Originalmente postado no site Kinograma ponto org:
Cantaria o poeta Joaquín Sabina que “O amor que não mata morre / amores que matam nunca morrem”. A premissa de um amor levado às últimas consequências é o ponto central do novo longa de Grandrieux, que tem em seu currículo filmes como “Sombre” (1998), “La Vie Nouvelle” (2002) e “Un Lac” (2008). “Malgré la Nuit” esteve em sua première no continente americano na mostra “Vanguardia y Género” do Festival Argentino, e apresenta uma narrativa mais delineada e de dramaturgia mais presente que seus antecessores. Para melhor absorver as nuances do cinema de Grandrieux, é necessário compreender inicialmente suas inquietações sobre o próprio ato da realização: as imagens em sua relação concreta com o mundo, onde cada elemento é apresentado em seu estado real, mesmo que em uma obra de ficção. Essas marcas em seu cinema se devem muito à forma como o corpo é explorado em cena, ora como objeto vivo, ora como paisagem, transitando entre sua representação literal e plástica, culminando em uma grande experiência visual. Em “Malgré la Nuit”, os corpos são os grandes protagonistas, e suas representações muitas vezes possuem uma relevância ainda maior do que a história narrada per se. Os jogos de luz e sombra (com a fotografia muitas vezes estourando acentuadamente nos corpos brancos), as movimentações de câmera, a utilização de lente macro que faz das peles dos atores seus cenários, o silêncio quase absoluto contrastado com os sussurros que por fim revelam mais sobre as intenções de seus personagens do que o próprio texto dito por eles são as tônicas da estética do filme. As referências literárias também são de suma importância na obra de Philippe, que faz do conceito de Proust uma constante em seu cinema: “Devemos esquecer a inteligência.” – a razão não deve ser mais importante do que o sentimento que cada elemento da linguagem adotada pelo cineasta representa para o filme em si. O literal não pode ser encarado de forma mais definitiva que o simbólico. Seu cinema é um cinema de sugestões, de nuances, de possibilidades, de um fluxo sensorial que dialoga mais com as texturas do que necessariamente com uma narrativa do que se convém chamar de clássico.
Por vezes, a narrativa possui uma estrutura que se assemelha ao ato de sonhar, onde a contiguidade das ações revela novas possibilidades ao invés de uma simples sucessão de sequências. Essas sequências, geralmente pontuadas em excessiva utilização de fades na imagem, contam a história de Lenz, que retorna da Inglaterra para Paris em busca de um amor antigo, Madeleine. Em seu regresso à capital francesa, o protagonista irá se envolver em um triângulo amoroso com Hélène e Lena. Não só os nomes das personagens fazem referência à sua busca original, como elas também representam a busca do reencontro de Lenz com um sentimento perdido, que existe não em outro lugar senão sua memória. Esse envolvimento de caráter transitório com as personagens do triângulo amoroso é por vezes efêmero em sua forma sentimental, mas se consolida na presença física. Se por um lado elas permanecem como um stand-in emocional na falta da verdadeira Madeleine, por outro elas acabam por desenvolver as relações de ciúmes, violência e, sobretudo a exacerbação física – que, como mencionado anteriormente, é uma das potências estéticas de Grandrieux – que permeiam o universo real em oposição ao anseio idealizado de Lenz de um sentimento idílico representado justamente na ausência.
Hélène é representada com ar de maturidade, mas ao mesmo tempo com uma apatia implacável, que a situa diante da morte em todos os aspectos de sua existência, seja cuidando de idosos em um asilo, seja em suas relações sexuais extremamente violentas onde a personagem faz questão de se colocar como agente submisso. A violência que movimenta suas relações a coloca em posição tangente à morte, única ocasião onde ela se sente realmente viva. É nessa maturidade onde Lenz busca uma sobrevida para a idealização de Madeleine. Já Lena representa o frescor impulsivo da juventude, que diz respeito ao passado dessa mesma idealização. A beleza se esconde na melancolia, na fragilidade, e seu porto seguro acaba por ser Vitali, pai da jovem, um homem de requinte agressivo, amparado pelo poder que se apresenta no filme como ilimitado, se revelando o antagonista maior às intenções não definidas de Lenz em relação à objetividade do presente. O perigo representado por essa relação, entretanto, aproxima o protagonista de um sentimento relacionado a Madeleine. Essa, por sua vez, é representada apenas por uma fotografia de um passado anunciado, mas não vivenciado. A busca por sua presença fará com que o protagonista transite pelo submundo parisiense, amparado pelo amigo Louis, em um cenário underground de pornografia e prostituição.
Ainda que seja a busca de Lenz a força motriz do desenvolvimento narrativo, são as personagens femininas que roubam para si toda a atenção. As atuações memoráveis atreladas a rostos e corpos de expressividade imponentes destoam do fragilizado protagonista, que teria seu papel desenvolvido por Pete Doherty, frontman da banda inglesa The Libertines. Por questões de saúde, Doherty teve de ser substituído por Kristian Marr, que se apresenta de forma muito menos expressiva do que os outros personagens, sobretudo os masculinos Louis e Vitali. Já as personagens femininas são permeadas por um senso de liberdade quase absoluto – essa liberdade as coloca como agentes causais mesmo em relação à violência que por vezes lhes é infligida, onde elas são livres até mesmo para gostar do sofrimento. Se essa questão pode gerar debate sobre um caráter misógino com que o diretor representa essas personagens, é buscando novamente compreender as referências literárias do cineasta que percebemos que a noção do bem e do mal/certo e errado é difusa diante de suas personagens. O filósofo holandês Baruch Spinoza é peça chave na compreensão desse sentido: “O que se apresenta como bom, é tudo aquilo o que aumenta as possibilidades na vida. O que se apresenta como ruim é aquilo que limita as suas capacidades de expressão”. Se suas personagens vão atrás do que lhes faz sofrer, é porque talvez essa seja a única forma com que elas se sintam de fato próximas de algo que as afaste do sofrimento inerente à existência. Para Hélène, o sadomasoquismo, mesmo na posição de submissa, se apresenta como uma das opções presentes nesse quase absoluto senso de liberdade.
Se Hélène é a personagem de maior apelo emocional, graças à complexidade de suas relações existenciais e da forma como são apresentados seus contrastes entre apatia e violência, bem como o contraste entre a sobrevivência diante da presença constante da morte, as melhores sequências do filme são atos musicais que se transformam em videoclipes protagonizados por Lena. A estilização da imagem lança mão de diversos artifícios que conferem à imagem um semblante etéreo, como planos sobrepostos, tendo como locação espaços vazios, causando o extremo contraste da penumbra completa do cenário em oposição à personagem sob o spot de luz que lhe confere um aspecto quase fantasmagórico, com maquiagem carregada e cores marcantes que evocam uma estética neon, culminando na ilustração visual das emoções de Lena. A música, transitória entre o pop e o synthwave, transpõe sentimentalmente as principais características da personagem, evidenciando uma associação indivisível entre a beleza e a melancolia, entre o frescor de sua juventude com o desamparo existencial que escoa em suas relações com os personagens masculinos do filme, seja o afeto com Lenz, seja a proteção paternal de Vitali.
Outro fator digno de menção é o interesse do cineasta em um caráter animalesco, puro, sem intermédio da atuação, mas de uma espontaneidade genuína. A menção de uma droga que permite ao seu usuário uma aproximação com seu lado instintivo mais primitivo é um dos elementos de tensão explorados no filme, bem como a presença de um cachorro, elemento já utilizado de maneira tão dramática quanto em seu antecessor “La Vie Nouvelle”. “Um cachorro sempre está a ser um cachorro, não há como filmá-lo para que ele finja ser um gato”, afirma Grandrieux, comparando as intenções que sempre se fazem presentes quando um ator se apresenta diante de uma câmera. Esse caráter animalesco também existe em alguns de seus personagens, retomando a ideia de um sentimento onírico que por vezes contamina as motivações, aproximando-o estilisticamente de filmes como “Mulholland Drive” e “The Blue Velvet”, ambos dirigidos por David Lynch. Não é nenhum exagero traçar um paralelo entre Vitali e o personagem Frank Booth de “The Blue Velvet” em seu caráter de ferocidade animalesca. Para ambos, a violência e a exposição tortuosa da sexualidade permeiam toda a ação com certa iminência da tragédia anunciada, como cavaleiros do apocalipse a dar presságios sobre o fim do mundo inadiável, onde a estrutura de sonho se revela como um pesadelo do qual não é possível acordar.
A tragédia, que aqui separa o limiar entre a vida e a morte, é onde a busca pelo amor presente em toda a trajetória do filme irá culminar, em uma relação que confunde o conjugal com o maternal – o que a primeira vista parece um desfecho relativamente óbvio. No entanto, assim como qualquer busca por um sentimento idílico, o resultado importa pouco ou quase nada em relação à jornada, que aqui dá o nome de Madeleine ao processo de autoconhecimento do próprio protagonista. “Malgré la Nuit” é um filme sobre essa conexão entre amor e morte, entre a vida e o autoconhecimento, entre a idealização e o real, entre o passado e um futuro do qual nos é impossível escapar. Se o sentimento da iminência do fim do mundo possa parecer um fardo muito pesado, talvez a única alternativa seja ser um pouco como Hélène, sendo capaz de enxergar as nuances da vida diante da inevitabilidade da presença da morte.
Em minha última crítica, sobre o filme "O Touro", eu já havia mencionado um fenômeno recente e transformador no cinema paranaense contemporâneo: os "forasteiros" radicados na terra das araucárias que acabaram por revolucionar a produção audiovisual não só no estado, mas em todo o Brasil. Falar sobre Aly Muritiba é, mais do que falar sobre cinema paranaense, falar sobre uma realidade no cinema nacional. Em sua curta, porém expressiva carreira, o baiano "agora curitibano" conseguiu deixar traços profundos sobre suas particularidades, e o prestígio conquistado em festivais mundo afora só corroboram o que é óbvio em sua cinematografia. Tive meu primeiro contato com Muritiba ainda na faculdade, onde separados por alguns anos, estudamos juntos. Se os seus primeiros curta-metragens, como "Convergências", "Com as próprias mãos" e "Reminiscências" não me chamavam atenção alguma, é necessário ponderar que desde o início de sua carreira, Muritiba sempre tentou adequar em sua obra elementos de gênero, algo que volta a ganhar força no cinema nacional, mas que parece ter passado por um longo período de provação. No entanto, foi através da "aproximação com o real" que seus filmes começaram a me chamar a atenção de forma mais contundente. Em um de seus filmes menos conhecidos, "Dia 1 P.M.", a câmera reencena o cotidiano familiar, onde pai e filho discutem sobre a venda de um carro. A premissa simples, com a câmera fixa em um ponto com um enquadramento aberto, onde seus personagens entram e saem e muitas vezes o som em "off" dita a ação, acabou por se tornar uma das grandes assinaturas do diretor, que posteriormente explorou ainda melhor tais recursos em "Pátio", o ponto-alto de sua Trilogia do Cárcere, que também abarca o premiadíssimo "A Fábrica" e o híbrido "A Gente", grande homenagem de Muritiba ao estilo de Maria Augusta Ramos, outrora professora na faculdade em que estudamos.
Após debutar em longas de ficção ao lado de outros quatro ex-colegas de curso em "Circular", que peca pela inconsistência/inconstância em certas sequências (o filme é um multiplot de cinco grandes sequências que convergem em um final pouco consistente diante das expectativas construídas ao longo de cada subtrama), Muritiba enfim chega a seu primeiro longa ficcional "solo" (guardadas as devidas proporções que tal termo pode obter em relação à chamada "autoria cinematográfica") com "Para Minha Amada Morta", tendo absorvido o melhor de seu passado para construir uma obra consistente, projetando-se ao futuro como grande expoente do cinema brasileiro contemporâneo.
Tive meu primeiro contato com o filme ainda em sua fase de pré-produção, com o roteiro do então chamado "O homem que matou a minha amada morta", que já despontava como um projeto ambicioso, apostando em uma premissa intimista sob os signos do thriller psicológico. O que vemos na tela, por sua vez, é imensamente mais grandioso do que as palavras elencadas em sequências poderiam revelar. Em "Para Minha Amada Morta", Aly se consolida como um grande tradutor de conceitos em imagens. Um filme de gênero, antes de tudo, possui certos "códigos" estéticos bem demarcados, mas são poucos aqueles que conseguem transcender esses clichês e transformá-los em uma nova linguagem, sendo capazes de imprimir seu próprio estilo independente do tema a ser tratado. No longa, Aly prova que é capaz de fazer tudo isso de maneira orgânica, estampando todo o seu background: planos fixos em enquadramentos angulares em profundidade com diversas camadas de informação, planos-sequência que acompanham seus personagens pelo espaço fílmico, a retomada de personagens do passado - o protagonista assiste na TV ao filme "Circular" em determinado momento do filme; Jefferson Walkiu, protagonista de "A Gente" é um dos coadjuvantes aqui -, cenários periféricos, além do universo policial aonde o próprio diretor já trabalhou antes de se aventurar pelo cinema, que permeou toda sua Trilogia do Cárcere.
O filme conta a história do luto de Fernando (interpretado por Fernando Alves Pinto), que tenta manter a memória de sua ex-mulher através do contato com seus pertences pessoais. Em uma dessas investidas pelo passado de sua esposa, ele descobre que ela tinha um amante. Fernando então resolve investigar por conta própria o homem que manchou a memória de uma mulher até então ideal. Em nenhum momento sabemos mais ou menos do que o protagonista, toda a ação que ocorre na tela é motivada por algo que nos é mostrado. A tensão que caracteriza o thriller no filme é justamente por conta da tentativa da transposição do drama do personagem na nossa condição de espectador. E Aly lida muito bem com isso, ao criar diversos momentos de tensão e posteriormente quebrar as nossas expectativas diante delas, se mostrando consciente de suas escolhas em um filme dirigido com pulso firme, mas sem nos ditar qual caminho seguir. O filme possui dois atos claros - o início, com enquadramentos fixos, tons frios e predominância absoluta do silêncio que joga toda a atenção da narrativa para as imagens / o desenvolvimento~conclusão, com câmera na mão em planos-sequências que acompanham o protagonista em sua busca, tons mais quentes/fotografia mais escura, som em off que cria um grandioso extra-campo. O turning point de um ato para o outro é explorado à exaustão, revelando uma paranoia delirante do protagonista, que se tortura diante das imagens da infidelidade da "amada morta", e cria a expectativa para uma infinidade de desfechos. Temos acesso a todo o universo de imagens construído ao longo da narrativa, mas como almejar algo a partir do ponto de vista de um personagem que se revela cada vez mais psicótico? Aliás, falar do protagonista sem comentar a atuação de Fernando Alves Pinto seria no mínimo uma covardia. Fernando, que já colecionava em sua trajetória atuações marcantes em filmes como "Terra Estrangeira" e "2 Coelhos", parece chegar ao auge de sua maturidade como artista por aqui. O personagem introspectivo, observador, impulsivo e de poucas palavras dita a maior parte de suas ações apenas com o gesto, com a expressão. Muitas vezes, somado aos trabalhos de câmera, a mise-en-scène se torna uma grande dança, com idas e vindas diante do enquadramento que busca ditar o ritmo dessa coreografia visual, permitindo ao ator ser conduzido em um eterno jogo de trocas entre a ação e sua representação. O resultado é magistral. Seus olhos fatigados e suas ações contidas, sempre no limiar de uma violência extrema, caracterizam grande parte dos momentos de tensão do filme.
Jean-Luc Godard afirmou que "Tudo o que você precisa para fazer um filme é uma mulher e uma arma". Apesar das infinitas possibilidades de interpretação da frase, é notável que nem todos os que tentaram produzir algo a partir dessa premissa conseguiram grande êxito, mas é diante dela que "Para Minha Amada Morta" encontra sua principal força. A arma, objeto pessoal de Fernando, perito policial, logo de início já nos tira da zona de conforto - após o nocaute interno sofrido pelo protagonista, remetendo aos melhores momentos de "Caché", de Michael Haneke, o então pai zeloso revela o seu grande ponto fraco. A nossa inquietação diante da possibilidade de qualquer acontecimento inesperado diante das imagens de uma criança brincando com uma arma de verdade esquecida pelo pai em um local de fácil acesso é somente uma das diversas expectativas geradas e subvertidas ao longo do filme, dessas que nos fazem segurar de maneira mais firme os braços da poltrona e nos encolher um pouco diante da tela grande em nossas aflições enquanto voyeurs de um mundo em colapso. A mulher, revelada aqui somente pelas imagens pixelizadas e de cores opacas de uma fita VHS, permanece mais como memória do que como realidade. Não são as suas ações que estão em xeque, mas sim a forma como essas ações e lembranças mexem com a cabeça do protagonista, desenvolvendo a ação dramática do filme.
Para se aproximar de Salvador - o outro, o amante, o antagonista -, Fernando tem de se lançar à experiência do outro: viver a vida suburbana, se aproximar de um conceito de comunidade e religiosidade que até então não lhe fazia sentido, buscar compreender o próximo de igual para igual, desarmado da autoridade policial de outrora. E é nesse sentido que Fernando acaba sendo seu próprio antagonista - o que está em jogo aqui não é a vingança, não é o maniqueísmo que determina o local de cada personagem diante da história narrada, mas o quanto o personagem representado por Alves Pinto é capaz de superar uma imagem de algo que é mas não aparentava ser, de se libertar de suas próprias angústias. Em meio a esse limiar microcósmico que separa os dois homens que outrora dividiram a mesma mulher, há a mulher de Salvador, Raquel, que gera um outro lado de tensão sexual na história, além da prole do casal. É bonito como mesmo de forma coadjuvante a personagem da filha mais velha do casal interage com Fernando - ela busca romper com as tradições impostas pelo patriarcal e austero senso de comunidade de seu pai, e mira no protagonista um aliado na busca por sua própria identidade, seja nas breves conversas, seja nos segredos compartilhados (cigarros, namorado), e tudo isso é sintetizado em uma cena belíssima que poderia por vezes passar despercebida por conta de sua sutileza: vemos o protagonista levando a filha do amante para um encontro derradeiro com seu namorado. Dentro do carro, ela troca de roupa como se trocasse de personalidade, da casa para o mundo, de oprimida para dona da situação, de menina para mulher. Aquele é o seu momento, de ser quem ela era no seu íntimo, longe das amarras autoritárias da sociedade ao seu redor. Mais do que criar tensões, a presença dessas mulheres nos limiares das relações humanas e da presença da arma acabam por nos revelar - e também ao próprio protagonista - aonde é que essa história vai chegar, tendo o seu ápice em uma das cenas mais antológicas do cinema brasileiro, um plano-sequência com quase 20 minutos de duração, aonde todas as tensões criadas até então confluem: o confronto com o outro, a presença do desconhecido, o cruzamento das fronteiras do próximo, o senso de coletividade em contraponto ao indivíduo, as relações familiares sendo colocadas à prova, a vingança em contraposição à superação, tudo isso passando por vários cenários de uma mesma locação, numa dança coletiva entre atores e equipe técnica, numa virtuose que não se mostra fetichista, mas sim completamente alinhada à diegese construída até aqui. E para finalizar, o deslocamento espaço-temporal nos permite vislumbrar algo atemporal: será o anseio de um passado idílico, que como nos revela a literatura de Dostoievski, sintetiza a nostalgia por algo que não necessariamente existiu? Será a contemplação de uma superação do estado crítico de suspensão que permeou a vida do protagonista nas quase duas horas de filme? As interpretações possíveis são diversas, e novamente nenhuma delas é determinista, apesar do rigor técnico-estético do diretor em relação ao seu longa.
Em uma época onde os grandes clássicos-imediatos do cinema brasileiro são justamente os que mais flertam com o real, ter uma ficção em um filme assumidamente de gênero (ainda que ele seja magistralmente subvertido) e que consegue causar o impacto que Aly causa em seu "Para Minha Amada Morta" é admirável, ainda mais por notar nos créditos vários nomes conhecidos, de pessoas que tem feito acontecer, e feito de forma boa, irreparável. Ainda é cedo para afirmar, afinal o lançamento oficial está previsto somente para março do ano que vem, mas esse certamente é um filme que veio para ficar de alguma forma. Que sua importância e talento sejam reverenciados da forma que o filme merece é o mínimo que eu posso desejar. Por ora, só me cabe meu sentimento mais sincero, o de gratidão. Muito obrigado, Aly.
Podemos afirmar que o Cinema Brasileiro nunca passou por um momento de maior produtividade, se não em qualidade, certamente em números concretos. A chamada "revolução digital" aproximou do audiovisual muitos outros artistas que anteriormente viam no vídeo apenas uma possibilidade, que nos dias atuais emerge como realidade predominante. Se o digital é uma realidade técnica que veio para ficar, podemos notar fenômenos como a hibridização como uma das grandes características temáticas desse novo cinema realizado em terras tupiniquins: nunca se filmou tantas ficções com cara de documentário e vice-versa. Em seu texto "A Era do Híbrido", Carlos Alberto Mattos teoriza sobre essa "nova cara do cinema brasileiro", mas sem deixar de olhar para trás. Se hoje filmes como "Avenida Brasília Formosa" e "Branco Sai, Preto Fica" se fazem notar ao misturar o real a um mundo fantasioso – e muitas vezes fantástico –, olhar para trás é enxergar "Iracema – Uma Transa Amazônica" como um grande referencial desse "cinema de hibridismos", que parece cada dia mais deixar de ser mera manifestação pontual e se consolidar de fato como tendência contemporânea.
Nesse vasto cenário nacional, é necessário observar a produção paranaense como grande celeiro de pérolas contemporâneas. A massiva exibição de filmes aclamados em festivais pelo mundo afora provam que, mesmo apesar da grave crise econômica que afeta o estado como um todo – sendo a cultura a primeira a ser escanteada nas gestões recentes –, os realizadores da terra das araucárias resistem bravamente. Grande parte desses cineastas radicados no Paraná são originários de outros estados, e alguns deles são chaves fundamentais dessa revolução da linguagem que se mostra expressiva não somente no Sul do país, mas também em outros cenários "fora do eixo", como em Minas Gerais e estados do Nordeste. Nomes como os de Aly Muritiba e de Rodrigo Grota recentemente ganharam destaque mundial em diversos festivais de Cinema, e aos poucos uma expressiva gama de novos realizadores emergem produzindo seus primeiros longas-metragem, que gradativamente vão conquistando seu lugar ao Sol. Um desses casos é o de Larissa Figueiredo, brasiliense de nascimento, mas que em Curitiba se tornou uma das responsáveis pelas produções da Tu i Tam filmes, aonde após realizar obras em curta-metragem, revisita o universo de seu curta "O Rei" (2014) e em 2015 lança seu primeiro longa: "O Touro".
Os dispositivos ficcionais-documentais apresentados no filme, de prontidão já nos remetem ao supracitado "Iracema", dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna. Se no clássico filme que estrelava Paulo César Pereio como "Tião Brasil Grande" o que vemos é um olhar passageiro, que nos leva diante das fronteiras longínquas de um road movie, o longa assinado por Larissa nos insere em um vilarejo aonde o espaço-tempo parece viver um eterno estado de suspensão. O filme se passa na ilha de Lençóis, no litoral maranhense, aonde a lenda afirma que o rei português Dom Sebastião havia se encantado, deixando o caráter humano para viver eternamente em condição mítica, ao contrário da versão oficial sobre a derrota na batalha de Alcácer Quibir, em Marrocos. Se para nós, espectadores, a lenda do Rei que hoje transita a ilha em noites de Lua Cheia na forma de um Touro com uma estrela na testa é a premissa principal do filme de Larissa, devemos ter em mente que para qualquer habitante da remota ilha esse caráter lendário é completamente arraigado na cultura, expressão popular e crença religiosa local, transformando tal premissa em inquestionável realidade. O dispositivo central do filme consiste em enviar Joana de Verona – atriz lusitana – à ilha, aonde ela buscará descobrir algo sobre o conterrâneo Dom Sebastião, não mais como personagem histórico, mas como o homem que se fez mito, o encantado que se fez Touro, o Rei que desafiou a geografia e na pequena ilha no Maranhão abandonou a vida e das batalhas e adentrou na eternidade. Suas heranças imperiais já não permeiam a memória de seu povo, aqui a realidade do Rei-Touro se mistura ao folclore popular e ao rito religioso, e através do Bumba-meu-boi e de Orixás do Candomblé se inserem na natureza que, nesse local, se apresentam como o limiar do universo para os habitantes ali inseridos.
Em cada encontro com os locais, Joana aprende que o Touro ali está e ali permanecerá, assim como outros elementos que fazem parte dessa realidade. Em uma sequência memorável (em minha opinião a melhor do filme), a atriz se une às locais para retirar água de um poço, onde aprende sobre as Mães D'água, entidades que utilizam da mesma água no período noturno. Acreditar no imaginário popular local é talvez a única forma sincera de compreender as diversas nuances apresentadas sobre essa sociedade em específico. Assim como diversos exemplos clássicos da cinematografia mundial, "O Touro" é filme que só se justifica através da fé. O tempo, representado aqui como uma "eternidade que gagueja", se revela muito mais estagnado do que cíclico, ao contrário de muitos filmes da já explicitada cinematografia híbrida contemporânea brasileira, tendo como "Serras da Desordem" de Andrea Tonacci um de seus maiores representantes no que se refere a tal especificidade. Se a realidade do índio Carapiru parece um eterno fractal de oposições entre o presente e o passado, em "O Touro" Joana revela em uma frase sintomática um dos sentimentos mais íntimos do filme, em um diálogo com um jovem local, afirmando que na ilha – ao contrário deles – todos parecem ser velhos ou crianças. Esse caráter de "vidas no início" e de "vidas no fim" suspende totalmente a passagem do tempo como algo circular e de renovação, a ele só compete a natureza ao redor, e não seus moradores. A natureza é, por sua vez, de uma grandiosidade monumental. Se as imagens captadas pela câmera que incessantemente flana pelo cenário natural são incapazes de dar uma dimensão de sua grandiosidade mesmo em uma imagem de padrão cinemascope, é através do som que somos esmagados diante de nossa insignificância em relação ao mundo. A ambientação sonora é, provavelmente, o maior destaque do longa-metragem apresentado, é nele que a natureza nos envolve tanto para dentro quanto para fora do filme, é nesse uníssono estrondoso que nos fazemos tão presentes no mundo quanto o Touro ali encantado. Se o tempo ali não é cíclico, ao menos a natureza onipresente nos dá a dimensão de quem está no controle – e definitivamente não somos nós, humanos. É somente nesse cenário que compreendemos a dimensão do que é ter abandonado o caráter mortal e tornar-se mito, o que nos encaminha para o clímax do filme. No turning point decisivo aonde a realidade documental será totalmente abandonada, Joana visita os escombros de uma escola, já reconquistada pela natureza, com as areias dos lençóis maranhenses literalmente invadindo seu espaço, dando vestígios sobre uma realidade que ali não mais se faz presente, enquanto crianças brincam e curiosas observam o ato de explorar, o ato documental de se fazer filme. Esse limiar entre universo mítico e espaço geográfico é cruzado quando a personagem enfim resolve encarar o Touro, acertar-lhe a estrela na testa com sua espada dourada. As cenas do "abandono da realidade" aqui parecem dialogar com obras como "Ex-Isto", de Cao Guimarães, realizador até então renomado como documentarista, que na obra citada encena a chegada de Descartes nos trópicos, em livre adaptação do livro "Catatau", de Paulo Leminski. Joana rema, Joana se transforma enquanto pessoa para poder se situar no mesmo plano mítico/místico em que o Touro-fantasma errante de Dom Sebastião a aguarda. Sua mudança se revela em caráter estritamente interno, já que o denso universo construído no filme é incapaz de se modificar através da ação do homem. É necessário fazer-se mito, fazer-se encantamento, é necessário olhar para dentro para compreender o que há fora como parte imutável de uma natureza onipotente.
É, como mencionado anteriormente, necessário que haja fé. E ao se permitir ter fé (mesmo em casos similares aos meus – ateu que só concebe um conceito de divindade através da verdadeira arte), nos deparamos com uma grata surpresa e certamente um dos grandes destaques não só da 39ª Mostra de Internacional Cinema de São Paulo, mas da cinematografia nacional contemporânea.
O longa (longuíssima!), com mais de 5 horas e meia de duração documenta dois importantes momentos históricos do Iraque: a tensão pré-guerra, que acabou com a queda do ditador Saddam Hussein; e os resultados imediatos da ocupação norte-americana no país. Fahdel, protegido por sua câmera, busca interferir o mínimo possível na história que sua lente registra, mas o fato de ele documentar diretamente a sua família, faz com que ele sempre seja trazido de volta para dentro da narrativa. Por mais contraditório que tal afirmação possa soar, suas filmagens encontram um limiar entre a obra de Frederick Wiseman, que através de sua câmera observa o mundo, junto das reflexões cotidianas e certeiras da câmera-olho de David Perlov em seus diários. As próprias palavras de Perlov podem descrever muito do trabalho de Fahdel: “Quando você filma um diário, o filme substitui a vida. (…) Você pode recriar a vida ou fragmentá-la.” É através dessa fragmentação que Abbas Fahdel constrói um discurso harmônico onde há somente a tensão. A retratação de um lado humano em tempos de conflito faz com que o espectador se submerja em meio a história, onde qualquer momento de tensão é vivido à flor da pele, como se fossemos tão presentes na narrativa como a própria família do realizador. É um choque de realidade tentar compreender a visão de um país que vive à sua maneira uma espécie de “Guerra Fria”, sob o espectro da paranoia constante, onde famílias tentam transformar suas casas em fortalezas e toda a noção de existência se dá através da expectativa do ataque iminente. Ao adotar seu sobrinho Haidar, de apenas 11 anos como protagonista, Fahdel estabelece um ponto de vista que está sempre no limiar entre o abandono da inocência e a consciência de uma realidade dolorosa – se por um lado o vemos trabalhando horas a fio em um poço cavado em seu próprio quintal, também notamos que ele encara a guerra como possibilidade de não ter de frequentar aulas das quais ele não gosta. Com o passar das horas, notamos que Haidar talvez seja a pessoa mais madura de toda aquela família, justamente por emergir de uma geração que questiona as tradições e busca alternativas para esse mundo em crise que o permeia. Já diria o velho ditado, por vezes o real é ainda mais estranho que a ficção. As propagandas televisivas pró-regime de Saddam são fantásticas, surreais, e mostram como um plano nacional de doutrinação pode perpetuar – e o pior, convencer a muita gente – a manutenção de um sistema que não beneficia ninguém, exceto a cúpula dos “amigos do rei”. Em momento algum o longa se preocupa em dar conta do conflito, o corte que separa as suas duas partes ignora os bombardeios e ocupação norte-americana em si. O foco são as pessoas, e a forma como esses momentos as afetam direta ou indiretamente, e não a política nacional como um todo. Um segundo momento nos revelará que essa expectativa em prol de uma mudança positiva por conta da queda de Hussein se mostrará infundada, ao menos enquanto a barbárie de um for substituída pela barbárie de outros. Os escombros de Bagdá dividem, em clima de guerra civil, os soldados norte-americanos que muitas vezes atiram antes de perguntar, de saqueadores e gangues violentas que encontram na violência uma das únicas formas de sobrevivência, por conta da crise com o sistema de distribuição de cestas básicas que não necessariamente atendem a todos os necessitados, mesmo que por motivos completamente absurdos (por exemplo, habitantes de algumas cidades em específico não tem tal direito pois outrora não apoiaram o governo de Saddam, herança que se perpetua mesmo após a queda do antigo chefe de Estado). Ao mostrar o cidadão médio, Abbas Fahdel acaba por revelar diversos contrastes entre os defensores de Saddam e aqueles que o condenam, revelando que alguns de seus familiares foram perseguidos e assassinados sem motivo aparente (um deles tinha apenas 13 anos quando foi abordado na escola e executado por forças oficiais). De qualquer forma, a suposta democracia americana jamais se revela como uma alternativa possível, e os locais compreendem que antes de tudo, a ocupação é uma decisão econômica: “A vida no Iraque era melhor antes do petróleo”, um deles afirma, em meio aos escombros do que um dia a cidade já foi. Estações de rádio, agências, ministérios, a memória cinematográfica de um país, todas amontoadas em meio à poeira, concreto e ferro retorcido, que servem de palco para brincadeiras infantis com cápsulas de projéteis e morteiros facilmente encontrados pelo chão. O sentimento final é o de desolação, de desesperança, de saber que aquela população toda está fadada a conviver durante muito tempo com a presença de uma força hostil que os rege, qualquer seja sua origem, já que não há necessariamente um alinhamento ideológico em prol do benefício coletivo, pois os interesses individuais e econômicos prevalecem às necessidades básicas da população. Um dos planos finais do filme, chocante pela forma que se revela, me deixou anestesiado na cadeira, imóvel, sem palavras, e demorei a voltar ao mundo externo após o final da sessão. Quando finalmente retomei a consciência, a sala, já esvaziada, abrigava poucos incrédulos que como eu, acabaram de presenciar uma experiência que transcende o próprio cinema, que diz respeito à própria vida, que é arte por si só.
Postado originalmente em kinotype.blogspot.com Spoiler alert.
Há pouco menos de um ano ouvi falar sobre este filme, que havia estreado no Festival de Sundance e provocado algumas reações positivas em muita gente. Desde então minha curiosidade em relação ao filme Islandês só ganhou força, até que finalmente tive a oportunidade de assisti-lo, e perceber que nem toda longa espera é recompensada da forma como a gente gostaria. Desde que me conheço por gente, acredito que a minha relação com o universo do Heavy Metal sempre foi muito mais próxima e intensa do que com o mundo do Cinema. Se o Metal me acompanha até hoje como o "meu primeiro amor" - inconsequente, apaixonado e eternamente jovem, foi através do cinema que aprendi que uma paixão posterior pode ser tão mais produtiva e importante não só como um meio de observar através de uma tela na parede um espelho do mundo, mas uma expansão direta da própria vida, onde a existência só é possível e digna através da arte, e vice-versa.
Quando assisti pela primeira vez ao trailer de "Metalhead", acreditei que estava diante de uma obra dessas, onde a vida e a arte se complementavam de forma natural, e o universo do Heavy Metal era somente um catalisador para diversas emoções presentes na juventude de Hera, a protagonista da obra: rebeldia, isolamento, auto-conhecimento, um quê de niilismo e por aí vai. Os primeiros planos do filme escrito e dirigido por Ragnar Bragason revelam bastidores de uma vida rural em um vilarejo nas proximidades de Reykjavik, onde os jovens aproveitam seu tempo brincando entre si, mas que também logo acabam por entrar para o sistema familiar de trabalho no campo - uma vida emancipada na cidade parece sempre tentadora e ao mesmo tempo muito distante. É esse o universo de Hera, que aos doze anos presencia a morte do irmão mais velho, Baldur, em um acidente com o trator durante a colheita.
A morte de Baldur é o grande destarte do filme, e sua ausência na família é de fato o que causa todas as mudanças de comportamento em Hera e seus pais. O sentimento de culpa pela perda de Baldur só não é mais presente em Hera do que em Karl, pai dos dois, que vê seu casamento se deteriorando ao longo dos anos graças ao fim do diálogo com sua esposa e do sentimento de vazio e nostalgia presentes em seu universo. Hera tenta se aproximar do universo do irmão logo após a sua morte, e encanta-se pelo mundo do Metal. Na antiga guitarra do irmão começa a ensaiar seus primeiros riffs, que ao longo de sua vida ajudariam a jovem a descarregar parte de seu sentimento negativo através da música. Os anos se passam, e Hera encontra-se no limiar do fim de sua adolescência e início da nova vida adulta. Em meio a diversas incertezas de sua vida, uma certeza é latente: ela não quer continuar a viver no campo em sintonia com a comunidade e igreja ao seu redor. Em meio à sua rebeldia ela não consegue se fixar no emprego em um frigorífico local e nem tampouco quer dar continuidade aos negócios da família, que consiste basicamente na criação de vacas leiteiras e produção de leite. Essa realidade retratada no cinema é uma temática recorrente em jovens que procuram transcender os limites físicos e espirituais de uma tradição que se revela de forma sempre tão austera e determinista. No Cinema Nacional temos um belíssimo exemplo: o primeiro longa-metragem dirigido por Esmir Filho (que dentre outros trabalhos, ficou mais conhecido através do seu curta viral "Tapa na Pantera"), que retrata a vida de um jovem no interior do Rio Grande do Sul diante das incertezas do futuro e vontade de "cruzar a ponte" que separa a sua cidade de um mundo completamente novo, em "Os famosos e os duendes da morte", lançado originalmente em 2009.
Ao contrário de Esmir, Ragnar parece errar feio a mão em seu filme em alguns aspectos, em especial ao fazer uma visão tão estereotipada e rasa do arquétipo do "rockeiro rebelde" de sua protagonista, que enxerga no túmulo do seu irmão o único "possível mentor" até a chegada de um novo padre no vilarejo. O padre administra a pequena comunidade cristã da região, e posteriormente revela à Hera ser também um "metalhead". O envolvimento que ela sente por ele após tal simples revelação é instantânea, o que dá a impressão de que a evolução emocional da garota jamais passou de um estágio inicial. Mesmo ele não sendo um padre católico, o que lhe permitiria ter uma relação com alguém, ele se mostra sempre relutante ao envolvimento com a protagonista, o que acaba por torná-la ainda mais rebelde. Após descobrir o Black Metal em uma reportagem televisiva, Hera se entrega a um lado ainda mais extremo não só musicalmente, mas existencialmente: grava enfim suas músicas em uma fita demo que envia para a Noruega, tenta liberar as vacas de seu pai e acaba por incendiar a igreja local após mais uma negativa por parte do padre. Ela então se vê obrigada a fugir e se refugiar em uma pequena cabana durante o intenso inverno islandês, o que acaba por ser a fagulha inicial da reaproximação de seus pais, que somente após cerca de dez anos da perda de seu primogênito resolvem enfrentar o luto juntos e superar a dor da perda. Sem ter para onde fugir, ela acaba voltando e enfim entregando-se aos cuidados de Knutur, seu amigo de escola que nutre por ela uma paixão desde a infância e já havia tentado se aproximar emocionalmente dela anteriormente, que fisicamente já havia se entregado, porém reagiu com toda a estereotipada "rebeldia metálica" na primeira tentativa de um estreitamento de laços entre eles. Assim sendo, ela começa a viver uma vida "normal" de acordo com os padrões sociais, desculpa-se diante de sua comunidade e até mesmo ajuda a reconstruir a igreja local.
Em uma cena que parece mais com uma piada de péssimo gosto a todos aqueles que cresceram ouvindo e lendo as folclóricas histórias das bandas norueguesas de Black Metal, três garotos de Oslo vão à Islândia para conhecer Hera pessoalmente, após se impressionarem com a música de sua demo. O nome dos jovens remete ao nome dos falecidos e icônicos pioneiros do estilo: Øystein (nome real do guitarrista do Mayhem, imortalizado sob a alcunha de Euronymous), Yngve (nome real de Dead, o mais icônico dos vocalistas do Mayhem) e Pål Ole. Os jovens passam um período na Islândia com a garota, e entre diversas cenas completamente surreais, existe uma que mostra o "neo-Mayhem" ajudando a reconstruir a igreja local junto da comunidade no vilarejo. Revelando-se como "arautos do terceiro ato do filme", eles acabam por fazer com que a garota "retome" a sua vida metálica, rompendo os laços com Knutur e fazendo o que realmente gosta: tocar Metal Extremo. Diante disso, Hera e os noruegueses preparam um show para apresentar sua "verdadeira identidade" à comunidade, e acaba enfim sendo aceita por seus pais da forma que é, em um desfecho de proporções lamentáveis onde toda a família entra em uno ao "agitar" ao som de Symphony of Destruction, clássico do Megadeth. A redenção de seus personagens é filmada de forma óbvia diante da narrativa construída ao longo do filme, o que acaba por empobrecer ainda mais a trama, que se revela amena mesmo nos momentos de uma falsa "extrema" catarse.
A sensação após quase uma hora e quarenta de filme é a de desapontamento, um pouco de vergonha e o questionamento do que poderia ser e infelizmente não foi. Esteticamente o filme é bastante belo, com planos iluminados e focados de forma precisa, com uma paleta de cor em tons frios e alguns planos gerais que dão conta da dimensão vazia do ambiente contrastando com close-ups dos personagens que guardam dentro de si um vazio ainda maior do que a do terreno ao seu redor. A fotografia acaba justamente por afastar um pouco essa ideia de estética metálica onde tudo é mais cru e direto. A trilha sonora é bastante discreta, com pouca utilização de música não-diegética e de pouca abrangência em relação aos estilos que parecem acompanhar a personagem principal ao longo de sua vida. A impressão que permanece é de que ela sempre escuta algo muito mais suave do que o momento que o diretor pretende retratar em sua vida.
Há poucos anos assisti a um filme que foi um dos destaques da imprensa paranaense sobre um longa também islandês que passou em duas sessões durante a primeira edição do Festival "Olhar de Cinema": Volcano, dirigido por Rúnar Rúnarsson, lançado originalmente em 2011. Volcano carrega consigo muitas semelhanças com "Metalhead": o vazio existencial, o isolamento, o sentimento frio que se mostra no ambiente e reflete no âmago de seus personagens e uma linha narrativa básica, óbvia, que pouco tem a dizer sobre um mundo interno, mas apenas reproduz de forma eficiente porém desinteressante o universo de seus personagens, que "morrem" junto dos créditos finais sem deixar grandes questionamentos ou reflexões dignas de nota.
Em suma, não é um filme para quem gosta de Metal, justamente por fazer uma visão superficial (beirando o ridículo em certos momentos) do estilo e de seus "seguidores", e nem também um filme que exigirá algo do espectador além de um pouco de tempo e paciência. No fim das contas, "Metalhead" não foi para mim nada além de uma grande decepção, e aposto que ainda continuará a decepcionar muitos daqueles que como eu depositaram no filme alguma expectativa. Uma pena, que ao menos serve para demonstrar que filmes ruins às vezes são igualmente importantes: devemos sempre nos lembrar de porque erros não devem ser cometidos mais de uma vez, quem dirá sistematicamente.
(E pra quem quiser, traduzi o filme do sueco tanto pra inglês quanto pra português, e deixei tudo no The Pirate Bay no seguinte torrent: http://thepiratebay.se/torrent/10505858/Malmhaus_aka_Metalhead)
Desde os primórdios do cinema, a cinematografia alemã sempre foi uma das principais expoentes da sétima arte mundial. Movimentos como o Expressionismo Alemão e posteriormente o Novo Cinema Alemão consagraram diversos diretores como Fritz Lang, Murnau, Fassbinder, Herzog, dentre tantos outros. Recentemente, o assim chamado "Novíssimo Cinema Alemão" volta a apresentar ao mundo filmes que se destacam não só por sua qualidade técnica, mas também pelo seu engajamento sócio-político. Títulos como "Edukators" (2004) e "A Experiência" (2001) trazem consigo essa herança política contestadora do Novo Cinema Alemão, sem perder seu espírito contemporâneo. Um dos segmentos mais explorados no novíssimo cinema alemão é o "outro lado do Muro de Berlim", que expõe problemas sociais e econômicos da extinta República Democrática Alemã, assim representados em filmes como "Adeus, Lênin!" (2003) e "Aprendendo a Mentir" (2003).
"Barbara" (2012), dirigido por Christian Petzold é um filme que aposta numa visão contemporânea sobre problemas sociais da antiga Alemanha Socialista. Barbara é uma médica que enfrenta problemas com a Stasi, polícia secreta da RDA. Sua história não é claramente revelada em momento algum na trama, o que evidencia um cinema de sugestões, onde as intenções são muito mais importantes do que a ação, refletindo uma beleza singela e autêntica.
Recém chegada em uma cidade do interior para exercer sua função, Barbara conhece André, médico promissor que teve de se contentar com um serviço menor após problemas trabalhistas em seu passado. Em uma cidade nova, pressionada por seus problemas com a lei, Barbara encontra em seus pacientes e em André sua única cumplicidade, que se desenvolve de forma lenta porém verdadeira. Ao conhecer Stella, uma jovem grávida e vítima da meningite virótica que tentava fugir de um campo de trabalho, Barbara revela seu lado humanista, onde tenta de alguma forma ajudar a jovem a não se submeter ao regime em que ela não gostaria de ser mantida. Assim, ela começa a conhecer mais a fundo acerca da personalidade de André, em um mundo onde as diferenças e as indagações sobre seu futuro se confundem, e uma admiração mútua surge em meio a um sentimento de desesperança de um futuro promissor para ambos.
Em sua vida dupla, a protagonista busca meios para abandonar o país sem ser notada, sonhando com um mundo novo e livre na Dinamarca. Ao se encontrar no dilema entre salvar a si própria ou Stella da condição em que está submetida, Barbara tem de escolher entre fugir ou enviar a jovem garota em seu lugar, e seu sacrifício diante da esperança no futuro da juventude revela de forma magistral a condição humana e as diferentes relações que se estabeleciam na antiga República Democrática Alemã - a dificuldade como verdadeira forma de unir as pessoas. Apesar disso, o fio da esperança jamais é abandonado para Barbara, que então finalmente saberá de fato se poderá contar com André. A antiga RDA é apresentada então como um país que os hostiliza, mas ao mesmo tempo mantém de alguma forma uma chance para que ambos se redimam - não somente como médicos, mas como seres humanos.
Todo o filme é permeado por um devastador silêncio, que expõe à tela muito do mundo interno de seus personagens, e reflete de alguma forma as dificuldades, os dilemas e a busca pela esperança em condições adversas. O olhar do autor diante de sua própria obra é um olhar que sugere em seus questionamentos mas nunca nos impõe suas reais intenções, e suas diferentes nuances tornam o filme verdadeiramente humano. Tirando a própria vida, o que poderia ser mais poeticamente honesto? Um filme composto por diferentes sensações, que é no fim um belo presente do cinema contemporâneo para nós amantes da sétima arte.
“Estrada Para Ythaca” (2010) é um dos filmes brasileiros contemporâneos mais comentados em festivais, polos do audiovisual e faculdades de cinema ao redor do país. O filme realizado pelo Coletivo Alumbramento (Ceará) foi o expoente máximo da bandeira levantada pelo cinema pós-industrial, que prevê a utilização de equipes reduzidas, flexíveis (apenas quatro cineastas fizeram todas as funções do filme, inclusive a atuação), que produzem a baixíssimo custo sem depender de editais de incentivo à cultura, patrocínios, leis de fomento e outras burocracias enfrentadas pelo cinema comercial, porém limitando sua circulação ao circuito de festivais, mostras, cineclubes e outros meios alternativos de exibição e distribuição.
Mais do que defender uma forma de se fazer cinema, Estrada para Ythaca surge de uma necessidade imediata de seus realizadores em transformar questões de seu cotidiano em uma obra de arte. O espírito que une muitos jovens na hora de se reunir para a conclusão de um curta-metragem é o mesmo que uniu todos os envolvidos nesse filme, que resolveram ampliar suas ambições de forma autêntica e produzir um longa-metragem. Esse fato só pode ser pensado graças à popularização das tecnologias digitais, de uma cinefilia motivada pelo fácil acesso a uma enorme quantidade de filmes de diferentes cineastas ao redor do mundo disponíveis na internet e, consequentemente a formação de um público pensante em relação ao cinema, que posteriormente iria colocar na prática todas as suas questões, de acordo com o espírito de seu próprio tempo e necessidades de expressão criadas a partir de tal ato reflexivo, que nos é apresentado em Ythaca, um filme de amigos que ganhou notoriedade principalmente após ser o destaque principal da edição de 2010 do Festival de Cinema de Tiradentes, onde se consagrou como o grande campeão da 13ª edição da mostra.
O que mais me intriga em relação ao filme é que sempre que a discussão sobre Ythaca é colocada em questão, quase nada se comenta sobre o filme em si, seu resultado, mas somente sobre seu método de produção, da bandeira que ele levanta – embora particularmente creia que ele não levante bandeira alguma, somente ilustra uma determinada realidade, e graças ao seu método de produção os defensores do ideal do chamado novíssimo cinema, cinema pós-industrial ou até mesmo cinema de garagem se espelham no sucesso de crítica e receptividade do filme para, desta vez sim, levantar uma bandeira –, da forma com que os Irmãos Pretti (Ricardo e Luiz) e Primos Parente (Guto e Pedro Diógenes) realizaram o filme. Será mesmo que o grande mérito do filme é o fato de ter sido feito com um orçamento de aproximadamente dois mil reais, com a utilização de equipamentos baratos e alternativas criativas na hora da realização, como por exemplo, o longo plano noturno iluminado somente pela lanterna do carro? Penso eu que este seja um critério muito reducionista não só para Ythaca, mas para qualquer outro filme realizado nos mesmos moldes e que, antes de tudo, possuem uma estrutura cinematográfica bastante clara.
O filme em si retrata um pouco do imaginário de seus próprios autores, tendo o mote de amizade e da jornada como seu principal foco, fator que nos remete a filmes já consagrados anteriormente como é o caso de “Stand by Me” (Conta Comigo, de Rob Reiner, 1986), que também revela a jornada de quatro jovens – ainda que bem mais novos – motivada pela presença de um suposto morto, onde a questão do ponto de partida e do ponto de chegada definitivamente não é o mais importante, e sim as relações humanas e o desenvolvimento da jornada, fator presente nos dois filmes citados, que flertam com a nostalgia e possuem a premissa básica do engrandecimento pessoal à partir do seu próprio trajeto. Tais características podem ser encontradas em filmes ainda mais passíveis de aprofundamento, como é o caso do emblemático “Stalker” (1979), de Andrei Tarkovsky, onde a busca de um mundo à parte através da jornada é a força inicial que move seus personagens centrais, possibilitando diferentes visões sobre um determinado tema, que o próprio autor nunca se ateve em explicar. Os três filmes citados se atém na transformação, na busca por algo que jamais abandonará seus personagens a partir de então, o grande momento da vida de cada um dos envolvidos, seja tratado através do luto, da nostalgia ou mesmo da busca pelo desconhecido. E, felizmente, em todos os casos, seus autores conseguiram explorar de forma bastante consistente o processo, que nos fará refletir sempre a seu respeito, ao invés de simplesmente amarrar uma história em uma curta duração que poderá até ser motivo de certa discussão, mas que jamais terá a profundidade de um filme que lida com questões que beiram por muitas vezes o metafísico, o imaginário cognitivo do espectador, além do final em aberto que possibilita ao seu público diferentes formas de interpretação, fazendo com que a obra se torne outra a cada nova visão.
Motivados pelo luto após a perda de um amigo, os personagens de Estrada para Ythaca partem em uma viagem rumo ao desconhecido, rumo ao autoconhecimento, rumo à afirmação de seus valores humanos e de suas relações, flertando com uma estética road movie (onde a presença do carro é um de seus fatores fundamentais) e recheado com citações cinematográficas que remetem ao espírito coletivo adotado pelos próprios realizadores, como é o caso da cena onde a encruzilhada com diferentes oportunidades de caminhos são apresentadas, como realizada no filme “Le Vent d’Est” (O Vento do Leste, do Grupo Dziga Vertov, onde os cineastas Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin e Gérard Martin são os responsáveis pela realização), na emblemática sequência encenada por Gláuber Rocha, defendendo uma posição política de resistência não só para o Cinema, mas como para a própria sociedade da época, onde prevalecia o discurso da dicotomia de primeiro e terceiro mundo – e consequentemente do cinema industrial contra o cinema independente, ou terceiro cinema. A escolha por um terceiro cinema em Ythaca é o derradeiro ponto de virada do filme, onde a questão do tempo é explorada de forma a evidenciar as próprias especificidades da linguagem cinematográfica, como defendida pelo supracitado Tarkovsky em seu livro “Esculpir o Tempo”. Além dessas citações, referências a músicas populares, cantigas do imaginário coletivo e outras canções famosas nos aproximam da obra ao mesmo tempo em que evidenciam a aproximação quase fraternal (ou mesmo fraternal, no caso dos Irmãos Pretti) de seus heróis. Desafio qualquer espectador a sair do cinema sem querer cantar de uma forma que os versos “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de perder a morte” (da música “Divino Maravilhoso”, composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil, imortalizada na voz de Gal Costa) cheguem a se tornar um mantra.
Retomando as questões dos métodos de produção pós-industriais, penso que Ythaca não deva ser somente um filme emblemático por conta de sua forma. Em um mundo cada vez mais digitalizado, com facilidades cada vez maiores na hora de se produzir cinema, onde a burocracia parece não acompanhar o espírito de nosso tempo, os moldes adotados pelo filme não são meramente um caminho a se seguir, mas sim uma forma de se refletir sobre a produção contemporânea e por que não adequar à realidade industrial e estatal de se fazer cinema que também contemple os novos métodos, que são colocadas à prova não só em Ythaca, mas também em outras produções do Coletivo Alumbramento, onde o conceito por trás de um filme é muito mais importante para a sua relevância do que seu orçamento ou método de produção. Em um tempo onde cursos superiores de cinema surgem aos montes ao redor do país, pensar em filmes que sirvam como um exemplo às futuras gerações realizadoras me parece muito além de qualquer bandeira, mas sim uma forma de se legitimar a própria arte, e que todos os futuros exemplos da nossa atual situação cinematográfica sejam autênticos, inteligentes e principalmente instigantes como Ythaca, um dos grandes presentes da nova safra do cinema brasileiro.
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Apesar da Noite
2.7 17Originalmente postado no site Kinograma ponto org:
Cantaria o poeta Joaquín Sabina que “O amor que não mata morre / amores que matam nunca morrem”. A premissa de um amor levado às últimas consequências é o ponto central do novo longa de Grandrieux, que tem em seu currículo filmes como “Sombre” (1998), “La Vie Nouvelle” (2002) e “Un Lac” (2008). “Malgré la Nuit” esteve em sua première no continente americano na mostra “Vanguardia y Género” do Festival Argentino, e apresenta uma narrativa mais delineada e de dramaturgia mais presente que seus antecessores. Para melhor absorver as nuances do cinema de Grandrieux, é necessário compreender inicialmente suas inquietações sobre o próprio ato da realização: as imagens em sua relação concreta com o mundo, onde cada elemento é apresentado em seu estado real, mesmo que em uma obra de ficção. Essas marcas em seu cinema se devem muito à forma como o corpo é explorado em cena, ora como objeto vivo, ora como paisagem, transitando entre sua representação literal e plástica, culminando em uma grande experiência visual. Em “Malgré la Nuit”, os corpos são os grandes protagonistas, e suas representações muitas vezes possuem uma relevância ainda maior do que a história narrada per se. Os jogos de luz e sombra (com a fotografia muitas vezes estourando acentuadamente nos corpos brancos), as movimentações de câmera, a utilização de lente macro que faz das peles dos atores seus cenários, o silêncio quase absoluto contrastado com os sussurros que por fim revelam mais sobre as intenções de seus personagens do que o próprio texto dito por eles são as tônicas da estética do filme. As referências literárias também são de suma importância na obra de Philippe, que faz do conceito de Proust uma constante em seu cinema: “Devemos esquecer a inteligência.” – a razão não deve ser mais importante do que o sentimento que cada elemento da linguagem adotada pelo cineasta representa para o filme em si. O literal não pode ser encarado de forma mais definitiva que o simbólico. Seu cinema é um cinema de sugestões, de nuances, de possibilidades, de um fluxo sensorial que dialoga mais com as texturas do que necessariamente com uma narrativa do que se convém chamar de clássico.
Por vezes, a narrativa possui uma estrutura que se assemelha ao ato de sonhar, onde a contiguidade das ações revela novas possibilidades ao invés de uma simples sucessão de sequências. Essas sequências, geralmente pontuadas em excessiva utilização de fades na imagem, contam a história de Lenz, que retorna da Inglaterra para Paris em busca de um amor antigo, Madeleine. Em seu regresso à capital francesa, o protagonista irá se envolver em um triângulo amoroso com Hélène e Lena. Não só os nomes das personagens fazem referência à sua busca original, como elas também representam a busca do reencontro de Lenz com um sentimento perdido, que existe não em outro lugar senão sua memória. Esse envolvimento de caráter transitório com as personagens do triângulo amoroso é por vezes efêmero em sua forma sentimental, mas se consolida na presença física. Se por um lado elas permanecem como um stand-in emocional na falta da verdadeira Madeleine, por outro elas acabam por desenvolver as relações de ciúmes, violência e, sobretudo a exacerbação física – que, como mencionado anteriormente, é uma das potências estéticas de Grandrieux – que permeiam o universo real em oposição ao anseio idealizado de Lenz de um sentimento idílico representado justamente na ausência.
Hélène é representada com ar de maturidade, mas ao mesmo tempo com uma apatia implacável, que a situa diante da morte em todos os aspectos de sua existência, seja cuidando de idosos em um asilo, seja em suas relações sexuais extremamente violentas onde a personagem faz questão de se colocar como agente submisso. A violência que movimenta suas relações a coloca em posição tangente à morte, única ocasião onde ela se sente realmente viva. É nessa maturidade onde Lenz busca uma sobrevida para a idealização de Madeleine. Já Lena representa o frescor impulsivo da juventude, que diz respeito ao passado dessa mesma idealização. A beleza se esconde na melancolia, na fragilidade, e seu porto seguro acaba por ser Vitali, pai da jovem, um homem de requinte agressivo, amparado pelo poder que se apresenta no filme como ilimitado, se revelando o antagonista maior às intenções não definidas de Lenz em relação à objetividade do presente. O perigo representado por essa relação, entretanto, aproxima o protagonista de um sentimento relacionado a Madeleine. Essa, por sua vez, é representada apenas por uma fotografia de um passado anunciado, mas não vivenciado. A busca por sua presença fará com que o protagonista transite pelo submundo parisiense, amparado pelo amigo Louis, em um cenário underground de pornografia e prostituição.
Ainda que seja a busca de Lenz a força motriz do desenvolvimento narrativo, são as personagens femininas que roubam para si toda a atenção. As atuações memoráveis atreladas a rostos e corpos de expressividade imponentes destoam do fragilizado protagonista, que teria seu papel desenvolvido por Pete Doherty, frontman da banda inglesa The Libertines. Por questões de saúde, Doherty teve de ser substituído por Kristian Marr, que se apresenta de forma muito menos expressiva do que os outros personagens, sobretudo os masculinos Louis e Vitali. Já as personagens femininas são permeadas por um senso de liberdade quase absoluto – essa liberdade as coloca como agentes causais mesmo em relação à violência que por vezes lhes é infligida, onde elas são livres até mesmo para gostar do sofrimento. Se essa questão pode gerar debate sobre um caráter misógino com que o diretor representa essas personagens, é buscando novamente compreender as referências literárias do cineasta que percebemos que a noção do bem e do mal/certo e errado é difusa diante de suas personagens. O filósofo holandês Baruch Spinoza é peça chave na compreensão desse sentido: “O que se apresenta como bom, é tudo aquilo o que aumenta as possibilidades na vida. O que se apresenta como ruim é aquilo que limita as suas capacidades de expressão”. Se suas personagens vão atrás do que lhes faz sofrer, é porque talvez essa seja a única forma com que elas se sintam de fato próximas de algo que as afaste do sofrimento inerente à existência. Para Hélène, o sadomasoquismo, mesmo na posição de submissa, se apresenta como uma das opções presentes nesse quase absoluto senso de liberdade.
Se Hélène é a personagem de maior apelo emocional, graças à complexidade de suas relações existenciais e da forma como são apresentados seus contrastes entre apatia e violência, bem como o contraste entre a sobrevivência diante da presença constante da morte, as melhores sequências do filme são atos musicais que se transformam em videoclipes protagonizados por Lena. A estilização da imagem lança mão de diversos artifícios que conferem à imagem um semblante etéreo, como planos sobrepostos, tendo como locação espaços vazios, causando o extremo contraste da penumbra completa do cenário em oposição à personagem sob o spot de luz que lhe confere um aspecto quase fantasmagórico, com maquiagem carregada e cores marcantes que evocam uma estética neon, culminando na ilustração visual das emoções de Lena. A música, transitória entre o pop e o synthwave, transpõe sentimentalmente as principais características da personagem, evidenciando uma associação indivisível entre a beleza e a melancolia, entre o frescor de sua juventude com o desamparo existencial que escoa em suas relações com os personagens masculinos do filme, seja o afeto com Lenz, seja a proteção paternal de Vitali.
Outro fator digno de menção é o interesse do cineasta em um caráter animalesco, puro, sem intermédio da atuação, mas de uma espontaneidade genuína. A menção de uma droga que permite ao seu usuário uma aproximação com seu lado instintivo mais primitivo é um dos elementos de tensão explorados no filme, bem como a presença de um cachorro, elemento já utilizado de maneira tão dramática quanto em seu antecessor “La Vie Nouvelle”. “Um cachorro sempre está a ser um cachorro, não há como filmá-lo para que ele finja ser um gato”, afirma Grandrieux, comparando as intenções que sempre se fazem presentes quando um ator se apresenta diante de uma câmera. Esse caráter animalesco também existe em alguns de seus personagens, retomando a ideia de um sentimento onírico que por vezes contamina as motivações, aproximando-o estilisticamente de filmes como “Mulholland Drive” e “The Blue Velvet”, ambos dirigidos por David Lynch. Não é nenhum exagero traçar um paralelo entre Vitali e o personagem Frank Booth de “The Blue Velvet” em seu caráter de ferocidade animalesca. Para ambos, a violência e a exposição tortuosa da sexualidade permeiam toda a ação com certa iminência da tragédia anunciada, como cavaleiros do apocalipse a dar presságios sobre o fim do mundo inadiável, onde a estrutura de sonho se revela como um pesadelo do qual não é possível acordar.
A tragédia, que aqui separa o limiar entre a vida e a morte, é onde a busca pelo amor presente em toda a trajetória do filme irá culminar, em uma relação que confunde o conjugal com o maternal – o que a primeira vista parece um desfecho relativamente óbvio. No entanto, assim como qualquer busca por um sentimento idílico, o resultado importa pouco ou quase nada em relação à jornada, que aqui dá o nome de Madeleine ao processo de autoconhecimento do próprio protagonista. “Malgré la Nuit” é um filme sobre essa conexão entre amor e morte, entre a vida e o autoconhecimento, entre a idealização e o real, entre o passado e um futuro do qual nos é impossível escapar. Se o sentimento da iminência do fim do mundo possa parecer um fardo muito pesado, talvez a única alternativa seja ser um pouco como Hélène, sendo capaz de enxergar as nuances da vida diante da inevitabilidade da presença da morte.
Para Minha Amada Morta
3.5 97 Assista AgoraEm minha última crítica, sobre o filme "O Touro", eu já havia mencionado um fenômeno recente e transformador no cinema paranaense contemporâneo: os "forasteiros" radicados na terra das araucárias que acabaram por revolucionar a produção audiovisual não só no estado, mas em todo o Brasil. Falar sobre Aly Muritiba é, mais do que falar sobre cinema paranaense, falar sobre uma realidade no cinema nacional. Em sua curta, porém expressiva carreira, o baiano "agora curitibano" conseguiu deixar traços profundos sobre suas particularidades, e o prestígio conquistado em festivais mundo afora só corroboram o que é óbvio em sua cinematografia.
Tive meu primeiro contato com Muritiba ainda na faculdade, onde separados por alguns anos, estudamos juntos. Se os seus primeiros curta-metragens, como "Convergências", "Com as próprias mãos" e "Reminiscências" não me chamavam atenção alguma, é necessário ponderar que desde o início de sua carreira, Muritiba sempre tentou adequar em sua obra elementos de gênero, algo que volta a ganhar força no cinema nacional, mas que parece ter passado por um longo período de provação.
No entanto, foi através da "aproximação com o real" que seus filmes começaram a me chamar a atenção de forma mais contundente. Em um de seus filmes menos conhecidos, "Dia 1 P.M.", a câmera reencena o cotidiano familiar, onde pai e filho discutem sobre a venda de um carro. A premissa simples, com a câmera fixa em um ponto com um enquadramento aberto, onde seus personagens entram e saem e muitas vezes o som em "off" dita a ação, acabou por se tornar uma das grandes assinaturas do diretor, que posteriormente explorou ainda melhor tais recursos em "Pátio", o ponto-alto de sua Trilogia do Cárcere, que também abarca o premiadíssimo "A Fábrica" e o híbrido "A Gente", grande homenagem de Muritiba ao estilo de Maria Augusta Ramos, outrora professora na faculdade em que estudamos.
Após debutar em longas de ficção ao lado de outros quatro ex-colegas de curso em "Circular", que peca pela inconsistência/inconstância em certas sequências (o filme é um multiplot de cinco grandes sequências que convergem em um final pouco consistente diante das expectativas construídas ao longo de cada subtrama), Muritiba enfim chega a seu primeiro longa ficcional "solo" (guardadas as devidas proporções que tal termo pode obter em relação à chamada "autoria cinematográfica") com "Para Minha Amada Morta", tendo absorvido o melhor de seu passado para construir uma obra consistente, projetando-se ao futuro como grande expoente do cinema brasileiro contemporâneo.
Tive meu primeiro contato com o filme ainda em sua fase de pré-produção, com o roteiro do então chamado "O homem que matou a minha amada morta", que já despontava como um projeto ambicioso, apostando em uma premissa intimista sob os signos do thriller psicológico. O que vemos na tela, por sua vez, é imensamente mais grandioso do que as palavras elencadas em sequências poderiam revelar. Em "Para Minha Amada Morta", Aly se consolida como um grande tradutor de conceitos em imagens.
Um filme de gênero, antes de tudo, possui certos "códigos" estéticos bem demarcados, mas são poucos aqueles que conseguem transcender esses clichês e transformá-los em uma nova linguagem, sendo capazes de imprimir seu próprio estilo independente do tema a ser tratado. No longa, Aly prova que é capaz de fazer tudo isso de maneira orgânica, estampando todo o seu background: planos fixos em enquadramentos angulares em profundidade com diversas camadas de informação, planos-sequência que acompanham seus personagens pelo espaço fílmico, a retomada de personagens do passado - o protagonista assiste na TV ao filme "Circular" em determinado momento do filme; Jefferson Walkiu, protagonista de "A Gente" é um dos coadjuvantes aqui -, cenários periféricos, além do universo policial aonde o próprio diretor já trabalhou antes de se aventurar pelo cinema, que permeou toda sua Trilogia do Cárcere.
O filme conta a história do luto de Fernando (interpretado por Fernando Alves Pinto), que tenta manter a memória de sua ex-mulher através do contato com seus pertences pessoais. Em uma dessas investidas pelo passado de sua esposa, ele descobre que ela tinha um amante. Fernando então resolve investigar por conta própria o homem que manchou a memória de uma mulher até então ideal.
Em nenhum momento sabemos mais ou menos do que o protagonista, toda a ação que ocorre na tela é motivada por algo que nos é mostrado. A tensão que caracteriza o thriller no filme é justamente por conta da tentativa da transposição do drama do personagem na nossa condição de espectador. E Aly lida muito bem com isso, ao criar diversos momentos de tensão e posteriormente quebrar as nossas expectativas diante delas, se mostrando consciente de suas escolhas em um filme dirigido com pulso firme, mas sem nos ditar qual caminho seguir.
O filme possui dois atos claros - o início, com enquadramentos fixos, tons frios e predominância absoluta do silêncio que joga toda a atenção da narrativa para as imagens / o desenvolvimento~conclusão, com câmera na mão em planos-sequências que acompanham o protagonista em sua busca, tons mais quentes/fotografia mais escura, som em off que cria um grandioso extra-campo. O turning point de um ato para o outro é explorado à exaustão, revelando uma paranoia delirante do protagonista, que se tortura diante das imagens da infidelidade da "amada morta", e cria a expectativa para uma infinidade de desfechos. Temos acesso a todo o universo de imagens construído ao longo da narrativa, mas como almejar algo a partir do ponto de vista de um personagem que se revela cada vez mais psicótico?
Aliás, falar do protagonista sem comentar a atuação de Fernando Alves Pinto seria no mínimo uma covardia. Fernando, que já colecionava em sua trajetória atuações marcantes em filmes como "Terra Estrangeira" e "2 Coelhos", parece chegar ao auge de sua maturidade como artista por aqui. O personagem introspectivo, observador, impulsivo e de poucas palavras dita a maior parte de suas ações apenas com o gesto, com a expressão. Muitas vezes, somado aos trabalhos de câmera, a mise-en-scène se torna uma grande dança, com idas e vindas diante do enquadramento que busca ditar o ritmo dessa coreografia visual, permitindo ao ator ser conduzido em um eterno jogo de trocas entre a ação e sua representação. O resultado é magistral. Seus olhos fatigados e suas ações contidas, sempre no limiar de uma violência extrema, caracterizam grande parte dos momentos de tensão do filme.
Jean-Luc Godard afirmou que "Tudo o que você precisa para fazer um filme é uma mulher e uma arma". Apesar das infinitas possibilidades de interpretação da frase, é notável que nem todos os que tentaram produzir algo a partir dessa premissa conseguiram grande êxito, mas é diante dela que "Para Minha Amada Morta" encontra sua principal força.
A arma, objeto pessoal de Fernando, perito policial, logo de início já nos tira da zona de conforto - após o nocaute interno sofrido pelo protagonista, remetendo aos melhores momentos de "Caché", de Michael Haneke, o então pai zeloso revela o seu grande ponto fraco. A nossa inquietação diante da possibilidade de qualquer acontecimento inesperado diante das imagens de uma criança brincando com uma arma de verdade esquecida pelo pai em um local de fácil acesso é somente uma das diversas expectativas geradas e subvertidas ao longo do filme, dessas que nos fazem segurar de maneira mais firme os braços da poltrona e nos encolher um pouco diante da tela grande em nossas aflições enquanto voyeurs de um mundo em colapso.
A mulher, revelada aqui somente pelas imagens pixelizadas e de cores opacas de uma fita VHS, permanece mais como memória do que como realidade. Não são as suas ações que estão em xeque, mas sim a forma como essas ações e lembranças mexem com a cabeça do protagonista, desenvolvendo a ação dramática do filme.
Para se aproximar de Salvador - o outro, o amante, o antagonista -, Fernando tem de se lançar à experiência do outro: viver a vida suburbana, se aproximar de um conceito de comunidade e religiosidade que até então não lhe fazia sentido, buscar compreender o próximo de igual para igual, desarmado da autoridade policial de outrora. E é nesse sentido que Fernando acaba sendo seu próprio antagonista - o que está em jogo aqui não é a vingança, não é o maniqueísmo que determina o local de cada personagem diante da história narrada, mas o quanto o personagem representado por Alves Pinto é capaz de superar uma imagem de algo que é mas não aparentava ser, de se libertar de suas próprias angústias.
Em meio a esse limiar microcósmico que separa os dois homens que outrora dividiram a mesma mulher, há a mulher de Salvador, Raquel, que gera um outro lado de tensão sexual na história, além da prole do casal.
É bonito como mesmo de forma coadjuvante a personagem da filha mais velha do casal interage com Fernando - ela busca romper com as tradições impostas pelo patriarcal e austero senso de comunidade de seu pai, e mira no protagonista um aliado na busca por sua própria identidade, seja nas breves conversas, seja nos segredos compartilhados (cigarros, namorado), e tudo isso é sintetizado em uma cena belíssima que poderia por vezes passar despercebida por conta de sua sutileza: vemos o protagonista levando a filha do amante para um encontro derradeiro com seu namorado. Dentro do carro, ela troca de roupa como se trocasse de personalidade, da casa para o mundo, de oprimida para dona da situação, de menina para mulher. Aquele é o seu momento, de ser quem ela era no seu íntimo, longe das amarras autoritárias da sociedade ao seu redor.
Mais do que criar tensões, a presença dessas mulheres nos limiares das relações humanas e da presença da arma acabam por nos revelar - e também ao próprio protagonista - aonde é que essa história vai chegar, tendo o seu ápice em uma das cenas mais antológicas do cinema brasileiro, um plano-sequência com quase 20 minutos de duração, aonde todas as tensões criadas até então confluem: o confronto com o outro, a presença do desconhecido, o cruzamento das fronteiras do próximo, o senso de coletividade em contraponto ao indivíduo, as relações familiares sendo colocadas à prova, a vingança em contraposição à superação, tudo isso passando por vários cenários de uma mesma locação, numa dança coletiva entre atores e equipe técnica, numa virtuose que não se mostra fetichista, mas sim completamente alinhada à diegese construída até aqui.
E para finalizar, o deslocamento espaço-temporal nos permite vislumbrar algo atemporal: será o anseio de um passado idílico, que como nos revela a literatura de Dostoievski, sintetiza a nostalgia por algo que não necessariamente existiu? Será a contemplação de uma superação do estado crítico de suspensão que permeou a vida do protagonista nas quase duas horas de filme? As interpretações possíveis são diversas, e novamente nenhuma delas é determinista, apesar do rigor técnico-estético do diretor em relação ao seu longa.
Em uma época onde os grandes clássicos-imediatos do cinema brasileiro são justamente os que mais flertam com o real, ter uma ficção em um filme assumidamente de gênero (ainda que ele seja magistralmente subvertido) e que consegue causar o impacto que Aly causa em seu "Para Minha Amada Morta" é admirável, ainda mais por notar nos créditos vários nomes conhecidos, de pessoas que tem feito acontecer, e feito de forma boa, irreparável. Ainda é cedo para afirmar, afinal o lançamento oficial está previsto somente para março do ano que vem, mas esse certamente é um filme que veio para ficar de alguma forma. Que sua importância e talento sejam reverenciados da forma que o filme merece é o mínimo que eu posso desejar. Por ora, só me cabe meu sentimento mais sincero, o de gratidão.
Muito obrigado, Aly.
O Touro
3.8 4Podemos afirmar que o Cinema Brasileiro nunca passou por um momento de maior produtividade, se não em qualidade, certamente em números concretos. A chamada "revolução digital" aproximou do audiovisual muitos outros artistas que anteriormente viam no vídeo apenas uma possibilidade, que nos dias atuais emerge como realidade predominante. Se o digital é uma realidade técnica que veio para ficar, podemos notar fenômenos como a hibridização como uma das grandes características temáticas desse novo cinema realizado em terras tupiniquins: nunca se filmou tantas ficções com cara de documentário e vice-versa.
Em seu texto "A Era do Híbrido", Carlos Alberto Mattos teoriza sobre essa "nova cara do cinema brasileiro", mas sem deixar de olhar para trás. Se hoje filmes como "Avenida Brasília Formosa" e "Branco Sai, Preto Fica" se fazem notar ao misturar o real a um mundo fantasioso – e muitas vezes fantástico –, olhar para trás é enxergar "Iracema – Uma Transa Amazônica" como um grande referencial desse "cinema de hibridismos", que parece cada dia mais deixar de ser mera manifestação pontual e se consolidar de fato como tendência contemporânea.
Nesse vasto cenário nacional, é necessário observar a produção paranaense como grande celeiro de pérolas contemporâneas. A massiva exibição de filmes aclamados em festivais pelo mundo afora provam que, mesmo apesar da grave crise econômica que afeta o estado como um todo – sendo a cultura a primeira a ser escanteada nas gestões recentes –, os realizadores da terra das araucárias resistem bravamente. Grande parte desses cineastas radicados no Paraná são originários de outros estados, e alguns deles são chaves fundamentais dessa revolução da linguagem que se mostra expressiva não somente no Sul do país, mas também em outros cenários "fora do eixo", como em Minas Gerais e estados do Nordeste.
Nomes como os de Aly Muritiba e de Rodrigo Grota recentemente ganharam destaque mundial em diversos festivais de Cinema, e aos poucos uma expressiva gama de novos realizadores emergem produzindo seus primeiros longas-metragem, que gradativamente vão conquistando seu lugar ao Sol.
Um desses casos é o de Larissa Figueiredo, brasiliense de nascimento, mas que em Curitiba se tornou uma das responsáveis pelas produções da Tu i Tam filmes, aonde após realizar obras em curta-metragem, revisita o universo de seu curta "O Rei" (2014) e em 2015 lança seu primeiro longa: "O Touro".
Os dispositivos ficcionais-documentais apresentados no filme, de prontidão já nos remetem ao supracitado "Iracema", dirigido por Jorge Bodanzky e Orlando Senna. Se no clássico filme que estrelava Paulo César Pereio como "Tião Brasil Grande" o que vemos é um olhar passageiro, que nos leva diante das fronteiras longínquas de um road movie, o longa assinado por Larissa nos insere em um vilarejo aonde o espaço-tempo parece viver um eterno estado de suspensão.
O filme se passa na ilha de Lençóis, no litoral maranhense, aonde a lenda afirma que o rei português Dom Sebastião havia se encantado, deixando o caráter humano para viver eternamente em condição mítica, ao contrário da versão oficial sobre a derrota na batalha de Alcácer Quibir, em Marrocos. Se para nós, espectadores, a lenda do Rei que hoje transita a ilha em noites de Lua Cheia na forma de um Touro com uma estrela na testa é a premissa principal do filme de Larissa, devemos ter em mente que para qualquer habitante da remota ilha esse caráter lendário é completamente arraigado na cultura, expressão popular e crença religiosa local, transformando tal premissa em inquestionável realidade.
O dispositivo central do filme consiste em enviar Joana de Verona – atriz lusitana – à ilha, aonde ela buscará descobrir algo sobre o conterrâneo Dom Sebastião, não mais como personagem histórico, mas como o homem que se fez mito, o encantado que se fez Touro, o Rei que desafiou a geografia e na pequena ilha no Maranhão abandonou a vida e das batalhas e adentrou na eternidade. Suas heranças imperiais já não permeiam a memória de seu povo, aqui a realidade do Rei-Touro se mistura ao folclore popular e ao rito religioso, e através do Bumba-meu-boi e de Orixás do Candomblé se inserem na natureza que, nesse local, se apresentam como o limiar do universo para os habitantes ali inseridos.
Em cada encontro com os locais, Joana aprende que o Touro ali está e ali permanecerá, assim como outros elementos que fazem parte dessa realidade. Em uma sequência memorável (em minha opinião a melhor do filme), a atriz se une às locais para retirar água de um poço, onde aprende sobre as Mães D'água, entidades que utilizam da mesma água no período noturno. Acreditar no imaginário popular local é talvez a única forma sincera de compreender as diversas nuances apresentadas sobre essa sociedade em específico. Assim como diversos exemplos clássicos da cinematografia mundial, "O Touro" é filme que só se justifica através da fé.
O tempo, representado aqui como uma "eternidade que gagueja", se revela muito mais estagnado do que cíclico, ao contrário de muitos filmes da já explicitada cinematografia híbrida contemporânea brasileira, tendo como "Serras da Desordem" de Andrea Tonacci um de seus maiores representantes no que se refere a tal especificidade. Se a realidade do índio Carapiru parece um eterno fractal de oposições entre o presente e o passado, em "O Touro" Joana revela em uma frase sintomática um dos sentimentos mais íntimos do filme, em um diálogo com um jovem local, afirmando que na ilha – ao contrário deles – todos parecem ser velhos ou crianças. Esse caráter de "vidas no início" e de "vidas no fim" suspende totalmente a passagem do tempo como algo circular e de renovação, a ele só compete a natureza ao redor, e não seus moradores.
A natureza é, por sua vez, de uma grandiosidade monumental. Se as imagens captadas pela câmera que incessantemente flana pelo cenário natural são incapazes de dar uma dimensão de sua grandiosidade mesmo em uma imagem de padrão cinemascope, é através do som que somos esmagados diante de nossa insignificância em relação ao mundo. A ambientação sonora é, provavelmente, o maior destaque do longa-metragem apresentado, é nele que a natureza nos envolve tanto para dentro quanto para fora do filme, é nesse uníssono estrondoso que nos fazemos tão presentes no mundo quanto o Touro ali encantado. Se o tempo ali não é cíclico, ao menos a natureza onipresente nos dá a dimensão de quem está no controle – e definitivamente não somos nós, humanos. É somente nesse cenário que compreendemos a dimensão do que é ter abandonado o caráter mortal e tornar-se mito, o que nos encaminha para o clímax do filme.
No turning point decisivo aonde a realidade documental será totalmente abandonada, Joana visita os escombros de uma escola, já reconquistada pela natureza, com as areias dos lençóis maranhenses literalmente invadindo seu espaço, dando vestígios sobre uma realidade que ali não mais se faz presente, enquanto crianças brincam e curiosas observam o ato de explorar, o ato documental de se fazer filme. Esse limiar entre universo mítico e espaço geográfico é cruzado quando a personagem enfim resolve encarar o Touro, acertar-lhe a estrela na testa com sua espada dourada. As cenas do "abandono da realidade" aqui parecem dialogar com obras como "Ex-Isto", de Cao Guimarães, realizador até então renomado como documentarista, que na obra citada encena a chegada de Descartes nos trópicos, em livre adaptação do livro "Catatau", de Paulo Leminski.
Joana rema, Joana se transforma enquanto pessoa para poder se situar no mesmo plano mítico/místico em que o Touro-fantasma errante de Dom Sebastião a aguarda. Sua mudança se revela em caráter estritamente interno, já que o denso universo construído no filme é incapaz de se modificar através da ação do homem. É necessário fazer-se mito, fazer-se encantamento, é necessário olhar para dentro para compreender o que há fora como parte imutável de uma natureza onipotente.
É, como mencionado anteriormente, necessário que haja fé. E ao se permitir ter fé (mesmo em casos similares aos meus – ateu que só concebe um conceito de divindade através da verdadeira arte), nos deparamos com uma grata surpresa e certamente um dos grandes destaques não só da 39ª Mostra de Internacional Cinema de São Paulo, mas da cinematografia nacional contemporânea.
Terra Natal - Iraque Ano Zero
4.4 3Originalmente publicado em produtor.org
O longa (longuíssima!), com mais de 5 horas e meia de duração documenta dois importantes momentos históricos do Iraque: a tensão pré-guerra, que acabou com a queda do ditador Saddam Hussein; e os resultados imediatos da ocupação norte-americana no país.
Fahdel, protegido por sua câmera, busca interferir o mínimo possível na história que sua lente registra, mas o fato de ele documentar diretamente a sua família, faz com que ele sempre seja trazido de volta para dentro da narrativa. Por mais contraditório que tal afirmação possa soar, suas filmagens encontram um limiar entre a obra de Frederick Wiseman, que através de sua câmera observa o mundo, junto das reflexões cotidianas e certeiras da câmera-olho de David Perlov em seus diários. As próprias palavras de Perlov podem descrever muito do trabalho de Fahdel: “Quando você filma um diário, o filme substitui a vida. (…) Você pode recriar a vida ou fragmentá-la.”
É através dessa fragmentação que Abbas Fahdel constrói um discurso harmônico onde há somente a tensão. A retratação de um lado humano em tempos de conflito faz com que o espectador se submerja em meio a história, onde qualquer momento de tensão é vivido à flor da pele, como se fossemos tão presentes na narrativa como a própria família do realizador. É um choque de realidade tentar compreender a visão de um país que vive à sua maneira uma espécie de “Guerra Fria”, sob o espectro da paranoia constante, onde famílias tentam transformar suas casas em fortalezas e toda a noção de existência se dá através da expectativa do ataque iminente. Ao adotar seu sobrinho Haidar, de apenas 11 anos como protagonista, Fahdel estabelece um ponto de vista que está sempre no limiar entre o abandono da inocência e a consciência de uma realidade dolorosa – se por um lado o vemos trabalhando horas a fio em um poço cavado em seu próprio quintal, também notamos que ele encara a guerra como possibilidade de não ter de frequentar aulas das quais ele não gosta. Com o passar das horas, notamos que Haidar talvez seja a pessoa mais madura de toda aquela família, justamente por emergir de uma geração que questiona as tradições e busca alternativas para esse mundo em crise que o permeia.
Já diria o velho ditado, por vezes o real é ainda mais estranho que a ficção. As propagandas televisivas pró-regime de Saddam são fantásticas, surreais, e mostram como um plano nacional de doutrinação pode perpetuar – e o pior, convencer a muita gente – a manutenção de um sistema que não beneficia ninguém, exceto a cúpula dos “amigos do rei”.
Em momento algum o longa se preocupa em dar conta do conflito, o corte que separa as suas duas partes ignora os bombardeios e ocupação norte-americana em si. O foco são as pessoas, e a forma como esses momentos as afetam direta ou indiretamente, e não a política nacional como um todo. Um segundo momento nos revelará que essa expectativa em prol de uma mudança positiva por conta da queda de Hussein se mostrará infundada, ao menos enquanto a barbárie de um for substituída pela barbárie de outros. Os escombros de Bagdá dividem, em clima de guerra civil, os soldados norte-americanos que muitas vezes atiram antes de perguntar, de saqueadores e gangues violentas que encontram na violência uma das únicas formas de sobrevivência, por conta da crise com o sistema de distribuição de cestas básicas que não necessariamente atendem a todos os necessitados, mesmo que por motivos completamente absurdos (por exemplo, habitantes de algumas cidades em específico não tem tal direito pois outrora não apoiaram o governo de Saddam, herança que se perpetua mesmo após a queda do antigo chefe de Estado).
Ao mostrar o cidadão médio, Abbas Fahdel acaba por revelar diversos contrastes entre os defensores de Saddam e aqueles que o condenam, revelando que alguns de seus familiares foram perseguidos e assassinados sem motivo aparente (um deles tinha apenas 13 anos quando foi abordado na escola e executado por forças oficiais). De qualquer forma, a suposta democracia americana jamais se revela como uma alternativa possível, e os locais compreendem que antes de tudo, a ocupação é uma decisão econômica: “A vida no Iraque era melhor antes do petróleo”, um deles afirma, em meio aos escombros do que um dia a cidade já foi. Estações de rádio, agências, ministérios, a memória cinematográfica de um país, todas amontoadas em meio à poeira, concreto e ferro retorcido, que servem de palco para brincadeiras infantis com cápsulas de projéteis e morteiros facilmente encontrados pelo chão.
O sentimento final é o de desolação, de desesperança, de saber que aquela população toda está fadada a conviver durante muito tempo com a presença de uma força hostil que os rege, qualquer seja sua origem, já que não há necessariamente um alinhamento ideológico em prol do benefício coletivo, pois os interesses individuais e econômicos prevalecem às necessidades básicas da população. Um dos planos finais do filme, chocante pela forma que se revela, me deixou anestesiado na cadeira, imóvel, sem palavras, e demorei a voltar ao mundo externo após o final da sessão. Quando finalmente retomei a consciência, a sala, já esvaziada, abrigava poucos incrédulos que como eu, acabaram de presenciar uma experiência que transcende o próprio cinema, que diz respeito à própria vida, que é arte por si só.
Mudando o Destino
3.5 171Postado originalmente em kinotype.blogspot.com
Spoiler alert.
Há pouco menos de um ano ouvi falar sobre este filme, que havia estreado no Festival de Sundance e provocado algumas reações positivas em muita gente. Desde então minha curiosidade em relação ao filme Islandês só ganhou força, até que finalmente tive a oportunidade de assisti-lo, e perceber que nem toda longa espera é recompensada da forma como a gente gostaria.
Desde que me conheço por gente, acredito que a minha relação com o universo do Heavy Metal sempre foi muito mais próxima e intensa do que com o mundo do Cinema. Se o Metal me acompanha até hoje como o "meu primeiro amor" - inconsequente, apaixonado e eternamente jovem, foi através do cinema que aprendi que uma paixão posterior pode ser tão mais produtiva e importante não só como um meio de observar através de uma tela na parede um espelho do mundo, mas uma expansão direta da própria vida, onde a existência só é possível e digna através da arte, e vice-versa.
Quando assisti pela primeira vez ao trailer de "Metalhead", acreditei que estava diante de uma obra dessas, onde a vida e a arte se complementavam de forma natural, e o universo do Heavy Metal era somente um catalisador para diversas emoções presentes na juventude de Hera, a protagonista da obra: rebeldia, isolamento, auto-conhecimento, um quê de niilismo e por aí vai.
Os primeiros planos do filme escrito e dirigido por Ragnar Bragason revelam bastidores de uma vida rural em um vilarejo nas proximidades de Reykjavik, onde os jovens aproveitam seu tempo brincando entre si, mas que também logo acabam por entrar para o sistema familiar de trabalho no campo - uma vida emancipada na cidade parece sempre tentadora e ao mesmo tempo muito distante.
É esse o universo de Hera, que aos doze anos presencia a morte do irmão mais velho, Baldur, em um acidente com o trator durante a colheita.
A morte de Baldur é o grande destarte do filme, e sua ausência na família é de fato o que causa todas as mudanças de comportamento em Hera e seus pais.
O sentimento de culpa pela perda de Baldur só não é mais presente em Hera do que em Karl, pai dos dois, que vê seu casamento se deteriorando ao longo dos anos graças ao fim do diálogo com sua esposa e do sentimento de vazio e nostalgia presentes em seu universo.
Hera tenta se aproximar do universo do irmão logo após a sua morte, e encanta-se pelo mundo do Metal. Na antiga guitarra do irmão começa a ensaiar seus primeiros riffs, que ao longo de sua vida ajudariam a jovem a descarregar parte de seu sentimento negativo através da música.
Os anos se passam, e Hera encontra-se no limiar do fim de sua adolescência e início da nova vida adulta. Em meio a diversas incertezas de sua vida, uma certeza é latente: ela não quer continuar a viver no campo em sintonia com a comunidade e igreja ao seu redor. Em meio à sua rebeldia ela não consegue se fixar no emprego em um frigorífico local e nem tampouco quer dar continuidade aos negócios da família, que consiste basicamente na criação de vacas leiteiras e produção de leite.
Essa realidade retratada no cinema é uma temática recorrente em jovens que procuram transcender os limites físicos e espirituais de uma tradição que se revela de forma sempre tão austera e determinista. No Cinema Nacional temos um belíssimo exemplo: o primeiro longa-metragem dirigido por Esmir Filho (que dentre outros trabalhos, ficou mais conhecido através do seu curta viral "Tapa na Pantera"), que retrata a vida de um jovem no interior do Rio Grande do Sul diante das incertezas do futuro e vontade de "cruzar a ponte" que separa a sua cidade de um mundo completamente novo, em "Os famosos e os duendes da morte", lançado originalmente em 2009.
Ao contrário de Esmir, Ragnar parece errar feio a mão em seu filme em alguns aspectos, em especial ao fazer uma visão tão estereotipada e rasa do arquétipo do "rockeiro rebelde" de sua protagonista, que enxerga no túmulo do seu irmão o único "possível mentor" até a chegada de um novo padre no vilarejo.
O padre administra a pequena comunidade cristã da região, e posteriormente revela à Hera ser também um "metalhead". O envolvimento que ela sente por ele após tal simples revelação é instantânea, o que dá a impressão de que a evolução emocional da garota jamais passou de um estágio inicial. Mesmo ele não sendo um padre católico, o que lhe permitiria ter uma relação com alguém, ele se mostra sempre relutante ao envolvimento com a protagonista, o que acaba por torná-la ainda mais rebelde.
Após descobrir o Black Metal em uma reportagem televisiva, Hera se entrega a um lado ainda mais extremo não só musicalmente, mas existencialmente: grava enfim suas músicas em uma fita demo que envia para a Noruega, tenta liberar as vacas de seu pai e acaba por incendiar a igreja local após mais uma negativa por parte do padre.
Ela então se vê obrigada a fugir e se refugiar em uma pequena cabana durante o intenso inverno islandês, o que acaba por ser a fagulha inicial da reaproximação de seus pais, que somente após cerca de dez anos da perda de seu primogênito resolvem enfrentar o luto juntos e superar a dor da perda.
Sem ter para onde fugir, ela acaba voltando e enfim entregando-se aos cuidados de Knutur, seu amigo de escola que nutre por ela uma paixão desde a infância e já havia tentado se aproximar emocionalmente dela anteriormente, que fisicamente já havia se entregado, porém reagiu com toda a estereotipada "rebeldia metálica" na primeira tentativa de um estreitamento de laços entre eles.
Assim sendo, ela começa a viver uma vida "normal" de acordo com os padrões sociais, desculpa-se diante de sua comunidade e até mesmo ajuda a reconstruir a igreja local.
Em uma cena que parece mais com uma piada de péssimo gosto a todos aqueles que cresceram ouvindo e lendo as folclóricas histórias das bandas norueguesas de Black Metal, três garotos de Oslo vão à Islândia para conhecer Hera pessoalmente, após se impressionarem com a música de sua demo. O nome dos jovens remete ao nome dos falecidos e icônicos pioneiros do estilo: Øystein (nome real do guitarrista do Mayhem, imortalizado sob a alcunha de Euronymous), Yngve (nome real de Dead, o mais icônico dos vocalistas do Mayhem) e Pål Ole.
Os jovens passam um período na Islândia com a garota, e entre diversas cenas completamente surreais, existe uma que mostra o "neo-Mayhem" ajudando a reconstruir a igreja local junto da comunidade no vilarejo. Revelando-se como "arautos do terceiro ato do filme", eles acabam por fazer com que a garota "retome" a sua vida metálica, rompendo os laços com Knutur e fazendo o que realmente gosta: tocar Metal Extremo.
Diante disso, Hera e os noruegueses preparam um show para apresentar sua "verdadeira identidade" à comunidade, e acaba enfim sendo aceita por seus pais da forma que é, em um desfecho de proporções lamentáveis onde toda a família entra em uno ao "agitar" ao som de Symphony of Destruction, clássico do Megadeth.
A redenção de seus personagens é filmada de forma óbvia diante da narrativa construída ao longo do filme, o que acaba por empobrecer ainda mais a trama, que se revela amena mesmo nos momentos de uma falsa "extrema" catarse.
A sensação após quase uma hora e quarenta de filme é a de desapontamento, um pouco de vergonha e o questionamento do que poderia ser e infelizmente não foi.
Esteticamente o filme é bastante belo, com planos iluminados e focados de forma precisa, com uma paleta de cor em tons frios e alguns planos gerais que dão conta da dimensão vazia do ambiente contrastando com close-ups dos personagens que guardam dentro de si um vazio ainda maior do que a do terreno ao seu redor. A fotografia acaba justamente por afastar um pouco essa ideia de estética metálica onde tudo é mais cru e direto. A trilha sonora é bastante discreta, com pouca utilização de música não-diegética e de pouca abrangência em relação aos estilos que parecem acompanhar a personagem principal ao longo de sua vida. A impressão que permanece é de que ela sempre escuta algo muito mais suave do que o momento que o diretor pretende retratar em sua vida.
Há poucos anos assisti a um filme que foi um dos destaques da imprensa paranaense sobre um longa também islandês que passou em duas sessões durante a primeira edição do Festival "Olhar de Cinema": Volcano, dirigido por Rúnar Rúnarsson, lançado originalmente em 2011.
Volcano carrega consigo muitas semelhanças com "Metalhead": o vazio existencial, o isolamento, o sentimento frio que se mostra no ambiente e reflete no âmago de seus personagens e uma linha narrativa básica, óbvia, que pouco tem a dizer sobre um mundo interno, mas apenas reproduz de forma eficiente porém desinteressante o universo de seus personagens, que "morrem" junto dos créditos finais sem deixar grandes questionamentos ou reflexões dignas de nota.
Em suma, não é um filme para quem gosta de Metal, justamente por fazer uma visão superficial (beirando o ridículo em certos momentos) do estilo e de seus "seguidores", e nem também um filme que exigirá algo do espectador além de um pouco de tempo e paciência.
No fim das contas, "Metalhead" não foi para mim nada além de uma grande decepção, e aposto que ainda continuará a decepcionar muitos daqueles que como eu depositaram no filme alguma expectativa.
Uma pena, que ao menos serve para demonstrar que filmes ruins às vezes são igualmente importantes: devemos sempre nos lembrar de porque erros não devem ser cometidos mais de uma vez, quem dirá sistematicamente.
(E pra quem quiser, traduzi o filme do sueco tanto pra inglês quanto pra português, e deixei tudo no The Pirate Bay no seguinte torrent: http://thepiratebay.se/torrent/10505858/Malmhaus_aka_Metalhead)
Bárbara
3.5 88 Assista AgoraDesde os primórdios do cinema, a cinematografia alemã sempre foi uma das principais expoentes da sétima arte mundial. Movimentos como o Expressionismo Alemão e posteriormente o Novo Cinema Alemão consagraram diversos diretores como Fritz Lang, Murnau, Fassbinder, Herzog, dentre tantos outros.
Recentemente, o assim chamado "Novíssimo Cinema Alemão" volta a apresentar ao mundo filmes que se destacam não só por sua qualidade técnica, mas também pelo seu engajamento sócio-político. Títulos como "Edukators" (2004) e "A Experiência" (2001) trazem consigo essa herança política contestadora do Novo Cinema Alemão, sem perder seu espírito contemporâneo.
Um dos segmentos mais explorados no novíssimo cinema alemão é o "outro lado do Muro de Berlim", que expõe problemas sociais e econômicos da extinta República Democrática Alemã, assim representados em filmes como "Adeus, Lênin!" (2003) e "Aprendendo a Mentir" (2003).
"Barbara" (2012), dirigido por Christian Petzold é um filme que aposta numa visão contemporânea sobre problemas sociais da antiga Alemanha Socialista.
Barbara é uma médica que enfrenta problemas com a Stasi, polícia secreta da RDA. Sua história não é claramente revelada em momento algum na trama, o que evidencia um cinema de sugestões, onde as intenções são muito mais importantes do que a ação, refletindo uma beleza singela e autêntica.
Recém chegada em uma cidade do interior para exercer sua função, Barbara conhece André, médico promissor que teve de se contentar com um serviço menor após problemas trabalhistas em seu passado.
Em uma cidade nova, pressionada por seus problemas com a lei, Barbara encontra em seus pacientes e em André sua única cumplicidade, que se desenvolve de forma lenta porém verdadeira.
Ao conhecer Stella, uma jovem grávida e vítima da meningite virótica que tentava fugir de um campo de trabalho, Barbara revela seu lado humanista, onde tenta de alguma forma ajudar a jovem a não se submeter ao regime em que ela não gostaria de ser mantida. Assim, ela começa a conhecer mais a fundo acerca da personalidade de André, em um mundo onde as diferenças e as indagações sobre seu futuro se confundem, e uma admiração mútua surge em meio a um sentimento de desesperança de um futuro promissor para ambos.
Em sua vida dupla, a protagonista busca meios para abandonar o país sem ser notada, sonhando com um mundo novo e livre na Dinamarca.
Ao se encontrar no dilema entre salvar a si própria ou Stella da condição em que está submetida, Barbara tem de escolher entre fugir ou enviar a jovem garota em seu lugar, e seu sacrifício diante da esperança no futuro da juventude revela de forma magistral a condição humana e as diferentes relações que se estabeleciam na antiga República Democrática Alemã - a dificuldade como verdadeira forma de unir as pessoas. Apesar disso, o fio da esperança jamais é abandonado para Barbara, que então finalmente saberá de fato se poderá contar com André. A antiga RDA é apresentada então como um país que os hostiliza, mas ao mesmo tempo mantém de alguma forma uma chance para que ambos se redimam - não somente como médicos, mas como seres humanos.
Todo o filme é permeado por um devastador silêncio, que expõe à tela muito do mundo interno de seus personagens, e reflete de alguma forma as dificuldades, os dilemas e a busca pela esperança em condições adversas. O olhar do autor diante de sua própria obra é um olhar que sugere em seus questionamentos mas nunca nos impõe suas reais intenções, e suas diferentes nuances tornam o filme verdadeiramente humano. Tirando a própria vida, o que poderia ser mais poeticamente honesto?
Um filme composto por diferentes sensações, que é no fim um belo presente do cinema contemporâneo para nós amantes da sétima arte.
Estrada para Ythaca
3.0 19“Estrada Para Ythaca” (2010) é um dos filmes brasileiros contemporâneos mais comentados em festivais, polos do audiovisual e faculdades de cinema ao redor do país. O filme realizado pelo Coletivo Alumbramento (Ceará) foi o expoente máximo da bandeira levantada pelo cinema pós-industrial, que prevê a utilização de equipes reduzidas, flexíveis (apenas quatro cineastas fizeram todas as funções do filme, inclusive a atuação), que produzem a baixíssimo custo sem depender de editais de incentivo à cultura, patrocínios, leis de fomento e outras burocracias enfrentadas pelo cinema comercial, porém limitando sua circulação ao circuito de festivais, mostras, cineclubes e outros meios alternativos de exibição e distribuição.
Mais do que defender uma forma de se fazer cinema, Estrada para Ythaca surge de uma necessidade imediata de seus realizadores em transformar questões de seu cotidiano em uma obra de arte. O espírito que une muitos jovens na hora de se reunir para a conclusão de um curta-metragem é o mesmo que uniu todos os envolvidos nesse filme, que resolveram ampliar suas ambições de forma autêntica e produzir um longa-metragem. Esse fato só pode ser pensado graças à popularização das tecnologias digitais, de uma cinefilia motivada pelo fácil acesso a uma enorme quantidade de filmes de diferentes cineastas ao redor do mundo disponíveis na internet e, consequentemente a formação de um público pensante em relação ao cinema, que posteriormente iria colocar na prática todas as suas questões, de acordo com o espírito de seu próprio tempo e necessidades de expressão criadas a partir de tal ato reflexivo, que nos é apresentado em Ythaca, um filme de amigos que ganhou notoriedade principalmente após ser o destaque principal da edição de 2010 do Festival de Cinema de Tiradentes, onde se consagrou como o grande campeão da 13ª edição da mostra.
O que mais me intriga em relação ao filme é que sempre que a discussão sobre Ythaca é colocada em questão, quase nada se comenta sobre o filme em si, seu resultado, mas somente sobre seu método de produção, da bandeira que ele levanta – embora particularmente creia que ele não levante bandeira alguma, somente ilustra uma determinada realidade, e graças ao seu método de produção os defensores do ideal do chamado novíssimo cinema, cinema pós-industrial ou até mesmo cinema de garagem se espelham no sucesso de crítica e receptividade do filme para, desta vez sim, levantar uma bandeira –, da forma com que os Irmãos Pretti (Ricardo e Luiz) e Primos Parente (Guto e Pedro Diógenes) realizaram o filme. Será mesmo que o grande mérito do filme é o fato de ter sido feito com um orçamento de aproximadamente dois mil reais, com a utilização de equipamentos baratos e alternativas criativas na hora da realização, como por exemplo, o longo plano noturno iluminado somente pela lanterna do carro? Penso eu que este seja um critério muito reducionista não só para Ythaca, mas para qualquer outro filme realizado nos mesmos moldes e que, antes de tudo, possuem uma estrutura cinematográfica bastante clara.
O filme em si retrata um pouco do imaginário de seus próprios autores, tendo o mote de amizade e da jornada como seu principal foco, fator que nos remete a filmes já consagrados anteriormente como é o caso de “Stand by Me” (Conta Comigo, de Rob Reiner, 1986), que também revela a jornada de quatro jovens – ainda que bem mais novos – motivada pela presença de um suposto morto, onde a questão do ponto de partida e do ponto de chegada definitivamente não é o mais importante, e sim as relações humanas e o desenvolvimento da jornada, fator presente nos dois filmes citados, que flertam com a nostalgia e possuem a premissa básica do engrandecimento pessoal à partir do seu próprio trajeto. Tais características podem ser encontradas em filmes ainda mais passíveis de aprofundamento, como é o caso do emblemático “Stalker” (1979), de Andrei Tarkovsky, onde a busca de um mundo à parte através da jornada é a força inicial que move seus personagens centrais, possibilitando diferentes visões sobre um determinado tema, que o próprio autor nunca se ateve em explicar. Os três filmes citados se atém na transformação, na busca por algo que jamais abandonará seus personagens a partir de então, o grande momento da vida de cada um dos envolvidos, seja tratado através do luto, da nostalgia ou mesmo da busca pelo desconhecido. E, felizmente, em todos os casos, seus autores conseguiram explorar de forma bastante consistente o processo, que nos fará refletir sempre a seu respeito, ao invés de simplesmente amarrar uma história em uma curta duração que poderá até ser motivo de certa discussão, mas que jamais terá a profundidade de um filme que lida com questões que beiram por muitas vezes o metafísico, o imaginário cognitivo do espectador, além do final em aberto que possibilita ao seu público diferentes formas de interpretação, fazendo com que a obra se torne outra a cada nova visão.
Motivados pelo luto após a perda de um amigo, os personagens de Estrada para Ythaca partem em uma viagem rumo ao desconhecido, rumo ao autoconhecimento, rumo à afirmação de seus valores humanos e de suas relações, flertando com uma estética road movie (onde a presença do carro é um de seus fatores fundamentais) e recheado com citações cinematográficas que remetem ao espírito coletivo adotado pelos próprios realizadores, como é o caso da cena onde a encruzilhada com diferentes oportunidades de caminhos são apresentadas, como realizada no filme “Le Vent d’Est” (O Vento do Leste, do Grupo Dziga Vertov, onde os cineastas Jean-Luc Godard, Jean-Pierre Gorin e Gérard Martin são os responsáveis pela realização), na emblemática sequência encenada por Gláuber Rocha, defendendo uma posição política de resistência não só para o Cinema, mas como para a própria sociedade da época, onde prevalecia o discurso da dicotomia de primeiro e terceiro mundo – e consequentemente do cinema industrial contra o cinema independente, ou terceiro cinema. A escolha por um terceiro cinema em Ythaca é o derradeiro ponto de virada do filme, onde a questão do tempo é explorada de forma a evidenciar as próprias especificidades da linguagem cinematográfica, como defendida pelo supracitado Tarkovsky em seu livro “Esculpir o Tempo”. Além dessas citações, referências a músicas populares, cantigas do imaginário coletivo e outras canções famosas nos aproximam da obra ao mesmo tempo em que evidenciam a aproximação quase fraternal (ou mesmo fraternal, no caso dos Irmãos Pretti) de seus heróis. Desafio qualquer espectador a sair do cinema sem querer cantar de uma forma que os versos “É preciso estar atento e forte, não temos tempo de perder a morte” (da música “Divino Maravilhoso”, composta por Caetano Veloso e Gilberto Gil, imortalizada na voz de Gal Costa) cheguem a se tornar um mantra.
Retomando as questões dos métodos de produção pós-industriais, penso que Ythaca não deva ser somente um filme emblemático por conta de sua forma. Em um mundo cada vez mais digitalizado, com facilidades cada vez maiores na hora de se produzir cinema, onde a burocracia parece não acompanhar o espírito de nosso tempo, os moldes adotados pelo filme não são meramente um caminho a se seguir, mas sim uma forma de se refletir sobre a produção contemporânea e por que não adequar à realidade industrial e estatal de se fazer cinema que também contemple os novos métodos, que são colocadas à prova não só em Ythaca, mas também em outras produções do Coletivo Alumbramento, onde o conceito por trás de um filme é muito mais importante para a sua relevância do que seu orçamento ou método de produção. Em um tempo onde cursos superiores de cinema surgem aos montes ao redor do país, pensar em filmes que sirvam como um exemplo às futuras gerações realizadoras me parece muito além de qualquer bandeira, mas sim uma forma de se legitimar a própria arte, e que todos os futuros exemplos da nossa atual situação cinematográfica sejam autênticos, inteligentes e principalmente instigantes como Ythaca, um dos grandes presentes da nova safra do cinema brasileiro.