Quantos filmes pioneiros de um gênero podem dizer que iniciam com imagens tão definidoras de sua essência tal como um fotógrafo de olhos assanhados, recém chegado na Tailândia? Mas... ao mesmo tempo, quantos desses filmes têm a "proeza" de desperdiçar todas essas possibilidades?
Quero dizer, ao contrário de diversas outras obras inauguradoras de gênero, Lenzi já abre as portas dos longas de canibais tendo muita consciência de quais seriam as características mais potentes desse tipo de imagem. Entretanto, infelizmente, faz isso sem saber como desenvolvê-las, acabando, até mesmo, por chafurdar em incoerência.
No seu auge, organiza-se toda essa abjeção do exploitation com grande competência, enfia-se no meio do mato e filma suas imagens apelativas articulando-as como uma ontologia anti-antropológica. Daí aquela junção de imagens provinda de uma convulsão de lembranças do protagonista que vão dos tailandeses lutando box às cobras da selva, à tortura dos nativos, às baratas, ao assassinato que ele mesmo cometeu... Isto é, vê-se a abjeção como o único esperanto possível entre diferentes culturas; como aquilo que há de mais imanente na natureza (c.f. as imagens criminosas de violência animal) e, por isso mesmo, como aquilo que expõe a impossibilidade de se identificar com o outro (c.f. a cômica cena do tailândes tomando whisky).
Mas isso é um ponto muito mais flertado do que consumado, pois, ao final, tudo descamba em contradição no momento que Lenzi, sem mais nem menos, pensa que, apesar de filmar tudo do modo mais abjeto possível (toda a exploração explícita da produção com os animais, com aquele povo, com sua representação distorcida...), pode traduzir hipocrisia em flores. Daí todo o drama à la Pocahontas sem menor fundamento, deixando um ar de cinismo e falsidade que, surpreendentemente, sequer parece consciente de si mesmo.
Ora, quanta falta de autoconsciência é necessária para se filmar uma cabra sendo decapitada e uma borboleta como símbolo lírico numa mesmíssima cena... de parto!?
Apesar de toda uma pré-organização fundamental em relação ao que há de melhor no gênero, o que se vê ao final da experiência são imagens tolas que contrastam com um começo tão interessante. Quando o helicóptero deixa de ser filmado como um símbolo de resgate e se transforma num objeto estranho ao protagonista — agora, aconchegado à selva —, a hipocrisia do cineasta já deixou de ser abjeção potente e se tornou mera nulidade.
Diz-se que em Les amants du Pont-Neuf, o filme seguinte a este, Carax sentiu a necessidade de confrontar a realidade, fazer um filme oposto a Mauvais Sang. Todavia, o curioso e mais belo é que, para o cineasta, tanto faz estar com os pés no chão ou com a cabeça nas nuvens, ambas vias sempre desembocarão numa mesma superfície: a da sua sublime ópera de imagens.
Por esse sentido, ainda mais curioso é pensar como as duas obras se encontram em polos paradoxais. Para se confrontar o mundano, filma-se um dos filmes mais caros da França; para se filmar a extrema ficção, confronta-se a economia drástica. De outro modo, na rua, acha-se o amor com mil fogos de artifício; na fantasia, acha-o através de encantadores reflexos turvos do transporte público.
Basicamente, parece que o autor está se desafiando incessantemente, colocando novos empecilhos à sua criatividade para catapultá-la de vez. Sempre explorando uma nova rota que logre em desembarcar, novamente, nessa monumental dimensão da cinética rimada.
Um lugar que para se alcançar depende em muito de toda uma insanidade dos gestos e das situações. Desvario quase essencial para que a matéria possa ser esculpida. Isto é, seu ponto de vazão.
A respeito disso, inclusive, em muito ele se aproxima do velho francês da Nouvelle Vague (como na própria narrativa em questão, que agiganta seus personagens caricatos e transforma a história num filme de gênero farsesco). Entretanto, com a diferença de que essa criatividade nonsense não se manifesta como inúmeros pontos heterogêneos de autoquestionamento e iconoclastia. Ao contrário, cada gesto tresloucado integra um pedaço de inventividade que se interliga com todos os outros tal qual um gigantesco mosaico homogêneo — de mesmas intenções, temáticas e, no que há de mais essencial, de mesmas formas.
É que o distúrbio é a chave principal de seu equilíbrio intrincado. Cada loucura é nada mais que uma nova possibilidade de se cristalizar o mundo humano em um novíssimo espetáculo musicado.
Por exemplo, qual seria a melhor coreografia para acompanhar uma canção de David Bowie? Para Carax, ela só poderia advir de um jovem que explode em movimento após sentir o cimento em seu ventre...
Em suma, guiada pelo desvario, a afasia das paixões só se locupleta num mundo que não esse. O único que consegue dialetizar o distúrbio através de um esquema de quadros inquietos. O único que pode engendrar ordem através da conjugação cinética extremada. O único que entrevê uma dimensão onde inúmeras agitações de luzes e sombras versam perfeitamente entre si.
Ao contrário do que seu conclave bajulador constantemente vomita na mídia, os melhores dotes de Tarantino nunca tiveram nada a ver com seu pretenso conhecimento enciclopédico sobre filmes B. Pelo contrário, se há realmente algo de famoso sobre o realizador que mereça ser exaltado, isso está muito mais nas suas conjunturas cênicas alicerçadas nos diálogos (no instante do drama e dos corpos falantes) do que em todo penduricalho pop que os acompanha.
Como o próprio realizador dizia na época de Kill Bill, seus longas anteriores faziam parte do “mundo de Quentin”, enquanto a história de vingança era sua primeira incursão no “mundo do cinema”. Assim, mesmo aos trancos e barrancos, o caminho mais promissor que a sua carreira fez foi de Reservoir Dogs até Jackie Brown, tendo em 2003 um reboot do tal trajeto, com novos caprichos para chamar de "visão do autor". De um lado, um tortuoso (mas inegavelmente positivo) caminho de se achar os próprios diálogos, o próprio método de atuação e o conjunto de cena que poderia executar bem tudo isso. De outro, o caminho mais extravagante possível (mais fácil e mais recompensador), que vê em cada plano uma chance de reformulação débil pseudoconceitual suficientemente escandalosa.
Diante disso tudo, Django Unchained surge como um conflito por si só. Uma espécie de malformação desta nova trajetória, mas que inegavelmente ainda faz parte da mesma trilha. Complicação que se torna benéfica quando, no seu auge, contraria todas as pistas (que já começam pelo título), e consegue se opor a tal óbvia tentativa de reformulação conceitual de um western.
Em algum nível, o que ocorre é um tipo de retorno desengonçado a tal primeira fase de carreira em que se tentava formar algo próprio. Um cisco da potência de Jackie Brown. Isto é, enquanto lá a extravagância paródica do blaxploitation se metamorfoseava num comedido filme de personagem, aqui (numa proporção indubitavelmente menor), o duelo de balas e poses badass dos spaghetti é suplantado pelo duelo verborrágico. A partir daí, se há algo de bom na obra em questão, isto surge quando Tarantino se opõe totalmente a Kill Bill, adentrando o gênero proposto apenas para se negar a realizá-lo.
Oposição mais do que bem-vinda, pois se na obra com Uma Thurman existia uma malfadada necessidade de tentar reformular à risca filmes de luta (de kung fu, samurais, ninjas...) e enchê-los de purpurina, ao se voltar para o Velho Oeste, o realizador não se envergonha de assumir o que ele realmente sabe fazer. Pelo contrário, ele expõe como o seu estilo é o que há de mais alienígena em um bang bang.
Por isso mesmo, a figura estrangeira de Christopher Waltz acaba por ser um dos maiores trunfos a tal ideia. Ele opera de modo totalmente inverso ao anterior Hans Landa, pois, enquanto que em Inglorious Basterds a funcionalidade (e pose) de sua persona advinham do mutismo dos fantoches que o rodeavam (um esquema muito fácil de contraste, criar um figurão através do gaguejar daqueles que não conseguem acompanhá-lo), Dr. Schultz funciona justamente por usar do seu vocabulário rebuscado para incitar uma resposta num outro alguém. Em outras palavras, a sua figura é o que inaugura essa conspurcação do western que, no que há de mais interessante, faz com que personagens típicos do gênero (como o Marshall, o ricaço dono de terras ou qualquer caipira do Texas) sempre fiquem desconcertados com suas provocações, obrigando-os a reagirem nesse mesmo tom estranho — e um tanto quanto fantasioso — que segue a cordialidade cívica à risca, priorizando a negociata verbal acima de qualquer tiroteio.
Bastaria ver que, Calvin Candie — o grande antagonista interpretado por um ator estelar, tal como Tarantino sempre adora filmar — é um homem mais habituado às conversas sobre a mesa de jantar do que às pistolas e cavalos; um personagem construído para ter seu grande clímax vilanesco numa cena de puro improviso (o famigerado momento que o ator se corta) que substitui a pólvora. Até mais que isso, também poderíamos olhar para Stephen, uma espécie de antagonista oculto que é nada mais do que o velho escravo chefe, um homem que tem a própria língua como o instrumento da função que ocupa.
Mas, claro, o que cito até então são justamente os melhores momentos da obra, os trechos de malformação do caminho, porém, como eu disse, esse ainda é um filme pertencente a trajetória pop de Tarantino, guardando, inevitavelmente, diversos dos seus defeitos. Estes que em 2012 já estavam num alto ponto de deterioração do delírio autoral, fazendo consequentemente com que seus malogros retumbassem na tela "protegidos" pelo selo do "autorismo".
Quero dizer, se Dr. Schultz se importa mais com o verbo do que com tiroteios, isso não é inteiramente vero com seu diretor e é completamente o inverso com seu protagonista, posto para estrelar diversas cenas toscas de bang bang. Afinal, são estes os momentos que o realizador tenta suprir qualquer construção com torrentes de sangue que não mais possuem o significado do gore ou do filme violento, no lugar, adquire o forçoso significado do “tarantinesco”.
Daí que surge aquele alvoroço desleixado da morte de Candie, que só demonstra uma coreografia inicial interessante para desembocar em intensificação bruta e desajeitada, com o slow motion e os espirros de tinta tentando suplantar qualquer inteligência cênica que poderia se ter, por exemplo, a partir dos diversos pontos de vistas de um tiroteio ou de trocentas outras inventividades usuais aos spaghetti.
O mesmo malogro que ocorre com a última sequência do filme, que atinge os píncaros da negligência ao optar por realizar um último bang bang onde nem mais o disparo possui relevância; tudo é fruto de violência frouxa: indolência com os atores (que não precisam fazer mais nada além de permanecerem imóveis, esperando o protagonista alvejá-los) que se encerra na facilidade da explosão truculenta — novamente, a “visceralidade” e “intensificação” como arremedo dos bons tiroteios.
Basicamente, a mesma grandiloquência estética de sempre, que, aliás, nem sequer precisa ser evidenciada através dos momentos de troca de tiros, porque até uma simples situação de conversação também repete essa estrutura decadente da encenação. Afinal, não se precisa mais pensar em decupagem, posicionamento ou qualquer outra besteira para se filmar um espaço com mais de duas pessoas conversando, basta repetir uma movimentação já mui conhecida de sua carreira para que seu selo autoral salvaguarde a qualidade.
Em um último exemplo da autoria intoxicante, o quão mais forte seria se Quentin largasse suas manias de metralhar músicas de efeito por toda a metragem e a cena de tiro de Django fosse realmente a primeira vez que ouvimos rap na trilha?
Bem, ao final, o que resta para se dizer sobre Django Unchained está em sua cena da fogueira, e na diferença de seu uso se comparado a última vez que seu diretor utilizou da metáfora em Kill Bill Vol. 2. Em suma, se este é um projeto hiper pop que não chafurda que nem o de 2004 é porque da história de Pai Mei para a de Siegfried houve alguma remissão. Ok, ainda há a baboseira de Broomhilda e a completa falta de autoconsciência do diretor sobre sua inabilidade romanesca (como o sangue que mancha a plantação de algodão), mas, de outra forma, toda essa referenciação conceitual, desta vez, é algo virtual e não totalizante como era com o mestre do kung fu — e consequentemente com o filme inteiro —, disso, sobram certos espaços para se desprender desses novos compromissos e se voltar àqueles de início de carreira. Um projeto medíocre que vez ou outra respira para ganhar genuínos bons momentos.
Existe um filme extremamente foda aqui no meio, todo baseado numa crise que se manifesta pela pura cinética (qual poderia ser o melhor elogio para um filme?), que arruma qualquer subterfúgio idiota para a velocidade — tanto para o seu personagem não parar mais, quanto para o espectador ver um puro filme de corrida —, que só interrompe o trajeto para retornar a momentos pregressos de mais velocidade...
Mas, infelizmente, parece que após encontrar o cume só resta a ladeira.
Pois, depois disso, um novo filme carcome este. Faz-se exatamente o oposto. Cria-se uma outra obra em que, involuntariamente, a estática é o elemento principal. Substitui-se a velocidade pelas mil paradas, menos como esquema conceitual do que como esquema narrativo tosco para explicar melhor o porquê nunca explicado. Daí, quando um flashback do amor perdido, ao pôr do sol, substitui aqueles de imagem tremida é porque o erro já foi consumado.
Antes mesmo da polícia, Richard C. Sarafian é o primeiro a forçar violentamente o freio de Kowaslki. Sem dúvidas, seu maior pecado.
Muito difícil falar sobre um filme que se agiganta cada vez mais que você se lembra dele. Mas, talvez, a síntese dessa belezura aqui esteja em qualquer cena do Warren Oates contando, como um grande storyteller, suas historietas mentirosas, que não servem pra mais nada além do próprio instante.
Afinal, nada mais americano do que um obra extensivamente narrativa, cheia de símbolos, macguffins e diferentes núcleos. E nada menos americano do que uma obra narrativamente esvaziada, de símbolos incompletos e backstories indiscerníveis.
Sobre remoer tradições, expor crises, entrever revoluções... e vice-versa.
Parece que depois de anos e anos ouvindo as repetidas ladainhas (que mais inflam do que efetivamente analisam) sobre como sua carreira se baseia no ato de contar e imaginar, Shyamalan externalizou a coisa de modo bem direto.
Quero dizer, não do modo que seu fã-clube costuma descrever. Pois, na verdade, “poder sugestivo da história oral”, “retorno ao ato primordial de contar”, “possibilidades redentoras da narrativa”, soam a mim apenas como adjetivações excessivamente românticas que não dão conta do que há de mais simples em sua carreira e que em Old é o que há de mais importante: Shyamalan adora filmar o fantástico sem precisar ter qualquer escrúpulo para com a fantasia — o que, aqui, em nada tem a ver com a bíblia discursiva, e realmente romântica, de Lady in the Water.
Dos diálogos inaugurais que fazem questão de repetir trocentas sugestões sobre a passagem do tempo (como será a voz de Maddox no futuro? Já teriam as crianças idade para todas as atividades do hotel?) à discussão bem simplória do casal em crise (ela protesta que o marido só pensa no futuro e ele que a esposa só pensa no passado), ao contrário do que costumam reclamar imediatamente, a aparente “pobreza” do texto possui uma assunção essencial para o seu exercício fílmico. Uma simplificação da inevitável metáfora — formadora dos “motivos” da narrativa — que, desde seus primeiríssimos momentos, serve-nos tal como a placa de introdução de algum brinquedo dum parque de diversões, informando-nos como toda a experiência por vir será apenas um passeio de ida e volta.
O filme não foge do fato de se parecer com um episódio de ficção científica de alguma série de TV antiga e barata, pelo contrário, encarna isto, retraindo a sua estrutura para jogar onde mais interessa: na praia. Assim, há a alegoria e há a ficção (o primeiro, a necessidade da reflexão sobre o tempo; o segundo, a fantasia gráfica desprenhada da reflexão), percorreremos o pouco comprimento (e interesse) da alegoria para que, assim, cheguemos o mais rápido possível à verdadeira densidade da ficção — o espetáculo.
Basicamente, é numa precisa retitude do fantástico que a obra tem seu auge. Não apenas sobre chegar logo onde se quer, mas confeccionar exatamente o que se quer.
Uma parcimônia muito habilidosa de sua composição formal que transforma toda a habitual cobertura de cena mais extravagante do cineasta em justeza. Não se faz, desde o início, piruetas sintéticas de um só plano, na realidade, ele conduz calmamente seu semiformalismo — contentando-se, por exemplo, no primeiro ato, apenas em fazer um plano/contraplano que insira bonecos de plástico geometricamente posicionados para aludir à temática da passagem do tempo ou, como já dito, condensar um drama de crise em um único plano escuro que já seja o suficiente — para, assim, desabrochá-lo numa rima exata, simultaneamente ao evento absurdo — o que já surge numa movimentação convulsiva da câmera (seguindo as crianças correndo), precedendo em instantes os primeiros sintomas do fênomeno, e que continuará a se libertar com inúmeros primeiríssimos planos e tomadas rodantes enquanto acompanha a progressiva deterioração.
Mas ainda mais que isso, o realizador acaba por tornar o próprio espetáculo numa questão parcimoniosa e, por isso mesmo, ainda mais eficaz. Afinal, ele parece lidar com cada mínima trucagem possibilitadora da ficção como um grandioso elemento que merece atenção por si só.
Daí, diante desse espaço de mil reinvenções (em que se metralha todos os “e se...” das trocentas condições biológicas diferentes) a quantidade parece ser reversamente proporcional à velocidade, dando-nos a chance de deslumbrar (e nos assustar) com cada ínfimo acontecimento. Uma cicatriz instantânea, de uso básico do CGI, é um algo a se prestar atenção como uma explosão em slow motion seria num filme convencional; uma surdez “repentina” é motivo de dar chance ao surround do cinema, experimentando-o como se fosse uma atração nova; ou o meu favorito, um procedimento rudimentar do cinema (e do teatro), trocar atores para criar uma “metamorfose”, que se torna algo preciosíssimo, postergado tal qual uma revelação bombástica.
Ou seja, o que há de mais especial em sua encenação reside nesse ato de fulgurar e valorizar a imaginação cinematográfica em toda a completude de suas diversas vias. Da mais ínfima a mais laboriosa, pois desde a elipse mais básica (formada entre tomadas) até a confecção mais tecnológica (como o CGI) tudo merece deslumbramento.
E, aí, há que se entender, novamente, como pouco importa todo o texto desengonçado que acompanha a miríade de espetáculos. Tanto faz como o autor necessita de muletas expositivas para explicar certas invenções, pois, quando Prisca salva seu marido graças a um metal enferrujado ao mesmo tempo que didatiza como funcionará o efeito da ferrugem, importa muito menos uma pretensa elaboração lógica da cena do que o ato gráfico em si; importa menos entender a inteligência da ação do que a pura imagem do homem enfermo sendo massivamente intoxicado de uma só vez.
Em outras palavras, sempre foi um filme com o gosto pelo efeito, negligenciando a maquinação das causas.
Uma benéfica tônica que provavelmente só é traída por si mesma ao final. O que eu poderia exemplificar pela total falta de ritmo do diretor (com mil cenas climáticas que nunca encerram o filme) ou, principalmente, com o maldito retorno dos escrúpulos (que forçam a fantasia se explicar diegeticamente num redemoinho infinito, totalmente contrário a liberdade dos eventos absurdos anteriores). Todavia, o mais fácil a se ver é que se antes de acontecer o espetáculo há como se preparar o terreno, encerrado o show, não resta mais nada. Shyamalan, então, acaba por lidar com esse “nada” por tempo demais.
Se o diretor tenta negar certos escrúpulos das convenções cinematográficas, ele só o faz em determinada medida — anos-luz da liberdade do cinema de gênero italiano de outrora —, com um apego, às vezes demasiado, pela verossimilhança interna de seu universo. Logo, ao contrário do que toda a hiperdescrição da fuga final sugere (necessitando explicar detalhe por detalhe de como foi possível o milagroso escape), seu drama nunca precisou da elaboração de trocentos porquês para se concretizar, ele já se concretizava ali no meio da gritaria gráfica, de mil horrores, no espetáculo na praia. Como um amigo que assistiu à sessão comigo me comentou, acaba por ser uma excessiva racionalização onde não se precisava.
Nada de tão demais ao final, pois se há demasia após o espetáculo, o show já foi cumprido. E é isso que há de melhor para se lembrar do longa: a eficácia surgida dessa simplicidade tão direta. Óbvio que nunca houve um filme “genial” por aqui, mas, do contrário, há uma diversão suficientemente única: uma espécie de El ángel exterminador dirigido por qualquer um dos bons diretores de Twilight Zone que simplesmente gamou no espetacularismo sci-fi que sua alegoria pôde abrir brecha.
Das comparações mais comumente traçadas, creio que a mais imediata e prolífica esteja entre Stanley White e o Ethan Edwards de John Wayne, porém, assistindo ao longa, curiosamente, o nome que mais me veio em mente foi o de outro personagem: o "Popeye" de Gene Hackman.
Talvez uma ligação mais fácil, considerando que Cimino e Friedkin são cineastas de uma mesma geração, mas, ainda assim, uma contraposição que me parece trazer certa elucidação e exponenciação sobre como ambos diretores lidam com a sujeira que rodeia seus homens.
French Connection é um filme que não dá respiros para seu protagonista, ou melhor, é um filme sem fôlego como um todo. Se existe uma atividade criminosa a ser desvendada, a objetiva de Friedkin se atrela a ela numa condição de magnetismo. Toda a crueza dessa câmera sob a rua vira um joguete de emaranhamento intermitente impossível de despregar os olhos (daí as fascinantes sequências de perseguição). Contudo, o personagem de Hackman serve como uma fissura diante dessas imagens magnéticas, fissura que inevitavelmente clamará nossa atenção ao término de seus desenrolos, fazendo-nos, por fim, desgrudar a visão da tela para poder enxergar, através da figura do policial radical, o verdadeiro panorama da situação: o aviltamento do único que pôde resolver o crime e toda a inutilidade do desfecho da operação.
Já com Cimino, a tal fissura do protagonista engole a imagem desde o primeiríssimo instante, de fato, a força motora de Year of the Dragon. O autor também utiliza desse mesmo tipo de policial paranoico — e que tão somente por ser paranoico é o único capaz de enxergar a verdade (o que já explicita a condição moral do universo apresentado) — designado a se afundar na sujeira para, quem sabe assim, poder combatê-la, todavia, aqui, numa jornada totalmente dissecada, posta em primeiro plano. Afinal, mais do que nitidamente, este é um filme sobre seu personagem, mas, muito além disso, é um filme que só pode ganhar qualquer tipo de força através de seu personagem.
Toma-se, então, um dos procedimentos mais tradicionais do cinema americano como chave da encenação (a preeminência do ator, uma dimensão em que “a câmera se identifica com a presença física, os movimentos e a própria existência das personagens”) e se chega numa curiosa equação. Isto é, por se utilizar de meios menos revolucionários (do que a soltura cênica de The Deer Hunter, por exemplo), Cimino é ainda mais revolucionário. O cineasta confia profundamente em Rourke, faz dele o pilar da transparência de seu filme e, justamente por isso, acaba por atingir brutalidade e potência inigualáveis.
Se o filme policial de Friedkin parece desaguar numa total escuridão sobre o gênero (e o mundo), é o próprio policial de Cimino que entrevê e nos aponta para uma total escuridão que permeia a fundação de seu país — o que significa, inevitavelmente, que ele aponta para o próprio peito.
Daí, quando Pauline Kael (numa habitual constatação superficial) explica que Stanley White é "a síntese de Rambo e Dirty Harry", o que ela não conseguiu entender, foi o próprio contexto do cinema americano de sua época, com toda sua nova leva de mitos de epitáfio ou de destruição (mas não de desconstrução), em que o Vietnã se tornava o novo marco zero dos ditos heróis — e não mais a guerra civil da qual Ethan Edwards veio. Entendeu menos ainda, então, que na pele de Rourke que essa convulsão mítica atingiu seu auge.
Logo, se afasto o policial polonês do(s) cowboy(s) de Wayne, uma das exemplificações mais justas seria, na verdade, aproximá-lo do gângster de Cagney, aquele que explodiu no topo do mundo. O que não deve ser comparado por qualquer maior característica do personagem senão a própria explosão em si. Porquanto, a trajetória de Rourke é parecida com a que Walsh pavimentara, aproveita-se desse dimensionamento absoluto sobre a pele do ator para, assim, elevar seu drama a um paroxismo insano (o homem que segue esse rasto de corrupção, assassinato e estupro que cai sobre àqueles ao seu redor e nem mesmo assim deixa de avançar, pelo contrário, aumenta o passo enquanto enclausura toda essa desgraça em sua carcaça), desenvolver, afinal, a paulatina combustão de seu corpo. O que, aqui, não culmina em tiros sob o tanque de gás, mas na cegante luz de um trem.
Ao final, o que fatalmente se atinge com a detonação de Stanley é nada mais do que uma das experiências mais brutais que já presenciei. Certamente não o filme com mais sanguinolência e nem mesmo o com a maior tentativa de perversidade (sequer há isso por aqui). No lugar, uma obra que só precisa da construção dramatúrgica exata para desenterrar a maior das violências. Não a violência de só um personagem, mas aquela que habita nas entranhas de toda uma nação.
Engraçado ler reviews da época do lançamento do filme e ver todo alarde que se fazia em torno dessa estreia. Negava-se o “pop” que carimbavam Tarantino a fim de erguê-lo como salvador da imagem contemporânea, o homem que, num ato milagroso, foi capaz de restaurar a cinefilia dos anos 90 e, no “agora” de então, era um dos únicos a entender a origem e destino da crise cinematográfica graças ao seu desdobramento massivo de referências...
Bem, realmente concordo que Kill Bill não pode ser chamado meramente de “pop”. Afinal, antes disso, ele é o pastiche do pop em si, sua avassaladora redução rumo aos seus níveis mais miseráveis; o estereótipo da palavra diluído na mídia que faz, imediatamente, com que qualquer cantor milionário também seja adjetivado com o mesmo termo. Quero dizer, Kill Bill é pura pose.
Se Jackie Brown é a extensão do que havia de melhor em Pulp Fiction — o puro bate e rebate do espesso diálogo entre atores —, a obra em questão é nada mais do que um looping do horrendo capítulo entre a Uma Thurman e o John Travolta. Como se aquela movimentação torpe que mapeia rudemente o Jack Rabbit Slims, numa pura masturbação da autoconfecção referencial dos anos 50, fosse quadriplicada num túnel indulgente de hipsterismo cool para a experiência toda — não à toa, aqui há um outro plano sequência parecidíssimo (e bem mais famoso), com a câmera que segue a Noiva indo ao banheiro da Casa das Folhas Azuis, todavia, uma movimentação ainda mais comprida e abjeta, inteiramente afundada no vômito das mil músicas escandalosas que formam todo o clímax de exibicionismo inconsequente.
Tarantino acaba por matar de vez qualquer noção de feitura, substituindo debilmente a construção pela emolduração imediata. Entende muito mal as coisas, pensa que basta filmar trocentas poses congeladas que jorrem estilo da tela para que sua obra se iguale às memoráveis stills dos verdadeiros bons filmes que se cristalizaram em sua cabecinha (tal como o Lady Snowblood supra-referenciado). O que ele especificamente não compreendeu é que, do Bruce Lee ao Toshiya Fujita, a única coisa que possibilita essas imagens antológicas é a elaboração do movimento e não a insistência estática, é a passagem de frames e não o chamariz fotográfico.
E o que mais se dizer? É simplesmente risível que o que haja de mais fluído numa “luta final” esteja no movimento de um adorno cênico (o bambu carregando água) e não nos corpos em contenda. Afinal, todo o embate é filmado da maneira mais fácil possível, joga-se os seus atores para “brigar” ao longe da câmera, negligencia-se o esmero coreográfico e se tenta suprir a qualidade da cena com uma repetição pictórica extremamente estática que encavala toda a luta. Mas que, claro, "ao menos é bonita”.
Não há qualquer estilo verdadeiro, apenas infinitas poses. Ademais, toda essa afetação trágica já estava anunciada aqui.
Há sempre aquela velha indagação, a última obra de um autor simboliza toda a sua carreira pregressa? O “topus” ilumina o “opus”?
Provavelmente é o tipo de pergunta mais interessante para a obra em questão, mas apenas pelo tipo de resposta adversa ao esperado. O que não significa que, em qualquer nível, negue-se o estilo de Bava, mas, do contrário, realmente se nega o “back to basics” que outros fins de carreira fazem.
Afinal, uma réplica adversa graças a um “topus” adverso. Porquanto, como se sabe, este não foi o último, nem o penúltimo, projeto idealizado pelo italiano; sequer foi sua filmagem derradeira, ele participou de uns outros dois filmes e mais a reedição à força de Lisa e il diavolo. Contudo, devido à mão do destino (ou de um produtor falido no meio da pós, embargando todo o processo), este acabou por ser seu longa terminal, finalizado mais de 20 anos após suas filmagens — em diversas versões de pequena alteração para o DVD (com a de seu filho sendo a pior e mais gritante, a única que pode ser considerada realmente outro filme) — e mais de 15 anos após o falecimento do autor.
Daí, o curioso é como mesmo em seu novíssimo acabamento, mil oscilações e buracos de imagem e som se perpetuam tal qual um adereço estético extra, tornando-o similar as gravações perdidas de algum músico, que só foram encontradas no fundo do sótão após sua morte, ou mesmo, às reconstituições do cinema mudo, que sempre trazem consigo algum esparadrapo que remende trechos totalmente perdidos. Quero dizer, é um filme inteiramente infestado pelo cheiro de um defunto. Se noutras tantas vezes o pioneiro do horror italiano mexeu com mortos-vivos habitando e dominando suas imagens, dessa vez, é seu próprio estilo que se encontra nessa condição.
Entretanto, o que é ainda mais intrigante sobre tudo isso, é que toda a história do projeto inconcluso, na verdade, é mero detalhe. O autor mesmo que é o maior responsável pela instauração desse odor putrefato. O tal do “back to basics”, o retorno à incipiência do estilo do “topus”, é substituído brutalmente pela própria ruína como chave estética. Pois, se a vida cinematográfica de Bava se deu pela progressiva movimentação do olho, este já é o seu cadáver.
De outra maneira, se, não raro, comenta-se como o zoom foi um elemento técnico de mudança fundamental para o opus do italiano, toda a força estética de Cani Arrabbiati está concentrada num posteriori alquebrado desses movimentos da objetiva. Pode até haver certos zooms ao longo da projeção — não se nega seu estilo vigente, como disse —, mas, acima de tudo, há o estrangulamento da distância da lente.
Obviamente, a duração quase integral do sufocamento proporcionado pela interna do automóvel é o que há de mais poderoso diante dessa (ausência de) perspectiva, porém, antes de mirar aí, é importante perceber como tal proximidade absurda não serve como mero corolário de se fazer um filme de baixo orçamento dentro de um carro. A cena de perseguição no milharal seco é um bom exemplo do contrário, pois, mesmo num enorme campo aberto, sem qualquer problema de recuo, como é num automóvel, opta-se por fazer a cena funcionar através da visão que roça a pele de seus personagens junto à plantação. Diversos recortes que isolam suas posições espaciais, fazendo a agitação ocorrer pela simples sucessão de rostos em tela até o ponto em que a mulher se surpreenderá com o próximo rosto à sua frente.
Mas, muito mais que isso, deve-se notar que esse estrangulamento ótico é assumido como uma dimensão que funda todo o espaço-tempo de sua narrativa, permeando cabalmente cada instante da experiência.
É o que aparece brutalmente na miríade de fragmentações sobre os assentos de couro. Isto é, um espaço formado por pura colagem de estilhaços, onde nunca há uma única tomada que consiga emoldurar claramente todos 6 personagens do carro. Qualquer movimentação ali é dificultosa, tudo é feito pelos kuleshovs agressivos e pela captura partilhada. Inúmeros enquadramentos radicalmente achatados e pregados nos semblantes dos atores que estão sendo sempre impossibilitados de criarem qualquer quadro totalizante. Como se o registro dessas imagens fosse feito numa espécie de cisão do movimento ótico. Ademais, normalmente, tanto o zoom in quanto o zoom out, radicalizam — antes ou depois — a proximidade a partir de uma visão que já se mostrou ou se mostrará desembaçada, íntegra e clara. Já aqui só parece sobrar o despedaçamento do zoom, uma imagem que inicia de imediato na radicalização, mas que nunca se completa.
Incompletude essencialmente incômoda ao olho. Um aguçamento interminável que clama à nossa visão incessantemente, porém, nunca encontrando qualquer ponto de repouso para desaguar o olhar. Uma noção abstrata do contraste pelo contraste.
Por esse sentido, é importante notar como no filme mais violento do diretor, ao contrário de todas as outras obras pregressas, seu resultado fatal só surge de canto de tela. Não se enforma aquela catarse cristalizada — a imagem deslumbrante do cadáver, ponto basilar de outras de suas experiências —, desde a primeiríssima cena, a agitação suprime qualquer contemplação. Toda a violência é espraiada e consequentemente banalizada ao ponto de uma mulher morta se tornar mero adorno do fechamento de cena (no momento do sequestro no estacionamento) ou um desajeitado estouro na tela (com a morte da outra Maria), algo impensável para um Sei donne per l'assassino.
E ainda pensando no filme de 64 (um sublime exemplar da carreira do autor), é interessante perceber que a contraposição demonstra bem como funciona o tempo por aqui. Há uma mudança brusca no seu discorrer. Não existe mais os espaços de descanso da catarse (das set pieces que são os assassinatos na maioria dos gialli), pois a catarse não mais existe. É tudo pressão, é tudo mal-estar. Não se chega a uma culminação da violência, pois a violência é uma só e infindável. Afinal, a duração de todo o filme é calcada em uma única ação: a do sequestro.
Doutor é quem melhor expressa o senso mortal da continuidade, “se esse carro parar eu lhe prometo que nenhum de vocês sairá vivo”, ele diz para o motorista refém. Todavia essa angústia infindável já se imprimia em todas as frações do discorrer do tempo. O simples ato de tentar acompanhar, o máximo possível, o continuum da bizarra convivência entre aqueles seres faz com que cada mínimo silêncio se transforme em um tormento. Não apenas pelos momentos que dão vazão para cada um dos bandidos se entediarem e criarem alguma nova perversão, mas pelo puro entretempo agonizante que surge até mesmo antes de sequestrarem Riccardo e seu carro. Um vazio que faz restar e girar a pura pressão ótica.
Basicamente, o que acabo de destrinchar é a meiuca não tão visível (mas fundamental e principal) da estética do filme, entretanto, de qualquer forma, esta acabará por desembocar no que há de mais nítido a respeito desse estrangulamento massivo: ele remonta ao inferno que constitui aquele mundo. Um efeito bem explícito para qualquer espectador, mesmo que ele despreze estes mecanismos que formam sua causa. Até porque, a difusão de todo aquele desespero é assimilada pela própria narrativa, com os diversos momentos que fazem os bandidos terem a sorte de passarem cada vez mais ilesos (o carro da polícia vindo na direção contrária após o pedágio, a notícia do sequestro que erra o nome dos sequestradores, o dono do posto que negligencia a estranheza que presenciou ou os carros dos civis que passam ao lado ignorantes) ou mesmo nos últimos instantes quando até o próprio Bisturi entra em colapso e, numa espécie de ato que retorne à sua infância no campo, vai roubar uma videira que seja livre do gosto da cidade.
Assim, como Tim Lucas bem denota, é o único filme de Bava em que ele ousa a falar diretamente sobre o mundo, mas que, só por essa obra, já entendemos o porquê de toda sua carreira ser concentrada na feeria colorida, bem distante da luz realística de Cani Arrabbiati.
Disso, de modo curioso e cruel, a Maria de Lea Lander termina sendo o símbolo mais potente do filme ao conduzir essa visão brutal de mundo através de seus olhos. Cruel por toda sua força estar contida no puro massacre sofrido, no seu corpo posto de joguete, tão agredido e violentado. Curioso por sua personagem ser, provavelmente, a mais unidimensional e mesmo assim a mais poderosa na tela (o que mais esperar do cineasta que sempre negou a verossimilhança em prol da imagem, afinal?). Ou seja, o tal aguçamento interminável, de ansiedade ótica incessável, ao não encontrar qualquer ponto de repouso, acaba por olhar para outro olho em pânico, encontrando uma espécie de espelho que reflete todo o desespero infinito.
Em outras palavras, bastaria somarmos as trocentas imagens da íris azul de Lea Lander com o magnífico plot twist para descobrirmos que foi na lápide do zoom que Bava entreviu um inferno interminável.
História espertinha de diretor iniciante. Entope o filme de efeitos narrativos, mais com a intenção de torná-los chamativos do que de tratar esses efeitos.
Quase uma obra publicitária de autopromoção: quer-se parecer um filme de locação única, quer-se parecer um filme de cronologia desmontada, mas não se cumpre, efetivamente, nenhuma dessas coisas. Mesmo algo chamativo por si só, como colocar uma canção pop na trilha incidental, tem que ser intermediado por uma rádio, perfumada de idiossincrasia, que anuncie a tal música.
E até há umas certas oportunidades dramáticas diferentes, que a extensão de seus diálogos proporcionam pros atores (em que o Harvey Keitel e o Tim Roth são quem mais se beneficiam). Mas, mesmo aí, há uma confusão interna. Basta ver a primeiríssima cena do filme: de um lado, o Keitel bem cômico que tira a agenda do chefe e discute com o Buscemi; de outro, todo o diálogo ousadinho teórico da cultura pop proclamado pelo cara que menos atua, o próprio Tarantino! Ou seja, até nisso, há a indecisão se quer-se fazer diálogos pros seus atores ou se quer-se fazer diálogos para a conclamação do roteirista.
O "high concept" parece ter comido o filme por inteiro.
Deve ser o filme mais radical do Bressane nessa sua primeira fase antes de ser exilado. Da sua usual recomposição de gênero hollywoodiano, ao "making of" do próprio filme, às crianças fumando cigarro, à senhora passando roupa... tudo é consubstanciado e às vezes repetido sem distinção de seus diferentes tipos de registro fílmico. Como se instaurasse uma religião no seu sentido mais primal, em que tudo é religação às suas origens: a captação luminosa. Uma força muito estranha, mas muito poderosa, que está lá para explorar a genealogia entre o sangue que escorre da boca de Helena Ignez e uma foto de um álbum de família qualquer. Afinal, ambos foram impressos num mesmo preto e branco.
Se a metalinguagem em parafuso — propositalmente demasiada e confusa — é uma das constantes mais divertidas da carreira do Sion Sono, a plasticidade compulsória — desnecessária e intrusiva — é uma constante de mesmo peso que vez ou outra sabota dialeticamente a coisa toda.
É o caso da vez, onde toda a megalomania material do diretor se divide nesse duelo. Ou seja, um filme que é bem interessante quando está concentrado no seu jogo de representanção caótica, mas que, mais cedo ou mais tarde, sempre será impedido pelo deslocado virtuosismo "gráfico-conceitual".
Assim, essa bipolaridade sexual, tão contraditória quanto opressora — dividida entre a suprema candidez cotidiana (porém, repleta de desejo no entrelinhas) e o completo bacanal do roman porn (porém, necessitado da pureza como fetiche masculino) —, que se fala aqui, só possui certa expressão quando é conduzida por mil metamorfoses, representando o tal dualismo brutalmente com inúmeras transformações cênicas; seja explicitamente nas inversões das performances ou até num jogo criativo com o staff integralmente masculino que, de repente, troca de sexo.
Uma experiência que só logra (ou deveria lograr) quando escolhe a transubstanciação. E, por isso mesmo, o absurdo cromático acaba por ser seu maior inimigo. Não pela cor em si, mas pela prisão conceitual e plástica que se cria a partir dela. Um preciosismo totalmente contrário à metamorfose, que vai se impondo em diversas intromissões deslocadas (como a necessidade de planos simbólicos que repliquem novos enquadramentos milimetricamente cromáticos, tal como é nas vezes em que Kyoko surge numa sala repleta de crianças com as cores da bandeira japonesa). Quando não, de modo ainda pior, acaba, certas vezes, por protagonizar a experiência.
O carnaval da última sequência sintetiza bem essa malformação. Tenta-se bagunçar ao máximo, afundar-se profundamente no caos, mas a composição organizada de cada quadro apenas ignora a atitude. Não importa que caia litros e litros de tinta do teto, a câmera está mais preocupada em planimetrizar a cadeira, a mesa e o corpo ou em achatar o fundo para se criar um contraste sofisticado.
Somente uma pena que se negligencie a insanidade em prol de uma "beleza" tão fútil. No mínimo, Sion Sono deveria rever esse conceito tão engessado (e necrosado) de "belo" que Antiporno carrega.
Numa belíssima entrevista para a Indiwire, sobre Twentynine Palms, Bruno Dumont afirma e reafirma veementemente todo o estilo empregado naquilo que catalogam como seu “filme de terror experimental”. Diz que “o espectador de hoje é tão versado na linguagem fílmica que todas teorias sobre o suspense, como discutidas por Dreyer e Hitchcock, sobre o que te faz sentir medo no cinema, podem ser abandonadas”. Prossegue defendendo esse tal filme de terror “revolucionário”, “inovador” e “jamais visto” — um gênero que aparentemente só pode existir no cinema contemporâneo graças ao gênio de sua edição —, exemplificando que o que mais se aproxima de sua estética seria “a transição da pintura figurativa para a abstrata”. E, claro, fecha a entrevista com a síntese de todas as pretensões anteriores, assumindo, sem nenhum pudor, que, por ele, “esse filme seria exibido em museus, não em salas de cinema”.
Ou seja, não dá pra negar que o cara é realmente muito coerente com seus ideais. Seu filme é nada mais do que a práxis bruta de toda essa ignomínia de ideias falsas, abitoladas e nem um pouquinho autoconscientes.
Onde Dumont vê uma megaexperimentação com a duração das cenas, com a ausência narrativa, com a perversão gráfica... só há um eco de tudo que se fazia nos festivais daquele momento, mas numa versão ainda mais fraca e ainda mais eufórica para exibir seu “autorismo”. Uma espécie de sub-Denis + sub-Apichatpong + sub-Noé (e olha que esse último tem que descer bastante pra conseguir).
Instala-se um esquemão básico desse tipo de obra — isto é, um esvaziamento da imagem a fim de se concentrar nesses afetos epidérmicos que vão se repetir em looping —, mas nunca se recorre a qualquer maior construção para essa ousadia tão óbvia do filme “fundado por sexo e paisagem”. Confunde-se a iconoclastia com a morte da cobertura de cena, dos diálogos, do esmero rítmico... Da forma como um todo (por mais que seu diretor afirme redundantemente que esta seja uma obra mais próxima da “formal art”). Uma preguiça mor, extremamente modorrenta, que crê que, por engendrar um farelo de idiossincrasia, pode suprir todo o resto da experiência sem mais nenhum esforço criativo. Ou, pior ainda, pensa que pode vomitar toda a ausência de criatividade imagética em seus minutos finais, mudando radicalmente o tom para não esquecer de embutir na cabeça do espectador a tão necessária “visão de mundo” do autor.
Basicamente, noção de autoria para quem tem 15 anos de idade. Mas que, graças a Deus, não precisa nem sequer ser escrutinada para se provar gangrenada. Sua própria feitura deflagra toda a burocracia que a enforma, toda a fórmula que a engessa. Basta olhar para o momento fatal de mudança tônica e perceber aquela canalhice à mostra, quando se estende despropositadamente o plano em que os criminosos demoram para abrir a porta do carro. Quer-se perpetuar a fórceps o mesmo estilo gritante anterior, não se larga o osso do padrão estabelecido nem no momento que a própria estrutura requere isso organicamente. Está aí toda a farsa exposta: o tratamento formal e a tal “visão de mundo” jamais irão relar um no outro, tudo é cálculo pré-estabelecido do “filme de arte”.
Nada de novo ao horizonte afinal: o homem que acredita ser o arauto da sétima arte é, na verdade, mero refém de todos modismos de seu tempo, começando por este mesmo. Tempos em que se divulga produto nos festivais em vez de uma noção própria de cinema. Tempos em que o marqueteiro engoliu de vez o cineasta.
Uma brincadeira, uma sátira e um estudo sobre polaridades. É sobre a ausência dos contornos (que jamais existiram) em torno às distinções binárias, e ele escolhe a melhor figura possível pra protagonizar a ambiguidade imperativa do mundo: a transexual!
O filme é lotado de dualidades: a noite contra o dia, a luz do high key contra a sombra do low key, o masculino contra o feminino, o documental e o ficcional, só pra citar algumas. Diversas distinções que só conseguem realmente distinguir na concepção e não na realidade. Tal como Eddie e as diversas outras personagens trans do filme, que desfiguram a clareza das classificações normativas. Numa das entrevistas, da parte "documental" da obra, uma das trans responde que segue tal vida por "gostar de ser gay", aceitando o rótulo superficial da sociedade que enfia tudo que repele no mesmo saco. Todavia, na pergunta seguinte do entrevistador, quando ele prossegue a questionar o "gay", perguntando se então, a trans gosta de garotos, ela explicita a ambiguidade e torna a questão mais complexa, mesmo que sem intenção: ela não gosta de garotos, ela gosta de "ser gay". É nessa contínua abolição das dicotomias que a obra segue.
Na sua miríade de reflexões, certamente um de seus pontos áureos está na adição de seu próprio argumento para a esfera de discussões sobre cinema de desconstrução. "Mais que uma imagem exata, exatamente uma imagem" disse Godard sobre o cinema e Matsumoto, por sua vez, não apenas encarnou tal questão levantada, mas também a densificou ao seu próprio modo.
Num olhar leigo ou num olhar mais simplista o possível para o filme, poderia se dizer que ele se trata sobre um triângulo amoroso envolvendo duas trans e o dono do night club em que elas trabalham, em uma narrativa não linear. Mais que isso, tal "narrativa não linear" é coberta de dissociações imagéticas, truncando a narrativa e abrindo portas à resoluções formais imbuídas de desconstruções divertidas e criativas (uma cena de troca de insultos que vira um quadro de HQ ou a resposta de um estudante ativista que se transforma num monólogo solene). Mais além, é uma exposição máxima do processo de filmagem, ao incluir na própria história um documentário do processo da própria, uma espécie de making off simultâneo ao "resultado final", valendo até mesmo spoilers nas entrevistas sobre o porvir do filme. No seu pináculo, é uma indissociação da "imagem documento" e da "imagem ficção" com os momentos de intersecção de ambas ao se tornarem igualmente artificiais e "verdadeiras". O documental possui imagens pré-organizadas e montadas da equipe tanto quanto o ficcional possui pessoas apenas "existindo", sendo elas mesmas. Uma amálgama expondo, novamente, o ambíguo e sua complexidade. A imagem não deixa de ser verdadeira por expôr e seguir o caminho mais mentiroso possível, e o contrário também é válido.
E nesse sentido, é inegável a dedicação do filme na sua contínua exposição de si próprio tal qual um Godard teria feito. O que pode ser visto desde seu princípio, quando repetidamente os créditos truncam as imagens narrativas, disputando tela sem medo de interromper a história. Porém, mais que tal compromisso de opacidade, ele segue com o seu compromisso de negação de unicidade, do simples, do claro, culminando em um momento genial, quando no ápice da tragédia do filme, um narrador nos interrompe afirmando que tal momento da obra era realmente horroroso. Ali há mais do que mais um choque de consciência para o espectador, há um surgimento cômico diametralmente oposto à atmosfera trágica da sequência final. Um abraço à simultaneidade, à metamorfose, ao complexo, mais uma vez, ao ambíguo.
Por fim, se há algo que possa ser chamado de determinante no filme, ironicamente, está no destino daquilo que expõe sua falta de clareza, do que há de mais sincero. E assim como, numa frase dita por um membro da equipe de filmagem, o destino de O Funeral das Rosas é apenas ser nomeado como "underground", o final da nossa personagem é o pessimismo grego, a tragédia. Certamente, uma injustiça, mas que talvez não importe tanto assim, pois agora, todas as belezas da obra já alcançaram um brilho invejável em seu processo. Seja na temática ou na desconstrução, o filme de Matsumoto está num cume inalcançável para centenas de outros filmes modernos que tiveram metade das pretensões desta obra.
Sem dúvida, o que torna Salò um filme tão cultuado são suas imagens fortes e explícitas, todavia, o mais interessante de tais imagens é a ambiguidade, quase contraditória, que Pasolini articula muito bem. Todos planos brutais e escatológicos são, ao mesmo tempo, o objeto de denúncia do diretor e, opostamente, a camisa que ele veste para cantar o hino de seu cinema despojado de pudor.
A agressividade da obra e sua capacidade de chocar estão intimamente ligadas ao seu nome. Em contrapartida, a dicotomia que mencionei não é lá muito mencionada, o que acaba por divulgar uma aparência errônea do filme: o choque autotélico, gratuito.
Muito mais que isso! Existe a proposta de uma nova experiência fílmica. Longe de ser vazio, todo sadismo, pertencente tanto aos inimigos de Pasolini (os fascistas) como ao próprio realizador, se apresenta como o ponto nevrálgico para obra poder concluir seus objetivos.
Não que o discurso acusatório seja complexo, pelo contrário, tal como sua narrativa extremamente retilínea, a crítica é simples a ponto de ser apercebida apenas por sua sinopse: é sobre o horror do totalitarismo e seus poderes desmedidos. A questão é que para Pasolini não basta entender o argumento, o entender distanciado é superficial e ele só se completa, só atinge sua própria verdade para o espectador, através da visceralidade da experiência. É uma necessidade inerente ao filme mergulhar o espectador na sua própria experiência de sofrimento a fim de um "diálogo verdadeiro".
Com tal propósito, acaba sendo muito eficiente toda a inexistência de uma narrativa minimamente complexa. O filme reduz firulas e maximiza o viés direto da história, que anuncia o que será no início e simplesmente realiza o prometido no instante seguinte. Tudo em prol da visceralidade infernal.
Juntando isto ao habitual estilo de Pasolini, sua estética crua (iluminações simples, atores desconhecidos/não profissionais, imagens ou frames com captação inferior destoante, etc), que absorve as características, pejorativamente, nomeadas amadoras como seu estilo, temos outro reforço às imagens-sofrimento.
Todas estas formas rústicas ganham este efeito, de reforço ao visceral, de modo um pouco diferente de filmes anteriores do realizador. Estes abusavam do dito "amador" para desglamorizar o mítico (a história de Jesus ou as escritas por Boccaccio, por exemplo), enquanto, aqui, esta energia direta e palpável das imagens, se assemelha a intensão do Pasolini neo-realista (inclusive ele aprendeu tal estética por ali): usar do baixo orçamento como elemento intensificador do "real".
Uma jornada dantesca que prenuncia o inferno para atravessar, respectivamente, os círculos das manias, das fezes e do sangue, mas em que o Dante da caminhada é o próprio espectador. Aquele que capta o sofrimento infernal imageticamente. Claro, com a exceção de que esse Alighieri não possui nenhum Virgílio para o auxiliar e acaba se deparando com um Caronte degenerado.
Assistir a Salò é uma ação deliberadamente masoquista, considerando que o diretor encarnou a posição de sádico (tal como o autor original). Você pode negar ou aceitar toda experiência, mas, independente disso, é evidente o rebuliço que o filme causou e ainda causa, ecoando para diversos novos cineastas. Aliás, um meme famoso, como Gaspar Noé segurando o DVD de Salò, no closet da criterion collection, é uma das pistas da força deste eco de Pasolini
A última cena do filme contém: neve, lágrimas e uma trilha sonora com ópera, porém, mesmo assim a cena consegue ser bem mais fria do que se suporia, além do mais, o que mais poderia acontecer com personagens tão desprovidos de aprofundamento?
Tal ocorre em grande parte graças ao exibicionismo estilístico do diretor, ele conta todo o primeiro ato do filme da maneira menos cronológica possível para, aparentemente, poder abusar de transições divertidinhas e cortes rápidos. Não que haja algum problema de se fazer um filme que prioriza sua forma, subjugando o conteúdo, o problema mesmo é desconciliar os dois.
O filme do coreano tem indas e vindas de tempo intensas, mas elas são mal utilizadas, a maior prova disso é que a maior fonte de informação da história está contida na narração e não em todos seus rodeios de montagem. O que não significa que sua narração seja pobre ou desnecessária. A questão é que o voice over acaba por expor essa defasagem das imagens, em construir profundidade dramática para a narrativa.
Seus maneirismos até surtem efeito vez ou outra, como quando as imagens e a narração contam como o perseguidor e o perseguido tiveram conhecimento um do outro, porém as imagens contando o lado do antagonista e a narração a da protagonista, simultaneamente. Ou ainda quando há um último encontro sobrenatural inesperado.
São momentos eficazes, mas que não suprem a falta de profundidade da obra. Falta de profundidade na experiência mesmo, na mise en scène, que tem forte apelo formal e falha no próprio. O que não é o problema de outros filmes que também miraram no maneirismo: como Point Blank (que parece ter sido uma inspiração para o filme de Park Chan) ou Hana - Bi. Isso, porque maneirismo significa RESOLUÇÃO FORMAL ornamentalista, o jeito de exprimir a significação de qualquer necessidade (primal ou arbitrária) de uma narrativa, sobre resolver na tela como mostrar algo (informação, drama, tema, atmosfera, plástica), mesmo que esse algo seja só um pretexto, uma desculpa para a excelência da resolução formal em si. O perigo disso, que o coreano certamente cai, é esquecer a finalidade do processo, de resolver. São imagens desassociadas a uma necessidade e a única solução que elas vão encontrando é a do próprio narcisismo, por apresentarem mais entraves do que qualquer intenção de solucionar, pura "expressão" de virtuosismo.
Assim, parece fácil falhar ao tentar criar uma protagonista que não justifica bem o ar de badass que a estética tenta lhe dar, sabemos o verdadeiro objetivo daqueles processos formais complexos. Somando isto a uma história de vingança simplória, de execução fácil e estável, Lady Vingança não dá qualquer complexidade, ou elaboração sincera, mesmo que fosse simples (que há nos outros filmes da trilogia da vingança) para seus personagens que facilmente se enquadram no lado bom e no lado mau; o atestado de pior filme da tríade.
Não há problema em querer achar o caminho "mais rápido" entre dois pontos através de uma linha curva. O problema mesmo é a insipidez de sua curva, ou pior ainda: querer se curvar tanto e acabar por esquecer de conectar os pontos.
Há um tempo, escrevi um textinho que dizia que a atmosfera de um filme "é tão história" quanto a descrição de um filme. Claro, a afirmação que fiz depois é um pouco hiperbólica: disse que posso "optar contar a história só com a atmosfera, já que ela tem a essência da narrativa tanto quanto a descrição". Na verdade, todo filme (que de algum modo tenha uma narrativa, excluindo aqui os filmes ensaios de Brakhage a Godard, que sincretizam narrativa com criação sensível de modos diferentes) possui os dois, numa balança diferente em que o outro lado nunca some. Entretanto, acredito que O Intruso, de Claire Denis, chega bem próximo de sumir com a parte descritiva.
"Podemos dizer que, desde os primórdios, o cinema se divide entre duas 'vocações': 1) tirar proveito de sua fidelidade figurativa, de seu poder mimético, de sua ilusão de realidade (...) 2) promover um alargamento da percepção, permitir que o homem descubra um novo acesso aos fenômenos e que potencialize, por meio da imagem, seu investimento afetivo na realidade".
As palavras de Luiz Carlos Oliveira Jr. (escritas no A mise en scène no cinema, de 2013) exemplificam mais detalhadamente a dicotomia que criei, de ATMOSFERA - DESCRIÇÃO, sendo "atmosfera" apenas uma das características do âmbito fenomenológico de um filme. E sem delongas: O Intruso tá mais preocupado com esse lado fenomenológico.
O filme da Denis me soou muito difícil e ao mesmo tempo desafiador. Ele nega muito incisivamente os "porquês" da história, não existe preocupação alguma em contar detalhes, informações ou qualquer didatismo sobre a trama. A história só acontece e a câmera e todo o resto (destacando a trilha) vão dando vida aos sentimentos presentes ali, vão estabelecendo o tom, emantando as imagens com o psicológico do personagem. Não me espanta a tristeza do Aumont, sugerindo a morte da mise en scène clássica, usando justamente este filme como exemplo.
Essa não solidificação, da realidade da narrativa, me parece bem relacionada com essa recusa de informar, narrar, descrever, da obra da realizadora. O Intruso é um exemplo radical disso, o que me parece mais óbvio ainda comparando-o com outro filme desta mesma tendência, da mesma realizadora, como Bom Trabalho.
Michel Subor, aqui, é uma espécie de Homem de Lata de Oz misturado com alguma mente perturbada e pecadora de Edgar Allan Poe. É um ser que poderia ser descrito como amargo ou antipático, mas saber que ele é, literalmente, um assassino já deixa sua aparente patologia mais explícita. Ao mesmo tempo, ele ruma o tempo inteiro em busca de... melhora? Nesse caso, a coisa mais precisa que se pode dizer é que ele busca um novo coração, uma metáfora para redenção ou algo similar, que ele parece nunca conseguir.
Existe um obscurantismo grande, como mencionei, sobre qualquer profundidade objetiva da trama. No início do filme, o filho do personagem principal, num plano rápido, olha para uma cruz. Ele (talvez) segure o bebê com o mesmo nome do pai, o que pode ser alguma preocupação com o próprio. E juntando isto a um momento futuro da narrativa (novamente: talvez) ele tenha entendido erroneamente a morte de Michel Subor. Só que tudo fica na área do possivelmente, eu mesmo só fiz toda essa associação horas depois de assisti-lo.
Acontece que toda essa negação de informação é o que torna a experiência tão especial. Ele recusa que o espectador sinta algo por seus personagens através de alguma argumentação lógica. Denis joga apenas com energias, atmosferas, nesse caso a da marginalização e desolamento. É um exemplo incrível do cinema de fluxo, por essa negação informativa tão radical que consegue angariar o sentimento de quem assiste suas imagens através duma confecção visual puramente sentimental. Diminuindo ao máximo a inteligibilidade das causas e maximizando a sensorialidade de seus efeitos (seria um cinema rimbaudiano?).
Seja a trilha sonora, os planos desconfortavelmente fragmentários, o flashback advindo de outro filme, a apresentação abrupta do protagonista ou todos cenários naturais, cheios de água, neve e lobos. Tudo do filme nos leva a sentimentos indeterminantes, mas muito intensos, que rondam o sicário de Subor.
E olhando para O Intruso me parece no mínimo sensato ver Claire Denis como uma matriarca do cinema de fluxo, não pelo pioneirismo, mas pela maestria.
Ulmer, com sua história de um pianista pegando diversas caronas e com muito azar, é uma espécie de pai da onda de cineastas independentes que estava por vir. Detour, sua obra mais famosa, é posterior a Welles e anterior a Cassavettes e mesmo que não possua qualidades comparáveis a Citizen Kane ou a Shadows, carrega coragem e feitos admiráveis.
O que, provavelmente, mais chama a atenção da obra é a verve autoral explícita do diretor, que não se deixa abater pelo nítido baixo orçamento do filme, inscrito na economia de imagens do longa, de pouco mais de 1 hora. Sue, por exemplo, o motivo-pivô da jornada do protagonista, tem pouquíssimo tempo de tela, sequer há uma introdução visual da personagem, a narração substitui essa necessidade informativa, e quando a revemos, tal acontece num plano bem sem vergonha de telefone, uma imagem de reação sem lá muitas reações da atriz, deixando óbvia a função improvisada daquele plano.
Não é necessário se estender muito para provar tal ponto, as evidências do orçamento (ou da falta dele) estão em todos os lugares, sendo seu aspecto enxuto, direto, que refletem nos 67 minutos totais, o mais nítido.
As improvisações na imagem e sua aparência, até mesmo simplória por vezes, podem soar negativamente, mas parar nisso é usar antolhos que impedem de visualizar a construção do diretor perante o "low-budget". Não à toa comparei Ulmer com outros grandes diretores. Existe uma atitude muito ativa, até extravagante formalmente, como a narração que fala abertamente do existencialismo do filme, a montagem chamativa (ligações estruturais frequentes ou as não usuais cortinas), travellings mais arbitrários, entre outras atitudes, que me soam muito descendente de contemporâneos como Hitchcock, Hawks, Lang e, principalmente, Welles.
Tudo isso está permeado do economicismo inerente dos filmes B, mas tal como um Torneau, Ulmer também conseguiu se aproveitar da falta de dinheiro, utilizando as prováveis "falhas" como deixas para a criatividade.
A narração, a maior constante da obra, talvez seja um desses pontos merecedores de atenção. O porquê dela ser tão presente é óbvio: locuções são mais fáceis e baratas de se produzir do que filmagens, um bom artifício para baratear a produção.
É muito interessante que mesmo com todo esse serviço necessariamente informativo do áudio, a obra consiga transformar a narração num acréscimo importante à narrativa. Ela já se justifica muito bem sendo introduzida como a explicação de visão de mundo do protagonista, um depoimento filosófico e narrativo, ambos trágicos. Postos, então, em momentos chaves, imagem e som convergem num discurso temático direto, bem explícito (o assassínio final, precedido pelo desabafo da narração, se torna o ás do discurso determinista). Além da corroboração dramática, como o suspiro otimista do pianista antes de sua passageira acordar.
Claro, a característica impossível de ignorar do filme é que ele é essencialmente um noir e por este âmbito estilístico específico ele também possui seus méritos, além do baixo orçamento. O principal é que toda a obscuridade, tanto da luz, quanto da moral dos personagens, é usada de modo nada convencional. Comparável com a idiossincrasia de Ida Lupino em Outrage (o noir como os medos femininos), a estética reflete sua temática particular, o determinismo. A história parece uma tragédia grega e transforma as "novas" convenções estéticas num pessimismo profundo sobre o destino, se utilizando de todas ambiguidades do gênero para isso.
É um filme B com todas as letras, mas com coragem e unicidade suficientes para tornar sua experiência importante. Além disso, um exemplo para os cineastas sem dinheiro que ganhavam/ganham voz até hoje.
Numa busca didática, costuma-se dividir cenários cinematográficos em três: os realistas, os impressionistas e os expressionistas. Uma classificação que abre portas compreensíveis aos neófitos da sétima arte, mas reduz as possibilidades espaciais que certos diretores fizeram questão de desafiar. Destes, um deles certamente é Rossellini.
Óbvio que o mais fácil seria considerar as externas do italiano como pertencentes a um "cenário realista". A questão que acaba por tornar isto impensável é que a energia de todas as ruínas, praias e montanhas não querem puramente encontrar uma verossimilhança tal qual um épico hollywoodiano. Há uma busca do concreto, do palpável que existe na natureza, uma energia já muito utilizada por Rossellini (o único neo-realista verdadeiro, conforme Fellini).
Pode até parecer um pouco estranho a olhos contemporâneos encontrar, ali, uma decupagem clássica, a despeito de todos elogios modernos e, principalmente, realistas (vindo de teóricos rigorosos e contentes com a capacidade cinematográfica de apreensão do real, que tal como Rohmer, aproveitaram de Rossellini para densificar seus ideais). Acontece que a virtude do realismo de seus filmes está no modo próprio de utilizar os métodos clássicos.
Por mais que Rossellini nunca atente contra a clareza, nunca negue um contra-plano, ele confia no que se vê e não no como se vê. Numa cena de desespero de Karin recém-chegada à ilha, se movendo angustiada da janela à cama, a maior dramatização que o espectador tem, por parte da câmera, é a contínua observação do sentimento de seus personagens. A lente apenas dá a vida e em seguida confia no que se vê. Mesmo que ela use de cortes invisíveis ou, até mesmo, como em seus filmes anteriores, uma movimentação de câmera expressiva ou cortes mais dramáticos, o maior mote está nessa observação contínua.
O curioso e muito belo é que por mais que esta energia realista já estivesse sendo afiada, muito consideravelmente, pelo diretor, no tal movimento com intuito de procurar as fatias do real, em sua trilogia da guerra, por exemplo, aquela visão materialista parece se concretizar com muito mais força em Stromboli, justamente quando o diretor começa se afastar de seus temas sociais.
É belo, porque, ao contrário de seus filmes anteriores, aquelas imagens documento aparecem mais como finalidade do que como meio. Se em "Roma, cidade aberta" tínhamos imagens filmadas realmente numa Itália ocupada, entrepondo a narrativa de Magnani e outros atores, com o propósito de recriar o real para chegar num horror, num sentimento sobre a guerra, em Stromboli, Ingrid Bergman visualiza o processo de pesca de atuns, in situ (num Kuleshov bem barato), como a finalidade da obra, associar sua narrativa a um mundo de imagens-documento. Mais uma vez, é belo porque a visão de mundo de Rossellini não está na denúncia bélica, está na própria transposição do real sensível para o real cinematográfico, no transpor a "Terra Di Dio" para a tela.
Nesse sentido, de tentar, ao máximo possível, a transposição de uma natureza pura que, consequentemente, prescinde de lógica/ordenação humana, por não ser criada por nós, a falta de uma linearidade no drama da protagonista é muito bem-vinda. Por vezes ela sofre por motivos condenáveis, outras por motivos dignos de pena e as vezes seu drama vem inesperadamente. Não há uma motivação única para o drama que jogue com a trama da mulher, ela é um ser vivente, uma esposa vivendo cotidianamente numa ilha semi-vazia.
O que me faz lembrar as palavras de Ailton Krenak, sobre como a criação do conceito de "natureza" vem de uma vontade do homem de se separar, distinguir dela (para depois subjuga-la). Aqui, os conflitos maritais de Karin fazem parte da mesma seara dos polvos do beira-mar, da lava endurecida, das casas abandonadas e da água salgada.
Claro que o real das imagens nunca será definitivamente real, pelo seu pecado parti pris de ser imagem. O que, mesmo assim, não impede a essência do cosmos imagético da obra, de querer documentar e ter uma narrativa mais carnal do que todas as outras. Com essa inerência do espaço da obra, de ser arbitrário para a narrativa, escolhido a dedo pelo autor para dar vida a história e logo, primeiramente, artificial, antes de completar qualquer intenção ontológica, há que se lembrar que, por mais como eu tenha dito, os cenários tenham um catalisador realista, eles acabam por ganhar significantes subjetivos. Sim, o cenário natural acaba por alegorizar o drama de Karin, mas isso acontece como analogia específica e posterior, graças ao tratamento de Rossellini àquelas paisagens.
A ilha não é uma metáfora, um significado para uma condição psicológica e se ela ganha qualquer um desses sentidos é porque a ilha existe antes de tudo, conhecemos os dramas de seus personagens ali viventes, naquele monte de terra concreta e só então, ela ganha outro sentido para a vida deles, bem diferente da ilha existir somente para significar o drama. Antes de ser possível alegoria, Stromboli é Stromboli.
Enfim, a história da Lituana acaba por culminar no seu encontro com o vulcão tão vivo durante todo filme. Nisso, o diretor retoma o "Dio" do subtítulo, durante um desespero final. É aí que sua visão de transposição pura do mundo parece ganhar discurso direto. Karin prova Deus para si mesma depois de acordar do desmaio e em seguida ela começa clamar e quase duvidar novamente de sua existência, gritando ao "mistério". Assim, entrevemos as mesmas imagens vivas do céu e do vulcão: a natureza responde Karin sendo natureza.
É paradoxal: a beleza e completude do mundo de Rossellini, e talvez do nosso, consegue se locupletar justamente por sua incompletude, ausência de mensagem, pura matéria. É um mundo belo por assim o ser: mundo. Um "drama real" que requere esse "real" com todas as forças.
Uma grande diferença dos filmes contemporâneos, nessa retomada nostálgica do audiovisual, se comparado a um cinema maneirista, por exemplo, outro momento do cinema olhando para a sua história, é como essas novas obras usam de uma bagagem cinematográfica consciente de modo mais imediatista, se satisfazendo com pouco. Como se mais importante do que conversar sobre um filme fosse mostra-lo na sua prateleira (literalmente um dos planos iniciais de Clímax). A grande maioria desses filmes, a despeito de um Noé citado, se sustenta de uma cultura pop e, talvez por isso, me parece mais fácil o surgimento de críticas de teóricos e jornalistas que censuram estes, mas, contraditoriamente, se tornam complacentes quando as referências ou easter eggs da vez são Roman Polanski, John Sturges e Bruce Lee.
Fetichismo, no seu sentido mais pejorativo, é o adjetivo que mais desponta no novo filme do diretor. Al Pacino, como um homem de negócios, conta sobre seus passos ao assistir um filme de Rick Dalton, nisso, os planos detalhes dos charutos e do conhaque engolem a tela. Está aí o gozo da obra, na simplória capacidade figurativa de reconstruir um tempo.
Nesse sentido, de um filme que é uma produção em série de imagens de desejo nostálgicas, há críticas que questionam: qual é esse desejo? Na maioria das vezes, é uma relação voyeurista bem seleta, específica e por isso elitista, para aqueles que conhecem os bastidores de Hollywood, que assistiram os filmes de sessenta num drive-in, ouviram os discos da época, conheceram o sistema de produção (ou participaram) e admiravam o star system vigente.
Contudo, acredito que o problema da relação da obra, com o tempo que ela visita, está bem antes de nos perguntarmos qual o gozo do autor com aquele tempo, pois antes mesmo de descobrirmos o que incita sua adoração, seja ela ignóbil ou não, Tarantino já revestiu sua película (que é literalmente película) com um mal muito contemporâneo, o da referência imediatista, o "filme na prateleira" já citado. O que, para sua infelicidade, já desmente toda sua pose purista de querer se vestir com o passado, seja filmando em película ou recriando zilhões de vezes processos formais da TV e do cinema sessentista.
Não que a experiência se resuma a esta problemática. Mesmo que a maioria dos "processos de desejo" se enquadrem nesse esquema comentado, o trio principal (DiCaprio, Pitt e Robbie) é o que há de melhor e que, quando o diretor faz apostas diferentes, consegue fazer fluir sua máquina nostálgica.
Na maior parte da trama, os dramas de seus protagonistas só parecem subterfúgios para o contexto destes, que é mais excitante pro seu autor. Todavia, quando o objeto principal da cena é, verdadeiramente, um sentimento humano, como uma Sharon Tate que se diverte se vendo como um dos ingredientes da mágica de um filme, a finalidade das imagens começam se tornar mais internas do que externas. É quando as imagens param de se contentar, por um momento, em apenas ser um meio, um instrumento de semelhança que quer concretizar um desejo além filme, para usufruir de um período específico e criar dramas que só aquele tempo possibilita. As diferentes situações dramáticas, seja da possibilidade de ter que ir para Itália fazer filmes menores, de ser um dublê serviçal ou de conseguir um ingresso de graça por ser a própria estrela do filme.
Claro, mesmo nestes momentos há o que se questionar. O suspense de um perigo iminente, a um Cliff visitante do banzé hippie, se pauta através de estilizações agressivas. O mesmo com Sharon se revelando para a caixa do cinema através de primeiríssimos planos holandeses, como contraponto, uma Margot descalça se divertindo no cinema, num plano mais simples, é muito mais potente. É a mão inquieta de Quentin querendo aparecer e que soa, indo além de uma gratuidade, como muleta. Aliás, o suspense de um paralelismo entre a saída dos dois homens e do grupo de Tate, no "dia do massacre", é realizado pela narração insistente e não pelas imagens.
A questão é que se o filme é prazeroso para o espectador são nestes dramas que o prazer é legítimo, na encenação de sentimentos humanos que surgem pela possibilidade do contexto e até o reverberam por consequência. De resto, este prazer surge da mesma maneira qual um filme pornô, imagens que mediam vontades, concretizam projeções fetichistas para um mundo que não é o do filme, as referências e easter eggs são os corpos nus de Tarantino. Numa cena de flashback, até complexa, de um Cliff que se lembra o porquê de não poder mais trabalhar com a equipe de Randy, a formação do flashback em si é o gozo legítimo, já o Bruce Lee caricato apenas pornografia.
O ápice desses momentos verdadeiros, sem lá muitas surpresas, é o ato final, quando a mise en scène restabelece a energia já conhecida de seus filmes anteriores. Através do humor negro, da violência e da fanfarronice, procedimentos que o diretor já domina, reside a conciliação máxima da dramaturgia com o mosaico nostálgico. Quando ele retoma a essa fantasia explícita, mudando arbitrariamente a história, que seu momento de desejo mais sincero e tocante aparece por poucos minutos.
Por isso, essa nova empreitada na carreira de Tarantino me soa falha, porque é quando ele retorna a lugares comuns que seu filme ganha vida. A diferença é que ele não parece mais interessado nesses lugares já antigos.
Esse novo momento do diretor me lembra Fellini no final de carreira (lá por Entrevista ou Cidade das Mulheres), um diretor que já se exauriu e começa confeccionar imagens pro seu próprio deleite. O contraste crucial entre os dois é que o verdadeiro final de Fellini não foi seu primeiro final. Depois de A Doce Vida, o diretor, mais novo e com tantas obras quanto Tarantino, parecia ter se esgotado, fez, aparentemente, o melhor trabalho de sua vida e já tinha ganhado renome e prêmios invejáveis no cinema. Entrou em crise: só restava a decadência? Não foi o caso. Ele entregou suor e sangue e se reinventou, abriu uma nova fase revigorada de sua carreira, realizou em seguida um clássico, quiçá um dos maiores do cinema.
Não me parece o destino de Quentin Tarantino, um diretor que anunciou seu limite de filmes, seu fim, exaustivamente. Assim, tenho de concordar com a incompreensão de seu contemporâneo, PTA, quando ele diz não entender o famoso fim auto-anunciado, os tais 10 filmes. Afinal, qual diretor gostaria de construir a própria lápide?
Dentre o cinema contemporâneo, diverso em tendências, com ritmos polarizados, do mais "slow" ao mais "clipado" e com concepções novas e próprias de mise en scène, há cada vez mais experiências cinematográficas distintas e, por que não, estranhas. Sobre a última, com certeza "A História da Minha Morte" tem grande participação, em tal grupo dos "esquisitões". Albert Serra tem bastante consciência disto, o que às vezes não me parece tão bom assim.
O diretor é fixado em realizar filmes com personas históricas, ficcionais ou factíveis, e o mais interessante de suas histórias de época é a energia única que possuem quando projetadas na tela. Existe um projeto de vulgarização do mítico, dos personagens históricos bem estabelecidos no nosso imaginário coletivo, uma banalização que desfigura o "fantástico" de Casanova e da Europa que o circunda.
Vicenç Altaió, como o já ancião sedutor italiano, está sempre falando, professando sua filosofia e contando suas aventuras, numa posição de arauto dos libertinos meio que esperada do personagem. O diferencial aqui é que talvez pouco importe o conteúdo de suas falas, o mais interessante está na sua forma, como ele se gesticula enquanto come, como acena com a cabeça numa conversa ou como se esforça pra ler no escuro. E se sua risada afetada o destaca, destaca tanto quanto o cacoete de um tio mais velho.
Uma atmosfera vulgar mais aguda do que as desromantizações de Fellini e Pasolini sobre os "épicos" antigos, mas que ao contrário do que possa parecer à primeira vista, essa é uma atmosfera de maior estranheza do que de humanização, não há aproximação daquele mundo, é mais uma espécie de elucidação histórica do que normalmente nos é negligenciado. Aliás, não há muita identificação com o serviçal que recolhe a vasilha de fezes do seu mestre enquanto o ouve citar escritores.
A experiência por si só é um pouco exaustiva, não apenas pelo ritmo lânguido de uma história bizarra (o que não é problema), mas também pela grande arrefecida das imagens que não apresentam o maior ponto de interesse da obra, isso é: Casanova, que não são poucas.
Contudo, melhor seria se este fosse meu único problema com a obra, porque o ponto que mais me desgosta é a aparição bizarra da figura do Drácula.
Bizarro não seria problema em tal trama experimental e insólita, mas o surgimento vampiresco está mais próximo do fortuito, nesse sentido. Há quem veja na virada sobrenatural um paralelo lírico, um final que retorna a um novo mítico grotesco criado por Serra, porém estou longe de concordar com tais comentários. O personagem do Drácula não está inserido lá para observamos suas particularidades como indivíduo, tal como é com Casanova. Muito menos há qualquer ligação estabelecida entre as duas figuras, senão as especulativas, para determinar um "fim poético".
Penso que os surgimentos sobrenaturais na narrativa se satisfazem com a própria estranheza que geram no tom do filme. Serra está se divertindo em levar sua história pra um caminho obscuro, em aguçar ainda mais o exotismo distinto de sua trama. A questão é que isso não é sinônimo de qualidade.
Não é uma experiência cinematográfica essencial, muito longe disso. Mesmo antes do conde vampiresco aparecer (o que diminui o filme) esta já não era uma obra que evocasse excelência, mas mesmo assim está distante de ser ruim um filme que tem, num dos seus auges, Casanova fazendo força e se contorcendo na privada.
O supracitado sobre A Noite dos Mortos Vivos é a sua criação do subgênero de zumbi, sua novidade e pioneirismo, estabelecendo regras pros mortos vivos que gerou uma onda de obras influenciadas, aparentemente eterna. Contudo, mais do que julga-lo puramente pelo novo tipo de história, acredito que o mais interessante é olhar para o que ele faz com ela.
Outro axioma dos filmes de zumbi, que obviamente a obra de Romero reitera, é sobre o pretexto das criaturas, servindo para seu realizador se ater ao drama dos limites humanos de seus personagens. Nisso, o filme de 68 é bem explícito. Os zumbis catalisam o drama dos sobreviventes cerceados na casa e o fazem muito mais pela consequência psicológica da sua presença do que por atos diretos.
É nesse caos dos seres encurralados que a câmera se aproveita pra sentir e mostrar as faíscas dos semblantes desesperados colidindo uns com os outros. O que é interessante, retoma a uma espécie de Stagecoach ou Lifeboat, mas numa vibe pessimista em que seus poucos personagens vão sendo dizimados aos poucos, novamente, por ações muito mais "vivas" do que "mortas".
O estilo que intermedeia o drama é bem moderno, o que seria o mesmo que dizer que há "bastante estilo". Uma espécie de verve expressionista alemã que, tal como um noir, ressalta os contrastes de sombras, ressoando "A Noite" do título, o melhor ponto da mise en scène de Romero, junto de seu clima isolacionista. Só que, além disso, muito do tal estilo deve ser questionado. As mil angulações que acompanham os outros mil primeiríssimos planos parecem um pouco advindos dessa "verve expressionista" que busca estranheza gráfica, mas ela é problemática quando se parece com um encosto barato.
O baixo orçamento não é nem um ponto de discussão, os "orgãos" que os zumbis comem parecem até comestíveis e pondo esse low-budget numa perspectiva de totalidade da obra, toda a criatividade inauguradora parece a (maior) faceta do filme que é positiva. Todavia, o outro lado dessa moeda se mostra em alguns aspectos desse "estilo muleta" citado: parece que o diretor quer extravasar a proximidade da câmera, nas escalas e ângulos, para tentar suprir o que ele não conseguiria mostrar num ângulo reto, mais aberto, graças as limitações de espaço e, principalmente, de orçamento. Mais além: a câmera barroca quer tapar o buraco das suas ausências dramáticas.
Por isso, a despeito de sua sequência final marcante, com uma cadência catastrófica terminal, o que ressoa em todas as cenas anteriores são iminências conflituosas nunca completadas. Uma espécie de tentativa dramática a la O Senhor das Moscas (o livro) que é sugerida, mas nunca concretizada. Mesmo com os possíveis intensificadores de conflito (como a questão racial muito mais especulada do que articulada).
É um filme que o tempo já acolheu e chamou de necessário, mas, provavelmente, não é o melhor esforço criativo de George Romero.
Na dicotomia feita por Hitchcock, ao apresentar seu famoso exemplo sobre uma cena hipotética, em que há uma bomba debaixo da mesa onde dois personagens tem uma conversa banal, há o cineasta do suspense e o da surpresa. O que escolhe o espectador como deus (ou cobaia), privilegiando-o de informações para brincar com seus sentimentos ou aquele que alia a ignorância do espectador à de seus personagens.
No tal exemplo, Otto Preminger, certamente está no segundo caso, o lado oposto de Hitchcock. Mas como um tremendo advogado do diabo, a incrível qualidade de Laura demonstra por si só como um cineasta que rejeita o thriller hitchcockiano, a cama de gato para o espectador, pode criar uma obra que vai muito além do demérito da surpresa imputado pelo cineasta inglês: pode chegar na excelência do drama.
Laura é isto, uma trama intricada, com diversos personagens ambíguos e dissimulados, o que gera as mais falsas hipóteses e as mais certeiras reviravoltas. Mas, mesmo assim, seu diretor escolhe o interessantíssimo caminho de não privilegiar-nos, de facilitar nossas informações em prol de estímulos canalizados. Ele escolhe perpassar o caos das informações, refletir os tropeços de falsas acusações ou confusões/incompreensões para o espectador.
O que, inevitavelmente, alia o drama de quem está à frente do ecrã a quem está dentro dele. Surge aí o propósito mais sincero do que é "o drama". O espelho de sentimentos, o sentir em conjunto, se revela, deixando de lado o sentir refletido, distanciado por análise.
Remonta aos objetivos de espelho do teatro. E a decupagem deliciosa também nos remete a mesma arte. A mise en scène que equilibra magistralmente a expressão do diretor à expressão do ator. Que decide primeiro a movimentação dos corpos em tela para depois decidir o caminho que a câmera irá traçar para acompanhá-los. Quase uma dança, mas que a emoção das epidermes presentes que a lidera: a dança do reenquadramento.
Claro, sem dissimular, o último segmento de cena talvez volte, quase surpreendentemente, ao suspense de Hitchcock. É sobre a ameaça a figura feminina, título e coração da obra. Parece que finalmente descobrindo sua inocência podemos sentir POR ela. Só que mesmo aí, Preminger se afasta do dito mestre do suspense, deixa nítido sua predileção pelo drama puro. Ele não estica qualquer efeito de thriller, ele está mais preocupado na reação de Laura ao descobrir sua ameaça e no outro desespero, de seu recém namorado. Não há mistério sobre o disparo da escopeta, só agitação dos personagens.
É meu primeiro Preminger. Um Preminger de primeira fase de carreira, o que já me excita. Além do mais, no primeiro trabalho de fama, o autor já impôs sua mise en scène particular, reafirmou o que é o clássico e criou uma das mais exemplares femme fatales: mítica, idílica e, por isso, perigosa só por existir. Laura mesmo reafirma: "...é como se eu mesma tivesse apertado o gatilho".
Uma das grandes muralhas do caminho de se adaptar um anime, certamente, é a (natural?) busca realista que a câmera parece fazer apenas ao ser ligada. O que acarreta em toda uma dificuldade de transformar trejeitos, figurinos e tons dramáticos caricatos em imagens realísticas. O trabalho hercúleo (e mesmo assim, normalmente, falho) vêm de tentar, o máximo possível esconder essas caricaturas, fazer um "filme sério". Eis que surge Adam Wingard, decidindo realizar sua adaptação pelo caminho mais inverso possível, fazendo a história advir justamente do caricato, fantasioso e tudo que é bem difícil de se considerar "sério". Aí está a mágica dessa obra tão única, partir de tudo que há de afetado e artificial e, depois, triplicar o efeito.
De certa maneira, o filme de Wingard me lembra Pierrot Le Fou. Não só pela miríade de gêneros cinematográficos, mas por toda sua forma auto-consciente em tom de paródia. Não tanto com fim de iconoclastia, como Godard, e mais pelo próprio gênero mesmo, o espetáculo da história e tudo mais. Motivos que historicamente talvez possam ser chamados de mais "hollywoodianos", tendo que adicionar Robert Aldrich nessa mistura pra tentar explicar o específico maneirismo do filme.
É um maneirismo do omelete de gêneros, algo que até pode se declarar especificamente contemporâneo. Como se uma certa impureza que origina um primeiro momento maneirista houvesse se intensificado. Como se a televisão que destrói, pasteuriza e confunde qualquer cronologia da história do cinema tivesse sido substituída pela internet, que faz o mesmo com agressividade muito superior.
Há gore, melodrama, romance teen cafona e momentos de terror bem clichês. Somados a toda uma iconografia específica da história que seleciona seus quês mais fantasiosos, como um deus da morte que come maçãs, um juvenil detetive com gestos risíveis e principalmente o próprio caderno que nomeia o filme. O que o diretor mistura e intensifica muito habilmente, consequentemente, exaltando toda uma particularidade da sua experiência. Por exemplo, o terror clichê é interrompido por uma pequena piadinha tão batida quanto, na apresentação do antagonista acontece o mesmo de forma mais sutil (com um Watari seriamente cantando para ninar o detetive fodão que acabamos de conhecer), além dos momentos de morte, que provam a letalidade do Death Note do jeito mais escandaloso possível, uma decapitação que se parece com uma melancia sendo explodida. O exagero e artificialidade é o que dá liga para a receita do diretor, conseguindo articular muito bem diversos elementos contrastantes/distintos.
A partir daí tudo funciona justamente por revelar seu exagero. Como se fosse necessário o flerte com a paródia para a obra se pautar em cima do seu irrealismo e deslanchar numa diversão própria que não pretende ser séria, fazer refletir e, quanto menos, em se comprometer com a verossimilhança, a maior reclamação dos fãs da obra original (normalmente, a reclamação de qualquer fã perante qualquer adaptação de seu sacro objeto de desejo). Não interessa se toda a firula do mirabolante plano final "convence ou não", o que interessa é sua capacidade de espetacularização articulando esse tom (ou universo de tons) já proposto.
Nunca vi proposta de adaptação de anime tão diferente, mas ele vai além. É um filme diferente por si só, por todo o tom específico que carrega uma grande capacidade de entretenimento vindo dum Frankenstein de gêneros.
Talvez, se todos fãs fervorosos parassem de buscar, incessantemente, o realismo e a verossimilhança na obra e prestassem atenção nas últimas imagens do longa, que, num continuum, utiliza a mesma trilha sonora do momento melodramático da revelação final de Light ao pai, para também servir de fundo aos fragmentos de making of e bloopers, que acompanha os créditos, eles conseguiriam achar uma outra possibilidade de potência na experiência, diferente da que procuraram. Mas isto pode ser exigir demais, aliás, como uma adaptação que, em vez de começar pela seriedade do original, parte do ridículo do que ela adapta poderia agradar uma pessoa que se considera "fã"?
Mundo Canibal
2.8 15Quantos filmes pioneiros de um gênero podem dizer que iniciam com imagens tão definidoras de sua essência tal como um fotógrafo de olhos assanhados, recém chegado na Tailândia? Mas... ao mesmo tempo, quantos desses filmes têm a "proeza" de desperdiçar todas essas possibilidades?
Quero dizer, ao contrário de diversas outras obras inauguradoras de gênero, Lenzi já abre as portas dos longas de canibais tendo muita consciência de quais seriam as características mais potentes desse tipo de imagem. Entretanto, infelizmente, faz isso sem saber como desenvolvê-las, acabando, até mesmo, por chafurdar em incoerência.
No seu auge, organiza-se toda essa abjeção do exploitation com grande competência, enfia-se no meio do mato e filma suas imagens apelativas articulando-as como uma ontologia anti-antropológica. Daí aquela junção de imagens provinda de uma convulsão de lembranças do protagonista que vão dos tailandeses lutando box às cobras da selva, à tortura dos nativos, às baratas, ao assassinato que ele mesmo cometeu... Isto é, vê-se a abjeção como o único esperanto possível entre diferentes culturas; como aquilo que há de mais imanente na natureza (c.f. as imagens criminosas de violência animal) e, por isso mesmo, como aquilo que expõe a impossibilidade de se identificar com o outro (c.f. a cômica cena do tailândes tomando whisky).
Mas isso é um ponto muito mais flertado do que consumado, pois, ao final, tudo descamba em contradição no momento que Lenzi, sem mais nem menos, pensa que, apesar de filmar tudo do modo mais abjeto possível (toda a exploração explícita da produção com os animais, com aquele povo, com sua representação distorcida...), pode traduzir hipocrisia em flores. Daí todo o drama à la Pocahontas sem menor fundamento, deixando um ar de cinismo e falsidade que, surpreendentemente, sequer parece consciente de si mesmo.
Ora, quanta falta de autoconsciência é necessária para se filmar uma cabra sendo decapitada e uma borboleta como símbolo lírico numa mesmíssima cena... de parto!?
Apesar de toda uma pré-organização fundamental em relação ao que há de melhor no gênero, o que se vê ao final da experiência são imagens tolas que contrastam com um começo tão interessante. Quando o helicóptero deixa de ser filmado como um símbolo de resgate e se transforma num objeto estranho ao protagonista — agora, aconchegado à selva —, a hipocrisia do cineasta já deixou de ser abjeção potente e se tornou mera nulidade.
Sangue Ruim
4.0 83 Assista AgoraDiz-se que em Les amants du Pont-Neuf, o filme seguinte a este, Carax sentiu a necessidade de confrontar a realidade, fazer um filme oposto a Mauvais Sang. Todavia, o curioso e mais belo é que, para o cineasta, tanto faz estar com os pés no chão ou com a cabeça nas nuvens, ambas vias sempre desembocarão numa mesma superfície: a da sua sublime ópera de imagens.
Por esse sentido, ainda mais curioso é pensar como as duas obras se encontram em polos paradoxais. Para se confrontar o mundano, filma-se um dos filmes mais caros da França; para se filmar a extrema ficção, confronta-se a economia drástica. De outro modo, na rua, acha-se o amor com mil fogos de artifício; na fantasia, acha-o através de encantadores reflexos turvos do transporte público.
Basicamente, parece que o autor está se desafiando incessantemente, colocando novos empecilhos à sua criatividade para catapultá-la de vez. Sempre explorando uma nova rota que logre em desembarcar, novamente, nessa monumental dimensão da cinética rimada.
Um lugar que para se alcançar depende em muito de toda uma insanidade dos gestos e das situações. Desvario quase essencial para que a matéria possa ser esculpida. Isto é, seu ponto de vazão.
A respeito disso, inclusive, em muito ele se aproxima do velho francês da Nouvelle Vague (como na própria narrativa em questão, que agiganta seus personagens caricatos e transforma a história num filme de gênero farsesco). Entretanto, com a diferença de que essa criatividade nonsense não se manifesta como inúmeros pontos heterogêneos de autoquestionamento e iconoclastia. Ao contrário, cada gesto tresloucado integra um pedaço de inventividade que se interliga com todos os outros tal qual um gigantesco mosaico homogêneo — de mesmas intenções, temáticas e, no que há de mais essencial, de mesmas formas.
É que o distúrbio é a chave principal de seu equilíbrio intrincado. Cada loucura é nada mais que uma nova possibilidade de se cristalizar o mundo humano em um novíssimo espetáculo musicado.
Por exemplo, qual seria a melhor coreografia para acompanhar uma canção de David Bowie? Para Carax, ela só poderia advir de um jovem que explode em movimento após sentir o cimento em seu ventre...
Em suma, guiada pelo desvario, a afasia das paixões só se locupleta num mundo que não esse. O único que consegue dialetizar o distúrbio através de um esquema de quadros inquietos. O único que pode engendrar ordem através da conjugação cinética extremada. O único que entrevê uma dimensão onde inúmeras agitações de luzes e sombras versam perfeitamente entre si.
Um mundo superiormente cinematográfico afinal.
Django Livre
4.4 5,8K Assista AgoraAo contrário do que seu conclave bajulador constantemente vomita na mídia, os melhores dotes de Tarantino nunca tiveram nada a ver com seu pretenso conhecimento enciclopédico sobre filmes B. Pelo contrário, se há realmente algo de famoso sobre o realizador que mereça ser exaltado, isso está muito mais nas suas conjunturas cênicas alicerçadas nos diálogos (no instante do drama e dos corpos falantes) do que em todo penduricalho pop que os acompanha.
Como o próprio realizador dizia na época de Kill Bill, seus longas anteriores faziam parte do “mundo de Quentin”, enquanto a história de vingança era sua primeira incursão no “mundo do cinema”. Assim, mesmo aos trancos e barrancos, o caminho mais promissor que a sua carreira fez foi de Reservoir Dogs até Jackie Brown, tendo em 2003 um reboot do tal trajeto, com novos caprichos para chamar de "visão do autor". De um lado, um tortuoso (mas inegavelmente positivo) caminho de se achar os próprios diálogos, o próprio método de atuação e o conjunto de cena que poderia executar bem tudo isso. De outro, o caminho mais extravagante possível (mais fácil e mais recompensador), que vê em cada plano uma chance de reformulação débil pseudoconceitual suficientemente escandalosa.
Diante disso tudo, Django Unchained surge como um conflito por si só. Uma espécie de malformação desta nova trajetória, mas que inegavelmente ainda faz parte da mesma trilha. Complicação que se torna benéfica quando, no seu auge, contraria todas as pistas (que já começam pelo título), e consegue se opor a tal óbvia tentativa de reformulação conceitual de um western.
Em algum nível, o que ocorre é um tipo de retorno desengonçado a tal primeira fase de carreira em que se tentava formar algo próprio. Um cisco da potência de Jackie Brown. Isto é, enquanto lá a extravagância paródica do blaxploitation se metamorfoseava num comedido filme de personagem, aqui (numa proporção indubitavelmente menor), o duelo de balas e poses badass dos spaghetti é suplantado pelo duelo verborrágico. A partir daí, se há algo de bom na obra em questão, isto surge quando Tarantino se opõe totalmente a Kill Bill, adentrando o gênero proposto apenas para se negar a realizá-lo.
Oposição mais do que bem-vinda, pois se na obra com Uma Thurman existia uma malfadada necessidade de tentar reformular à risca filmes de luta (de kung fu, samurais, ninjas...) e enchê-los de purpurina, ao se voltar para o Velho Oeste, o realizador não se envergonha de assumir o que ele realmente sabe fazer. Pelo contrário, ele expõe como o seu estilo é o que há de mais alienígena em um bang bang.
Por isso mesmo, a figura estrangeira de Christopher Waltz acaba por ser um dos maiores trunfos a tal ideia. Ele opera de modo totalmente inverso ao anterior Hans Landa, pois, enquanto que em Inglorious Basterds a funcionalidade (e pose) de sua persona advinham do mutismo dos fantoches que o rodeavam (um esquema muito fácil de contraste, criar um figurão através do gaguejar daqueles que não conseguem acompanhá-lo), Dr. Schultz funciona justamente por usar do seu vocabulário rebuscado para incitar uma resposta num outro alguém. Em outras palavras, a sua figura é o que inaugura essa conspurcação do western que, no que há de mais interessante, faz com que personagens típicos do gênero (como o Marshall, o ricaço dono de terras ou qualquer caipira do Texas) sempre fiquem desconcertados com suas provocações, obrigando-os a reagirem nesse mesmo tom estranho — e um tanto quanto fantasioso — que segue a cordialidade cívica à risca, priorizando a negociata verbal acima de qualquer tiroteio.
Bastaria ver que, Calvin Candie — o grande antagonista interpretado por um ator estelar, tal como Tarantino sempre adora filmar — é um homem mais habituado às conversas sobre a mesa de jantar do que às pistolas e cavalos; um personagem construído para ter seu grande clímax vilanesco numa cena de puro improviso (o famigerado momento que o ator se corta) que substitui a pólvora. Até mais que isso, também poderíamos olhar para Stephen, uma espécie de antagonista oculto que é nada mais do que o velho escravo chefe, um homem que tem a própria língua como o instrumento da função que ocupa.
Mas, claro, o que cito até então são justamente os melhores momentos da obra, os trechos de malformação do caminho, porém, como eu disse, esse ainda é um filme pertencente a trajetória pop de Tarantino, guardando, inevitavelmente, diversos dos seus defeitos. Estes que em 2012 já estavam num alto ponto de deterioração do delírio autoral, fazendo consequentemente com que seus malogros retumbassem na tela "protegidos" pelo selo do "autorismo".
Quero dizer, se Dr. Schultz se importa mais com o verbo do que com tiroteios, isso não é inteiramente vero com seu diretor e é completamente o inverso com seu protagonista, posto para estrelar diversas cenas toscas de bang bang. Afinal, são estes os momentos que o realizador tenta suprir qualquer construção com torrentes de sangue que não mais possuem o significado do gore ou do filme violento, no lugar, adquire o forçoso significado do “tarantinesco”.
Daí que surge aquele alvoroço desleixado da morte de Candie, que só demonstra uma coreografia inicial interessante para desembocar em intensificação bruta e desajeitada, com o slow motion e os espirros de tinta tentando suplantar qualquer inteligência cênica que poderia se ter, por exemplo, a partir dos diversos pontos de vistas de um tiroteio ou de trocentas outras inventividades usuais aos spaghetti.
O mesmo malogro que ocorre com a última sequência do filme, que atinge os píncaros da negligência ao optar por realizar um último bang bang onde nem mais o disparo possui relevância; tudo é fruto de violência frouxa: indolência com os atores (que não precisam fazer mais nada além de permanecerem imóveis, esperando o protagonista alvejá-los) que se encerra na facilidade da explosão truculenta — novamente, a “visceralidade” e “intensificação” como arremedo dos bons tiroteios.
Basicamente, a mesma grandiloquência estética de sempre, que, aliás, nem sequer precisa ser evidenciada através dos momentos de troca de tiros, porque até uma simples situação de conversação também repete essa estrutura decadente da encenação. Afinal, não se precisa mais pensar em decupagem, posicionamento ou qualquer outra besteira para se filmar um espaço com mais de duas pessoas conversando, basta repetir uma movimentação já mui conhecida de sua carreira para que seu selo autoral salvaguarde a qualidade.
Em um último exemplo da autoria intoxicante, o quão mais forte seria se Quentin largasse suas manias de metralhar músicas de efeito por toda a metragem e a cena de tiro de Django fosse realmente a primeira vez que ouvimos rap na trilha?
Bem, ao final, o que resta para se dizer sobre Django Unchained está em sua cena da fogueira, e na diferença de seu uso se comparado a última vez que seu diretor utilizou da metáfora em Kill Bill Vol. 2. Em suma, se este é um projeto hiper pop que não chafurda que nem o de 2004 é porque da história de Pai Mei para a de Siegfried houve alguma remissão. Ok, ainda há a baboseira de Broomhilda e a completa falta de autoconsciência do diretor sobre sua inabilidade romanesca (como o sangue que mancha a plantação de algodão), mas, de outra forma, toda essa referenciação conceitual, desta vez, é algo virtual e não totalizante como era com o mestre do kung fu — e consequentemente com o filme inteiro —, disso, sobram certos espaços para se desprender desses novos compromissos e se voltar àqueles de início de carreira. Um projeto medíocre que vez ou outra respira para ganhar genuínos bons momentos.
Corrida Contra o Destino
4.0 109Existe um filme extremamente foda aqui no meio, todo baseado numa crise que se manifesta pela pura cinética (qual poderia ser o melhor elogio para um filme?), que arruma qualquer subterfúgio idiota para a velocidade — tanto para o seu personagem não parar mais, quanto para o espectador ver um puro filme de corrida —, que só interrompe o trajeto para retornar a momentos pregressos de mais velocidade...
Mas, infelizmente, parece que após encontrar o cume só resta a ladeira.
Pois, depois disso, um novo filme carcome este. Faz-se exatamente o oposto. Cria-se uma outra obra em que, involuntariamente, a estática é o elemento principal. Substitui-se a velocidade pelas mil paradas, menos como esquema conceitual do que como esquema narrativo tosco para explicar melhor o porquê nunca explicado. Daí, quando um flashback do amor perdido, ao pôr do sol, substitui aqueles de imagem tremida é porque o erro já foi consumado.
Antes mesmo da polícia, Richard C. Sarafian é o primeiro a forçar violentamente o freio de Kowaslki. Sem dúvidas, seu maior pecado.
Corrida Sem Fim
3.9 59Muito difícil falar sobre um filme que se agiganta cada vez mais que você se lembra dele. Mas, talvez, a síntese dessa belezura aqui esteja em qualquer cena do Warren Oates contando, como um grande storyteller, suas historietas mentirosas, que não servem pra mais nada além do próprio instante.
Afinal, nada mais americano do que um obra extensivamente narrativa, cheia de símbolos, macguffins e diferentes núcleos. E nada menos americano do que uma obra narrativamente esvaziada, de símbolos incompletos e backstories indiscerníveis.
Sobre remoer tradições, expor crises, entrever revoluções... e vice-versa.
Tempo
3.1 1,1K Assista AgoraParece que depois de anos e anos ouvindo as repetidas ladainhas (que mais inflam do que efetivamente analisam) sobre como sua carreira se baseia no ato de contar e imaginar, Shyamalan externalizou a coisa de modo bem direto.
Quero dizer, não do modo que seu fã-clube costuma descrever. Pois, na verdade, “poder sugestivo da história oral”, “retorno ao ato primordial de contar”, “possibilidades redentoras da narrativa”, soam a mim apenas como adjetivações excessivamente românticas que não dão conta do que há de mais simples em sua carreira e que em Old é o que há de mais importante: Shyamalan adora filmar o fantástico sem precisar ter qualquer escrúpulo para com a fantasia — o que, aqui, em nada tem a ver com a bíblia discursiva, e realmente romântica, de Lady in the Water.
Dos diálogos inaugurais que fazem questão de repetir trocentas sugestões sobre a passagem do tempo (como será a voz de Maddox no futuro? Já teriam as crianças idade para todas as atividades do hotel?) à discussão bem simplória do casal em crise (ela protesta que o marido só pensa no futuro e ele que a esposa só pensa no passado), ao contrário do que costumam reclamar imediatamente, a aparente “pobreza” do texto possui uma assunção essencial para o seu exercício fílmico. Uma simplificação da inevitável metáfora — formadora dos “motivos” da narrativa — que, desde seus primeiríssimos momentos, serve-nos tal como a placa de introdução de algum brinquedo dum parque de diversões, informando-nos como toda a experiência por vir será apenas um passeio de ida e volta.
O filme não foge do fato de se parecer com um episódio de ficção científica de alguma série de TV antiga e barata, pelo contrário, encarna isto, retraindo a sua estrutura para jogar onde mais interessa: na praia. Assim, há a alegoria e há a ficção (o primeiro, a necessidade da reflexão sobre o tempo; o segundo, a fantasia gráfica desprenhada da reflexão), percorreremos o pouco comprimento (e interesse) da alegoria para que, assim, cheguemos o mais rápido possível à verdadeira densidade da ficção — o espetáculo.
Basicamente, é numa precisa retitude do fantástico que a obra tem seu auge. Não apenas sobre chegar logo onde se quer, mas confeccionar exatamente o que se quer.
Uma parcimônia muito habilidosa de sua composição formal que transforma toda a habitual cobertura de cena mais extravagante do cineasta em justeza. Não se faz, desde o início, piruetas sintéticas de um só plano, na realidade, ele conduz calmamente seu semiformalismo — contentando-se, por exemplo, no primeiro ato, apenas em fazer um plano/contraplano que insira bonecos de plástico geometricamente posicionados para aludir à temática da passagem do tempo ou, como já dito, condensar um drama de crise em um único plano escuro que já seja o suficiente — para, assim, desabrochá-lo numa rima exata, simultaneamente ao evento absurdo — o que já surge numa movimentação convulsiva da câmera (seguindo as crianças correndo), precedendo em instantes os primeiros sintomas do fênomeno, e que continuará a se libertar com inúmeros primeiríssimos planos e tomadas rodantes enquanto acompanha a progressiva deterioração.
Mas ainda mais que isso, o realizador acaba por tornar o próprio espetáculo numa questão parcimoniosa e, por isso mesmo, ainda mais eficaz. Afinal, ele parece lidar com cada mínima trucagem possibilitadora da ficção como um grandioso elemento que merece atenção por si só.
Daí, diante desse espaço de mil reinvenções (em que se metralha todos os “e se...” das trocentas condições biológicas diferentes) a quantidade parece ser reversamente proporcional à velocidade, dando-nos a chance de deslumbrar (e nos assustar) com cada ínfimo acontecimento. Uma cicatriz instantânea, de uso básico do CGI, é um algo a se prestar atenção como uma explosão em slow motion seria num filme convencional; uma surdez “repentina” é motivo de dar chance ao surround do cinema, experimentando-o como se fosse uma atração nova; ou o meu favorito, um procedimento rudimentar do cinema (e do teatro), trocar atores para criar uma “metamorfose”, que se torna algo preciosíssimo, postergado tal qual uma revelação bombástica.
Ou seja, o que há de mais especial em sua encenação reside nesse ato de fulgurar e valorizar a imaginação cinematográfica em toda a completude de suas diversas vias. Da mais ínfima a mais laboriosa, pois desde a elipse mais básica (formada entre tomadas) até a confecção mais tecnológica (como o CGI) tudo merece deslumbramento.
E, aí, há que se entender, novamente, como pouco importa todo o texto desengonçado que acompanha a miríade de espetáculos. Tanto faz como o autor necessita de muletas expositivas para explicar certas invenções, pois, quando Prisca salva seu marido graças a um metal enferrujado ao mesmo tempo que didatiza como funcionará o efeito da ferrugem, importa muito menos uma pretensa elaboração lógica da cena do que o ato gráfico em si; importa menos entender a inteligência da ação do que a pura imagem do homem enfermo sendo massivamente intoxicado de uma só vez.
Em outras palavras, sempre foi um filme com o gosto pelo efeito, negligenciando a maquinação das causas.
Uma benéfica tônica que provavelmente só é traída por si mesma ao final. O que eu poderia exemplificar pela total falta de ritmo do diretor (com mil cenas climáticas que nunca encerram o filme) ou, principalmente, com o maldito retorno dos escrúpulos (que forçam a fantasia se explicar diegeticamente num redemoinho infinito, totalmente contrário a liberdade dos eventos absurdos anteriores). Todavia, o mais fácil a se ver é que se antes de acontecer o espetáculo há como se preparar o terreno, encerrado o show, não resta mais nada. Shyamalan, então, acaba por lidar com esse “nada” por tempo demais.
Se o diretor tenta negar certos escrúpulos das convenções cinematográficas, ele só o faz em determinada medida — anos-luz da liberdade do cinema de gênero italiano de outrora —, com um apego, às vezes demasiado, pela verossimilhança interna de seu universo. Logo, ao contrário do que toda a hiperdescrição da fuga final sugere (necessitando explicar detalhe por detalhe de como foi possível o milagroso escape), seu drama nunca precisou da elaboração de trocentos porquês para se concretizar, ele já se concretizava ali no meio da gritaria gráfica, de mil horrores, no espetáculo na praia. Como um amigo que assistiu à sessão comigo me comentou, acaba por ser uma excessiva racionalização onde não se precisava.
Nada de tão demais ao final, pois se há demasia após o espetáculo, o show já foi cumprido. E é isso que há de melhor para se lembrar do longa: a eficácia surgida dessa simplicidade tão direta. Óbvio que nunca houve um filme “genial” por aqui, mas, do contrário, há uma diversão suficientemente única: uma espécie de El ángel exterminador dirigido por qualquer um dos bons diretores de Twilight Zone que simplesmente gamou no espetacularismo sci-fi que sua alegoria pôde abrir brecha.
O Ano do Dragão
3.6 50 Assista AgoraDas comparações mais comumente traçadas, creio que a mais imediata e prolífica esteja entre Stanley White e o Ethan Edwards de John Wayne, porém, assistindo ao longa, curiosamente, o nome que mais me veio em mente foi o de outro personagem: o "Popeye" de Gene Hackman.
Talvez uma ligação mais fácil, considerando que Cimino e Friedkin são cineastas de uma mesma geração, mas, ainda assim, uma contraposição que me parece trazer certa elucidação e exponenciação sobre como ambos diretores lidam com a sujeira que rodeia seus homens.
French Connection é um filme que não dá respiros para seu protagonista, ou melhor, é um filme sem fôlego como um todo. Se existe uma atividade criminosa a ser desvendada, a objetiva de Friedkin se atrela a ela numa condição de magnetismo. Toda a crueza dessa câmera sob a rua vira um joguete de emaranhamento intermitente impossível de despregar os olhos (daí as fascinantes sequências de perseguição). Contudo, o personagem de Hackman serve como uma fissura diante dessas imagens magnéticas, fissura que inevitavelmente clamará nossa atenção ao término de seus desenrolos, fazendo-nos, por fim, desgrudar a visão da tela para poder enxergar, através da figura do policial radical, o verdadeiro panorama da situação: o aviltamento do único que pôde resolver o crime e toda a inutilidade do desfecho da operação.
Já com Cimino, a tal fissura do protagonista engole a imagem desde o primeiríssimo instante, de fato, a força motora de Year of the Dragon. O autor também utiliza desse mesmo tipo de policial paranoico — e que tão somente por ser paranoico é o único capaz de enxergar a verdade (o que já explicita a condição moral do universo apresentado) — designado a se afundar na sujeira para, quem sabe assim, poder combatê-la, todavia, aqui, numa jornada totalmente dissecada, posta em primeiro plano. Afinal, mais do que nitidamente, este é um filme sobre seu personagem, mas, muito além disso, é um filme que só pode ganhar qualquer tipo de força através de seu personagem.
Toma-se, então, um dos procedimentos mais tradicionais do cinema americano como chave da encenação (a preeminência do ator, uma dimensão em que “a câmera se identifica com a presença física, os movimentos e a própria existência das personagens”) e se chega numa curiosa equação. Isto é, por se utilizar de meios menos revolucionários (do que a soltura cênica de The Deer Hunter, por exemplo), Cimino é ainda mais revolucionário. O cineasta confia profundamente em Rourke, faz dele o pilar da transparência de seu filme e, justamente por isso, acaba por atingir brutalidade e potência inigualáveis.
Se o filme policial de Friedkin parece desaguar numa total escuridão sobre o gênero (e o mundo), é o próprio policial de Cimino que entrevê e nos aponta para uma total escuridão que permeia a fundação de seu país — o que significa, inevitavelmente, que ele aponta para o próprio peito.
Daí, quando Pauline Kael (numa habitual constatação superficial) explica que Stanley White é "a síntese de Rambo e Dirty Harry", o que ela não conseguiu entender, foi o próprio contexto do cinema americano de sua época, com toda sua nova leva de mitos de epitáfio ou de destruição (mas não de desconstrução), em que o Vietnã se tornava o novo marco zero dos ditos heróis — e não mais a guerra civil da qual Ethan Edwards veio. Entendeu menos ainda, então, que na pele de Rourke que essa convulsão mítica atingiu seu auge.
Logo, se afasto o policial polonês do(s) cowboy(s) de Wayne, uma das exemplificações mais justas seria, na verdade, aproximá-lo do gângster de Cagney, aquele que explodiu no topo do mundo. O que não deve ser comparado por qualquer maior característica do personagem senão a própria explosão em si. Porquanto, a trajetória de Rourke é parecida com a que Walsh pavimentara, aproveita-se desse dimensionamento absoluto sobre a pele do ator para, assim, elevar seu drama a um paroxismo insano (o homem que segue esse rasto de corrupção, assassinato e estupro que cai sobre àqueles ao seu redor e nem mesmo assim deixa de avançar, pelo contrário, aumenta o passo enquanto enclausura toda essa desgraça em sua carcaça), desenvolver, afinal, a paulatina combustão de seu corpo. O que, aqui, não culmina em tiros sob o tanque de gás, mas na cegante luz de um trem.
Ao final, o que fatalmente se atinge com a detonação de Stanley é nada mais do que uma das experiências mais brutais que já presenciei. Certamente não o filme com mais sanguinolência e nem mesmo o com a maior tentativa de perversidade (sequer há isso por aqui). No lugar, uma obra que só precisa da construção dramatúrgica exata para desenterrar a maior das violências. Não a violência de só um personagem, mas aquela que habita nas entranhas de toda uma nação.
Kill Bill: Volume 1
4.2 2,3K Assista AgoraEngraçado ler reviews da época do lançamento do filme e ver todo alarde que se fazia em torno dessa estreia. Negava-se o “pop” que carimbavam Tarantino a fim de erguê-lo como salvador da imagem contemporânea, o homem que, num ato milagroso, foi capaz de restaurar a cinefilia dos anos 90 e, no “agora” de então, era um dos únicos a entender a origem e destino da crise cinematográfica graças ao seu desdobramento massivo de referências...
Bem, realmente concordo que Kill Bill não pode ser chamado meramente de “pop”. Afinal, antes disso, ele é o pastiche do pop em si, sua avassaladora redução rumo aos seus níveis mais miseráveis; o estereótipo da palavra diluído na mídia que faz, imediatamente, com que qualquer cantor milionário também seja adjetivado com o mesmo termo. Quero dizer, Kill Bill é pura pose.
Se Jackie Brown é a extensão do que havia de melhor em Pulp Fiction — o puro bate e rebate do espesso diálogo entre atores —, a obra em questão é nada mais do que um looping do horrendo capítulo entre a Uma Thurman e o John Travolta. Como se aquela movimentação torpe que mapeia rudemente o Jack Rabbit Slims, numa pura masturbação da autoconfecção referencial dos anos 50, fosse quadriplicada num túnel indulgente de hipsterismo cool para a experiência toda — não à toa, aqui há um outro plano sequência parecidíssimo (e bem mais famoso), com a câmera que segue a Noiva indo ao banheiro da Casa das Folhas Azuis, todavia, uma movimentação ainda mais comprida e abjeta, inteiramente afundada no vômito das mil músicas escandalosas que formam todo o clímax de exibicionismo inconsequente.
Tarantino acaba por matar de vez qualquer noção de feitura, substituindo debilmente a construção pela emolduração imediata. Entende muito mal as coisas, pensa que basta filmar trocentas poses congeladas que jorrem estilo da tela para que sua obra se iguale às memoráveis stills dos verdadeiros bons filmes que se cristalizaram em sua cabecinha (tal como o Lady Snowblood supra-referenciado). O que ele especificamente não compreendeu é que, do Bruce Lee ao Toshiya Fujita, a única coisa que possibilita essas imagens antológicas é a elaboração do movimento e não a insistência estática, é a passagem de frames e não o chamariz fotográfico.
E o que mais se dizer? É simplesmente risível que o que haja de mais fluído numa “luta final” esteja no movimento de um adorno cênico (o bambu carregando água) e não nos corpos em contenda. Afinal, todo o embate é filmado da maneira mais fácil possível, joga-se os seus atores para “brigar” ao longe da câmera, negligencia-se o esmero coreográfico e se tenta suprir a qualidade da cena com uma repetição pictórica extremamente estática que encavala toda a luta. Mas que, claro, "ao menos é bonita”.
Não há qualquer estilo verdadeiro, apenas infinitas poses. Ademais, toda essa afetação trágica já estava anunciada aqui.
Cães Raivosos
4.1 99 Assista AgoraO epitáfio do zoom
Há sempre aquela velha indagação, a última obra de um autor simboliza toda a sua carreira pregressa? O “topus” ilumina o “opus”?
Provavelmente é o tipo de pergunta mais interessante para a obra em questão, mas apenas pelo tipo de resposta adversa ao esperado. O que não significa que, em qualquer nível, negue-se o estilo de Bava, mas, do contrário, realmente se nega o “back to basics” que outros fins de carreira fazem.
Afinal, uma réplica adversa graças a um “topus” adverso. Porquanto, como se sabe, este não foi o último, nem o penúltimo, projeto idealizado pelo italiano; sequer foi sua filmagem derradeira, ele participou de uns outros dois filmes e mais a reedição à força de Lisa e il diavolo. Contudo, devido à mão do destino (ou de um produtor falido no meio da pós, embargando todo o processo), este acabou por ser seu longa terminal, finalizado mais de 20 anos após suas filmagens — em diversas versões de pequena alteração para o DVD (com a de seu filho sendo a pior e mais gritante, a única que pode ser considerada realmente outro filme) — e mais de 15 anos após o falecimento do autor.
Daí, o curioso é como mesmo em seu novíssimo acabamento, mil oscilações e buracos de imagem e som se perpetuam tal qual um adereço estético extra, tornando-o similar as gravações perdidas de algum músico, que só foram encontradas no fundo do sótão após sua morte, ou mesmo, às reconstituições do cinema mudo, que sempre trazem consigo algum esparadrapo que remende trechos totalmente perdidos. Quero dizer, é um filme inteiramente infestado pelo cheiro de um defunto. Se noutras tantas vezes o pioneiro do horror italiano mexeu com mortos-vivos habitando e dominando suas imagens, dessa vez, é seu próprio estilo que se encontra nessa condição.
Entretanto, o que é ainda mais intrigante sobre tudo isso, é que toda a história do projeto inconcluso, na verdade, é mero detalhe. O autor mesmo que é o maior responsável pela instauração desse odor putrefato. O tal do “back to basics”, o retorno à incipiência do estilo do “topus”, é substituído brutalmente pela própria ruína como chave estética. Pois, se a vida cinematográfica de Bava se deu pela progressiva movimentação do olho, este já é o seu cadáver.
De outra maneira, se, não raro, comenta-se como o zoom foi um elemento técnico de mudança fundamental para o opus do italiano, toda a força estética de Cani Arrabbiati está concentrada num posteriori alquebrado desses movimentos da objetiva. Pode até haver certos zooms ao longo da projeção — não se nega seu estilo vigente, como disse —, mas, acima de tudo, há o estrangulamento da distância da lente.
Obviamente, a duração quase integral do sufocamento proporcionado pela interna do automóvel é o que há de mais poderoso diante dessa (ausência de) perspectiva, porém, antes de mirar aí, é importante perceber como tal proximidade absurda não serve como mero corolário de se fazer um filme de baixo orçamento dentro de um carro. A cena de perseguição no milharal seco é um bom exemplo do contrário, pois, mesmo num enorme campo aberto, sem qualquer problema de recuo, como é num automóvel, opta-se por fazer a cena funcionar através da visão que roça a pele de seus personagens junto à plantação. Diversos recortes que isolam suas posições espaciais, fazendo a agitação ocorrer pela simples sucessão de rostos em tela até o ponto em que a mulher se surpreenderá com o próximo rosto à sua frente.
Mas, muito mais que isso, deve-se notar que esse estrangulamento ótico é assumido como uma dimensão que funda todo o espaço-tempo de sua narrativa, permeando cabalmente cada instante da experiência.
É o que aparece brutalmente na miríade de fragmentações sobre os assentos de couro. Isto é, um espaço formado por pura colagem de estilhaços, onde nunca há uma única tomada que consiga emoldurar claramente todos 6 personagens do carro. Qualquer movimentação ali é dificultosa, tudo é feito pelos kuleshovs agressivos e pela captura partilhada. Inúmeros enquadramentos radicalmente achatados e pregados nos semblantes dos atores que estão sendo sempre impossibilitados de criarem qualquer quadro totalizante. Como se o registro dessas imagens fosse feito numa espécie de cisão do movimento ótico. Ademais, normalmente, tanto o zoom in quanto o zoom out, radicalizam — antes ou depois — a proximidade a partir de uma visão que já se mostrou ou se mostrará desembaçada, íntegra e clara. Já aqui só parece sobrar o despedaçamento do zoom, uma imagem que inicia de imediato na radicalização, mas que nunca se completa.
Incompletude essencialmente incômoda ao olho. Um aguçamento interminável que clama à nossa visão incessantemente, porém, nunca encontrando qualquer ponto de repouso para desaguar o olhar. Uma noção abstrata do contraste pelo contraste.
Por esse sentido, é importante notar como no filme mais violento do diretor, ao contrário de todas as outras obras pregressas, seu resultado fatal só surge de canto de tela. Não se enforma aquela catarse cristalizada — a imagem deslumbrante do cadáver, ponto basilar de outras de suas experiências —, desde a primeiríssima cena, a agitação suprime qualquer contemplação. Toda a violência é espraiada e consequentemente banalizada ao ponto de uma mulher morta se tornar mero adorno do fechamento de cena (no momento do sequestro no estacionamento) ou um desajeitado estouro na tela (com a morte da outra Maria), algo impensável para um Sei donne per l'assassino.
E ainda pensando no filme de 64 (um sublime exemplar da carreira do autor), é interessante perceber que a contraposição demonstra bem como funciona o tempo por aqui. Há uma mudança brusca no seu discorrer. Não existe mais os espaços de descanso da catarse (das set pieces que são os assassinatos na maioria dos gialli), pois a catarse não mais existe. É tudo pressão, é tudo mal-estar. Não se chega a uma culminação da violência, pois a violência é uma só e infindável. Afinal, a duração de todo o filme é calcada em uma única ação: a do sequestro.
Doutor é quem melhor expressa o senso mortal da continuidade, “se esse carro parar eu lhe prometo que nenhum de vocês sairá vivo”, ele diz para o motorista refém. Todavia essa angústia infindável já se imprimia em todas as frações do discorrer do tempo. O simples ato de tentar acompanhar, o máximo possível, o continuum da bizarra convivência entre aqueles seres faz com que cada mínimo silêncio se transforme em um tormento. Não apenas pelos momentos que dão vazão para cada um dos bandidos se entediarem e criarem alguma nova perversão, mas pelo puro entretempo agonizante que surge até mesmo antes de sequestrarem Riccardo e seu carro. Um vazio que faz restar e girar a pura pressão ótica.
Basicamente, o que acabo de destrinchar é a meiuca não tão visível (mas fundamental e principal) da estética do filme, entretanto, de qualquer forma, esta acabará por desembocar no que há de mais nítido a respeito desse estrangulamento massivo: ele remonta ao inferno que constitui aquele mundo. Um efeito bem explícito para qualquer espectador, mesmo que ele despreze estes mecanismos que formam sua causa. Até porque, a difusão de todo aquele desespero é assimilada pela própria narrativa, com os diversos momentos que fazem os bandidos terem a sorte de passarem cada vez mais ilesos (o carro da polícia vindo na direção contrária após o pedágio, a notícia do sequestro que erra o nome dos sequestradores, o dono do posto que negligencia a estranheza que presenciou ou os carros dos civis que passam ao lado ignorantes) ou mesmo nos últimos instantes quando até o próprio Bisturi entra em colapso e, numa espécie de ato que retorne à sua infância no campo, vai roubar uma videira que seja livre do gosto da cidade.
Assim, como Tim Lucas bem denota, é o único filme de Bava em que ele ousa a falar diretamente sobre o mundo, mas que, só por essa obra, já entendemos o porquê de toda sua carreira ser concentrada na feeria colorida, bem distante da luz realística de Cani Arrabbiati.
Disso, de modo curioso e cruel, a Maria de Lea Lander termina sendo o símbolo mais potente do filme ao conduzir essa visão brutal de mundo através de seus olhos. Cruel por toda sua força estar contida no puro massacre sofrido, no seu corpo posto de joguete, tão agredido e violentado. Curioso por sua personagem ser, provavelmente, a mais unidimensional e mesmo assim a mais poderosa na tela (o que mais esperar do cineasta que sempre negou a verossimilhança em prol da imagem, afinal?). Ou seja, o tal aguçamento interminável, de ansiedade ótica incessável, ao não encontrar qualquer ponto de repouso, acaba por olhar para outro olho em pânico, encontrando uma espécie de espelho que reflete todo o desespero infinito.
Em outras palavras, bastaria somarmos as trocentas imagens da íris azul de Lea Lander com o magnífico plot twist para descobrirmos que foi na lápide do zoom que Bava entreviu um inferno interminável.
Cães de Aluguel
4.2 1,9K Assista AgoraHistória espertinha de diretor iniciante. Entope o filme de efeitos narrativos, mais com a intenção de torná-los chamativos do que de tratar esses efeitos.
Quase uma obra publicitária de autopromoção: quer-se parecer um filme de locação única, quer-se parecer um filme de cronologia desmontada, mas não se cumpre, efetivamente, nenhuma dessas coisas. Mesmo algo chamativo por si só, como colocar uma canção pop na trilha incidental, tem que ser intermediado por uma rádio, perfumada de idiossincrasia, que anuncie a tal música.
E até há umas certas oportunidades dramáticas diferentes, que a extensão de seus diálogos proporcionam pros atores (em que o Harvey Keitel e o Tim Roth são quem mais se beneficiam). Mas, mesmo aí, há uma confusão interna. Basta ver a primeiríssima cena do filme: de um lado, o Keitel bem cômico que tira a agenda do chefe e discute com o Buscemi; de outro, todo o diálogo ousadinho teórico da cultura pop proclamado pelo cara que menos atua, o próprio Tarantino! Ou seja, até nisso, há a indecisão se quer-se fazer diálogos pros seus atores ou se quer-se fazer diálogos para a conclamação do roteirista.
O "high concept" parece ter comido o filme por inteiro.
A Família do Barulho
3.6 22Deve ser o filme mais radical do Bressane nessa sua primeira fase antes de ser exilado. Da sua usual recomposição de gênero hollywoodiano, ao "making of" do próprio filme, às crianças fumando cigarro, à senhora passando roupa... tudo é consubstanciado e às vezes repetido sem distinção de seus diferentes tipos de registro fílmico. Como se instaurasse uma religião no seu sentido mais primal, em que tudo é religação às suas origens: a captação luminosa. Uma força muito estranha, mas muito poderosa, que está lá para explorar a genealogia entre o sangue que escorre da boca de Helena Ignez e uma foto de um álbum de família qualquer. Afinal, ambos foram impressos num mesmo preto e branco.
Anti-Porno
3.4 60 Assista AgoraSe a metalinguagem em parafuso — propositalmente demasiada e confusa — é uma das constantes mais divertidas da carreira do Sion Sono, a plasticidade compulsória — desnecessária e intrusiva — é uma constante de mesmo peso que vez ou outra sabota dialeticamente a coisa toda.
É o caso da vez, onde toda a megalomania material do diretor se divide nesse duelo. Ou seja, um filme que é bem interessante quando está concentrado no seu jogo de representanção caótica, mas que, mais cedo ou mais tarde, sempre será impedido pelo deslocado virtuosismo "gráfico-conceitual".
Assim, essa bipolaridade sexual, tão contraditória quanto opressora — dividida entre a suprema candidez cotidiana (porém, repleta de desejo no entrelinhas) e o completo bacanal do roman porn (porém, necessitado da pureza como fetiche masculino) —, que se fala aqui, só possui certa expressão quando é conduzida por mil metamorfoses, representando o tal dualismo brutalmente com inúmeras transformações cênicas; seja explicitamente nas inversões das performances ou até num jogo criativo com o staff integralmente masculino que, de repente, troca de sexo.
Uma experiência que só logra (ou deveria lograr) quando escolhe a transubstanciação. E, por isso mesmo, o absurdo cromático acaba por ser seu maior inimigo. Não pela cor em si, mas pela prisão conceitual e plástica que se cria a partir dela. Um preciosismo totalmente contrário à metamorfose, que vai se impondo em diversas intromissões deslocadas (como a necessidade de planos simbólicos que repliquem novos enquadramentos milimetricamente cromáticos, tal como é nas vezes em que Kyoko surge numa sala repleta de crianças com as cores da bandeira japonesa). Quando não, de modo ainda pior, acaba, certas vezes, por protagonizar a experiência.
O carnaval da última sequência sintetiza bem essa malformação. Tenta-se bagunçar ao máximo, afundar-se profundamente no caos, mas a composição organizada de cada quadro apenas ignora a atitude. Não importa que caia litros e litros de tinta do teto, a câmera está mais preocupada em planimetrizar a cadeira, a mesa e o corpo ou em achatar o fundo para se criar um contraste sofisticado.
Somente uma pena que se negligencie a insanidade em prol de uma "beleza" tão fútil. No mínimo, Sion Sono deveria rever esse conceito tão engessado (e necrosado) de "belo" que Antiporno carrega.
29 Palms
3.1 34Numa belíssima entrevista para a Indiwire, sobre Twentynine Palms, Bruno Dumont afirma e reafirma veementemente todo o estilo empregado naquilo que catalogam como seu “filme de terror experimental”. Diz que “o espectador de hoje é tão versado na linguagem fílmica que todas teorias sobre o suspense, como discutidas por Dreyer e Hitchcock, sobre o que te faz sentir medo no cinema, podem ser abandonadas”. Prossegue defendendo esse tal filme de terror “revolucionário”, “inovador” e “jamais visto” — um gênero que aparentemente só pode existir no cinema contemporâneo graças ao gênio de sua edição —, exemplificando que o que mais se aproxima de sua estética seria “a transição da pintura figurativa para a abstrata”. E, claro, fecha a entrevista com a síntese de todas as pretensões anteriores, assumindo, sem nenhum pudor, que, por ele, “esse filme seria exibido em museus, não em salas de cinema”.
Ou seja, não dá pra negar que o cara é realmente muito coerente com seus ideais. Seu filme é nada mais do que a práxis bruta de toda essa ignomínia de ideias falsas, abitoladas e nem um pouquinho autoconscientes.
Onde Dumont vê uma megaexperimentação com a duração das cenas, com a ausência narrativa, com a perversão gráfica... só há um eco de tudo que se fazia nos festivais daquele momento, mas numa versão ainda mais fraca e ainda mais eufórica para exibir seu “autorismo”. Uma espécie de sub-Denis + sub-Apichatpong + sub-Noé (e olha que esse último tem que descer bastante pra conseguir).
Instala-se um esquemão básico desse tipo de obra — isto é, um esvaziamento da imagem a fim de se concentrar nesses afetos epidérmicos que vão se repetir em looping —, mas nunca se recorre a qualquer maior construção para essa ousadia tão óbvia do filme “fundado por sexo e paisagem”. Confunde-se a iconoclastia com a morte da cobertura de cena, dos diálogos, do esmero rítmico... Da forma como um todo (por mais que seu diretor afirme redundantemente que esta seja uma obra mais próxima da “formal art”). Uma preguiça mor, extremamente modorrenta, que crê que, por engendrar um farelo de idiossincrasia, pode suprir todo o resto da experiência sem mais nenhum esforço criativo. Ou, pior ainda, pensa que pode vomitar toda a ausência de criatividade imagética em seus minutos finais, mudando radicalmente o tom para não esquecer de embutir na cabeça do espectador a tão necessária “visão de mundo” do autor.
Basicamente, noção de autoria para quem tem 15 anos de idade. Mas que, graças a Deus, não precisa nem sequer ser escrutinada para se provar gangrenada. Sua própria feitura deflagra toda a burocracia que a enforma, toda a fórmula que a engessa. Basta olhar para o momento fatal de mudança tônica e perceber aquela canalhice à mostra, quando se estende despropositadamente o plano em que os criminosos demoram para abrir a porta do carro. Quer-se perpetuar a fórceps o mesmo estilo gritante anterior, não se larga o osso do padrão estabelecido nem no momento que a própria estrutura requere isso organicamente. Está aí toda a farsa exposta: o tratamento formal e a tal “visão de mundo” jamais irão relar um no outro, tudo é cálculo pré-estabelecido do “filme de arte”.
Nada de novo ao horizonte afinal: o homem que acredita ser o arauto da sétima arte é, na verdade, mero refém de todos modismos de seu tempo, começando por este mesmo. Tempos em que se divulga produto nos festivais em vez de uma noção própria de cinema. Tempos em que o marqueteiro engoliu de vez o cineasta.
O Funeral das Rosas
4.3 69 Assista AgoraUma brincadeira, uma sátira e um estudo sobre polaridades. É sobre a ausência dos contornos (que jamais existiram) em torno às distinções binárias, e ele escolhe a melhor figura possível pra protagonizar a ambiguidade imperativa do mundo: a transexual!
O filme é lotado de dualidades: a noite contra o dia, a luz do high key contra a sombra do low key, o masculino contra o feminino, o documental e o ficcional, só pra citar algumas. Diversas distinções que só conseguem realmente distinguir na concepção e não na realidade. Tal como Eddie e as diversas outras personagens trans do filme, que desfiguram a clareza das classificações normativas. Numa das entrevistas, da parte "documental" da obra, uma das trans responde que segue tal vida por "gostar de ser gay", aceitando o rótulo superficial da sociedade que enfia tudo que repele no mesmo saco. Todavia, na pergunta seguinte do entrevistador, quando ele prossegue a questionar o "gay", perguntando se então, a trans gosta de garotos, ela explicita a ambiguidade e torna a questão mais complexa, mesmo que sem intenção: ela não gosta de garotos, ela gosta de "ser gay". É nessa contínua abolição das dicotomias que a obra segue.
Na sua miríade de reflexões, certamente um de seus pontos áureos está na adição de seu próprio argumento para a esfera de discussões sobre cinema de desconstrução. "Mais que uma imagem exata, exatamente uma imagem" disse Godard sobre o cinema e Matsumoto, por sua vez, não apenas encarnou tal questão levantada, mas também a densificou ao seu próprio modo.
Num olhar leigo ou num olhar mais simplista o possível para o filme, poderia se dizer que ele se trata sobre um triângulo amoroso envolvendo duas trans e o dono do night club em que elas trabalham, em uma narrativa não linear. Mais que isso, tal "narrativa não linear" é coberta de dissociações imagéticas, truncando a narrativa e abrindo portas à resoluções formais imbuídas de desconstruções divertidas e criativas (uma cena de troca de insultos que vira um quadro de HQ ou a resposta de um estudante ativista que se transforma num monólogo solene). Mais além, é uma exposição máxima do processo de filmagem, ao incluir na própria história um documentário do processo da própria, uma espécie de making off simultâneo ao "resultado final", valendo até mesmo spoilers nas entrevistas sobre o porvir do filme. No seu pináculo, é uma indissociação da "imagem documento" e da "imagem ficção" com os momentos de intersecção de ambas ao se tornarem igualmente artificiais e "verdadeiras". O documental possui imagens pré-organizadas e montadas da equipe tanto quanto o ficcional possui pessoas apenas "existindo", sendo elas mesmas. Uma amálgama expondo, novamente, o ambíguo e sua complexidade. A imagem não deixa de ser verdadeira por expôr e seguir o caminho mais mentiroso possível, e o contrário também é válido.
E nesse sentido, é inegável a dedicação do filme na sua contínua exposição de si próprio tal qual um Godard teria feito. O que pode ser visto desde seu princípio, quando repetidamente os créditos truncam as imagens narrativas, disputando tela sem medo de interromper a história. Porém, mais que tal compromisso de opacidade, ele segue com o seu compromisso de negação de unicidade, do simples, do claro, culminando em um momento genial, quando no ápice da tragédia do filme, um narrador nos interrompe afirmando que tal momento da obra era realmente horroroso. Ali há mais do que mais um choque de consciência para o espectador, há um surgimento cômico diametralmente oposto à atmosfera trágica da sequência final. Um abraço à simultaneidade, à metamorfose, ao complexo, mais uma vez, ao ambíguo.
Por fim, se há algo que possa ser chamado de determinante no filme, ironicamente, está no destino daquilo que expõe sua falta de clareza, do que há de mais sincero. E assim como, numa frase dita por um membro da equipe de filmagem, o destino de O Funeral das Rosas é apenas ser nomeado como "underground", o final da nossa personagem é o pessimismo grego, a tragédia. Certamente, uma injustiça, mas que talvez não importe tanto assim, pois agora, todas as belezas da obra já alcançaram um brilho invejável em seu processo. Seja na temática ou na desconstrução, o filme de Matsumoto está num cume inalcançável para centenas de outros filmes modernos que tiveram metade das pretensões desta obra.
Salò, ou os 120 Dias de Sodoma
3.2 1,0KSem dúvida, o que torna Salò um filme tão cultuado são suas imagens fortes e explícitas, todavia, o mais interessante de tais imagens é a ambiguidade, quase contraditória, que Pasolini articula muito bem. Todos planos brutais e escatológicos são, ao mesmo tempo, o objeto de denúncia do diretor e, opostamente, a camisa que ele veste para cantar o hino de seu cinema despojado de pudor.
A agressividade da obra e sua capacidade de chocar estão intimamente ligadas ao seu nome. Em contrapartida, a dicotomia que mencionei não é lá muito mencionada, o que acaba por divulgar uma aparência errônea do filme: o choque autotélico, gratuito.
Muito mais que isso! Existe a proposta de uma nova experiência fílmica. Longe de ser vazio, todo sadismo, pertencente tanto aos inimigos de Pasolini (os fascistas) como ao próprio realizador, se apresenta como o ponto nevrálgico para obra poder concluir seus objetivos.
Não que o discurso acusatório seja complexo, pelo contrário, tal como sua narrativa extremamente retilínea, a crítica é simples a ponto de ser apercebida apenas por sua sinopse: é sobre o horror do totalitarismo e seus poderes desmedidos. A questão é que para Pasolini não basta entender o argumento, o entender distanciado é superficial e ele só se completa, só atinge sua própria verdade para o espectador, através da visceralidade da experiência. É uma necessidade inerente ao filme mergulhar o espectador na sua própria experiência de sofrimento a fim de um "diálogo verdadeiro".
Com tal propósito, acaba sendo muito eficiente toda a inexistência de uma narrativa minimamente complexa. O filme reduz firulas e maximiza o viés direto da história, que anuncia o que será no início e simplesmente realiza o prometido no instante seguinte. Tudo em prol da visceralidade infernal.
Juntando isto ao habitual estilo de Pasolini, sua estética crua (iluminações simples, atores desconhecidos/não profissionais, imagens ou frames com captação inferior destoante, etc), que absorve as características, pejorativamente, nomeadas amadoras como seu estilo, temos outro reforço às imagens-sofrimento.
Todas estas formas rústicas ganham este efeito, de reforço ao visceral, de modo um pouco diferente de filmes anteriores do realizador. Estes abusavam do dito "amador" para desglamorizar o mítico (a história de Jesus ou as escritas por Boccaccio, por exemplo), enquanto, aqui, esta energia direta e palpável das imagens, se assemelha a intensão do Pasolini neo-realista (inclusive ele aprendeu tal estética por ali): usar do baixo orçamento como elemento intensificador do "real".
Uma jornada dantesca que prenuncia o inferno para atravessar, respectivamente, os círculos das manias, das fezes e do sangue, mas em que o Dante da caminhada é o próprio espectador. Aquele que capta o sofrimento infernal imageticamente. Claro, com a exceção de que esse Alighieri não possui nenhum Virgílio para o auxiliar e acaba se deparando com um Caronte degenerado.
Assistir a Salò é uma ação deliberadamente masoquista, considerando que o diretor encarnou a posição de sádico (tal como o autor original). Você pode negar ou aceitar toda experiência, mas, independente disso, é evidente o rebuliço que o filme causou e ainda causa, ecoando para diversos novos cineastas. Aliás, um meme famoso, como Gaspar Noé segurando o DVD de Salò, no closet da criterion collection, é uma das pistas da força deste eco de Pasolini
Lady Vingança
4.0 455A última cena do filme contém: neve, lágrimas e uma trilha sonora com ópera, porém, mesmo assim a cena consegue ser bem mais fria do que se suporia, além do mais, o que mais poderia acontecer com personagens tão desprovidos de aprofundamento?
Tal ocorre em grande parte graças ao exibicionismo estilístico do diretor, ele conta todo o primeiro ato do filme da maneira menos cronológica possível para, aparentemente, poder abusar de transições divertidinhas e cortes rápidos. Não que haja algum problema de se fazer um filme que prioriza sua forma, subjugando o conteúdo, o problema mesmo é desconciliar os dois.
O filme do coreano tem indas e vindas de tempo intensas, mas elas são mal utilizadas, a maior prova disso é que a maior fonte de informação da história está contida na narração e não em todos seus rodeios de montagem. O que não significa que sua narração seja pobre ou desnecessária. A questão é que o voice over acaba por expor essa defasagem das imagens, em construir profundidade dramática para a narrativa.
Seus maneirismos até surtem efeito vez ou outra, como quando as imagens e a narração contam como o perseguidor e o perseguido tiveram conhecimento um do outro, porém as imagens contando o lado do antagonista e a narração a da protagonista, simultaneamente. Ou ainda quando há um último encontro sobrenatural inesperado.
São momentos eficazes, mas que não suprem a falta de profundidade da obra. Falta de profundidade na experiência mesmo, na mise en scène, que tem forte apelo formal e falha no próprio. O que não é o problema de outros filmes que também miraram no maneirismo: como Point Blank (que parece ter sido uma inspiração para o filme de Park Chan) ou Hana - Bi. Isso, porque maneirismo significa RESOLUÇÃO FORMAL ornamentalista, o jeito de exprimir a significação de qualquer necessidade (primal ou arbitrária) de uma narrativa, sobre resolver na tela como mostrar algo (informação, drama, tema, atmosfera, plástica), mesmo que esse algo seja só um pretexto, uma desculpa para a excelência da resolução formal em si. O perigo disso, que o coreano certamente cai, é esquecer a finalidade do processo, de resolver. São imagens desassociadas a uma necessidade e a única solução que elas vão encontrando é a do próprio narcisismo, por apresentarem mais entraves do que qualquer intenção de solucionar, pura "expressão" de virtuosismo.
Assim, parece fácil falhar ao tentar criar uma protagonista que não justifica bem o ar de badass que a estética tenta lhe dar, sabemos o verdadeiro objetivo daqueles processos formais complexos. Somando isto a uma história de vingança simplória, de execução fácil e estável, Lady Vingança não dá qualquer complexidade, ou elaboração sincera, mesmo que fosse simples (que há nos outros filmes da trilogia da vingança) para seus personagens que facilmente se enquadram no lado bom e no lado mau; o atestado de pior filme da tríade.
Não há problema em querer achar o caminho "mais rápido" entre dois pontos através de uma linha curva. O problema mesmo é a insipidez de sua curva, ou pior ainda: querer se curvar tanto e acabar por esquecer de conectar os pontos.
O Intruso
3.6 8Há um tempo, escrevi um textinho que dizia que a atmosfera de um filme "é tão história" quanto a descrição de um filme. Claro, a afirmação que fiz depois é um pouco hiperbólica: disse que posso "optar contar a história só com a atmosfera, já que ela tem a essência da narrativa tanto quanto a descrição". Na verdade, todo filme (que de algum modo tenha uma narrativa, excluindo aqui os filmes ensaios de Brakhage a Godard, que sincretizam narrativa com criação sensível de modos diferentes) possui os dois, numa balança diferente em que o outro lado nunca some. Entretanto, acredito que O Intruso, de Claire Denis, chega bem próximo de sumir com a parte descritiva.
"Podemos dizer que, desde os primórdios, o cinema se divide entre duas 'vocações': 1) tirar proveito de sua fidelidade figurativa, de seu poder mimético, de sua ilusão de realidade (...) 2) promover um alargamento da percepção, permitir que o homem descubra um novo acesso aos fenômenos e que potencialize, por meio da imagem, seu investimento afetivo na realidade".
As palavras de Luiz Carlos Oliveira Jr. (escritas no A mise en scène no cinema, de 2013) exemplificam mais detalhadamente a dicotomia que criei, de ATMOSFERA - DESCRIÇÃO, sendo "atmosfera" apenas uma das características do âmbito fenomenológico de um filme. E sem delongas: O Intruso tá mais preocupado com esse lado fenomenológico.
O filme da Denis me soou muito difícil e ao mesmo tempo desafiador. Ele nega muito incisivamente os "porquês" da história, não existe preocupação alguma em contar detalhes, informações ou qualquer didatismo sobre a trama. A história só acontece e a câmera e todo o resto (destacando a trilha) vão dando vida aos sentimentos presentes ali, vão estabelecendo o tom, emantando as imagens com o psicológico do personagem. Não me espanta a tristeza do Aumont, sugerindo a morte da mise en scène clássica, usando justamente este filme como exemplo.
Essa não solidificação, da realidade da narrativa, me parece bem relacionada com essa recusa de informar, narrar, descrever, da obra da realizadora. O Intruso é um exemplo radical disso, o que me parece mais óbvio ainda comparando-o com outro filme desta mesma tendência, da mesma realizadora, como Bom Trabalho.
Michel Subor, aqui, é uma espécie de Homem de Lata de Oz misturado com alguma mente perturbada e pecadora de Edgar Allan Poe. É um ser que poderia ser descrito como amargo ou antipático, mas saber que ele é, literalmente, um assassino já deixa sua aparente patologia mais explícita. Ao mesmo tempo, ele ruma o tempo inteiro em busca de... melhora? Nesse caso, a coisa mais precisa que se pode dizer é que ele busca um novo coração, uma metáfora para redenção ou algo similar, que ele parece nunca conseguir.
Existe um obscurantismo grande, como mencionei, sobre qualquer profundidade objetiva da trama. No início do filme, o filho do personagem principal, num plano rápido, olha para uma cruz. Ele (talvez) segure o bebê com o mesmo nome do pai, o que pode ser alguma preocupação com o próprio. E juntando isto a um momento futuro da narrativa (novamente: talvez) ele tenha entendido erroneamente a morte de Michel Subor. Só que tudo fica na área do possivelmente, eu mesmo só fiz toda essa associação horas depois de assisti-lo.
Acontece que toda essa negação de informação é o que torna a experiência tão especial. Ele recusa que o espectador sinta algo por seus personagens através de alguma argumentação lógica. Denis joga apenas com energias, atmosferas, nesse caso a da marginalização e desolamento. É um exemplo incrível do cinema de fluxo, por essa negação informativa tão radical que consegue angariar o sentimento de quem assiste suas imagens através duma confecção visual puramente sentimental. Diminuindo ao máximo a inteligibilidade das causas e maximizando a sensorialidade de seus efeitos (seria um cinema rimbaudiano?).
Seja a trilha sonora, os planos desconfortavelmente fragmentários, o flashback advindo de outro filme, a apresentação abrupta do protagonista ou todos cenários naturais, cheios de água, neve e lobos. Tudo do filme nos leva a sentimentos indeterminantes, mas muito intensos, que rondam o sicário de Subor.
E olhando para O Intruso me parece no mínimo sensato ver Claire Denis como uma matriarca do cinema de fluxo, não pelo pioneirismo, mas pela maestria.
A Curva do Destino
3.8 49 Assista AgoraUlmer, com sua história de um pianista pegando diversas caronas e com muito azar, é uma espécie de pai da onda de cineastas independentes que estava por vir. Detour, sua obra mais famosa, é posterior a Welles e anterior a Cassavettes e mesmo que não possua qualidades comparáveis a Citizen Kane ou a Shadows, carrega coragem e feitos admiráveis.
O que, provavelmente, mais chama a atenção da obra é a verve autoral explícita do diretor, que não se deixa abater pelo nítido baixo orçamento do filme, inscrito na economia de imagens do longa, de pouco mais de 1 hora. Sue, por exemplo, o motivo-pivô da jornada do protagonista, tem pouquíssimo tempo de tela, sequer há uma introdução visual da personagem, a narração substitui essa necessidade informativa, e quando a revemos, tal acontece num plano bem sem vergonha de telefone, uma imagem de reação sem lá muitas reações da atriz, deixando óbvia a função improvisada daquele plano.
Não é necessário se estender muito para provar tal ponto, as evidências do orçamento (ou da falta dele) estão em todos os lugares, sendo seu aspecto enxuto, direto, que refletem nos 67 minutos totais, o mais nítido.
As improvisações na imagem e sua aparência, até mesmo simplória por vezes, podem soar negativamente, mas parar nisso é usar antolhos que impedem de visualizar a construção do diretor perante o "low-budget". Não à toa comparei Ulmer com outros grandes diretores. Existe uma atitude muito ativa, até extravagante formalmente, como a narração que fala abertamente do existencialismo do filme, a montagem chamativa (ligações estruturais frequentes ou as não usuais cortinas), travellings mais arbitrários, entre outras atitudes, que me soam muito descendente de contemporâneos como Hitchcock, Hawks, Lang e, principalmente, Welles.
Tudo isso está permeado do economicismo inerente dos filmes B, mas tal como um Torneau, Ulmer também conseguiu se aproveitar da falta de dinheiro, utilizando as prováveis "falhas" como deixas para a criatividade.
A narração, a maior constante da obra, talvez seja um desses pontos merecedores de atenção. O porquê dela ser tão presente é óbvio: locuções são mais fáceis e baratas de se produzir do que filmagens, um bom artifício para baratear a produção.
É muito interessante que mesmo com todo esse serviço necessariamente informativo do áudio, a obra consiga transformar a narração num acréscimo importante à narrativa. Ela já se justifica muito bem sendo introduzida como a explicação de visão de mundo do protagonista, um depoimento filosófico e narrativo, ambos trágicos. Postos, então, em momentos chaves, imagem e som convergem num discurso temático direto, bem explícito (o assassínio final, precedido pelo desabafo da narração, se torna o ás do discurso determinista). Além da corroboração dramática, como o suspiro otimista do pianista antes de sua passageira acordar.
Claro, a característica impossível de ignorar do filme é que ele é essencialmente um noir e por este âmbito estilístico específico ele também possui seus méritos, além do baixo orçamento. O principal é que toda a obscuridade, tanto da luz, quanto da moral dos personagens, é usada de modo nada convencional. Comparável com a idiossincrasia de Ida Lupino em Outrage (o noir como os medos femininos), a estética reflete sua temática particular, o determinismo. A história parece uma tragédia grega e transforma as "novas" convenções estéticas num pessimismo profundo sobre o destino, se utilizando de todas ambiguidades do gênero para isso.
É um filme B com todas as letras, mas com coragem e unicidade suficientes para tornar sua experiência importante. Além disso, um exemplo para os cineastas sem dinheiro que ganhavam/ganham voz até hoje.
Stromboli
4.0 40Numa busca didática, costuma-se dividir cenários cinematográficos em três: os realistas, os impressionistas e os expressionistas. Uma classificação que abre portas compreensíveis aos neófitos da sétima arte, mas reduz as possibilidades espaciais que certos diretores fizeram questão de desafiar. Destes, um deles certamente é Rossellini.
Óbvio que o mais fácil seria considerar as externas do italiano como pertencentes a um "cenário realista". A questão que acaba por tornar isto impensável é que a energia de todas as ruínas, praias e montanhas não querem puramente encontrar uma verossimilhança tal qual um épico hollywoodiano. Há uma busca do concreto, do palpável que existe na natureza, uma energia já muito utilizada por Rossellini (o único neo-realista verdadeiro, conforme Fellini).
Pode até parecer um pouco estranho a olhos contemporâneos encontrar, ali, uma decupagem clássica, a despeito de todos elogios modernos e, principalmente, realistas (vindo de teóricos rigorosos e contentes com a capacidade cinematográfica de apreensão do real, que tal como Rohmer, aproveitaram de Rossellini para densificar seus ideais). Acontece que a virtude do realismo de seus filmes está no modo próprio de utilizar os métodos clássicos.
Por mais que Rossellini nunca atente contra a clareza, nunca negue um contra-plano, ele confia no que se vê e não no como se vê. Numa cena de desespero de Karin recém-chegada à ilha, se movendo angustiada da janela à cama, a maior dramatização que o espectador tem, por parte da câmera, é a contínua observação do sentimento de seus personagens. A lente apenas dá a vida e em seguida confia no que se vê. Mesmo que ela use de cortes invisíveis ou, até mesmo, como em seus filmes anteriores, uma movimentação de câmera expressiva ou cortes mais dramáticos, o maior mote está nessa observação contínua.
O curioso e muito belo é que por mais que esta energia realista já estivesse sendo afiada, muito consideravelmente, pelo diretor, no tal movimento com intuito de procurar as fatias do real, em sua trilogia da guerra, por exemplo, aquela visão materialista parece se concretizar com muito mais força em Stromboli, justamente quando o diretor começa se afastar de seus temas sociais.
É belo, porque, ao contrário de seus filmes anteriores, aquelas imagens documento aparecem mais como finalidade do que como meio. Se em "Roma, cidade aberta" tínhamos imagens filmadas realmente numa Itália ocupada, entrepondo a narrativa de Magnani e outros atores, com o propósito de recriar o real para chegar num horror, num sentimento sobre a guerra, em Stromboli, Ingrid Bergman visualiza o processo de pesca de atuns, in situ (num Kuleshov bem barato), como a finalidade da obra, associar sua narrativa a um mundo de imagens-documento. Mais uma vez, é belo porque a visão de mundo de Rossellini não está na denúncia bélica, está na própria transposição do real sensível para o real cinematográfico, no transpor a "Terra Di Dio" para a tela.
Nesse sentido, de tentar, ao máximo possível, a transposição de uma natureza pura que, consequentemente, prescinde de lógica/ordenação humana, por não ser criada por nós, a falta de uma linearidade no drama da protagonista é muito bem-vinda. Por vezes ela sofre por motivos condenáveis, outras por motivos dignos de pena e as vezes seu drama vem inesperadamente. Não há uma motivação única para o drama que jogue com a trama da mulher, ela é um ser vivente, uma esposa vivendo cotidianamente numa ilha semi-vazia.
O que me faz lembrar as palavras de Ailton Krenak, sobre como a criação do conceito de "natureza" vem de uma vontade do homem de se separar, distinguir dela (para depois subjuga-la). Aqui, os conflitos maritais de Karin fazem parte da mesma seara dos polvos do beira-mar, da lava endurecida, das casas abandonadas e da água salgada.
Claro que o real das imagens nunca será definitivamente real, pelo seu pecado parti pris de ser imagem. O que, mesmo assim, não impede a essência do cosmos imagético da obra, de querer documentar e ter uma narrativa mais carnal do que todas as outras. Com essa inerência do espaço da obra, de ser arbitrário para a narrativa, escolhido a dedo pelo autor para dar vida a história e logo, primeiramente, artificial, antes de completar qualquer intenção ontológica, há que se lembrar que, por mais como eu tenha dito, os cenários tenham um catalisador realista, eles acabam por ganhar significantes subjetivos. Sim, o cenário natural acaba por alegorizar o drama de Karin, mas isso acontece como analogia específica e posterior, graças ao tratamento de Rossellini àquelas paisagens.
A ilha não é uma metáfora, um significado para uma condição psicológica e se ela ganha qualquer um desses sentidos é porque a ilha existe antes de tudo, conhecemos os dramas de seus personagens ali viventes, naquele monte de terra concreta e só então, ela ganha outro sentido para a vida deles, bem diferente da ilha existir somente para significar o drama. Antes de ser possível alegoria, Stromboli é Stromboli.
Enfim, a história da Lituana acaba por culminar no seu encontro com o vulcão tão vivo durante todo filme. Nisso, o diretor retoma o "Dio" do subtítulo, durante um desespero final. É aí que sua visão de transposição pura do mundo parece ganhar discurso direto. Karin prova Deus para si mesma depois de acordar do desmaio e em seguida ela começa clamar e quase duvidar novamente de sua existência, gritando ao "mistério". Assim, entrevemos as mesmas imagens vivas do céu e do vulcão: a natureza responde Karin sendo natureza.
É paradoxal: a beleza e completude do mundo de Rossellini, e talvez do nosso, consegue se locupletar justamente por sua incompletude, ausência de mensagem, pura matéria. É um mundo belo por assim o ser: mundo. Um "drama real" que requere esse "real" com todas as forças.
Era Uma Vez em... Hollywood
3.8 2,3K Assista AgoraUma grande diferença dos filmes contemporâneos, nessa retomada nostálgica do audiovisual, se comparado a um cinema maneirista, por exemplo, outro momento do cinema olhando para a sua história, é como essas novas obras usam de uma bagagem cinematográfica consciente de modo mais imediatista, se satisfazendo com pouco. Como se mais importante do que conversar sobre um filme fosse mostra-lo na sua prateleira (literalmente um dos planos iniciais de Clímax). A grande maioria desses filmes, a despeito de um Noé citado, se sustenta de uma cultura pop e, talvez por isso, me parece mais fácil o surgimento de críticas de teóricos e jornalistas que censuram estes, mas, contraditoriamente, se tornam complacentes quando as referências ou easter eggs da vez são Roman Polanski, John Sturges e Bruce Lee.
Fetichismo, no seu sentido mais pejorativo, é o adjetivo que mais desponta no novo filme do diretor. Al Pacino, como um homem de negócios, conta sobre seus passos ao assistir um filme de Rick Dalton, nisso, os planos detalhes dos charutos e do conhaque engolem a tela. Está aí o gozo da obra, na simplória capacidade figurativa de reconstruir um tempo.
Nesse sentido, de um filme que é uma produção em série de imagens de desejo nostálgicas, há críticas que questionam: qual é esse desejo? Na maioria das vezes, é uma relação voyeurista bem seleta, específica e por isso elitista, para aqueles que conhecem os bastidores de Hollywood, que assistiram os filmes de sessenta num drive-in, ouviram os discos da época, conheceram o sistema de produção (ou participaram) e admiravam o star system vigente.
Contudo, acredito que o problema da relação da obra, com o tempo que ela visita, está bem antes de nos perguntarmos qual o gozo do autor com aquele tempo, pois antes mesmo de descobrirmos o que incita sua adoração, seja ela ignóbil ou não, Tarantino já revestiu sua película (que é literalmente película) com um mal muito contemporâneo, o da referência imediatista, o "filme na prateleira" já citado. O que, para sua infelicidade, já desmente toda sua pose purista de querer se vestir com o passado, seja filmando em película ou recriando zilhões de vezes processos formais da TV e do cinema sessentista.
Não que a experiência se resuma a esta problemática. Mesmo que a maioria dos "processos de desejo" se enquadrem nesse esquema comentado, o trio principal (DiCaprio, Pitt e Robbie) é o que há de melhor e que, quando o diretor faz apostas diferentes, consegue fazer fluir sua máquina nostálgica.
Na maior parte da trama, os dramas de seus protagonistas só parecem subterfúgios para o contexto destes, que é mais excitante pro seu autor. Todavia, quando o objeto principal da cena é, verdadeiramente, um sentimento humano, como uma Sharon Tate que se diverte se vendo como um dos ingredientes da mágica de um filme, a finalidade das imagens começam se tornar mais internas do que externas. É quando as imagens param de se contentar, por um momento, em apenas ser um meio, um instrumento de semelhança que quer concretizar um desejo além filme, para usufruir de um período específico e criar dramas que só aquele tempo possibilita. As diferentes situações dramáticas, seja da possibilidade de ter que ir para Itália fazer filmes menores, de ser um dublê serviçal ou de conseguir um ingresso de graça por ser a própria estrela do filme.
Claro, mesmo nestes momentos há o que se questionar. O suspense de um perigo iminente, a um Cliff visitante do banzé hippie, se pauta através de estilizações agressivas. O mesmo com Sharon se revelando para a caixa do cinema através de primeiríssimos planos holandeses, como contraponto, uma Margot descalça se divertindo no cinema, num plano mais simples, é muito mais potente. É a mão inquieta de Quentin querendo aparecer e que soa, indo além de uma gratuidade, como muleta. Aliás, o suspense de um paralelismo entre a saída dos dois homens e do grupo de Tate, no "dia do massacre", é realizado pela narração insistente e não pelas imagens.
A questão é que se o filme é prazeroso para o espectador são nestes dramas que o prazer é legítimo, na encenação de sentimentos humanos que surgem pela possibilidade do contexto e até o reverberam por consequência. De resto, este prazer surge da mesma maneira qual um filme pornô, imagens que mediam vontades, concretizam projeções fetichistas para um mundo que não é o do filme, as referências e easter eggs são os corpos nus de Tarantino. Numa cena de flashback, até complexa, de um Cliff que se lembra o porquê de não poder mais trabalhar com a equipe de Randy, a formação do flashback em si é o gozo legítimo, já o Bruce Lee caricato apenas pornografia.
O ápice desses momentos verdadeiros, sem lá muitas surpresas, é o ato final, quando a mise en scène restabelece a energia já conhecida de seus filmes anteriores. Através do humor negro, da violência e da fanfarronice, procedimentos que o diretor já domina, reside a conciliação máxima da dramaturgia com o mosaico nostálgico. Quando ele retoma a essa fantasia explícita, mudando arbitrariamente a história, que seu momento de desejo mais sincero e tocante aparece por poucos minutos.
Por isso, essa nova empreitada na carreira de Tarantino me soa falha, porque é quando ele retorna a lugares comuns que seu filme ganha vida. A diferença é que ele não parece mais interessado nesses lugares já antigos.
Esse novo momento do diretor me lembra Fellini no final de carreira (lá por Entrevista ou Cidade das Mulheres), um diretor que já se exauriu e começa confeccionar imagens pro seu próprio deleite. O contraste crucial entre os dois é que o verdadeiro final de Fellini não foi seu primeiro final. Depois de A Doce Vida, o diretor, mais novo e com tantas obras quanto Tarantino, parecia ter se esgotado, fez, aparentemente, o melhor trabalho de sua vida e já tinha ganhado renome e prêmios invejáveis no cinema. Entrou em crise: só restava a decadência? Não foi o caso. Ele entregou suor e sangue e se reinventou, abriu uma nova fase revigorada de sua carreira, realizou em seguida um clássico, quiçá um dos maiores do cinema.
Não me parece o destino de Quentin Tarantino, um diretor que anunciou seu limite de filmes, seu fim, exaustivamente. Assim, tenho de concordar com a incompreensão de seu contemporâneo, PTA, quando ele diz não entender o famoso fim auto-anunciado, os tais 10 filmes. Afinal, qual diretor gostaria de construir a própria lápide?
História da Minha Morte
2.7 8Dentre o cinema contemporâneo, diverso em tendências, com ritmos polarizados, do mais "slow" ao mais "clipado" e com concepções novas e próprias de mise en scène, há cada vez mais experiências cinematográficas distintas e, por que não, estranhas. Sobre a última, com certeza "A História da Minha Morte" tem grande participação, em tal grupo dos "esquisitões". Albert Serra tem bastante consciência disto, o que às vezes não me parece tão bom assim.
O diretor é fixado em realizar filmes com personas históricas, ficcionais ou factíveis, e o mais interessante de suas histórias de época é a energia única que possuem quando projetadas na tela. Existe um projeto de vulgarização do mítico, dos personagens históricos bem estabelecidos no nosso imaginário coletivo, uma banalização que desfigura o "fantástico" de Casanova e da Europa que o circunda.
Vicenç Altaió, como o já ancião sedutor italiano, está sempre falando, professando sua filosofia e contando suas aventuras, numa posição de arauto dos libertinos meio que esperada do personagem. O diferencial aqui é que talvez pouco importe o conteúdo de suas falas, o mais interessante está na sua forma, como ele se gesticula enquanto come, como acena com a cabeça numa conversa ou como se esforça pra ler no escuro. E se sua risada afetada o destaca, destaca tanto quanto o cacoete de um tio mais velho.
Uma atmosfera vulgar mais aguda do que as desromantizações de Fellini e Pasolini sobre os "épicos" antigos, mas que ao contrário do que possa parecer à primeira vista, essa é uma atmosfera de maior estranheza do que de humanização, não há aproximação daquele mundo, é mais uma espécie de elucidação histórica do que normalmente nos é negligenciado. Aliás, não há muita identificação com o serviçal que recolhe a vasilha de fezes do seu mestre enquanto o ouve citar escritores.
A experiência por si só é um pouco exaustiva, não apenas pelo ritmo lânguido de uma história bizarra (o que não é problema), mas também pela grande arrefecida das imagens que não apresentam o maior ponto de interesse da obra, isso é: Casanova, que não são poucas.
Contudo, melhor seria se este fosse meu único problema com a obra, porque o ponto que mais me desgosta é a aparição bizarra da figura do Drácula.
Bizarro não seria problema em tal trama experimental e insólita, mas o surgimento vampiresco está mais próximo do fortuito, nesse sentido. Há quem veja na virada sobrenatural um paralelo lírico, um final que retorna a um novo mítico grotesco criado por Serra, porém estou longe de concordar com tais comentários. O personagem do Drácula não está inserido lá para observamos suas particularidades como indivíduo, tal como é com Casanova. Muito menos há qualquer ligação estabelecida entre as duas figuras, senão as especulativas, para determinar um "fim poético".
Penso que os surgimentos sobrenaturais na narrativa se satisfazem com a própria estranheza que geram no tom do filme. Serra está se divertindo em levar sua história pra um caminho obscuro, em aguçar ainda mais o exotismo distinto de sua trama. A questão é que isso não é sinônimo de qualidade.
Não é uma experiência cinematográfica essencial, muito longe disso. Mesmo antes do conde vampiresco aparecer (o que diminui o filme) esta já não era uma obra que evocasse excelência, mas mesmo assim está distante de ser ruim um filme que tem, num dos seus auges, Casanova fazendo força e se contorcendo na privada.
A Noite dos Mortos-Vivos
4.0 549 Assista AgoraO supracitado sobre A Noite dos Mortos Vivos é a sua criação do subgênero de zumbi, sua novidade e pioneirismo, estabelecendo regras pros mortos vivos que gerou uma onda de obras influenciadas, aparentemente eterna. Contudo, mais do que julga-lo puramente pelo novo tipo de história, acredito que o mais interessante é olhar para o que ele faz com ela.
Outro axioma dos filmes de zumbi, que obviamente a obra de Romero reitera, é sobre o pretexto das criaturas, servindo para seu realizador se ater ao drama dos limites humanos de seus personagens. Nisso, o filme de 68 é bem explícito. Os zumbis catalisam o drama dos sobreviventes cerceados na casa e o fazem muito mais pela consequência psicológica da sua presença do que por atos diretos.
É nesse caos dos seres encurralados que a câmera se aproveita pra sentir e mostrar as faíscas dos semblantes desesperados colidindo uns com os outros. O que é interessante, retoma a uma espécie de Stagecoach ou Lifeboat, mas numa vibe pessimista em que seus poucos personagens vão sendo dizimados aos poucos, novamente, por ações muito mais "vivas" do que "mortas".
O estilo que intermedeia o drama é bem moderno, o que seria o mesmo que dizer que há "bastante estilo". Uma espécie de verve expressionista alemã que, tal como um noir, ressalta os contrastes de sombras, ressoando "A Noite" do título, o melhor ponto da mise en scène de Romero, junto de seu clima isolacionista. Só que, além disso, muito do tal estilo deve ser questionado. As mil angulações que acompanham os outros mil primeiríssimos planos parecem um pouco advindos dessa "verve expressionista" que busca estranheza gráfica, mas ela é problemática quando se parece com um encosto barato.
O baixo orçamento não é nem um ponto de discussão, os "orgãos" que os zumbis comem parecem até comestíveis e pondo esse low-budget numa perspectiva de totalidade da obra, toda a criatividade inauguradora parece a (maior) faceta do filme que é positiva. Todavia, o outro lado dessa moeda se mostra em alguns aspectos desse "estilo muleta" citado: parece que o diretor quer extravasar a proximidade da câmera, nas escalas e ângulos, para tentar suprir o que ele não conseguiria mostrar num ângulo reto, mais aberto, graças as limitações de espaço e, principalmente, de orçamento. Mais além: a câmera barroca quer tapar o buraco das suas ausências dramáticas.
Por isso, a despeito de sua sequência final marcante, com uma cadência catastrófica terminal, o que ressoa em todas as cenas anteriores são iminências conflituosas nunca completadas. Uma espécie de tentativa dramática a la O Senhor das Moscas (o livro) que é sugerida, mas nunca concretizada. Mesmo com os possíveis intensificadores de conflito (como a questão racial muito mais especulada do que articulada).
É um filme que o tempo já acolheu e chamou de necessário, mas, provavelmente, não é o melhor esforço criativo de George Romero.
Laura
4.1 132 Assista AgoraNa dicotomia feita por Hitchcock, ao apresentar seu famoso exemplo sobre uma cena hipotética, em que há uma bomba debaixo da mesa onde dois personagens tem uma conversa banal, há o cineasta do suspense e o da surpresa. O que escolhe o espectador como deus (ou cobaia), privilegiando-o de informações para brincar com seus sentimentos ou aquele que alia a ignorância do espectador à de seus personagens.
No tal exemplo, Otto Preminger, certamente está no segundo caso, o lado oposto de Hitchcock. Mas como um tremendo advogado do diabo, a incrível qualidade de Laura demonstra por si só como um cineasta que rejeita o thriller hitchcockiano, a cama de gato para o espectador, pode criar uma obra que vai muito além do demérito da surpresa imputado pelo cineasta inglês: pode chegar na excelência do drama.
Laura é isto, uma trama intricada, com diversos personagens ambíguos e dissimulados, o que gera as mais falsas hipóteses e as mais certeiras reviravoltas. Mas, mesmo assim, seu diretor escolhe o interessantíssimo caminho de não privilegiar-nos, de facilitar nossas informações em prol de estímulos canalizados. Ele escolhe perpassar o caos das informações, refletir os tropeços de falsas acusações ou confusões/incompreensões para o espectador.
O que, inevitavelmente, alia o drama de quem está à frente do ecrã a quem está dentro dele. Surge aí o propósito mais sincero do que é "o drama". O espelho de sentimentos, o sentir em conjunto, se revela, deixando de lado o sentir refletido, distanciado por análise.
Remonta aos objetivos de espelho do teatro. E a decupagem deliciosa também nos remete a mesma arte. A mise en scène que equilibra magistralmente a expressão do diretor à expressão do ator. Que decide primeiro a movimentação dos corpos em tela para depois decidir o caminho que a câmera irá traçar para acompanhá-los. Quase uma dança, mas que a emoção das epidermes presentes que a lidera: a dança do reenquadramento.
Claro, sem dissimular, o último segmento de cena talvez volte, quase surpreendentemente, ao suspense de Hitchcock. É sobre a ameaça a figura feminina, título e coração da obra. Parece que finalmente descobrindo sua inocência podemos sentir POR ela. Só que mesmo aí, Preminger se afasta do dito mestre do suspense, deixa nítido sua predileção pelo drama puro. Ele não estica qualquer efeito de thriller, ele está mais preocupado na reação de Laura ao descobrir sua ameaça e no outro desespero, de seu recém namorado. Não há mistério sobre o disparo da escopeta, só agitação dos personagens.
É meu primeiro Preminger. Um Preminger de primeira fase de carreira, o que já me excita. Além do mais, no primeiro trabalho de fama, o autor já impôs sua mise en scène particular, reafirmou o que é o clássico e criou uma das mais exemplares femme fatales: mítica, idílica e, por isso, perigosa só por existir. Laura mesmo reafirma: "...é como se eu mesma tivesse apertado o gatilho".
Death Note
1.8 1,5K Assista AgoraUma das grandes muralhas do caminho de se adaptar um anime, certamente, é a (natural?) busca realista que a câmera parece fazer apenas ao ser ligada. O que acarreta em toda uma dificuldade de transformar trejeitos, figurinos e tons dramáticos caricatos em imagens realísticas. O trabalho hercúleo (e mesmo assim, normalmente, falho) vêm de tentar, o máximo possível esconder essas caricaturas, fazer um "filme sério". Eis que surge Adam Wingard, decidindo realizar sua adaptação pelo caminho mais inverso possível, fazendo a história advir justamente do caricato, fantasioso e tudo que é bem difícil de se considerar "sério". Aí está a mágica dessa obra tão única, partir de tudo que há de afetado e artificial e, depois, triplicar o efeito.
De certa maneira, o filme de Wingard me lembra Pierrot Le Fou. Não só pela miríade de gêneros cinematográficos, mas por toda sua forma auto-consciente em tom de paródia. Não tanto com fim de iconoclastia, como Godard, e mais pelo próprio gênero mesmo, o espetáculo da história e tudo mais. Motivos que historicamente talvez possam ser chamados de mais "hollywoodianos", tendo que adicionar Robert Aldrich nessa mistura pra tentar explicar o específico maneirismo do filme.
É um maneirismo do omelete de gêneros, algo que até pode se declarar especificamente contemporâneo. Como se uma certa impureza que origina um primeiro momento maneirista houvesse se intensificado. Como se a televisão que destrói, pasteuriza e confunde qualquer cronologia da história do cinema tivesse sido substituída pela internet, que faz o mesmo com agressividade muito superior.
Há gore, melodrama, romance teen cafona e momentos de terror bem clichês. Somados a toda uma iconografia específica da história que seleciona seus quês mais fantasiosos, como um deus da morte que come maçãs, um juvenil detetive com gestos risíveis e principalmente o próprio caderno que nomeia o filme. O que o diretor mistura e intensifica muito habilmente, consequentemente, exaltando toda uma particularidade da sua experiência. Por exemplo, o terror clichê é interrompido por uma pequena piadinha tão batida quanto, na apresentação do antagonista acontece o mesmo de forma mais sutil (com um Watari seriamente cantando para ninar o detetive fodão que acabamos de conhecer), além dos momentos de morte, que provam a letalidade do Death Note do jeito mais escandaloso possível, uma decapitação que se parece com uma melancia sendo explodida. O exagero e artificialidade é o que dá liga para a receita do diretor, conseguindo articular muito bem diversos elementos contrastantes/distintos.
A partir daí tudo funciona justamente por revelar seu exagero. Como se fosse necessário o flerte com a paródia para a obra se pautar em cima do seu irrealismo e deslanchar numa diversão própria que não pretende ser séria, fazer refletir e, quanto menos, em se comprometer com a verossimilhança, a maior reclamação dos fãs da obra original (normalmente, a reclamação de qualquer fã perante qualquer adaptação de seu sacro objeto de desejo). Não interessa se toda a firula do mirabolante plano final "convence ou não", o que interessa é sua capacidade de espetacularização articulando esse tom (ou universo de tons) já proposto.
Nunca vi proposta de adaptação de anime tão diferente, mas ele vai além. É um filme diferente por si só, por todo o tom específico que carrega uma grande capacidade de entretenimento vindo dum Frankenstein de gêneros.
Talvez, se todos fãs fervorosos parassem de buscar, incessantemente, o realismo e a verossimilhança na obra e prestassem atenção nas últimas imagens do longa, que, num continuum, utiliza a mesma trilha sonora do momento melodramático da revelação final de Light ao pai, para também servir de fundo aos fragmentos de making of e bloopers, que acompanha os créditos, eles conseguiriam achar uma outra possibilidade de potência na experiência, diferente da que procuraram. Mas isto pode ser exigir demais, aliás, como uma adaptação que, em vez de começar pela seriedade do original, parte do ridículo do que ela adapta poderia agradar uma pessoa que se considera "fã"?