdido o poder, também falou algumas palavras elogiosas a respeito do atual presidente dos EUA). Quando todos os lados se reconhecem no mesmo produto, pode se ter certeza de que o produto em questão está operando como ideologia em seu estado mais puro, isto é, como um recipiente vazio contendo elementos antagônicos.
O próprio ponto de partida da trama se instala em uma ambivalência. Parafraseando a boa a velha Wikipédia, recuperemos a premissa do enredo: muitos séculos atrás, cinco tribos africanas guerreiam disputando um meteorito contendo vibranium. Um guerreiro ingere uma “erva em forma de coração” impregnada pelo metal raro e adquire poderes sobre-humanos, tornando-se o primeiro “pantera negra”. Com isso, ele é capaz de unir todas as tribos (exceto a Jabari), para formar o grande reino de Wakanda. Os wakandianos usam o vibranium para desenvolver tecnologia avançada e isolarem-se do mundo, assumindo uma fachada de nação subdesenvolvida de Terceiro Mundo. Pois bem, a história recente nos ensina que ser abençoado por algum precioso recurso natural é na verdade uma maldição disfarçada – pense na situação atual do Congo de hoje, que se encontra nesse estado precisamente por conta da maneira pela qual o país é alvo de uma exploração implacável visando a incrível riqueza de seus recursos naturais.
À medida que a trama do filme começa a se desenvolver, a narrativa logo se desloca para Oakland, que foi um importante reduto do verdadeiro Partido dos Panteras Negras, o movimento radical de libertação negra surgido no final dos anos 1960 que foi impiedosamente reprimido pelo FBI (integrantes foram brutalmente assassinados etc.). No entanto, seguindo a trilha do quadrinho original da Marvel, o filme – que jamais menciona diretamente os verdadeiros Panteras Negras – em um simples mas nem por isso menos magistral toque de manejo ideológico na prática se apropria do nome original de forma a fazer com que ele reverbere menos a histórica organização militante radical e mais o rei-super-herói de um poderoso reino africano fictício.
Mais precisamente, há dois “panteras negras” no filme – o Rei T’Challa e seu primo Erik Killmonger (N’Jadaka) – e cada um deles representa uma visão política diferente. Erik passou sua juventude justamente em Oakland e depois foi agente do comando especial secreto do exército estadunidense – seu universo é o da pobreza, da violência de rua e da brutalidade militar. Já T’Challa foi criado na opulência isolada da corte real de Wakanda. Erik advoga uma solidariedade global militante e defende que Wakanda deveria colocar sua riqueza, seu conhecimento e seu poder à disposição dos oprimidos de todo o mundo para que eles possam derrubar a ordem mundial existente. T’Challa, ao longo do arco narrativo do filme, lentamente passa da uma postura isolacionista tradicional (do tipo “Wakanda em primeiro lugar!”) para um globalismo gradual e pacífico, que operaria no interior das coordenadas da ordem mundial existente e suas instituições, disseminando educação e auxílio tecnológico, e ao mesmo tempo preservando a cultura e o modo de vida singulares de Wakanda.
É por isso que T’Challa é mais um herói indeciso, dividido entre dois caminhos diferentes de ação, do que o habitual super-herói totalmente ativo (diferente de seu oponente, Killimonger, que está sempre pronto para agir e sempre sabe o que fazer). E o fato de que um agente da CIA acaba desempenhando um papel chave na concretização da vitória final de T’Challa será muito revelador… Enquanto muitos críticos elogiaram o papel ativo das mulheres na corte de Wakanda, além da variedade e o estatuto de suas diferentes posições (defesa, sabedoria de idade, ciência e tecnologia…), na economia interna do filme, essa afirmação da feminilidade permanece estritamente subordinada à dominação masculina. Por isso, até mesmo com a abertura de Wakanda para o mundo, tudo que mudaria é que uma dose de sabedoria tradicional trabalhará para conter os excessos do capitalismo selvagem e desenfreado. Com T’Challa conduzindo o leme, os poderosos de hoje podem continuar a dormir em paz…
Um dos sinais de que há algo errado nesse quadro é o estranho papel dos dois personagens brancos: o sul-africano Ulysses Klaue, “do mal”, e o agente da CIA Everett Ross, “do bem”. Klaue não se encaixa muito bem no papel do vilão ao qual é designado – ele é fraco e cômico demais. Já o agente Ross constitui uma figura muito mais enigmática – em certo sentido é ele o sintoma do filme. Trata-se de um agente da CIA (e isso significa que seus superiores, e portanto o governo dos EUA, sabem a verdade sobre Wakanda) que participa dos eventos a uma distância irônica, estranhamente não-envolvido, como se estivesse participando de uma espécie de espetáculo… Por que é que Shuri o escala para pilotar o avião que irá derrubar os aviões portando as armas para os agentes de Killmonger em todo o mundo (o papel comumente reservado para os negros “do bem” nos tradicionais filmes de ficção científica de Armageddon)? Não seria afinal porque ele representa o sistema global existente no universo do filme, representando ao mesmo tempo o “nosso” lugar (a maioria dos telespectadores brancos do filme), como que nos dizendo: “Pode curtir tranquilamente essa fantasia de supremacia negra, nenhum de nós está realmente ameaçado por esse universo alternativo!”
Com isso, sobra Killmonger como o único verdadeiro vilão. Temos então como que um revolucionário pantera negra dos anos 1960 contra o nobre e mítico pantera negra de nosso universo de super-heróis de quadrinhos… O fato de que T’Challa se abre a uma “boa” globalização mas ao mesmo tempo recebe o apoio de sua expressão repressiva, a CIA, revela que não há tensão real entre os dois: o “retorno às raízes” combina perfeitamente com o capitalismo global (que só pode ser verdadeiramente sobrepujado através de um projeto global diferente). Por isso, devemos ter um pé atrás antes de nos deixar fascinar diante do belo espetáculo da capital de Wakanda como cidade moderna alternativa onde a tecnologia está a serviço das necessidades humanas, onde a tradição e a ultramodernidade se fundem perfeitamente.
O que esse belo espetáculo oblitera é o insight que Malcolm X seguiu quando adotou a letra “X” no lugar de seu sobrenome. O gesto de abraçar o “X” como nome de família – recusando assim o “nome de escravo” e assinalando que os traficantes que escravizaram e transportaram africanos de sua terra natal brutalmente os arrancaram de suas famílias, de suas raízes étnicas, de sua cultura e de todo seu mundo da vida –, esse gesto trazia um intuito que não era o de simplesmente mobilizar os negros a lutarem pelo retorno a uma raiz africana primordial, mas precisamente de abraçar a recusa e a abertura proporcionadas pelo “X”: uma nova e desconhecida (ausência de) identidade engendrada pelo próprio processo da escravidão que fez com que as raízes africanas fossem para sempre perdidas. A ideia é que esse “X” que arranca os negros de sua tradição particular fornece uma plataforma singular a partir da qual seria possível redefinir e (reinventar) a si mesmo, de formar livremente uma nova identidade, muito mais universal do que a pretensa falsa universalidade professada pelos brancos. Como se sabe, Malcolm X encontrou essa nova identidade no universalismo do Islã. Nesse sentido, o filme parece passar ao largo dessa preciosa lição de Malcolm X: para atingir uma verdadeira universalidade, um herói deve primeiro passar pela experiência de perder suas raízes.
Visto desse modo, o problema nos aparece em maior evidência, reforçando a insistência de Fredric Jameson do quão difícil é hoje imaginar um mundo verdadeiramente novo, um mundo que não apenas reflita, inverta ou suplemente a ordem mundial vigente. Nesse sentido, fica difícil imaginar o que levou um crítico a escrever que Frantz Fanon, o teórico franco-martiniquense da libertação negra através de rebelião violenta, “teria ficado orgulhoso” se assistisse ao filme.
No entanto, há sinais que perturbam essa leitura simples e mais óbvia de Pantera Negra, sinais que nos estimulam a fazer uma leitura do filme que se assemelha à maneira pela qual Leo Strauss leu as obras de Platão e Spinoza, bem como o clássico Paraíso Perdido, de John Milton. Embora se valesse de termos como “ensinamentos secretos”, Strauss não era nenhum gnóstico dedicado a levar a cabo uma “hermenêutica profunda”, ele não estava à procura de algum suposto Platão esotérico, como quem busca chegar a um saber oculto a ser decodificado a partir do texto público. Ao contrário, tudo está dado e dito, todas as teorias alternativas podem ser claramente apresentadas. Uma leitura straussinana cuidadosa apenas aponta os sinais que indicam que a evidente hierarquia de posições teóricas precisa ser invertida.
Por exemplo: o Livro Primeiro da República de Platão trata do diálogo polêmico entre Sócrates e Trasímaco, que violentamente discorda com o resultado da discussão travada entre Sócrates e Polemarco a respeito da justiça. Trasímaco alega “que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte” e que “a injustiça, quando chega a um certo ponto, é mais potente, mais livre e mais despótica do que a justiça” (344c). Sócrates contra argumenta forçando-o a admitir que há um padrão de justiça para além da lei do mais forte. No entanto, uma leitura atenta deixa evidente qual é a verdadeira posição de Platão: no que diz respeito aos fatos, Trasímaco está correto, a justiça é a conveniência do mais forte – mas essa verdade deve ser mantida em segredo na medida que sua disseminação pública feriria e desmoralizaria a maioria de pessoas comuns cuja sensibilidade moral exige que o direito seja mais forte que o poder. O mesmo ocorre com o Paraíso Perdido, de Milton: embora ele siga as diretrizes oficiais da igreja ao condenar a rebelião de Satanás, as simpatias de Milton estão claramente com o diabo. Vale acrescentar que não importa se essa preferência pelo lado ou agente “do mal” é algo consciente ou não por parte do autor do texto, em ambos os casos, o resultado é o mesmo.
E o mesmo não vale também para o filme Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2008), a parte final da trilogia escrita e dirigida por Christopher Nolan? Embora Bane seja o vilão oficial, há indicações de que ele, muito mais do que o próprio Batman, é o autêntico herói do filme, distorcido como seu vilão: ele está pronto para se sacrificar por amor, disposto a arriscar tudo por aquilo que ele entende ser uma injustiça, e esse fato básico é eclipsado pela inclusão de traços superficiais e um tanto ridículos de maldade destrutiva no personagem.
Mas voltemos a Pantera Negra. Quais são os sinais que nos permitem reconhecer na figura de Killmonger o verdadeiro herói do filme? São muitos. Talvez o mais forte esteja na cena de sua morte, em que o gravemente ferido Erik opta por morrer ao invés de ser curado e sobreviver na falsa abundância de Wakanda – o forte impacto ético das últimas palavras de Killmonger imediatamente desmonta a ideia de que ele seria um simples vilão convencional. O que se segue é então um momento extraordinariamente caloroso: pouco antes de morrer, Killmonger senta-se na beira do precipício de uma montanha observando o lindo pôr do sol de Wakanda e seu primo T’Challa, que acaba de derrotá-lo, senta-se ao seu lado. Não há ódio aqui, apenas dois homens bons com visões políticas diferentes compartilhando seus últimos momentos juntos após o desfecho da batalha – uma cena inimaginável em um filme tradicional de ação que geralmente culmina na virulenta destruição do inimigo… Esses momentos finais, por si sós, lançam uma dúvida sobre a leitura mais imediata do filme e nos convidam a uma reflexão muito mais profunda.
Nota: Minha leitura se vale dos artigos “Black Panther as empty container”, de Duane Rouselle (Dingpolitik, 17/02/2018), “Black Panther Is Not the Movie We Deserve”, de Christopher Lebron (Boston Review, 17/02/2018), e de uma troca de e-mails com Todd McGowan.
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014) e o mais recente O absoluto frágil (2015).
Bem interessante o filme, recomendado... mostra como as guerras não são para serem vencidas, apenas para serem mantidas, assim os senhores das armas e guerras lucram sempre!!
Que filme legal, recomendo para quem quiser conhecer um pouco mais sobre a história deles!! Principalmente quem se utiliza desses caras como ídolos para embasar seus discursos! Basicamente como se legitimar roubo através de discursos empreendedores.... a mão invisível leva um tapa de realidade haha.
Conflito das Águas
4.0 94 Assista AgoraFilme espetacular, recomendadíssimo..... Traz uma excelente reflexão atual sobre a questão da privatização e nos mostra como que a história acaba se repetindo sobre outros rostos e contextos.
Lembre-se, a Água é Vida!!
O Capital
3.8 96Filme fantástico para conhecer um pouco mais sobre os bastidores dos poderes bancários!!
"Agora enriqueço os ricos e empobreço os pobres. Sou um banqueiro normal...
Meus amigos, eu sou o Robin Hood Moderno, vou continuar roubando dos pobres para dar aos ricos. "
A Guerra do Vietnã
4.7 34Os relatos, videos e fotos capturados desse momento histórico são a melhor parte dessa série documental.
O Segredo do Abismo
3.7 252Fantástico, principalmente a versão estendida!
Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge
4.2 6,4K Assista AgoraAviso, o seguinte artigo contém spoilers!!
Ditadura do proletariado em Gotham City: Artigo de Slavoj Žižek sobre o novo Batman.
Batman – O Cavaleiro das Trevas Ressurge confirma mais uma vez como os blockbusters de Hollywood são indicadores precisos da situação ideológica da nossa sociedade. A narrativa (resumida) se dá da seguinte maneira. Oito anos depois dos eventos de Batman – O Cavaleiro das Trevas, capítulo anterior da saga Batman, a lei e a ordem prevalecem em Gotham City: sob os extraordinários poderes do Ato Dent, o comissário Gordon praticamente erradicou o crime violento e organizado. No entanto, ele se sente culpado pela cobertura dos crimes de Harvey Dent (Dent morreu ao tentar matar o filho de Gordon, salvo por Batman, que assumiu a culpa em nome da manutenção do mito de Dent, levando a uma demonização de Batman como vilão de Gotham) e planeja admitir a conspiração em um evento público de celebração a Dent, mas acaba concluindo que a cidade não está preparada para a verdade. Bruce Wayne, que não atua mais como Batman, vive isolado na própria Mansão enquanto sua empresa desmorona depois de ter investido em um projeto de energia limpa criado para aproveitar a energia nuclear, mas encerrado quando ele descobriu que o núcleo poderia ser transformado em uma bomba. A lindíssima Miranda Tate, membra do conselho administrativo da Wayne Enterprises, convence Wayne a refazer a sociedade e continuar com seus trabalhos filantrópicos.
Aqui entra o (primeiro) vilão do filme: Bane, líder terrorista e antigo membro da Liga das Sombras, consegue a cópia do discurso de Gordon. Depois que as tramas financeiras de Bane quase levam a empresa de Wayne à falência, Wayne confia a Miranda a tarefa de controlar seus negócios, além de ter com ela um breve caso amoroso. (Nesse aspecto ela compete com a gata-ladra Selina Kyle, que rouba dos ricos para redistribuir a riqueza, mas acaba se juntando a Wayne e às forças da lei e da ordem.) Ao descobrir a movimentação de Bane, Wayne retorna como Batman e confronta Bane, que afirma ter assumido a Liga das Sombras após a morte de Ra’s Al Ghul. Depois de deixar Batman gravemente ferido em um combate corpo a corpo, Bane o coloca numa prisão de onde é praticamente impossível fugir. Seus companheiros de prisão contam para Wayne a história da única pessoa que conseguiu escapar: uma criança motivada pela necessidade e pela mera força de vontade. Enquanto o prisioneiro Wayne se recupera dos ferimentos e se prepara para ser Batman de novo, Bane consegue transformar Gotham City em uma cidade-Estado isolada. Primeiro ele atrai para o subsolo a maior parte dos policiais de Gotham e os prende lá; depois provoca explosões que destroem a maioria das pontes que conectavam Gotham City ao continente, anunciando que qualquer tentativa de deixar a cidade resultaria na detonação do núcleo de Wayne, do qual se apoderou e transformou em uma bomba.
Chegamos então ao momento crucial do filme: a tomada de poder por parte de Bane acontece junto com uma vasta ofensiva político-ideológica. Bane revela publicamente o acobertamento da morte de Dent e liberta os prisioneiros detidos pelo Ato Dent. Condenando os ricos e poderosos, ele promete devolver o poder ao povo, convocando as pessoas comuns a “tomarem a cidade de volta” – Bane revela-se como “o manifestante definitivo do Occupy Wall Street, convocando os 99% a se juntarem para derrubar as elites sociais”[1]. Segue-se então a ideia do filme de poder do povo: uma sequência mostra uma série de julgamentos e execuções dos ricos, as ruas tomadas pelo crime e pela vilania… alguns meses depois, enquanto Gotham City continua sofrendo o terror popular, Wayne consegue fugir da prisão, retorna a Gotham como Batman e convoca os amigos para ajudá-lo a libertar a cidade e desarmar a bomba nuclear antes que ela exploda. Batman confronta e domina Bane, mas Miranda intervém e apunhala Batman – a benfeitora social revela-se como Talia al Ghul, filha de Ra’s: foi ela que escapou da prisão quando criança e foi Bane que a ajudou a fugir. Depois de comunicar seu plano de terminar a tarefa do pai de destruir Gotham, Talia foge. Na confusão que se segue, Gordon destrói o dispositivo que permitia a detonação remota da bomba enquanto Selina mata Bane, permitindo que Batman vá atrás de Talia. Ele tenta forçá-la a levar a bomba para a câmara de fusão onde pode ser estabilizada, mas Talia inunda a câmara. Talia morre quando seu caminhão bate, confiante de que a bomba não pode ser detida. Usando um helicóptero especial, Batman transporta a bomba para além dos limites da cidade, onde ela explode sobre o oceano e supostamente o mata.
Agora Batman é celebrado como um herói cujo sacrifício salvou Gotham City, enquanto Wayne é tido como morto nos motins. Após seus bens serem divididos, Alfred vê Bruce e Selina juntos em um café em Florença, enquanto Blake, jovem policial honesto que conhecia a identidade de Batman, herda a Batcaverna. Em suma, “Batman salva a situação, aparece incólume e continua com uma vida normal, enquanto outro o substitui no papel de defender o sistema”[2]. A primeira pista dos fundamentos ideológicos desse final é dada por Gordon, que, no (suposto) enterro de Wayne, lê as últimas linhas de Um conto de duas cidades, de Dickens: “Esta é, sem dúvida, a melhor coisa que faço e que jamais fiz; este é, sem dúvida, o melhor descanso que terei e que jamais tive”. Alguns críticos do filme interpretaram essa citação como um indício de que o filme “atinge o nível mais nobre da arte ocidental. O filme apela para o centro da tradição norte-americana – o ideal do nobre sacrifício pelo povo comum. Batman deve se humilhar para ser exaltado e renunciar à própria vida para encontrar uma nova. […] Como máxima figura de Cristo, Batman sacrifica a si para salvar os outros”[3].
Dessa perspectiva, com efeito, Dickens está apenas a um passo de distância de Cristo no Calvário: “Pois aquele que quiser salvar a sua vida, vai perdê-la, mas o que perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la. De fato, que aproveitará ao homem se ganhar o mundo inteiro mas arruinar a sua vida?” (Mt 16:25-26 da Bíblia de Jerusalém). O sacrifício de Batman como repetição da morte de Cristo? Essa ideia não seria comprometida pela última cena do filme (Wayne com Selina em um café em Florença)? O equivalente religioso desse final não seria a conhecida ideia blasfema de que Cristo realmente sobreviveu à crucificação e teve uma vida longa e pacífica (na Índia, ou talvez no Tibete, de acordo com algumas fontes)? A única maneira de remir essa cena final seria interpretá-la como um devaneio (alucinação) de Alfred, que se senta sozinho em um café em Florença. Outra característica dickensiana do filme é a queixa despolitizada sobre a lacuna entre ricos e pobres – no início do filme, Selina sussurra para Wayne enquanto eles dançam em um baile exclusivo da elite: “Está vindo uma tempestade, sr. Wayne. É melhor que estejam preparados. Pois quando ela chegar, todos se perguntarão como acharam que poderiam viver com tanto e deixar tão pouco para o resto”. Nolan, como todo bom liberal, está “preocupado” com essa disparidade e reconhece que essa preocupação impregnou o filme:
O que vejo do filme relacionado ao mundo real é a ideia de desonestidade. O filme inteiro trata da chegada do seu ponto crítico. […] A ideia de justiça econômica perpassa o filme, e por duas razões. Primeiro, Bruce Wayne é um bilionário. Isso tem de ser levado em conta. […] E segundo, há muitas coisas na vida, e a economia é uma delas, em que precisamos confiar em grande parte do que nos dizem, pois a maioria de nós se sente desprovida das ferramentas analíticas para saber o que está acontecendo. […] Não acho que existe uma perspectiva de direita ou de esquerda no filme. Ele faz apenas uma avaliação honesta, ou uma exploração honesta, do mundo em que vivemos – de coisas que nos preocupam.[4]
Por mais que os espectadores saibam que Wayne é extremamente rico, eles tendem a se esquecer de onde vem a riqueza dele: fabricação de armas e especulação financeira, e é por isso que as jogadas de Bane na Bolsa de Valores podem destruir seu império – traficante de armas e especulador, esse é o verdadeiro segredo por trás da máscara do Batman. De que modo o filme lida com isso? Ressuscitando o tema arquetípico dickensiano do bom capitalista que se envolve no financiamento de orfanatos (Wayne) versus o mau e ganancioso capitalista (Stryver, como em Dickens). Nessa moralização dickensiana excessiva, a disparidade econômica é traduzida na “desonestidade” que deveria ser “honestamente” analisada, embora não tenhamos nenhum mapeamento cognitivo confiável, e uma abordagem “honesta” como essa nos leva a mais um paralelo com Dickens – é como afirmou Jonathan (corroteirista), irmão de Christopher Nolan, sem rodeios: “Para mim, Um conto de duas cidades foi o retrato mais angustiante de uma civilização reconhecível e descritível que se desintegrou completamente em pedaços. Com os terrores em Paris, na França daquela época, não é difícil imaginar que as coisas dariam tão errado assim”[5]. As cenas do vingativo levante populista no filme (uma multidão sedenta pelo sangue dos ricos que os ignoraram e exploraram) evocam a descrição de Dickens do Reino do Terror, tanto que, embora não tenha nada a ver com política, o filme segue o romance de Dickens ao retratar “honestamente” os revolucionários como fanáticos possuídos, e assim fornece
a caricatura do que, na vida real, seriam revolucionários comprometidos ideologicamente no combate da injustiça estrutural. Hollywood conta o que o establishment quer que saibamos – que os revolucionários são criaturas brutais, sem nenhum respeito pela vida humana. Apesar da retórica emancipatória sobre a libertação, eles têm projetos sinistros por trás. Portanto, quaisquer que sejam as razões, elas precisam ser eliminadas.[6]
Tom Charity destacou corretamente “a defesa que o filme faz do establishment na forma de bilionários filantrópicos e uma polícia corrupta” – na sua desconfiança das pessoas que resolvem as coisas com as próprias mãos, o filme “demonstra tanto o desejo por justiça social quanto o medo do que realmente pode parecer nas mãos de uma multidão”[7]. Aqui, Karthick levanta uma questão bem clara sobre a imensa popularidade da figura do Coringa no filme anterior: qual o motivo de uma atitude tão hostil para com Bane quando o Coringa foi tratado com tanta mansidão no filme anterior? A resposta é simples e convincente:
O Coringa, que clama por anarquia na sua mais pura manifestação, enfatiza a hipocrisia da civilização burguesa como ela existe, mas é impossível traduzir suas visões em uma ação de massa. Bane, por outro lado, representa uma ameaça existencial ao sistema de opressão. […] Sua força não é apenas a psique, mas também sua capacidade de comandar as pessoas e mobilizá-las rumo a um objetivo político. Ele representa a vanguarda, o representante organizado dos oprimidos que promove a luta política em nome deles para gerar mudanças sociais. Tamanha força, com o maior dos potenciais subversivos, não tem lugar dentro do sistema. Ela precisa ser eliminada.[8]
No entanto, ainda que Bane não tenha o fascínio do Coringa de Heath Ledger, há uma característica que o distingue desse último: o amor incondicional, a mesma fonte da sua dureza. Em uma cena curta mas comovente, vemos como, em um ato de amor no meio do sofrimento terrível, Bane salvou a garota Talia sem se importar com as consequências e pagando um preço terrível por isso (foi espancado quase até a morte por defendê-la). Karthick tem toda razão ao situar esse acontecimento dentro da longa tradição, de Cristo a Che Guevara, que exalta a violência como uma “obra do amor”, como nas famosas palavras do diário de Che Guevara: “Devo dizer, correndo o risco de parecer ridículo, que o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor. É impossível pensar em um revolucionário autêntico sem essa qualidade”[9]. O que encontramos aqui nem é tanto a “cristificação de Che”, mas sim uma “cheização do próprio Cristo” – o Cristo cujas palavras “escandalosas” de Lucas (“se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe, mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não pode ser meu discípulo” [Lc 14:26]) apontam exatamente na mesma direção que a famosa citação de Che: “É preciso ser duro, mas sem perder a ternura”. A afirmação de que “o verdadeiro revolucionário é guiado pelo forte sentimento do amor” deveria ser interpretada juntamente com a declaração muito mais “problemática” de Guevara sobre os revolucionários como “máquinas de matar”:
O ódio é um elemento da luta; o ódio impiedoso do inimigo que nos ergue acima e além das limitações naturais do homem e nos transforma em eficazes, violentas, seletivas e frias máquinas de matar. Assim devem ser nossos soldados; um povo sem ódio não derrota um inimigo brutal.
Ou, parafraseando Kant e Robespierre mais uma vez: o amor sem crueldade é impotente; a crueldade sem amor é cega, paixão efêmera que perde todo seu vigor. Guevara está parafraseando as declarações de Cristo sobre a unidade do amor e da espada – em ambos os casos, o paradoxo subjacente consiste nisto: o que torna o amor angelical, o que o eleva acima da mera sentimentalidade instável e patética, é essa mesma crueldade, o seu elo com a violência – é esse elo que eleva o amor acima e além das limitações naturais do homem e o transforma em pulsão incondicional. É por isso que, voltando a O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o único amor autêntico no filme é o de Bane, o “amor do terrorista”, em nítido contraste a Batman.
Nesse mesmo viés, a figura de Ra’s, pai de Talia, merece um exame mais cuidadoso. Ra’s é uma mistura de características árabes e orientais, um agente do virtuoso terror lutando para contrabalancear a corrompida civilização ocidental. O personagem é interpretado por Liam Neeson, ator cuja persona na tela geralmente irradia uma nobre bondade e sabedoria (ele faz o papel de Zeus em Fúria de Titãs), e que também representa Qui-Gon Jinn em A Ameaça Fantasma, primeiro episódio da série Star Wars. Qui-Gon é um cavaleiro Jedi, mentor de Obi-Wan Kenobi, bem como o descobridor de Anakin Skywalker, acreditando que Anakin é O Escolhido que restituirá o equilíbrio do universo, ignorando os alertas de Yoda sobre a natureza instável de Anakin; no final de A Ameaça Fantasma, Qui-Gon é morto por Darth Maul[10].
Na trilogia Batman, Ra’s também é professor do jovem Wayne: em Batman Begins, ele encontra Wayne em uma prisão chinesa; apresentando-se como Henri Ducard, ele oferece um “caminho” para o garoto. Depois que Wayne é libertado, ele segue até a fortaleza da Liga das Sombras, onde Ra’s está esperando, embora se apresente como servo de outro homem chamado Ra’s Al Ghul. Depois de um longo e doloroso treinamento, Ra’s explica que Bruce deve fazer o que for preciso para combater o mal, embora revele que eles treinaram Bruce para liderar a Liga com o intuito de destruir Gotham City, que eles acreditam ter se tornado irremediavelmente corrupta. Portanto, Ra’s não é a simples encarnação do Mal: ele representa a combinação de virtude e terror, a disciplina igualitária que combate um império corrupto, e assim pertence ao fio condutor (na ficção recente) que vai de Paul Atreides em Duna até Leônidas em 300 de Esparta. E é crucial que Wayne seja seu discípulo: Wayne foi formado como Batman por ele.
Duas críticas do senso-comum se apresentam aqui. A primeira é de que houve violência e matanças monstruosas nas revoluções reais, desde o estalinismo ao Khmer Vermelho, por isso está claro que o filme não está apenas engajado na imaginação revolucionária. A segunda, oposta, é esta: o atual movimento Occupy Wall Street não foi violento, seu objetivo definitivamente não era um novo reino do terror; na medida em que se espera que a revolta de Bane extrapole a tendência imanente do movimento OWS, o filme, portanto, deturpa de maneira absurda seus objetivos e estratégias. Os atuais protestos antiglobalistas são o exato oposto do terror brutal de Bane: este representa a imagem espelhada do terror estatal, uma seita fundamentalista e homicida dominada e controlada pelo terror, e não a sua superação por meio da auto-organização popular… As duas críticas compartilham a rejeição da figura de Bane. A resposta a essas duas críticas é múltipla.
Primeiro, devemos esclarecer o atual escopo da violência – a melhor resposta para a afirmação de que a reação violenta da multidão à opressão é pior que a opressão original foi dada por Mark Twain no seu Um ianque na corte do rei Artur: “Houve dois ‘Reinos do Terror’, se bem nos lembramos; um forjado na incandescente paixão, outro no desumano sangue frio. […] Mas todos os nossos temores, que os tenhamos pelo menor terror, o momentâneo, por assim dizer; pois o que é o terror da morte súbita pelo machado se comparado à morte em toda uma vida de fome, frio, insulto, crueldade e desilusão? O cemitério de qualquer cidade pode bem conter os caixões cheios desse breve terror, que todos aprendemos com afinco a temer e lamentar; mas a França inteira mal conteria os caixões cheios daquele outro terror, mais antigo e verdadeiro, o terror de amargura e atrocidade indizíveis, que nenhum de nós aprendeu a encarar em toda sua amplitude ou desprezo que merece”.
Depois, deveríamos desmistificar o problema da violência, rejeitando afirmações simplistas de que o comunismo do século XX agiu com uma violência homicida excessiva demais, e de que deveríamos tomar cuidado para não cair mais uma vez nessa armadilha. Com efeito, trata-se de uma terrível verdade – mas esse foco voltado diretamente para a violência obscurece uma questão basilar: o que houve de errado no projeto comunista do século XX como tal, qual foi o ponto fraco imanente desse projeto que impulsionou o comunismo a recorrer (não só) aos comunistas no poder para a violência irrestrita? Em outras palavras, não basta dizer que os comunistas “negligenciaram o problema da violência”: foi um aspecto sócio-político mais profundo que os impulsionou à violência. (O mesmo se aplica à ideia de que os comunistas “negligenciaram a democracia”: seu projeto geral de transformação social impôs sobre eles esse “negligenciar”.) Portanto, não é apenas o filme de Nolan que foi incapaz de imaginar o poder autêntico do povo – os próprios movimentos “reais” de emancipação radical também não o fizeram e continuam presos nas coordenadas da antiga sociedade, e, por essa razão, muitas vezes o efetivo “poder do povo” foi esse horror violento.
E, por último, mas não menos importante, é muito simples dizer que não há potencial violento no movimento OWS e similares – há sim uma violência em jogo em todo processo emancipatório autêntico: o problema com o filme é que ele traduziu essa violência de uma maneira errada em terror homicida. Qual é, então, a sublime violência em relação à qual até mesmo o mais brutal assassinato é um ato de fraqueza? Façamos uma digressão em Ensaio sobre a lucidez, de José Saramago, que conta a história dos estranhos eventos na capital sem nome de um país democrático não identificado. Quando a manhã do dia das eleições é arruinada por chuvas torrenciais, a quantidade de eleitores presentes é extremamente baixa, mas o tempo melhora no meio da tarde e a população segue em massa para as seções eleitorais. No entanto, o alívio do governo logo acaba quando a contagem de votos revela que 70% das cédulas na capital foram deixados em branco. Frustrado por esse aparente lapso civil, o governo dá aos cidadãos a chance de refazer o fato uma semana depois, em mais um dia de eleição. O resultado é pior: agora 83% dos votos foram brancos. Os dois principais partidos políticos – o governante partido da direita (p.d.d.) e seu principal adversário, o partido do meio (p.d.m.) – entram em pânico, enquanto o infeliz e marginalizado partido da esquerda (p.d.e.) apresenta uma análise afirmando que os votos brancos são, essencialmente, um voto por sua agenda progressiva. Sem saber como responder a um protesto benigno, mas certo de que existe uma conspiração antidemocrática, o governo rapidamente rotula o movimento de “terrorismo puro e duro” e declara estado de emergência, permitindo a suspensão de todas as garantias constitucionais e adotando uma série de medidas cada vez mais drásticas: os cidadãos são apanhados aleatoriamente e desaparecem em interrogatórios secretos, a polícia e a sede do governo saem da capital, proibindo a entrada e a saída da cidade e, por fim, fabricando seu próprio líder terrorista. A cidade toda continua funcionando quase normalmente, as pessoas se esquivam de todas as ofensivas do governo com uma harmonia inexplicável e com um verdadeiro nível gandhiano de resistência não violenta… isso, a abstenção dos eleitores, é um exemplo de “violência divina” verdadeiramente radical que desperta reações de pânico brutal nos detentores do poder.
Voltando a Nolan, a trilogia dos filmes do Batman, portanto, segue uma lógica imanente. Em Batman Begins, o herói continua dentro dos limites de uma ordem liberal: o sistema pode ser defendido com métodos moralmente aceitáveis. O Cavaleiro das Trevas é de fato uma nova versão de dois clássicos de faroeste de John Ford (Sangue de Heróis e O Homem Que Matou o Facínora) que retratam como, para civilizar o ocidente selvagem, é preciso “publicar a lenda” e ignorar a verdade – em suma, como nossa civilização tem de se fundamentar em uma Mentira: é preciso quebrar as regras para defender o sistema. Ou, dito de outra forma, em Batman Begins, o herói é simplesmente uma figura clássica do vigilante urbano que pune os criminosos naquilo que a polícia não pode; o problema é que a polícia, órgão responsável pela imposição das leis, relaciona-se de maneira ambígua à ajuda de Batman: enquanto admite sua eficácia, ela também considera Batman uma ameaça ao seu monopólio do poder e uma testemunha da sua ineficácia. No entanto, a transgressão de Batman aqui é puramente formal, consiste em agir em nome da lei sem a legitimação para fazê-lo: nos seus atos, ele nunca viola a lei. O Cavaleiro das Trevas muda essas coordenadas: o verdadeiro rival de Batman não é o Coringa, seu oponente, mas Harvey Dent, o “cavaleiro branco”, o novo e agressivo promotor público, um tipo de vigilante oficial cuja batalha fanática contra o crime o conduz ao assassinato de pessoas inocentes e o destrói. É como se Dent fosse a resposta à ordem legal da ameaça de Batman: contra a vigilante luta de Batman, o sistema gera seu próprio excesso ilegal, seu próprio vigilante, muito mais violento que Batman, violando diretamente a lei. Desse modo, há uma justiça poética no fato de que, quando Bruce planeja revelar ao público sua identidade como Batman, Dent o interrompe e se apresenta como Batman – ele é “mais Batman que o próprio Batman”, efetivando a tentação à qual Batman ainda era capaz de resistir. Então quando, no final do filme, Batman assume os crimes cometidos por Dent para salvar a reputação do herói popular que incorpora a esperança para o povo comum, seu ato modesto tem uma ponta de verdade: Batman, de certa forma, devolve o favor a Dent. Seu ato é um gesto de troca simbólica: primeiro Dent toma para si a identidade de Batman, e depois Wayne – o Batman verdadeiro – toma para si os crimes de Dent.
Por fim, O Cavaleiro das Trevas Ressurge ultrapassa ainda mais os limites: Bane não seria Dent levado ao extremo, à sua autonegação? Dent que chega à conclusão de que o sistema é injusto, de modo que, para combater a injustiça com eficácia, é preciso atacar diretamente o sistema e destruí-lo? E, como parte da mesma atitude, Dent que perde as últimas inibições e está pronto para usar toda sua brutalidade assassina para atingir esse objetivo? O advento dessa figura muda a constelação inteira: para todos os participantes, inclusive Batman, a moralidade é relativizada, torna-se uma questão de conveniência, algo determinado pelas circunstâncias: é uma guerra de classes aberta, tudo é permitido para defender o sistema quando estamos lidando não só com gângsteres malucos, mas com uma revolta popular.
Será, então, que isso é tudo? O filme deveria ser categoricamente rejeitado por quem se envolve em lutas emancipatórias radicais? As coisas são mais ambíguas, e é preciso interpretar o filme da maneira que se interpreta um poema político chinês: as ausências e as presenças surpreendentes também contam. Recordemos a antiga história francesa sobre uma esposa que reclama do melhor amigo do marido, dizendo que o amigo tem se insinuado sexualmente para ela: leva algum tempo para que o amigo surpreso entenda a mensagem – de uma maneira invertida, ela o está incitando a seduzi-la… É como o inconsciente freudiano que não conhece a negação: o que importa não é um juízo negativo sobre algo, mas o simples fato de que esse algo seja mencionado – em O Cavaleiro das Trevas Ressurge, o poder do povo ESTÁ AQUI, encenado como um Evento, em um passo fundamental dado a partir dos oponentes habituais de Batman (criminosos megacapitalistas, gângsteres e terroristas).
Temos aqui a primeira pista – a perspectiva de que o movimento OWS tome o poder e estabeleça a democracia do povo em Manhattan é nítida e completamente tão absurda e irreal que não podemos deixar de fazer a seguinte pergunta: POR QUE UM IMPORTANTE BLOCKBUSTER DE HOLLYWOOD SONHA COM ISSO, POR QUE EVOCA ESSE ESPECTRO? Por que sequer sonhar com o OWS culminando em uma violenta tomada de poder? A resposta óbvia (manchar o OWS com acusações de que ele guarda um potencial terrorista totalitário) não é o bastante para explicar a estranha atração exercida pela perspectiva do “poder do povo”. Não admira que o funcionamento apropriado desse poder continue branco, ausente: nenhum detalhe é dado sobre como funciona esse poder do povo, sobre o que as pessoas mobilizadas estão fazendo (é preciso lembrar que Bane diz que as pessoas podem fazer o que quiserem – ele não impõe sobre elas a sua própria ordem).
É por isso que a crítica externa do filme (“sua retratação do reino do OWS é uma caricatura ridícula”) não basta – a crítica tem de ser imanente, tem de situar dentro do próprio filme uma multiplicidade de sinais que aponte para o Evento autêntico. (Recordemos, por exemplo, que Bane não é apenas um terrorista brutal, mas sim uma pessoa de profundo amor e sacrifício.) Em suma, a ideologia pura não é possível, a autenticidade de Bane TEM de deixar rastros na tecitura do filme. É por isso que o filme merece uma leitura mais íntima: o Evento – a “república do povo de Gotham City”, a ditadura do proletariado sobre Manhattan – é imanente ao filme, é o seu centro ausente.
[1] Tyler O’Neil, “Dark Knight and Occupy Wall Street: The Humble Rise”, Hillsdale Natural Law Review, 21 de julho de 2012.
[2] Karthick RM, “The Dark Knight Rises a ‘Fascist’?”, Society and Culture, 21 de julho de 2012.
[3] Tyler O’Neil, cit.
[4] Christopher Nolan, entrevista na Entertainment 1216 (julho de 2012), p. 34.
[5] Entrevista de Christopher e Jonathan Nolan ao Buzzine Film.
[6] Karthick, cit.
[7] Forrest Whitman, “The Dickensian Aspects of The Dark Knight Rises”, 21 de julho de 2012.
[8] Karthick, cit.
[9] Citado em Jon Lee Anderton, Che Guevara: A Revolutionary Life, New York: Grove 1997, p. 636-637.
[10] Notemos a ironia do fato de que o filho de Neeson é um xiita devoto, e que o próprio Neeson às vezes fala sobre a sua futura conversão ao islamismo.
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009) e os mais recentes Em defesa das causas perdidas e Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011).
Pantera Negra
4.2 2,3K Assista AgoraAviso, contém spoilers no artigo seguinte.
Žižek: Dois Panteras Negras
Há tempos esperávamos por um filme como Pantera Negra, mas Pantera Negra não parece ser o filme pelo qual esperávamos… ou será que é?
O primeiro sinal de alerta que indica que estamos em terreno ambíguo é o fato de que o filme foi recebido com entusiasmo praticamente de ponta a ponta no espectro político: dos partidários da emancipação negra que viram nele uma importante afirmação hollywoodiana de representatividade e valores de empoderamento negro, passando por liberais de esquerda mais modestos que simpatizaram com a resolução razoável do enredo (educação e ajuda, ao invés de luta), até chegar a adeptos da nova direita alternativa do “alt-right” que logo reconheceram na afirmação da identidade e modo de vida negros outra versão do slogan “America first” [“Os Estados Unidos em primeiro lugar”] entoado por Trump (aliás, não é à toa que Robert Mugabe, antes de ter perdido o poder, também falou algumas palavras elogiosas a respeito do atual presidente dos EUA). Quando todos os lados se reconhecem no mesmo produto, pode se ter certeza de que o produto em questão está operando como ideologia em seu estado mais puro, isto é, como um recipiente vazio contendo elementos antagônicos.
O próprio ponto de partida da trama se instala em uma ambivalência. Parafraseando a boa a velha Wikipédia, recuperemos a premissa do enredo: muitos séculos atrás, cinco tribos africanas guerreiam disputando um meteorito contendo vibranium. Um guerreiro ingere uma “erva em forma de coração” impregnada pelo metal raro e adquire poderes sobre-humanos, tornando-se o primeiro “pantera negra”. Com isso, ele é capaz de unir todas as tribos (exceto a Jabari), para formar o grande reino de Wakanda. Os wakandianos usam o vibranium para desenvolver tecnologia avançada e isolarem-se do mundo, assumindo uma fachada de nação subdesenvolvida de Terceiro Mundo. Pois bem, a história recente nos ensina que ser abençoado por algum precioso recurso natural é na verdade uma maldição disfarçada – pense na situação atual do Congo de hoje, que se encontra nesse estado precisamente por conta da maneira pela qual o país é alvo de uma exploração implacável visando a incrível riqueza de seus recursos naturais.
À medida que a trama do filme começa a se desenvolver, a narrativa logo se desloca para Oakland, que foi um importante reduto do verdadeiro Partido dos Panteras Negras, o movimento radical de libertação negra surgido no final dos anos 1960 que foi impiedosamente reprimido pelo FBI (integrantes foram brutalmente assassinados etc.). No entanto, seguindo a trilha do quadrinho original da Marvel, o filme – que jamais menciona diretamente os verdadeiros Panteras Negras – em um simples mas nem por isso menos magistral toque de manejo ideológico na prática se apropria do nome original de forma a fazer com que ele reverbere menos a histórica organização militante radical e mais o rei-super-herói de um poderoso reino africano fictício.
Mais precisamente, há dois “panteras negras” no filme – o Rei T’Challa e seu primo Erik Killmonger (N’Jadaka) – e cada um deles representa uma visão política diferente. Erik passou sua juventude justamente em Oakland e depois foi agente do comando especial secreto do exército estadunidense – seu universo é o da pobreza, da violência de rua e da brutalidade militar. Já T’Challa foi criado na opulência isolada da corte real de Wakanda. Erik advoga uma solidariedade global militante e defende que Wakanda deveria colocar sua riqueza, seu conhecimento e seu poder à disposição dos oprimidos de todo o mundo para que eles possam derrubar a ordem mundial existente. T’Challa, ao longo do arco narrativo do filme, lentamente passa da uma postura isolacionista tradicional (do tipo “Wakanda em primeiro lugar!”) para um globalismo gradual e pacífico, que operaria no interior das coordenadas da ordem mundial existente e suas instituições, disseminando educação e auxílio tecnológico, e ao mesmo tempo preservando a cultura e o modo de vida singulares de Wakanda.
É por isso que T’Challa é mais um herói indeciso, dividido entre dois caminhos diferentes de ação, do que o habitual super-herói totalmente ativo (diferente de seu oponente, Killimonger, que está sempre pronto para agir e sempre sabe o que fazer). E o fato de que um agente da CIA acaba desempenhando um papel chave na concretização da vitória final de T’Challa será muito revelador… Enquanto muitos críticos elogiaram o papel ativo das mulheres na corte de Wakanda, além da variedade e o estatuto de suas diferentes posições (defesa, sabedoria de idade, ciência e tecnologia…), na economia interna do filme, essa afirmação da feminilidade permanece estritamente subordinada à dominação masculina. Por isso, até mesmo com a abertura de Wakanda para o mundo, tudo que mudaria é que uma dose de sabedoria tradicional trabalhará para conter os excessos do capitalismo selvagem e desenfreado. Com T’Challa conduzindo o leme, os poderosos de hoje podem continuar a dormir em paz…
Um dos sinais de que há algo errado nesse quadro é o estranho papel dos dois personagens brancos: o sul-africano Ulysses Klaue, “do mal”, e o agente da CIA Everett Ross, “do bem”. Klaue não se encaixa muito bem no papel do vilão ao qual é designado – ele é fraco e cômico demais. Já o agente Ross constitui uma figura muito mais enigmática – em certo sentido é ele o sintoma do filme. Trata-se de um agente da CIA (e isso significa que seus superiores, e portanto o governo dos EUA, sabem a verdade sobre Wakanda) que participa dos eventos a uma distância irônica, estranhamente não-envolvido, como se estivesse participando de uma espécie de espetáculo… Por que é que Shuri o escala para pilotar o avião que irá derrubar os aviões portando as armas para os agentes de Killmonger em todo o mundo (o papel comumente reservado para os negros “do bem” nos tradicionais filmes de ficção científica de Armageddon)? Não seria afinal porque ele representa o sistema global existente no universo do filme, representando ao mesmo tempo o “nosso” lugar (a maioria dos telespectadores brancos do filme), como que nos dizendo: “Pode curtir tranquilamente essa fantasia de supremacia negra, nenhum de nós está realmente ameaçado por esse universo alternativo!”
Com isso, sobra Killmonger como o único verdadeiro vilão. Temos então como que um revolucionário pantera negra dos anos 1960 contra o nobre e mítico pantera negra de nosso universo de super-heróis de quadrinhos… O fato de que T’Challa se abre a uma “boa” globalização mas ao mesmo tempo recebe o apoio de sua expressão repressiva, a CIA, revela que não há tensão real entre os dois: o “retorno às raízes” combina perfeitamente com o capitalismo global (que só pode ser verdadeiramente sobrepujado através de um projeto global diferente). Por isso, devemos ter um pé atrás antes de nos deixar fascinar diante do belo espetáculo da capital de Wakanda como cidade moderna alternativa onde a tecnologia está a serviço das necessidades humanas, onde a tradição e a ultramodernidade se fundem perfeitamente.
O que esse belo espetáculo oblitera é o insight que Malcolm X seguiu quando adotou a letra “X” no lugar de seu sobrenome. O gesto de abraçar o “X” como nome de família – recusando assim o “nome de escravo” e assinalando que os traficantes que escravizaram e transportaram africanos de sua terra natal brutalmente os arrancaram de suas famílias, de suas raízes étnicas, de sua cultura e de todo seu mundo da vida –, esse gesto trazia um intuito que não era o de simplesmente mobilizar os negros a lutarem pelo retorno a uma raiz africana primordial, mas precisamente de abraçar a recusa e a abertura proporcionadas pelo “X”: uma nova e desconhecida (ausência de) identidade engendrada pelo próprio processo da escravidão que fez com que as raízes africanas fossem para sempre perdidas. A ideia é que esse “X” que arranca os negros de sua tradição particular fornece uma plataforma singular a partir da qual seria possível redefinir e (reinventar) a si mesmo, de formar livremente uma nova identidade, muito mais universal do que a pretensa falsa universalidade professada pelos brancos. Como se sabe, Malcolm X encontrou essa nova identidade no universalismo do Islã. Nesse sentido, o filme parece passar ao largo dessa preciosa lição de Malcolm X: para atingir uma verdadeira universalidade, um herói deve primeiro passar pela experiência de perder suas raízes.
Visto desse modo, o problema nos aparece em maior evidência, reforçando a insistência de Fredric Jameson do quão difícil é hoje imaginar um mundo verdadeiramente novo, um mundo que não apenas reflita, inverta ou suplemente a ordem mundial vigente. Nesse sentido, fica difícil imaginar o que levou um crítico a escrever que Frantz Fanon, o teórico franco-martiniquense da libertação negra através de rebelião violenta, “teria ficado orgulhoso” se assistisse ao filme.
No entanto, há sinais que perturbam essa leitura simples e mais óbvia de Pantera Negra, sinais que nos estimulam a fazer uma leitura do filme que se assemelha à maneira pela qual Leo Strauss leu as obras de Platão e Spinoza, bem como o clássico Paraíso Perdido, de John Milton. Embora se valesse de termos como “ensinamentos secretos”, Strauss não era nenhum gnóstico dedicado a levar a cabo uma “hermenêutica profunda”, ele não estava à procura de algum suposto Platão esotérico, como quem busca chegar a um saber oculto a ser decodificado a partir do texto público. Ao contrário, tudo está dado e dito, todas as teorias alternativas podem ser claramente apresentadas. Uma leitura straussinana cuidadosa apenas aponta os sinais que indicam que a evidente hierarquia de posições teóricas precisa ser invertida.
Por exemplo: o Livro Primeiro da República de Platão trata do diálogo polêmico entre Sócrates e Trasímaco, que violentamente discorda com o resultado da discussão travada entre Sócrates e Polemarco a respeito da justiça. Trasímaco alega “que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte” e que “a injustiça, quando chega a um certo ponto, é mais potente, mais livre e mais despótica do que a justiça” (344c). Sócrates contra argumenta forçando-o a admitir que há um padrão de justiça para além da lei do mais forte. No entanto, uma leitura atenta deixa evidente qual é a verdadeira posição de Platão: no que diz respeito aos fatos, Trasímaco está correto, a justiça é a conveniência do mais forte – mas essa verdade deve ser mantida em segredo na medida que sua disseminação pública feriria e desmoralizaria a maioria de pessoas comuns cuja sensibilidade moral exige que o direito seja mais forte que o poder. O mesmo ocorre com o Paraíso Perdido, de Milton: embora ele siga as diretrizes oficiais da igreja ao condenar a rebelião de Satanás, as simpatias de Milton estão claramente com o diabo. Vale acrescentar que não importa se essa preferência pelo lado ou agente “do mal” é algo consciente ou não por parte do autor do texto, em ambos os casos, o resultado é o mesmo.
E o mesmo não vale também para o filme Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge (2008), a parte final da trilogia escrita e dirigida por Christopher Nolan? Embora Bane seja o vilão oficial, há indicações de que ele, muito mais do que o próprio Batman, é o autêntico herói do filme, distorcido como seu vilão: ele está pronto para se sacrificar por amor, disposto a arriscar tudo por aquilo que ele entende ser uma injustiça, e esse fato básico é eclipsado pela inclusão de traços superficiais e um tanto ridículos de maldade destrutiva no personagem.
Mas voltemos a Pantera Negra. Quais são os sinais que nos permitem reconhecer na figura de Killmonger o verdadeiro herói do filme? São muitos. Talvez o mais forte esteja na cena de sua morte, em que o gravemente ferido Erik opta por morrer ao invés de ser curado e sobreviver na falsa abundância de Wakanda – o forte impacto ético das últimas palavras de Killmonger imediatamente desmonta a ideia de que ele seria um simples vilão convencional. O que se segue é então um momento extraordinariamente caloroso: pouco antes de morrer, Killmonger senta-se na beira do precipício de uma montanha observando o lindo pôr do sol de Wakanda e seu primo T’Challa, que acaba de derrotá-lo, senta-se ao seu lado. Não há ódio aqui, apenas dois homens bons com visões políticas diferentes compartilhando seus últimos momentos juntos após o desfecho da batalha – uma cena inimaginável em um filme tradicional de ação que geralmente culmina na virulenta destruição do inimigo… Esses momentos finais, por si sós, lançam uma dúvida sobre a leitura mais imediata do filme e nos convidam a uma reflexão muito mais profunda.
Nota: Minha leitura se vale dos artigos “Black Panther as empty container”, de Duane Rouselle (Dingpolitik, 17/02/2018), “Black Panther Is Not the Movie We Deserve”, de Christopher Lebron (Boston Review, 17/02/2018), e de uma troca de e-mails com Todd McGowan.
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Slavoj Žižek nasceu na cidade de Liubliana, Eslovênia, em 1949. É filósofo, psicanalista e um dos principais teóricos contemporâneos. Transita por diversas áreas do conhecimento e, sob influência principalmente de Karl Marx e Jacques Lacan, efetua uma inovadora crítica cultural e política da pós-modernidade. Professor da European Graduate School e do Instituto de Sociologia da Universidade de Liubliana, Žižek preside a Society for Theoretical Psychoanalysis, de Liubliana, e é um dos diretores do centro de humanidades da University of London. Dele, a Boitempo publicou Bem-vindo ao deserto do Real! (2003), Às portas da revolução (escritos de Lenin de 1917) (2005), A visão em paralaxe (2008), Lacrimae rerum (2009), Em defesa das causas perdidas, Primeiro como tragédia, depois como farsa (ambos de 2011), Vivendo no fim dos tempos (2012), O ano em que sonhamos perigosamente (2012), Menos que nada (2013), Violência (2014) e o mais recente O absoluto frágil (2015).
Serra Pelada
3.6 353 Assista AgoraRecomendadíssimo para conhecer um pouco mais sobre esse período da história brasileira...
Máquina de Guerra
2.7 150 Assista AgoraBem interessante o filme, recomendado... mostra como as guerras não são para serem vencidas, apenas para serem mantidas, assim os senhores das armas e guerras lucram sempre!!
Salve Geral
3.2 287História fantástica, imperdível, filme bem legal também, recomendadíssimo para conhecer um pouco mais sobre o PCC em SP.
Titã
2.3 268 Assista AgoraHistória interessante e bons recursos para produção, porém, desenvolveram fracamente o filme...poderia ter sido melhor!
O Grande Lebowski
3.9 1,1K Assista AgoraThe Dude!!!
Ponyo: Uma Amizade que Veio do Mar
4.2 993 Assista AgoraMuio legal, principalmente para o publico infantil que for assistir!
Doutor Estranho
3.4 51Legal a história, porém, forçado em partes o desenho..
Mary e Max: Uma Amizade Diferente
4.5 2,4KFantástica animação!!!
Piratas da Informática: Piratas do Vale do Silício
3.6 372Que filme legal, recomendo para quem quiser conhecer um pouco mais sobre a história deles!! Principalmente quem se utiliza desses caras como ídolos para embasar seus discursos!
Basicamente como se legitimar roubo através de discursos empreendedores.... a mão invisível leva um tapa de realidade haha.
Segunda Guerra Mundial em Cores
4.5 37Interessante experiência presenciar em cores essa guerra.
Cara Gente Branca (Volume 2)
4.2 123 Assista AgoraMuito bom! Já quero a próxima temporada hahah
3% (1ª Temporada)
3.6 772 Assista AgoraCaraca ein, me surpreendeu muito essa série...que sacada fantástica!
Chapolin Colorado (1ª Temporada)
4.3 258Uma nostalgia incrível reassistir essas obras!!!
Narcos (3ª Temporada)
4.4 297 Assista AgoraLegal ein, não deixou a desejar pelas temporadas anteriores!
O Abutre
4.0 2,5K Assista AgoraMano, que filme da hora...
O Homem Cobra
2.7 124Classiqueira do trash que passou muuuuito na Tv hahaha
Zaroff, o Caçador de Vidas
3.4 36 Assista AgoraAinda te baixo pra ver...
Zodíaco
3.7 1,3K Assista AgoraInteressante....