Eu considero o final do livro a sua melhor parte, a mais tocante, e no entanto, no filme, eles meio que ignoraram essa narração do Oskar e a substituíram com o momento onde a mãe age na mecânica da última página do diário reproduzindo a queda do Thomas ao contrário, demonstrando um desejo do Oskar de desfazer os acontecimentos. Segue o trecho para quem se interesse:
I ripped the pages out of the book. I reversed the order, so the last one was first, and the first was last. When I flipped through them, it looked like the man was floating up through the sky. And if I'd had more pictures, he would've flown through a window, back into the building, and the smoke would've poured into the hole that the plane was about to come out of. Dad would've left his messages backward, until the machine was empty, and the plane would've flown backward away from him, all the way to Boston. He would've taken the elevator to the street and pressed the button for the top floor. He would've walked backward to the subway, and the subway would've gone backward through the tunnel, back to our stop. Dad would've gone backward through the turnstile, then swiped his Metrocard backward, then walked home backward as he read the New York Times from right to left. He would've spit coffee into his mug, unbrushed his teeth, and put hair on his face with a razor. He would've gotten back into bed, the alarm would've rung backward, he would've dreamt backward. Then he would've gotten up again at the end of the night before the worst day. He would've walked backward to my room, whistling "I Am the Walrus" backward. He would've gotten into bed with me. We would've looked at the stars on my ceiling, which would've pulled back their light from our eyes. I'd have said "Nothing" backward. He'd have said "Yeah, buddy?" backward. I'd have said "Dad?" backward, which would have sounded the same as "Dad" forward. He would have told me the story of the Sixth Borough, from the voice in the can at the end to the beginning, from "I love you" to "Once upon a time..."
Sam Raimi revolucionou a indústria do terror? Sim. A Morte do Demônio é um dos maiores clássicos do gênero? Sim. É um dos mais influentes de todos os tempos? E como! Muito do que vimos após tem uma pitada de Evil Dead. Mas o longa sobreviveu ao tempo? Infelizmente não. O filme caminha muito bem até os eventos sobrenaturais dentro da cabana. A sequência de abertura é brilhantemente filmada, instaurando um clima de suspense muito engajante. Mas chega uma hora em que o filme se torna muito trash. Os efeitos da época ficaram muito ultrapassados e o filme não consegue evitar a comicidade. O roteiro vai se atrapalhando nos eventos e parece que a certo ponto tudo o que importa é espirrar gore na nossa tela. Importante, não atemporal, porém obrigatório.
Que filme horrível. Nunca tinha tido o desprazer de assistir. Me senti violado durante esses 100 minutos. Roteiro bobo e infantilizado, personagens rasos e sem carisma. Sigourney Weaver tendo seu imenso talento pisoteado por uma personagem tão imbecil. Entendo que haja uma nostalgia envolvida, mas esse longa é realmente péssimo.
Eu estou, desde sempre, apaixonado por esse pôster. Quando ele toma vida no filme, que coisa mais linda! A fotografia em geral, assim como quase tudo nessa obra, é extremamente cativante. Uma cena em particular entre Cacá e Iremar, quando ele serra o manequim (você que assistiu, sabe do que tô falando), é de uma simplicidade extrema e no entanto emocionante de uma forma como poucos filmes conseguem criar. "Boi Neon" não é um divisor de águas no aspecto de debate, como talvez a sinopse faça parecer. É um filme contemplativo e extremamente realista. E o que quero dizer com isso? Que ele é igual a vida. Não há plot points mirabolantes, desfechos catárticos, nem nada que o valha. Mas Mascaro faz aqui um cinema, tão, tão belo. Algumas cenas se inserem pelo simples prazer de transpor poesia para a tela. É uma realidade tão distante da minha, e tenho certeza que de grande parte do público que vem acompanhando a obra, mas é um universo que você se joga de cabeça e quer mergulhar cada vez mais. Quando acaba, dá uma saudade, uma vontade de ter ficado mais um pouco. Vi gente reclamando que o filme não debate e que não chega aos lugares que ele propõe. Oras, o filme é o que ele é. Se suas expectativas eram outras, esse é um problema inteiramente seu. Nenhuma obra é realizada se ajoelhando diante das vontades do expectador. Ao meu ver, Boi Neon cumpre o seu papel como a obra cinematográfica que nos é imposta: divertido, envolvente, prazeroso, realista. Se você espera um filme composto por debates histéricos de temas como papeis de gênero, direito animal, pule para outro. Boi Neon está mais ocupado com a simplicidade de ser um recorte realista, de nos apresentar a um mundo tão real que pode se situar em algum lugar desse Brasil.
O Despertar da Força é um puta entretenimento? Sim. É um grande filme? É um bom filme. Mas qualquer um que negue que o episódio VII não passa de uma versão atualizada e recauchutada do primeiro clássico estão um pouco cegos pelo fanatismo. Grande parte desse buzz e dessa nota alta é pelo simples fato de se tratar de uma grande e amada franquia. Mas me desculpem, não consigo fechar os olhos para os defeitos desse novo Star Wars. Por mais que ele seja superior aos 3 episódios da "nova" trilogia, ele continua sendo muito inferior aos clássicos pelo simples fato de tentar repetir a fórmula quase que roboticamente. Você consegue fazer paralelos entre personagens e situações em quase todo o filme. Poderia ter sido mais original.
Tracy é uma caloura da faculdade perdida na imensidão descomunal de Nova York. Apesar de cercada por pessoas de todos os lados, Tracy se sente solitária e deslocada. Ela tenta se encaixar em grupos da faculdade, mas é só quando a sua mãe, que está prestes a se casar com um sujeito, sugere que ela ligue para a filha desse cara afim de criar laços, que ela encontra sua verdadeira inspiração. “Mistress America” trata mais uma vez da autodescoberta, como já é recorrente na filmografia de Noah Baumbach. Tracy é uma garota perdida, sem personalidade, que ao conhecer Brooke começa a trilhar o seu próprio caminho através da “irmã”. E é isso que Brooke desperta em quem a cerca: inspiração, impulsos, vontade de viver. Brooke se torna uma musa para todos que cruzam o seu caminho. Foi assim com Mimi Claire que roubou sua ideia das camisetas para fazer sucesso, e a história se repete com Tracy. Brooke é extremamente criativa e prolífera. Acontece que a garota não parte para a execução de suas ideias. A certo ponto Mimi afirma que roubou sua ideia sim, pois Brooke nunca a colocaria em prática. Essa é uma grande verdade no mundo de quem trabalha com produção criativa. Há quem crie, há quem execute, há quem não saia do lugar. E tem um porém mais amargo ainda: nem sempre basta ter a melhor das ideias, ser o melhor. Você depende da sorte, de dinheiro, das suas influências, do lobismo. Você trava uma constante batalha consigo mesmo, lidando com as suas inseguranças, com o seu medo do fracasso e do julgamento alheio. E é entre tantos empecilhos e tanto desejo de fazer algo de suas vidas, de ser alguém, que essas personagens se embrenham num emaranhado de vontades onde uma começa a se misturar com a outra. Mas no final das contas, “Mistress America” é um filme divertidíssimo que não se ocupa em sobrecarregar o clima para dramatizar a sua história. É um ponto de vista de quem prefere rir para não chorar. E é um deleite cada minuto de projeção! Noah Baumbach emula muito bem o jeito Woody Allen de contar histórias onde a desgraça é sempre pisoteada com sátiras e um humor negro delicioso. Greta Gerwig que também assina o roteiro se reafirma como um dos maiores talentos da nova geração de atrizes, segura no seu papel que é uma das mais belas atuações do ano. Ao final de Mistress America você vai sentir que está se despedindo de pessoas que você jamais gostaria de dar adeus. São personagens que você gostaria de sair pra beber, pra conversar, de descobrir um pouco mais. Talvez seja o efeito mágico de Brooke sobre o expectador.
"I've spent my whole life chasing after things and knocking at doors, and I'm tired of running towards people. I wanna be the place that people come to. I wanna make a home for all the knockers and runners. I'm good at that. I'm happy with that."
Gostaria de descobrir onde fica a fonte de inspiração de todos que trabalham no Studio Ghibli. Não tem uma produção que te decepciona, nenhuma. Todas as obras do estúdio são imensamente bem elaboradas, sempre contando com personagens bem estruturadas e profundas. São filmes abundantes de sensibilidade e conhecimento das emoções humanas. Nenhuma produção até hoje conseguiu não me emocionar e/ou me deixar de coração mais leve. E não foi diferente com "Marnie". Terminei contente em perceber que a pequena Anna encontrou um motivo para sorrir, um motivo para amar o seu destino apesar dos seus percalços. Terminei este filme mais esperançoso com a vida, porque é disso que se trata o cinema: criar um mundo de mentira, que nos transforma de verdade. Para mim o Studio Ghibli não faz filmes, faz obras de arte.
É muito nítida as referências ao "2001: Uma Odisseia no Espaço" do Kubrick. Mas fico contente que "Lunar" tenha conseguido criar identidade própria reformulando temas bastante rebuscados como identidade e o espaço. O filme começa bastante introdutório e lento, mas logo que se instaura o suspense, somos fisgados de curiosidade até o final. Sem dúvidas um dos pontos altos desse filme é a incrível direção de fotografia e o design de produção, bastante oldschool ao invés de carregada de computação gráfica como vemos em grande parte das produções atuais. E claro, não poderia deixar de mencionar a estupenda trilha sonora de Clint Mansell. O compositor trabalhou em todos os filmes do Darren Aronofsky (Black Swan, The Wrestler), e aqui compôs uma faixa tão épica (Welcome to Lunar Industries) quanto a que considero sendo sua obra-prima (Lux Aetern) da trilha de Requiem For a Dream. "Moon" vem fazer uma abordagem sobre ética e o desenvolvimento desenfreado das corporações que não medem esforços para gerarem mais lucro. A Lunar Industries não existe como retratada no filme, mas há inúmeros clones instaurados aqui no planeta Terra. "Lunar" busca também debater a forma como o meio corporativo enxerga a mão de obra humana. Para essas empresas, somos apenas números, contratos, uma ferramenta. Somos como qualquer outro, não temos identidade própria, não somos indivíduos, somos apenas clones. Nossa história é qualquer uma que nos é inserida. Não somos dotados de humanidade, somos mais um Gerty. Sam encerra essa história com uma frase que sintetiza todo o filme:
"Gerty, nós não somos programados. Nós somos pessoas, entendeu?"
Somente quem já se sentiu encurralado pela impotência gerada pela angústia vai compreender esse filme plenamente. A melancolia como sentimento tem aqui sua melhor analogia: uma colisão iminente, prestes a devastar sua existência. A primeira parte do filme trata da ciência dessa situação por parte de Justine, da sua entrega à desesperança, a sua tentativa de digestão do vazio de propósito de todas as coisas. Ela sabe que o futuro não é promissor. Ela está se casando, mas no fundo pensa, pra quê? Esse capítulo do filme ilustra a fragilidade dessa construção que denominamos sociedade. São muitos conceitos, como família; muitos rituais, como casamento; muitas obrigações, como trabalho. E toda essa edificação social pode ruir num piscar de olhos. O que muitos não percebem é que estamos todos prestes a colidir com Melancolia. Afinal, qual a única certeza de nossa existência? A morte. Então, não estaríamos todos nós vendo Melancolia cada vez maior, cada vez mais perto? É disso que se trata o segundo capítulo do longa: aceitação. Por que reagir se o futuro é tão vazio, se no horizonte há somente morte? Justine entende que seu papel diante do destino é aceitá-lo. Ela se entrega. Lars Von Trier consegue transpor para a tela de forma excruciante o sentimento de uma pessoa oprimida pelo vazio existencial. É uma questão de percepção do nosso meio e do nosso papel nele. No final das contas, Melancolia é um filme sobre a angústia de estar vivo, exatamente por termos consciência da morte. Esse diálogo de Justine e sua mãe sintetiza bem o sentimento geral do longa diante da vida:
Justine: Estou com medo. Gaby: Todos nós estamos, querida. Apenas esqueça. Dê o fora daqui.
Quando Melancolia engole a Terra com tamanha voracidade, nos damos conta da real insignificância da nossa existência na vastidão do universo.
Devemos discutir "O Mágico de Oz" tendo como referência o tempo em que foi concebido. O filme é bastante constante, e isso é uma proeza tendo em vista de que o material rodou na mão de cinco diretores de acordo com os créditos do IMDB. Os efeitos especiais são muito bem elaborados se formos levar em conta de que o cinema mal havia completado quarenta anos quando o filme foi lançado.
O longa é um dos mais influentes e mais adorados de todos os tempos. "Over the Rainbow" foi incessantemente interpretada em programas de calouros mundo afora. Temos cover de artistas de todas as vertentes musicais como a cantora pop Kylie Minogue, a banda de rock Guns n' Roses, entre inúmeros outros. Vimos a música ser reinterpretada em filmes, como em "Australia" por Nicole Kidman. Temos no Brasil o clipe de "Na Sua Estante" da banda Pitty, claramente inspirado na história do Homem de Lata. Isso tudo só para citar alguns exemplos.
Mas devemos ressaltar que depois de tantos anos, o filme se tornou sim, datado. "O Mágico de Oz" perpetua um padrão muito utilizado em antigas histórias denominado "conto de retorno". Nesse tipo de conto, o personagem principal vive uma grande aventura fora do seu ambiente familiar para finalmente perceber que o lugar mais seguro para si é ao lado de sua família. Podemos conferir esse modelo sendo aplicado em muitos contos como "Chapeuzinho Vermelho", "João e Maria", entre outros. E há um grande conservadorismo nesse discurso que visava sempre podar o senso de liberdade e desenvolvimento das crianças, demonstrando de forma lúdica de que a vida fora de casa é cheia de perigos, e que "não há lugar como sua casa".
A violência é totalmente banalizada, já que os personagens não medem esforços para conseguirem o que desejam, mesmo que para voltar para casa, conseguir coragem, um coração ou um cérebro, signifique matar a Bruxa. Tudo isso para satisfazer um capricho do "mágico" de Oz. E para justificar esses atos moralmente duvidosos, tudo recai na desculpa preguiçosa do acaso de "foi um acidente, foi sem querer". Nem preciso comentar o confronto entre Dorothy e a Bruxa, que deveria ser o ponto mais alto da trama mas que no entanto se torna desconcertantemente mal conduzido, sem se falar no desfecho totalmente insatisfatório onde ação e reação simplesmente não se explicam. A forma como optaram por desenvolver a "premiação" na tentativa de atrelar esse recebimento não por mágica, mas por méritos encontrados no mundo real, se tornou também deveras insatisfatório pela insistência de manter um discurso conservador onde "tudo o que você precisa está com você".
Não desmereço de forma alguma a influência e a importância de "The Wizard of Oz" para a história do cinema. Mas acho que cabe uma reflexão sobre o quê dessa história se tornou datado para que possamos aprender não somente com os seus acertos, mas também com os seus erros.
Grande parte das pessoas vão enxergar Paddington como sendo apenas mais um filme "família" que alia animação com live action, dosando boas pitadas de comédia. Mas por baixo da montagem excêntrica à la Wes Anderson, há um forte teor político que vem a calhar nesse momento específico. Todos devem estar acompanhando a crise que os países europeus estão enfrentando com refugiados do Oriente Médio que estão atravessando as suas fronteiras fugindo de guerras, fome, terrorismo, entre outras moléstias. Estão em busca de uma vida melhor, assim como o nosso personagem principal. Em uma carta, o urso escreve para a tia dizendo o seguinte:
"Londres não é como imaginávamos. Quase ninguém diz olá ou usa chapéu. E você não pode simplesmente chegar na estação e arrumar uma casa. É difícil imaginar onde um urso poderia se encaixar numa cidade tão estranha e fria."
Esse é o retrato do choque de culturas de quem sai de sua terra e chega numa outra. Os costumes são outros, as roupas são outras, a língua é outra. Você não chega de fato no eldorado que imaginava. Você é geralmente recebido com hostilidade. O marido diz para a esposa que tenta ajudar o urso: "Ele não é problema nosso". E é assim que muitos enxergam a questão da imigração. A certo ponto no flashback da personagem da Nicole Kidman, um dos exploradores diz "Eles nem ao menos falavam inglês", se referindo aos ursos. Se você vem de outro país, não fala a nossa língua, não é dotado de nossa cultura, você não é um dos nossos, e portanto, não é problema nosso, não merece respeito.
"Paddington" pode ser encarado como bastante clichê na espinha dorsal de seu roteiro, mas agrega bons elementos políticos para enriquecer a história, e é dirigido com extrema sensibilidade, onde um ser criado por computação gráfica consegue nos emocionar e fazer com que torçamos para que no final das contas ele encontre o seu tão sonhado lar. Quando Paddington diz no seu diálogo final que ele é um urso chamado Paddington, é uma reafirmação de suas origens, de quem ele é, de onde ele veio. É um recado, uma dica para quem se sente um estranho no ninho. Você é o que é porque veio de onde veio. Para prosseguir com dignidade, você precisa reconhecer as suas qualidades.
"A Sra. Brown diz que em Londres todo mundo é diferente, e isso significa que todo mundo pode se encaixar. Eu acho que ela deve estar certa, porque por mais que eu seja diferente de todo mundo, eu realmente me sinto em casa. Eu nunca vou ser como as outras pessoas, mas tudo bem. Eu sou um urso. Um urso chamado Paddington."
"Que Horas Ela Volta" narra a história de três gerações de mulheres. Val é a mais velha delas. Emigrante nordestina, deixou sua terra para tentar uma vida melhor na cidade de São Paulo. Faz parte da típica geração de nordestinos que fugia das dificuldades enfrentadas nos estados mais fragilizados da República. Depois temos Bárbara, a patroa de Val, mais jovem que ela, aparentemente vinda de uma família mais próspera. Posteriormente "juntou fortunas" com o marido, bem de vida, e juntos puderam proporcionar certa estabilidade financeira para a sua família. A terceira é Jéssica, filha de Val, uma jovem garota pavimentando o seu caminho de mulher, "segura de si". Ao vir para São Paulo, Val não teve outra escolha senão deixar a filha com parentes. É financeiramente que a mãe pode participar da vida da filha durante todos esses anos.
O filme ilustra bem uma frequente ciranda que acontece entre muitas famílias brasileiras: as mães de classe média/alta deixam os filhos com babás, geralmente mães de classe baixa que deixam os filhos em creches, ou muitas vezes com algum parente. Essas crianças são a síntese do título do filme, onde o filho da babá e da mãe bem-de-vida se fazem a mesma pergunta: que horas ela volta? É um filme sobre ausência, sobre a falta que faz aquele ser que mais pode idolatrar e bem-querer um filho. E nesse troca-troca, os filhos deixam de reconhecer suas mães biológicas como forte para adotar afetivamente uma mãe postiça. Fabinho, filho de Bárbara, recorre à Val quando não consegue dormir, quando necessita de carinho, quando se sente Vulnerável. Jéssica ressente a mãe por a ter abandonado, pois não entende as motivações da mãe.
A história dessas três gerações de mulheres se fundem quando a certo ponto, Jéssica avisa para a mãe, que gostaria de morar um tempo em São Paulo para prestar vestibular. Ao chegar em São Paulo, Jéssica interfere na rotina da casa por não estar habituada com a forte divisão de classes ali imposta. Ela vai aos poucos quebrando paradigmas, não por ser necessariamente transgressora, mas por não saber "o seu lugar". A certo ponto, a filha indaga a mãe, mais ou menos assim: "aonde você aprendeu isso? Tá escrito em algum livro? Pode isso, não pode aquilo". A mãe responde "Isso você já nasce sabendo". Val viveu inserida numa geração onde o pobre era subordinado ao rico, e isso vem desde os tempos da colonização. Ela se reconhece como inferior, assim como Bárbara, a dona da "casa grande" se reconhece como superior. Já Jéssica, não se identifica com nenhum desses dois papeis, ela se identifica como igual. Por que? Porque a garota é fruto de uma geração que começa a reconhecer que a distribuição de oportunidades deve ser igual para todos, independentemente de suas heranças e privilégios. O topo da pirâmide não é por direito de ninguém, é um caminho a se percorrer por mérito, por uma conjuntura favorável. A piscina representa o âmbito da burguesia. Quando Jéssica é empurrada na piscina por Fabinho e seu amigo, Bárbara fica horrorizada. Ela logo liga para o higienizador da piscina para que a trate. Ela não admite que alguém "inferior" usufrua dos seus privilégios. A desculpa que ela dá para essa higienização no entanto, é de que havia "um rato na piscina". É dessa forma que na realidade ela enxerga a filha da empregada. É como se ela reconhecesse o papel daquele "animal" no ecossistema, onde um depende do outro, mas não admite que ele desestruture a sua ordem. Val nunca foi motivo de incômodo, pois ela "sabe o seu lugar", ela não põe em xeque essa distribuição de papéis.
Acho louvável que Ana opte por não corromper Jéssica, mesmo após as investidas do marido de Bárbara, que logo se vê seduzido pela inocência e ansiedade da filha da empregada. Jéssica não entra na história como a famosa "Lolita" que usa sua presença de forma sexual. Jéssica é sim ambiciosa, mas não no sentido pejorativo e ganancioso da palavra, daquele que passa por cima de qualquer moral para chegar onde quer. Ela sabe o que quer, e o quer desde que seja dentro de seus valores.
Ao final, percebemos que o filme é um retrato do novo Brasil. Um Brasil que é fruto de muitos governos, que nos seus erros e acertos, ajudaram a construir um país onde a classe média possa ser mais ambiciosa, onde há distribuição de renda, uma maior oferta de oportunidades. Essa classe média se cansou do pão e circo, ela quer mais. É um país onde as pessoas não mais se contentam em se por no seu lugar. É um país onde muitas Bárbaras ainda se incomodam que as Jéssicas nadem em sua piscina, que elas comam "o sorvete do Fabinho". É felizmente um país com menos Vals, e mais Jéssicas, onde as Bárbaras estão aprendendo a dividir a piscina.
Foi lindo ver a sala de cinema aplaudir quando Val entra no quarto do Fabinho, extasiada, pois sua filha passara no vestibular, enquanto o filho da abastada família fora desqualificado. Bárbara não consegue esconder o seu choque, o seu desapontamento com a conquista da filha da empregada. Foi um grande tapa em sua cara, e nós, expectadores, deliramos de prazer na cadeira do cinema.
Val acha uma forma de consertar a sua história torta, de recomeçar, mais uma vez através da filha, e para a filha. Ela batalhou a vida toda para que Jéssica pudesse não cometer os mesmos erros da mãe, para que ela pudesse honrar todo o seu trabalho e sacrifício. Por amá-la demais, e não o contrário, a abandonou. Foi pensando no futuro da filha, que a mãe deixou tudo para trás. E é pensando no futuro da filha, que mais uma vez, a mãe abandona tudo para continuar construindo o seu futuro.
"Que Horas Ela Volta" é assim, te deixa com o coração aquecido, com vontade de botar pra fora todo o sentimento que ele te causa, de levar todas as pessoas para o cinema, para que muitos possam vivenciar essa história tão encantadora. Espero que o filme faça muito sucesso no Brasil, assim como vem fazendo lá fora. Se você assistir e gostar, por favor, recomende! Faça você também um textão, pois filmes como esse, merecem.
Me considero de esquerda, e achei o documentário bastante lúcido. Há muitos hipócritas como poderíamos esperar, mas o documentário consegue traçar um panorama do que aconteceu na história do Brasil para que ele desse certo. Ou não. São muitas ideologias propostas, e portanto o debate é livre. Não se pode negar o êxito do plano real, como muitos tentam fazer na tentativa de diminuir o lado da chamada direita. O único problema é a forma como o Fernando Henrique veste a camisa do real, como se ele a tivesse confeccionado sozinho, no fundo de seu quintal. Foi um trabalho conjunto, com muito estudo das experiências passadas, dos fracassos e êxitos não somente de planos da economia brasileira, mas também da mundial. Portanto também é muita falácia inútil dizer que o governo Lula se aproveitou das reformas do governo FHC. Ora, se todo governo é uma herança e também um projeto de futuro, logo não existe aproveitamento no sentido pejorativo. Quando um governo assume mantendo o que houve de positivo e expurgando aquilo que foi danoso, todos nós, brasileiros, temos somente a ganhar. Parem com essa mentalidade de campo de batalha onde alguém vence e outro perde. Quando um governo perde, todos os brasileiros perdem. O êxito do Brasil como nação depende do êxito do governo em exercício, seja ele representado pelo presidente ou o partido que seja. Lembrando sempre de que o Brasil é uma república federativa, e portanto nem todas as contas devem ser cobradas do presidente. Fiquem de olho nos governadores, prefeitos, senadores, deputados, vereadores. São todos parte do sistema político e têm suas responsabilidades.
As pessoas precisam aprender de uma vez por todas que há o mundo literário e há o mundo cinematográfico. São diferentes, distintos, separados, apesar de colidirem em muitos momentos. O público do cinema não é necessariamente o da biblioteca. Garanto que muitas pessoas nunca leram "Drácula" de Bram Stoker e se sentiram muito satisfeitos com a adaptação do Coppola, exatamente por não ter conteúdo para comparações e avaliar o filme por ele mesmo. Desmerecer uma obra de cinema por ela não seguir as definições de um livro, é muito indevido. Você pode sim, ter suas ressalvas quanto ao que foi projetado na tela se comparado ao material de origem, mas rebaixar o filme porque a cor da cadeira da sala do protagonista não é da mesma cor descrita no livro é deveras injusto. O cinema tem seus maneirismos e muitas vezes pede algumas liberdades. "Drácula" de Francis Ford Coppola é um filme que sabe dosar seu suspense de forma muito equilibrada através de um senso de urgência que se instaura através da música composta por Wojciech Kilar e o iminente encontro e reencontro de Drácula e Mina. O filme possui um caráter sombrio que certamente irá agradar os fãs do gênero, com direito a cenas horripilantes de possessão e transformação. Destaque para as objetivas do Drácula e para o trabalho de maquiagem da equipe que rendeu Oscar em 1993. A cena de abertura é primorosa, principalmente a sequência rodada em forma de sombras sobre tons quentes.
Rebecca está morta. Deixou viúvo o Mr. de Winter. Não há porque escalar uma atriz para representar o seu papel, não irão utilizar os recursos do flashback. Mas se engana quem pensa que pelo fato de estar morta, Rebecca não está presente no filme. E o que mais me espanta e me agrada nesse filme é a capacidade admirável de Hitchcock conseguir construir e imprimir uma personagem que é o cerne da trama, mas que sequer existe, sequer aparece na tela por qualquer momento que seja.
A certo ponto, Mrs. Danvers indaga à segunda Mrs. de Winter:
"Você acha que os mortos voltam e assistem os vivos? (...) Às vezes, me pergunto se ela não volta aqui em Manderley, para assistir você e o Mr. de Winter juntos."
Diria que que Rebecca nunca precisou retornar à Manderlay pois ela nunca de fato partiu. Ela se manteve viva nas entranhas daquela mansão, na memória de quem a ama e de quem a odeia. E não há nada mais poderoso do que as lembranças. É assustador pensar o quão fantasmagórica podem se tornar as lembranças sobre uma pessoa.
"Rebecca" é de fato um filme muito bem desenvolvido, mesmo que um tanto quanto lento. Temos um bom exercício de ambientação, somos bem situados com as particularidades do personagens, e depois de imersos nessa realidade, conseguimos ter a revelação do que de fato aconteceu naquele lugar. Aí sim então, vemos Hitchcock pesar sua mão no filme, inserindo seu habitual suspense. A cena de abertura é particularmente hipnotizante.
Sempre me incomodei com pessoas que propagam a mensagem vazia de "se libertar da sociedade". Inclusive, comecei a assistir o filme com uma postura bastante hostil a esse comportamento raivoso e rebelde do garoto. Não que eu ache que a sociedade como estrutura seja irrepreensível, mas também acho que pode se extrair algo muito válido de ambos os lados, de ambas as experiências. A natureza e a "civilização" não precisam se opor. Elas podem e devem viver em harmonia. Esse deveria ser o núcleo do pensamento de todos. O ser humano é único ser que se porta como um vírus, aquele que extrai sua energia através da destruição do seu meio. Fiquei muito contente ao ver que conforme o filme seguia, convergia para um ponto de vista mais moderado, menos radical do que o mostrado de início através do personagem principal. O ser humano não é feito somente do instinto animal de sobrevivência. E por isso ele evoluiu. Se o que importasse para a raça humana fosse somente se alimentar e se reproduzir, ou seja, sobreviver, não teríamos evoluído em forma de sociedade, desenvolvendo a cultura e outras particularidades de nossa existência. Precisamos compreender que para nossa evolução pessoal é necessário autoconhecimento. E este, vem da reflexão, do conhecimento íntimo de você como pessoa, você e seu ambiente; e também vem da partilha de conhecimento e experiências com outros seres. Afinal, "a felicidade só é real quando compartilhada". Chris finalmente compreende que seu intuito não era ser outro, se tornar o alter ego Alex. Mas afim de encontrar a sua verdade, o seu ser mais legítimo, ele precisou abandonar o que era, adotar outro, para então chegar numa soma autêntica. Ele percebe que seu radicalismo perante aos seus problemas, nada mais era do que sair do ponto 0, girar 360, e cair no mesmo lugar. Ele percebe que o mais lindo e o mais valioso durante sua jornada não foram os seus momentos sozinhos, mas aqueles compartilhados com pessoas que ele havia amado e aprendido algo em sua companhia. No final das contas, Chris é traído pela própria natureza que resolve por fim assumir o seu lado selvagem. Ele é traído pelo seus livros e suas verdades relativas. E sentimos um amargor de partir o coração. Mas também aprendemos algo. A todos nós, seres pensantes e errantes, só nos resta torcer para que não precisemos chegar até a ponta do abismo para ter nossa vertigem de sabedoria.
"When you want something in life, you just gotta reach out and grab it"
O mais novo longa de Lírio Ferreira começa nostálgico, em preto e branco, não por acaso. O tom de nostalgia e melancolia percorre todo o filme como um personagem. Mais tarde, ainda no início do filme, Kaleb com uma foto de Marlon Brando nas mãos associa a intromissão rebelde do circo na ilha de Noronha com a do personagem de Brando em O Selvagem, afirmando que o cinema nasceu do circo. Não haveria forma mais adequada de homenagear o cinema, sem deixar o terreno emocional do filme. Os números circenses são hipnotizantes, nos transportam para debaixo de sua tenda, como se fôssemos não expectadores na poltrona de um cinema, mas sim, na arquibancada de um circo. E é tudo belíssimo. Como supracitado, Sangue Azul é uma obra extremamente bem elaborada com maestria em todos os seus aspectos. É uma primorosa combinação de ambiente, personagens e história. Falando em personagens, são desenvolvidos minuciosamente e constantemente emparelhados com o ambiente que adquire um tom místico (no entanto, não fantasioso). Apesar de ter essa paisagem tropical estonteante, Noronha se torna palco de dores e pesares, de uma infelicidade misteriosa que não se sabe de onde emana. O roteiro é muito competente em sempre fazer esse enlace entre ambientação e os personagens, é tudo muito sólido. Em seu último diálogo, o filme explana de forma poética e recheada de signos o romance proibido de Zolah e Raquel o associando a uma lenda da formação geológica de Fernando de Noronha. Zolah, um dia Pedro, sente que tivera a vida roubada. E decerto, tivera. Sua mãe, pressentindo o "perigo" da paixão dos filhos, mandara o garoto para longe com a desculpa de que ele era "grande demais para aquela ilha". E sim, o garoto percorreu o mundo e se expandiu da melhor forma possível. Porém, Pedro, agora Zolah, se sente traído, vazio, sem propósito ou empatia por ninguém. Ele vê em cada canto daquela ilha, buracos que ele poderia ter preenchido. Quem sabe se nunca tivesse partido, poderia ter sido feliz. Quem sabe, o contato físico, porém não íntimo explicitado em suas constantes relações sexuais durante o filme, pudessem ser contatos mais profundos e sinceros. Aquele contato apaixonado direcionado à irmã, repreendido pela mãe. Então, sem perspectivas de felicidade em seu horizonte, Zolah resolve literalmente mergulhar no universo de sua amada, em uma das cenas mais belas do cinema nacional, onde debaixo d'água, eles dançam, correm, e brincam. São felizes juntos, recobrando um pouco do que lhes fora tirado. Zolah (ou quem sabe agora, novamente Pedro), enfrenta o seu medo da água (representado como o universo da irmã), mas enfrenta também, de forma alegórica, o medo que sempre tivera do seu sentimento por Raquel. Mas o medo já não importa mais, porque ao contrário do que afirma Kaleb no começo dessa jornada, Pedro se torna uma fragata, sem medo de mergulhar para buscar o que deseja. Sem medo do preço que o futuro possa cobrar.
O nome da série é "Cities of Love". Os produtores não mudariam o teor do projeto só para agradar brasileiros chorões que não entendem a importância do nosso patrimônio. O Rio não é dos cariocas, ele é do Brasil e de quem mais o quiser chamar de seu. Não é novidade de que a cidade mais conhecida do Brasil no mundo é o Rio de Janeiro, a mais impressa no imaginário coletivo. E é sim, uma das mais lindas do país. Ninguém aqui afirmou que é a cidade mais linda e nem a mais importante só por terem feito um filme sobre ela. Até porque beleza é relativa e cada lugar tem seu charme e sua história. Eu moro em e amo São Paulo e isso não me impede de amar também o Rio, Florianópolis, Curitiba, e mesmo sem conhecer, Pernambuco e seu estupendo cinema. O filme segue a linha da série como foi no mundo, uma cidade em foco. Nova York representa o Texas e outras regiões dos Estados Unidos? Não. Representa os Estados Unidos? Com certeza! Quanta falta de maturidade esse tipo de rivalidade regional. Mas enfim. Só lamento que o filme não seja tão excelente como "Paris, Eu Te Amo". Falta vigor nos segmentos, é um problema de roteiro mesmo. Acabamos entretidos pela beleza das filmagens e só. O único curta que realmente me cativou foi o da diretora Nadine Labaki cujo trabalho eu admiro,e que conseguiu captar a essência da simplicidade. Diria que os segmentos do Meirelles e do Sorrentino sejam interessantes e também compensem a experiência. Já Turturro imputou uma lindíssima fotografia em um ambiente fechado, e Padilha capturou as mais belas paisagens do Rio.
"We better check on mother and the cats. She's a lot of fun, I hope she doesn't die. I hate to spend another winter here though. Oh God, another winter."
Essa frase resume bem o sentimento de Edie sobre sua mãe: ela a ama, mas odeia estar presa à ela e àquele lugar que lhe rememora seus fracassos, que lhe lembra de que não está onde sonhava estar. O filme te insere de uma forma tão absurda na realidade louca dessas duas que parece inacreditável que se trate de um documentário. Parece um cenário construído para ilustrar um roteiro surreal. Você se vê ali, presente entre gatos e restos de comida em uma cama suja, hipnotizado pelos diálogos insanos dessas duas figuras. São tão expansivas que precisam impregnar cada canto daquela casa, preenche-la com suas histórias e lembranças, com suas músicas. É triste como o espírito das duas, envelhecido como o passado que elas tanto relutam em abandonar. Quando dão por si, estão envoltas literalmente em seu passado, em seu próprio lixo, pois nada além vale a pena.
"Para tornar a realidade suportável, todos temos de cultivar em nós certas pequenas loucuras."
Ela me perguntou quantas pessoas eu já vi morrer. Quantas pessoas você já viu morrer? Nenhuma, eu disse. Ela sorriu e disse eu vou ser a primeira. Eu disse vai. Ela disse boa sorte. — Boa sorte.
E morreu. Os lábios dela continuavam vivos, vermelhos. Parecia que ela estava dormindo. Ela morreu e pronto. Era bom ficar olhando seu corpo, bonito. A enfermeira entrou, viu que ela tinha morrido e me disse para sair do quarto, chamou o médico, eu saí do quarto.
Uns dias depois o enfermeiro me disse que ela estava grávida. Ele disse também que achou melhor ela ter morrido, imagina ela com um filho.
Eu imaginei ela com um filho, um filho meu, e agarrei o enfermeiro pela garganta.
Dois enfermeiros correram e me seguraram e me deram uma injeção. Eu acordei amarrado e fiquei ali alguns dias. Eles mudaram meu remédio. Eu me lembrei que ela havia me pedido para ficar vivo pra me lembrar dela e resolvi não tomar o remédio, não tomar mais remédio nenhum. Passei mais seis meses na clínica, fingi que estava curado, saí, voltei a estudar. Fiz o supletivo do segundo grau, passei no vestibular, me formei, casei, tive um filho, me separei. Hoje trabalho nesta farmácia. Continuo vivo e me lembrando dela.
Eu não me lembro muito bem se tinha 13 ou 14 anos na primeira vez em que fiquei invisível. Eu acho que tinha 14, estava frio, devia ser inverno e eu faço aniversário no verão. Também podia ser no inverno antes de eu fazer 14, mas eu acho que não, porque a minha irmã já estava usando aparelho e estes dias eu perguntei e ela tem certeza que tinha dez anos quando começou a usar. É muito provável que eu já tivesse ficado invisível muitas vezes antes, tenho certeza que sim. Quando a minha mãe e o meu pai discutiam, quando ele gritou que ela é que quis ter filho e agora não gosta de ficar com as crianças e só quer viajar, quando ela bebia e andava quase nua pela casa, quando o meu irmão punha a mão nos peitos da namorada, quando o meu pai mudava a televisão de canal pouco antes do fim do filme que eu estava assistindo havia mais de uma hora, é claro que eu estava invisível, só que não percebia.
Eu estava na escola na primeira vez que percebi que estava invisível. O professor mandou todo mundo se apressar para o passeio. Eu demorei a me levantar juntando as coisas, todos saíram e o professor olhou para a sala, olhou na minha direção, apagou a luz, saiu e fechou a porta. Talvez eu tenha ficado invisível para não ir naquele passeio, não queria passar o dia vendo as meninas mais lindas me virando a cara, e todos aqueles meninos idiotas gritando e correndo e se batendo. Fiquei algum tempo parado, peguei minhas coisas e saí da sala. Caminhei pelo corredor, cruzei com alguns alunos, olhei bem para eles e eles não me viram. Saí do colégio e caminhei seis quadras até a minha casa, passando por muitas pessoas que não me viram. Entrei em casa sem ser visto, fui para o meu quarto.
Saí do quarto e minha mãe estava jantando, com minha irmã. Meu irmão mais velho vai chegar no próximo fim de semana e elas querem arrumar a casa. Ele vem com a namorada e vai dormir no meu quarto, eu vou dormir com a minha irmã, no chão do quarto dela. Elas falaram todo o tempo, decidindo o que ia acontecer comigo, sem me ver. Comi frango com arroz e legumes e fui ao banheiro. Abri o armário dos remédios, peguei um remédio da minha mãe, frontal. Li a bula. "Componente ativo: alprazolam. Indicado no tratamento de estados de ansiedade. Seu mecanismo de ação exato é desconhecido." Talvez fosse isso, ansiedade se cura com remédio. Não é recomendado a pacientes psicóticos. Os sintomas da ansiedade são: tensão, medo, aflição, agonia, intranqüilidade, dificuldades de concentração, irritabilidade, insônia e ou hiperatividade. Os sintomas da ansiedade sou eu. Peguei o vidro e fui para o meu quarto. Tomei dois, devia ter pegado água, não é bom tomar remédio com fanta. Deitei e dormi.
Acordei, era outra pessoa. E continuava invisível. Minha irmã, minha mãe e a empregada não me viram. Tomei café e mais um comprimido e fui para a escola caminhando sem ninguém me ver. Assisti às três primeiras aulas sem ser visto. Entendi tudo, anotei, gostei de estar aprendendo coisas. Estava feliz, feliz e invisível. No recreio fui até o banheiro e tomei outro comprimido.
Saí do banheiro, o sol batia no pátio, nos cabelos das meninas, nas pernas das meninas. Duas delas, das mais lindas, passaram na minha frente, entraram no banheiro. Entrei atrás delas. É claro que elas não me viram. Uma delas baixou a calcinha e sentou no vaso, mas não deu para ver nada, ela estava de saia. A outra abriu a blusa na frente do espelho e ficou ajeitando os peitos dentro do sutiã. Eu estava muito feliz de estar ali, pensei em gritar ou botar a mão nos peitos dela, mas ela ia levar um susto, achei melhor não. Elas falaram de uma festa e saíram sem me ver.
Passei o resto da semana invisível e feliz. Comecei a economizar os comprimidos, tomava três por dia, um antes de ir para a escola, outro depois do almoço, outro antes de dormir. Não sonhava com nada, acordava feliz. No sábado tinha a festa e eu estava louco para ir, invisível.
Levei o remédio para a festa para tomar um lá. Não conseguia entrar no banheiro das meninas, era muito apertado, mas escutei todas as conversas, histórias incríveis de quem deu ou queria dar para quem. Tomei dois comprimidos com vinho, vários copos de vinho. Resolvi entrar no banheiro das meninas, seguindo uma das mais lindas. Ela entrou, eu entrei junto. Ela tirou a blusa e tirou da bolsa um desodorante roll-on. Começou a passar desodorante, erguendo os braços e se olhando no espelho, muito linda, a coisa mais linda que eu já tinha visto. Não consegui me controlar e lambi seu braço.
Ela deu um grito, começou a me bater, gritar. Abriu a porta, gritando, um monte de gente veio correndo, o pai dela, o namorado dela, todos começaram a me bater enquanto ela gritava que eu tinha entrado no banheiro e lambido ela e todos me batiam. Aparentemente minha invisibilidade tinha passado, talvez por causa da lambida. A mãe dela, que me conhecia, me ajudou a levantar do chão. Ficou me olhando, assustada. E aí eu vomitei.
Quebrei dois dedos da mão esquerda, acho que foi um dos chutes. Todos em casa me viram, me olharam muito bem. Meu pai olhava para mim com medo, minha irmã com nojo e minha mãe chorava.
Meu irmão chegou com a namorada, ninguém disse nada para ela que eu era um drogado e maníaco sexual. Minha irmã não quis me deixar dormir no chão do quarto dela e eu dormi uma semana na sala, no sofá. Dormia ouvindo meu irmão e a namorada trepando no meu quarto. Um dia acordei e fiquei parado, no escuro. Ela passou pela sala só de calcinha, ótimos peitos, bunda boa. Voltou da cozinha e ficou parada no meio da sala, tomando água no bico da garrafa, sem me ver. Me levantei e fiquei olhando para ela, ela não me viu. Eu estava invisível outra vez. Me aproximei e toquei no peito dela. Ela deu um grito.
Me levaram num médico que me disse que eu precisava aprender a relaxar e outras coisas que eu já sabia e me receitou paxon. Li a bula. Princípio ativo: cloridrato de buspirona. Agente ansiolítico indicado no alívio a curto prazo dos sintomas da ansiedade e da apreensão, do medo e dos maus pressentimentos. Era o meu caso. Cinco a dez miligramas duas vezes por dia. Perfeito. Não estava mais invisível mas continuava feliz.
Mudei de escola e passei o resto do ano feliz. No final do ano fiquei preocupado com as provas e com as festas e comecei a tomar três comprimidos por dia, às vezes quatro. Às vezes tomava com vodca, nas festas. Depois comecei a tomar também o frontal da minha mãe, ela descobriu e escondeu no armário. Achei e tomei. Meu pai disse que ia me internar, minha irmã disse que eles deviam chamar a polícia.
O médico cortou o ansitec e me deu valium. Li a bula. O princípio ativo do valium é o diazepam. Indicado para distúrbios emocionais, especialmente ansiedade, e distúrbios comportamentais, como a má adaptação social. Agora sim. Um antes de dormir, às vezes dois.
Um dia eu tomei dois no almoço, com cerveja, e depois fui para o supermercado. Tinha uma menina, bonitinha, acho que com menos de
três anos, no corredor dos biscoitos. Ela pegou um pacote grande de biscoitos, quase maior que ela, e tentou botar no carrinho. A mãe estava falando no celular e não viu. Ela chamava, mãe, mãe, bicoito, mãe, mãe. A mãe caminhava pelo corredor e falava no celular, discutia com alguém sobre prazo de entrega, horário de entrega de alguma coisa. A menina tentava botar o pacote, não alcançava no carrinho. O pacote caiu no chão, a mãe empurrou o carrinho que passou por cima do pacote. A menina se desequilibrou e caiu sentada no chão. A mãe gritou, disse que a menina tinha derrubado tudo no supermercado, desligou o celular e começou a gritar com a menina, que começou a chorar. A mãe viu os biscoitos quebrados, botou na prateleira, ergueu a menina pelo braço e continuou gritando enquanto ela chorava. Eu me aproximei, queria estar invisível. Não estava, a mulher olhou para mim e perguntou o que foi. Eu dei um soco no rosto dela, acho que acertei a boca e o nariz. Ela caiu, gritando de dor. A menina começou a gritar e a chorar. Tinha sangue na minha mão, não sei se meu ou dela. A mulher me olhava, apavorada, gritando e tapando o nariz e a boca com a mão. Ela viu sangue na mão dela e começou a gritar, a menina chorando. Um casal saiu correndo, algumas pessoas se aproximaram. Um garoto de uniforme me olhou com medo. Um segurança se aproximou, me olhando e falando num rádio.
Um segurança do supermercado me deu um tapa na cabeça. Me assustei, mas não doeu muito. Um policial veio e foi embora. Meu pai chegou, muito nervoso. Pediu desculpas para todo mundo, disse que eu era doente. Olhei para o meu pai, sofrendo, triste, tentando não aparentar toda a tristeza que realmente sentia, com vergonha de imaginar uma parte dele em mim, e tive certeza de que ele estava falando a verdade, eu era doente mesmo.
Meu pai, minha mãe e meu irmão sugeriram que eu fosse internado, ficasse um tempo numa clínica. Achei ótimo, eu não queria mais ficar olhando para as pessoas que estavam sofrendo por minha causa. Meu irmão me ajudou a fazer a mala. Meu pai me deu um beijo, fazia muito tempo que eu não via ele tão feliz. Minha mãe chorou um pouco mas também estava feliz. Só quem parecia triste era a minha irmã. Eu disse que ia me tratar e ia voltar logo. Ela perguntou se podia pegar o meu videogame, eu disse que sim.
Eu falei com um médico e com uma médica. Contei de tudo, dos remédios e do fato de eu ficar invisível. Eles me disseram que eu nunca fiquei invisível e eu acabei concordando. Ele perguntou se eu tinha tremores, dor ou tensão muscular, se eu me irritava ou ficava nervoso com facilidade, se eu sentia as mãos frias e pegajosas, se às vezes eu tinha dificuldade para engolir, sentia aquele nó na garganta, se às vezes sentia a boca seca, suor, enjôo ou diarréia. Eu disse que tinha tudo, menos diarréia. Ela perguntou se eu ficava muito preocupado com as minhas notas na escola ou num jogo de futebol, se eu me preocupava muito em chegar na hora, se costumava chegar muito cedo nas festas, se eu me preocupava com terremotos ou com a guerra, se eu costumava refazer uma coisa muitas vezes, até achar que estava perfeito, se eu costumava perguntar para as pessoas se o que eu fiz estava bem-feito ou não. Eu respondi sim para tudo, menos para a guerra.
Eles tinham certeza de que eu era um sessenta ponto seis, personalidade ansiosa. Eles me disseram que os sintomas da personalidade ansiosa são um sentimento de tensão constante, um sentimento de insegurança e inferioridade, um desejo permanente de ser amado, de ser aceito, hipersensibilidade à crítica e à rejeição, uma dificuldade ou desconforto para encontrar pessoas ou para
sair da rotina, sempre com medo que aconteça alguma coisa de ruim.
É perfeito, é exatamente isso. Finalmente eu encontrei alguém que descobria o que eu tinha. Só que eles tinham dúvidas se a minha ansiedade era generalizada e já se manifestava na infância, ou se era induzida por substância. A ansiedade induzida por substância surge com a intoxicação ou a abstinência. A ansiedade primária, que vem da infância, pode provocar o uso da substância. Enfim, eles tinham dúvidas se eu era louco porque me drogava ou me drogava porque era louco. Perguntaram se eu tinha ataques de pânico ou alguma fobia. Contei da vez que eu ataquei a menina no banheiro da festa, da namorada do meu irmão e do soco na mulher no supermercado, mas isso eles já sabiam. Eles conversaram um pouco e concordaram que eu devia tomar nervium. Princípio ativo: bromazepam. Indicado para distúrbios emocionais, tensão nervosa, agitação e insônia, ansiedade e humor depressivo ansioso. É exatamente o meu caso, humor depressivo ansioso.
Antes de sair da clínica e encontrar meus pais e minha irmã, e todo mundo ficar feliz por eu fingir tão bem que estava curado, eu achei um disquete no lixo da clínica. O ferrinho do disquete estava um pouco torto mas eu trouxe para casa e um dia consegui abrir dois arquivos. Um era uma tabela, sem graça. O outro tinha várias anotações, nenhuma sobre mim. Todas eram parecidas.
J.S. estava aparentemente saudável. H.M.C tinha o comportamento normal. T.H.N vinha aparentemente bem. J.M.R. havia começado a ingerir álcool combinado com o uso de codeína (xarope para tosse) três anos antes da primeira hospitalização. N.T. vinha apresentando alterações do comportamento social associado à ingestão progressiva de álcool desde quatro anos antes da primeira hospitalização. Oito semanas antes da internação, ela fez uso de amineptina com álcool pela primeira vez. O paciente M.C.S. usou cannabis durante dois anos. O paciente N.G.F. mostra o semblante apreensivo. A paciente M.F, cuja mãe é esquizofrênica, vinha consumindo cannabis e, ocasionalmente, diazepam com álcool há três anos. O paciente B.T. vinha consumindo ecstasy regularmente durante dois anos e, ocasionalmente, cocaína. Uma grave perda da capacidade de conviver socialmente foi a causa de sua internação. A paciente D.J. teve alucinações auditivas importantes seguidas de delírios. Gesticula muito ao falar. Olhar triste. Uma grave disfunção cognitiva foi percebida pelos pais da paciente, que encaminharam a internação. Segundo a mãe do paciente, dois meses antes de ser internado o filho apresentou idéias paranóides e uma importante perda de função intelectual. Gesticula muito ao falar. Não consegue se concentrar. Quatro dias antes da hospitalização, ela tomou um comprimido de certralina associado com álcool e cannabis e apresentou imediatamente delírios e alucinações auditivas. Tomou LSD por um ano antes de ser hospitalizado. Não consegue ficar parado, gesticula muito ao falar. Ouvia vozes imperativas. Alucinações auditivas, delírios e disfunção cognitiva, percebida por seus pais. Esses sintomas persistiram durante nove meses e cessaram espontaneamente. Não tem energia para nada. Ao narrar suas brigas com a mãe, fica exaltada, com o olhar brilhante. Experimentou cogumelos alucinógenos. Afirma que não confia na namorada e que seu maior desejo é desmascará-la. Tem delírios e alucinações permanentes. Seis meses antes da internação, fez uso de LSD. Gesticula muito ao falar. Medos difusos e delírios culminaram com sua hospitalização. A partir daí, houve uma mudança em seu comportamento caracterizada por uma perda de sociabilidade seguida da presença de delírios, segundo declarações dos pais da paciente. Tem um olhar triste, perdido. Um dia antes de ser internada experimentou cocaína pela primeira vez. Um mês antes da internação, ela começou a ter idéias paranóides e hiperatividade motora. Tem a testa franzida, o olhar baixo, as mãos crispadas. Cinco semanas depois da ingestão de drogas, ela apresentou delírios paranóicos persistentes. Mostra-se muito aflito e exaltado durante a consulta. No dia da hospitalização, apresentava alucinações visuais. O uso de hipofagin com álcool culminou com delírios, alucinações e comportamento agressivo em relação aos pais. Gesticula muito ao falar. Foi observada uma diminuição de sua capacidade intelectual com problemas de concentração, segundo os pais da paciente. De acordo com os pais do paciente. Descrito pelos pais do paciente. Os pais do paciente. São eles que pagam as contas e limpam a sujeira. São eles que pagam para você ficar longe, normal. Um dia meus pais conversaram com os médicos e eles me mandaram para casa. Provavelmente acharam que eu era um efe treze ponto oito, transtorno de ansiedade induzido por ingestão de sedativos, hipnóticos ou ansiolíticos. Eu podia ir para casa, provavelmente não ia sujar nada nem atacar ninguém. Estava curado. Precisava estudar, cuidar da vida, me concentrar. Foi o que eu fiz.
Lynch se recusou a dar interpretações pessoais do que ele pretendia transmitir com sua história, deixando que a audiência, críticos e até mesmo o elenco especulassem seu significado, o que torna a obra ainda mais instigante. Ele deu ao filme o slogan “Uma história de amor na cidade dos sonhos”, o que somente ajuda a criar mais suposições. Há aí um paralelo entre o ato físico de sonhar, que parece impregnar todo o filme, onde realidade e delírio se misturam; e o sonho metafórico relacionado aos desejos humanos, nesse caso referente ao estrelato em Hollywood.
Cidade dos Sonhos merece tanto louvor pela forma como brinca com o seu espectador. Emana um ar de mistério e tensão ao longo de toda sua projeção, e para além dela. Apesar de conclusivo de forma que a história possua um desfecho, o teor psicodélico e surrealista dos eventos não nos permite ratificar uma verdade fundamental sobre o que assistimos. O filme solicita quase que um culto pós-projeção para que possamos absorver tantas informações e tantas imagens poéticas e simbolistas. Talvez seja necessário até mesmo um pouco de pesquisa para que possamos clarear nossa mente, portanto não se preocupe se você estiver perdido ao término da projeção, pois tenho certeza que até o mais sagaz dos espectadores precisaram de um momento para processar tanta informação e juntar as peças do quebra-cabeça.
Mulholland Dr. é bastante comparado ao clássico de Billy Wilder Sunset Boulevard (1950), que conta a história de uma atriz decadente que após ser descartada das produções hollywoodianas por sua idade avançada, começa a perder a noção da realidade e ter delírios sobre seu grande retorno às telas. É irônico ao traçar esse paralelo que um dos motivos da recusa da ABC para o piloto da série tenha sido exatamente a idade de Watts e Harring. Lynch parece tecer uma crítica à indústria hollywoodiana que muitas vezes drena suas estrelas, que para chegarem ao topo precisam passar por muitas provações na “cidade das ilusões letais”. Naomi Watts inclusive declarou se identificar com a história, pois também sofrera para chegar ao estrelato, passando por muitas decepções antes de conseguir papéis promissores.
Lynch parece querer nos transportar para um sonho delirante onde cada um terá sua interpretação de acordo com sua experiência. Sua diversão é observar tantas teorias para uma história que segundo ele, é coerente e compreensível. Acontece que para além dessa linha da história que é coerente e compreensível, ele adiciona inúmeras camadas de símbolos além de um labirinto de acontecimentos. Você pode assistir ao filme pela primeira vez e pensar que é puramente uma crítica à Hollywood. Ao assistir pela segunda vez, você pode se aproximar mais do caráter existencial que o filme projeta ao indagar questões de identidade. E assim se segue a experiência fílmica de Mulholland Dr., onde o podemos assistir inúmeras vezes e sempre ter uma nova percepção sobre a história, seus personagens, detalhes, etc.
Se o mestre dessa obra-prima se recusa a estabelecer uma verdade absoluta para sua história, quem sou eu para tal? É exatamente por prezar a filosofia de que a realidade é relativa que Lynch mantém sua obra eternamente envolta em mistério. Se foi um sonho ou se foi real, você é quem vai dizer.
"Quando eu trago um bibelô pra dentro da minha casa, é uma memória que eu agarro pra mim. Pra sempre. Até meu último dia. A minha memória se perde, ela se esvai sem tudo isso aqui. A geração de vocês não gosta de quinquilharia, vocês não precisam. Vocês fotografam, digitalizam, editam, deletam. Mas não retêm. A informação tá em todo canto, mas passa. Se perde."
Tão Forte e Tão Perto
4.0 2,0K Assista AgoraEu considero o final do livro a sua melhor parte, a mais tocante, e no entanto, no filme, eles meio que ignoraram essa narração do Oskar e a substituíram com o momento onde a mãe age na mecânica da última página do diário reproduzindo a queda do Thomas ao contrário, demonstrando um desejo do Oskar de desfazer os acontecimentos. Segue o trecho para quem se interesse:
I ripped the pages out of the book. I reversed the order, so the last one was first, and the first was last. When I flipped through them, it looked like the man was floating up through the sky. And if I'd had more pictures, he would've flown through a window, back into the building, and the smoke would've poured into the hole that the plane was about to come out of. Dad would've left his messages backward, until the machine was empty, and the plane would've flown backward away from him, all the way to Boston. He would've taken the elevator to the street and pressed the button for the top floor. He would've walked backward to the subway, and the subway would've gone backward through the tunnel, back to our stop. Dad would've gone backward through the turnstile, then swiped his Metrocard backward, then walked home backward as he read the New York Times from right to left. He would've spit coffee into his mug, unbrushed his teeth, and put hair on his face with a razor. He would've gotten back into bed, the alarm would've rung backward, he would've dreamt backward. Then he would've gotten up again at the end of the night before the worst day. He would've walked backward to my room, whistling "I Am the Walrus" backward. He would've gotten into bed with me. We would've looked at the stars on my ceiling, which would've pulled back their light from our eyes. I'd have said "Nothing" backward. He'd have said "Yeah, buddy?" backward. I'd have said "Dad?" backward, which would have sounded the same as "Dad" forward. He would have told me the story of the Sixth Borough, from the voice in the can at the end to the beginning, from "I love you" to "Once upon a time..."
Clube dos Cinco
4.2 2,6K Assista AgoraÉ tipo uma sessão de terapia entre os arquétipos escolares.
É definitivamente um dos filmes que mais define o comportamento adolescente.
Uma Noite Alucinante: A Morte do Demônio
3.8 1,4K Assista AgoraSam Raimi revolucionou a indústria do terror? Sim. A Morte do Demônio é um dos maiores clássicos do gênero? Sim. É um dos mais influentes de todos os tempos? E como! Muito do que vimos após tem uma pitada de Evil Dead. Mas o longa sobreviveu ao tempo? Infelizmente não. O filme caminha muito bem até os eventos sobrenaturais dentro da cabana. A sequência de abertura é brilhantemente filmada, instaurando um clima de suspense muito engajante. Mas chega uma hora em que o filme se torna muito trash. Os efeitos da época ficaram muito ultrapassados e o filme não consegue evitar a comicidade. O roteiro vai se atrapalhando nos eventos e parece que a certo ponto tudo o que importa é espirrar gore na nossa tela. Importante, não atemporal, porém obrigatório.
Os Caça-Fantasmas
3.7 733 Assista AgoraQue filme horrível. Nunca tinha tido o desprazer de assistir. Me senti violado durante esses 100 minutos. Roteiro bobo e infantilizado, personagens rasos e sem carisma. Sigourney Weaver tendo seu imenso talento pisoteado por uma personagem tão imbecil. Entendo que haja uma nostalgia envolvida, mas esse longa é realmente péssimo.
Boi Neon
3.6 462Eu estou, desde sempre, apaixonado por esse pôster. Quando ele toma vida no filme, que coisa mais linda! A fotografia em geral, assim como quase tudo nessa obra, é extremamente cativante. Uma cena em particular entre Cacá e Iremar, quando ele serra o manequim (você que assistiu, sabe do que tô falando), é de uma simplicidade extrema e no entanto emocionante de uma forma como poucos filmes conseguem criar. "Boi Neon" não é um divisor de águas no aspecto de debate, como talvez a sinopse faça parecer. É um filme contemplativo e extremamente realista. E o que quero dizer com isso? Que ele é igual a vida. Não há plot points mirabolantes, desfechos catárticos, nem nada que o valha. Mas Mascaro faz aqui um cinema, tão, tão belo. Algumas cenas se inserem pelo simples prazer de transpor poesia para a tela. É uma realidade tão distante da minha, e tenho certeza que de grande parte do público que vem acompanhando a obra, mas é um universo que você se joga de cabeça e quer mergulhar cada vez mais. Quando acaba, dá uma saudade, uma vontade de ter ficado mais um pouco. Vi gente reclamando que o filme não debate e que não chega aos lugares que ele propõe. Oras, o filme é o que ele é. Se suas expectativas eram outras, esse é um problema inteiramente seu. Nenhuma obra é realizada se ajoelhando diante das vontades do expectador. Ao meu ver, Boi Neon cumpre o seu papel como a obra cinematográfica que nos é imposta: divertido, envolvente, prazeroso, realista. Se você espera um filme composto por debates histéricos de temas como papeis de gênero, direito animal, pule para outro. Boi Neon está mais ocupado com a simplicidade de ser um recorte realista, de nos apresentar a um mundo tão real que pode se situar em algum lugar desse Brasil.
Star Wars, Episódio VII: O Despertar da Força
4.3 3,1K Assista AgoraO Despertar da Força é um puta entretenimento? Sim. É um grande filme? É um bom filme. Mas qualquer um que negue que o episódio VII não passa de uma versão atualizada e recauchutada do primeiro clássico estão um pouco cegos pelo fanatismo. Grande parte desse buzz e dessa nota alta é pelo simples fato de se tratar de uma grande e amada franquia. Mas me desculpem, não consigo fechar os olhos para os defeitos desse novo Star Wars. Por mais que ele seja superior aos 3 episódios da "nova" trilogia, ele continua sendo muito inferior aos clássicos pelo simples fato de tentar repetir a fórmula quase que roboticamente. Você consegue fazer paralelos entre personagens e situações em quase todo o filme. Poderia ter sido mais original.
Praia do Futuro
3.4 935 Assista Agora"Existem dois tipos de medo: um é de quem finge que nada é perigoso, o outro, de quem sabe que tudo é perigoso."
Mistress America
3.5 210Tracy é uma caloura da faculdade perdida na imensidão descomunal de Nova York. Apesar de cercada por pessoas de todos os lados, Tracy se sente solitária e deslocada. Ela tenta se encaixar em grupos da faculdade, mas é só quando a sua mãe, que está prestes a se casar com um sujeito, sugere que ela ligue para a filha desse cara afim de criar laços, que ela encontra sua verdadeira inspiração. “Mistress America” trata mais uma vez da autodescoberta, como já é recorrente na filmografia de Noah Baumbach. Tracy é uma garota perdida, sem personalidade, que ao conhecer Brooke começa a trilhar o seu próprio caminho através da “irmã”. E é isso que Brooke desperta em quem a cerca: inspiração, impulsos, vontade de viver. Brooke se torna uma musa para todos que cruzam o seu caminho. Foi assim com Mimi Claire que roubou sua ideia das camisetas para fazer sucesso, e a história se repete com Tracy. Brooke é extremamente criativa e prolífera. Acontece que a garota não parte para a execução de suas ideias. A certo ponto Mimi afirma que roubou sua ideia sim, pois Brooke nunca a colocaria em prática. Essa é uma grande verdade no mundo de quem trabalha com produção criativa. Há quem crie, há quem execute, há quem não saia do lugar. E tem um porém mais amargo ainda: nem sempre basta ter a melhor das ideias, ser o melhor. Você depende da sorte, de dinheiro, das suas influências, do lobismo. Você trava uma constante batalha consigo mesmo, lidando com as suas inseguranças, com o seu medo do fracasso e do julgamento alheio. E é entre tantos empecilhos e tanto desejo de fazer algo de suas vidas, de ser alguém, que essas personagens se embrenham num emaranhado de vontades onde uma começa a se misturar com a outra. Mas no final das contas, “Mistress America” é um filme divertidíssimo que não se ocupa em sobrecarregar o clima para dramatizar a sua história. É um ponto de vista de quem prefere rir para não chorar. E é um deleite cada minuto de projeção! Noah Baumbach emula muito bem o jeito Woody Allen de contar histórias onde a desgraça é sempre pisoteada com sátiras e um humor negro delicioso. Greta Gerwig que também assina o roteiro se reafirma como um dos maiores talentos da nova geração de atrizes, segura no seu papel que é uma das mais belas atuações do ano. Ao final de Mistress America você vai sentir que está se despedindo de pessoas que você jamais gostaria de dar adeus. São personagens que você gostaria de sair pra beber, pra conversar, de descobrir um pouco mais. Talvez seja o efeito mágico de Brooke sobre o expectador.
"I've spent my whole life chasing after things and knocking at doors, and I'm tired of running towards people. I wanna be the place that people come to. I wanna make a home for all the knockers and runners. I'm good at that. I'm happy with that."
As Memórias de Marnie
4.3 668 Assista AgoraGostaria de descobrir onde fica a fonte de inspiração de todos que trabalham no Studio Ghibli. Não tem uma produção que te decepciona, nenhuma. Todas as obras do estúdio são imensamente bem elaboradas, sempre contando com personagens bem estruturadas e profundas. São filmes abundantes de sensibilidade e conhecimento das emoções humanas. Nenhuma produção até hoje conseguiu não me emocionar e/ou me deixar de coração mais leve. E não foi diferente com "Marnie". Terminei contente em perceber que a pequena Anna encontrou um motivo para sorrir, um motivo para amar o seu destino apesar dos seus percalços. Terminei este filme mais esperançoso com a vida, porque é disso que se trata o cinema: criar um mundo de mentira, que nos transforma de verdade. Para mim o Studio Ghibli não faz filmes, faz obras de arte.
Lunar
3.8 686 Assista Agora"I'm not sorry Sam, I can do that."
É muito nítida as referências ao "2001: Uma Odisseia no Espaço" do Kubrick. Mas fico contente que "Lunar" tenha conseguido criar identidade própria reformulando temas bastante rebuscados como identidade e o espaço. O filme começa bastante introdutório e lento, mas logo que se instaura o suspense, somos fisgados de curiosidade até o final. Sem dúvidas um dos pontos altos desse filme é a incrível direção de fotografia e o design de produção, bastante oldschool ao invés de carregada de computação gráfica como vemos em grande parte das produções atuais. E claro, não poderia deixar de mencionar a estupenda trilha sonora de Clint Mansell. O compositor trabalhou em todos os filmes do Darren Aronofsky (Black Swan, The Wrestler), e aqui compôs uma faixa tão épica (Welcome to Lunar Industries) quanto a que considero sendo sua obra-prima (Lux Aetern) da trilha de Requiem For a Dream. "Moon" vem fazer uma abordagem sobre ética e o desenvolvimento desenfreado das corporações que não medem esforços para gerarem mais lucro. A Lunar Industries não existe como retratada no filme, mas há inúmeros clones instaurados aqui no planeta Terra. "Lunar" busca também debater a forma como o meio corporativo enxerga a mão de obra humana. Para essas empresas, somos apenas números, contratos, uma ferramenta. Somos como qualquer outro, não temos identidade própria, não somos indivíduos, somos apenas clones. Nossa história é qualquer uma que nos é inserida. Não somos dotados de humanidade, somos mais um Gerty. Sam encerra essa história com uma frase que sintetiza todo o filme:
"Gerty, nós não somos programados. Nós somos pessoas, entendeu?"
Melancolia
3.8 3,1K Assista AgoraSomente quem já se sentiu encurralado pela impotência gerada pela angústia vai compreender esse filme plenamente. A melancolia como sentimento tem aqui sua melhor analogia: uma colisão iminente, prestes a devastar sua existência. A primeira parte do filme trata da ciência dessa situação por parte de Justine, da sua entrega à desesperança, a sua tentativa de digestão do vazio de propósito de todas as coisas. Ela sabe que o futuro não é promissor. Ela está se casando, mas no fundo pensa, pra quê? Esse capítulo do filme ilustra a fragilidade dessa construção que denominamos sociedade. São muitos conceitos, como família; muitos rituais, como casamento; muitas obrigações, como trabalho. E toda essa edificação social pode ruir num piscar de olhos. O que muitos não percebem é que estamos todos prestes a colidir com Melancolia. Afinal, qual a única certeza de nossa existência? A morte. Então, não estaríamos todos nós vendo Melancolia cada vez maior, cada vez mais perto? É disso que se trata o segundo capítulo do longa: aceitação. Por que reagir se o futuro é tão vazio, se no horizonte há somente morte? Justine entende que seu papel diante do destino é aceitá-lo. Ela se entrega. Lars Von Trier consegue transpor para a tela de forma excruciante o sentimento de uma pessoa oprimida pelo vazio existencial. É uma questão de percepção do nosso meio e do nosso papel nele. No final das contas, Melancolia é um filme sobre a angústia de estar vivo, exatamente por termos consciência da morte. Esse diálogo de Justine e sua mãe sintetiza bem o sentimento geral do longa diante da vida:
Justine: Estou com medo.
Gaby: Todos nós estamos, querida. Apenas esqueça. Dê o fora daqui.
Quando Melancolia engole a Terra com tamanha voracidade, nos damos conta da real insignificância da nossa existência na vastidão do universo.
O Mágico de Oz
4.2 1,3K Assista AgoraDevemos discutir "O Mágico de Oz" tendo como referência o tempo em que foi concebido. O filme é bastante constante, e isso é uma proeza tendo em vista de que o material rodou na mão de cinco diretores de acordo com os créditos do IMDB. Os efeitos especiais são muito bem elaborados se formos levar em conta de que o cinema mal havia completado quarenta anos quando o filme foi lançado.
O longa é um dos mais influentes e mais adorados de todos os tempos. "Over the Rainbow" foi incessantemente interpretada em programas de calouros mundo afora. Temos cover de artistas de todas as vertentes musicais como a cantora pop Kylie Minogue, a banda de rock Guns n' Roses, entre inúmeros outros. Vimos a música ser reinterpretada em filmes, como em "Australia" por Nicole Kidman. Temos no Brasil o clipe de "Na Sua Estante" da banda Pitty, claramente inspirado na história do Homem de Lata. Isso tudo só para citar alguns exemplos.
Mas devemos ressaltar que depois de tantos anos, o filme se tornou sim, datado. "O Mágico de Oz" perpetua um padrão muito utilizado em antigas histórias denominado "conto de retorno". Nesse tipo de conto, o personagem principal vive uma grande aventura fora do seu ambiente familiar para finalmente perceber que o lugar mais seguro para si é ao lado de sua família. Podemos conferir esse modelo sendo aplicado em muitos contos como "Chapeuzinho Vermelho", "João e Maria", entre outros. E há um grande conservadorismo nesse discurso que visava sempre podar o senso de liberdade e desenvolvimento das crianças, demonstrando de forma lúdica de que a vida fora de casa é cheia de perigos, e que "não há lugar como sua casa".
A violência é totalmente banalizada, já que os personagens não medem esforços para conseguirem o que desejam, mesmo que para voltar para casa, conseguir coragem, um coração ou um cérebro, signifique matar a Bruxa. Tudo isso para satisfazer um capricho do "mágico" de Oz. E para justificar esses atos moralmente duvidosos, tudo recai na desculpa preguiçosa do acaso de "foi um acidente, foi sem querer". Nem preciso comentar o confronto entre Dorothy e a Bruxa, que deveria ser o ponto mais alto da trama mas que no entanto se torna desconcertantemente mal conduzido, sem se falar no desfecho totalmente insatisfatório onde ação e reação simplesmente não se explicam. A forma como optaram por desenvolver a "premiação" na tentativa de atrelar esse recebimento não por mágica, mas por méritos encontrados no mundo real, se tornou também deveras insatisfatório pela insistência de manter um discurso conservador onde "tudo o que você precisa está com você".
Não desmereço de forma alguma a influência e a importância de "The Wizard of Oz" para a história do cinema. Mas acho que cabe uma reflexão sobre o quê dessa história se tornou datado para que possamos aprender não somente com os seus acertos, mas também com os seus erros.
As Aventuras de Paddington
3.6 278 Assista AgoraGrande parte das pessoas vão enxergar Paddington como sendo apenas mais um filme "família" que alia animação com live action, dosando boas pitadas de comédia. Mas por baixo da montagem excêntrica à la Wes Anderson, há um forte teor político que vem a calhar nesse momento específico. Todos devem estar acompanhando a crise que os países europeus estão enfrentando com refugiados do Oriente Médio que estão atravessando as suas fronteiras fugindo de guerras, fome, terrorismo, entre outras moléstias. Estão em busca de uma vida melhor, assim como o nosso personagem principal. Em uma carta, o urso escreve para a tia dizendo o seguinte:
"Londres não é como imaginávamos. Quase ninguém diz olá ou usa chapéu. E você não pode simplesmente chegar na estação e arrumar uma casa. É difícil imaginar onde um urso poderia se encaixar numa cidade tão estranha e fria."
Esse é o retrato do choque de culturas de quem sai de sua terra e chega numa outra. Os costumes são outros, as roupas são outras, a língua é outra. Você não chega de fato no eldorado que imaginava. Você é geralmente recebido com hostilidade. O marido diz para a esposa que tenta ajudar o urso: "Ele não é problema nosso". E é assim que muitos enxergam a questão da imigração. A certo ponto no flashback da personagem da Nicole Kidman, um dos exploradores diz "Eles nem ao menos falavam inglês", se referindo aos ursos. Se você vem de outro país, não fala a nossa língua, não é dotado de nossa cultura, você não é um dos nossos, e portanto, não é problema nosso, não merece respeito.
"Paddington" pode ser encarado como bastante clichê na espinha dorsal de seu roteiro, mas agrega bons elementos políticos para enriquecer a história, e é dirigido com extrema sensibilidade, onde um ser criado por computação gráfica consegue nos emocionar e fazer com que torçamos para que no final das contas ele encontre o seu tão sonhado lar. Quando Paddington diz no seu diálogo final que ele é um urso chamado Paddington, é uma reafirmação de suas origens, de quem ele é, de onde ele veio. É um recado, uma dica para quem se sente um estranho no ninho. Você é o que é porque veio de onde veio. Para prosseguir com dignidade, você precisa reconhecer as suas qualidades.
"A Sra. Brown diz que em Londres todo mundo é diferente, e isso significa que todo mundo pode se encaixar. Eu acho que ela deve estar certa, porque por mais que eu seja diferente de todo mundo, eu realmente me sinto em casa. Eu nunca vou ser como as outras pessoas, mas tudo bem. Eu sou um urso. Um urso chamado Paddington."
Que Horas Ela Volta?
4.3 3,0K Assista Agora"Que Horas Ela Volta" narra a história de três gerações de mulheres. Val é a mais velha delas. Emigrante nordestina, deixou sua terra para tentar uma vida melhor na cidade de São Paulo. Faz parte da típica geração de nordestinos que fugia das dificuldades enfrentadas nos estados mais fragilizados da República. Depois temos Bárbara, a patroa de Val, mais jovem que ela, aparentemente vinda de uma família mais próspera. Posteriormente "juntou fortunas" com o marido, bem de vida, e juntos puderam proporcionar certa estabilidade financeira para a sua família. A terceira é Jéssica, filha de Val, uma jovem garota pavimentando o seu caminho de mulher, "segura de si". Ao vir para São Paulo, Val não teve outra escolha senão deixar a filha com parentes. É financeiramente que a mãe pode participar da vida da filha durante todos esses anos.
O filme ilustra bem uma frequente ciranda que acontece entre muitas famílias brasileiras: as mães de classe média/alta deixam os filhos com babás, geralmente mães de classe baixa que deixam os filhos em creches, ou muitas vezes com algum parente. Essas crianças são a síntese do título do filme, onde o filho da babá e da mãe bem-de-vida se fazem a mesma pergunta: que horas ela volta? É um filme sobre ausência, sobre a falta que faz aquele ser que mais pode idolatrar e bem-querer um filho. E nesse troca-troca, os filhos deixam de reconhecer suas mães biológicas como forte para adotar afetivamente uma mãe postiça. Fabinho, filho de Bárbara, recorre à Val quando não consegue dormir, quando necessita de carinho, quando se sente Vulnerável. Jéssica ressente a mãe por a ter abandonado, pois não entende as motivações da mãe.
A história dessas três gerações de mulheres se fundem quando a certo ponto, Jéssica avisa para a mãe, que gostaria de morar um tempo em São Paulo para prestar vestibular. Ao chegar em São Paulo, Jéssica interfere na rotina da casa por não estar habituada com a forte divisão de classes ali imposta. Ela vai aos poucos quebrando paradigmas, não por ser necessariamente transgressora, mas por não saber "o seu lugar". A certo ponto, a filha indaga a mãe, mais ou menos assim: "aonde você aprendeu isso? Tá escrito em algum livro? Pode isso, não pode aquilo". A mãe responde "Isso você já nasce sabendo". Val viveu inserida numa geração onde o pobre era subordinado ao rico, e isso vem desde os tempos da colonização. Ela se reconhece como inferior, assim como Bárbara, a dona da "casa grande" se reconhece como superior. Já Jéssica, não se identifica com nenhum desses dois papeis, ela se identifica como igual. Por que? Porque a garota é fruto de uma geração que começa a reconhecer que a distribuição de oportunidades deve ser igual para todos, independentemente de suas heranças e privilégios. O topo da pirâmide não é por direito de ninguém, é um caminho a se percorrer por mérito, por uma conjuntura favorável. A piscina representa o âmbito da burguesia. Quando Jéssica é empurrada na piscina por Fabinho e seu amigo, Bárbara fica horrorizada. Ela logo liga para o higienizador da piscina para que a trate. Ela não admite que alguém "inferior" usufrua dos seus privilégios. A desculpa que ela dá para essa higienização no entanto, é de que havia "um rato na piscina". É dessa forma que na realidade ela enxerga a filha da empregada. É como se ela reconhecesse o papel daquele "animal" no ecossistema, onde um depende do outro, mas não admite que ele desestruture a sua ordem. Val nunca foi motivo de incômodo, pois ela "sabe o seu lugar", ela não põe em xeque essa distribuição de papéis.
Acho louvável que Ana opte por não corromper Jéssica, mesmo após as investidas do marido de Bárbara, que logo se vê seduzido pela inocência e ansiedade da filha da empregada. Jéssica não entra na história como a famosa "Lolita" que usa sua presença de forma sexual. Jéssica é sim ambiciosa, mas não no sentido pejorativo e ganancioso da palavra, daquele que passa por cima de qualquer moral para chegar onde quer. Ela sabe o que quer, e o quer desde que seja dentro de seus valores.
Ao final, percebemos que o filme é um retrato do novo Brasil. Um Brasil que é fruto de muitos governos, que nos seus erros e acertos, ajudaram a construir um país onde a classe média possa ser mais ambiciosa, onde há distribuição de renda, uma maior oferta de oportunidades. Essa classe média se cansou do pão e circo, ela quer mais. É um país onde as pessoas não mais se contentam em se por no seu lugar. É um país onde muitas Bárbaras ainda se incomodam que as Jéssicas nadem em sua piscina, que elas comam "o sorvete do Fabinho". É felizmente um país com menos Vals, e mais Jéssicas, onde as Bárbaras estão aprendendo a dividir a piscina.
Foi lindo ver a sala de cinema aplaudir quando Val entra no quarto do Fabinho, extasiada, pois sua filha passara no vestibular, enquanto o filho da abastada família fora desqualificado. Bárbara não consegue esconder o seu choque, o seu desapontamento com a conquista da filha da empregada. Foi um grande tapa em sua cara, e nós, expectadores, deliramos de prazer na cadeira do cinema.
Val acha uma forma de consertar a sua história torta, de recomeçar, mais uma vez através da filha, e para a filha. Ela batalhou a vida toda para que Jéssica pudesse não cometer os mesmos erros da mãe, para que ela pudesse honrar todo o seu trabalho e sacrifício. Por amá-la demais, e não o contrário, a abandonou. Foi pensando no futuro da filha, que a mãe deixou tudo para trás. E é pensando no futuro da filha, que mais uma vez, a mãe abandona tudo para continuar construindo o seu futuro.
"Que Horas Ela Volta" é assim, te deixa com o coração aquecido, com vontade de botar pra fora todo o sentimento que ele te causa, de levar todas as pessoas para o cinema, para que muitos possam vivenciar essa história tão encantadora. Espero que o filme faça muito sucesso no Brasil, assim como vem fazendo lá fora. Se você assistir e gostar, por favor, recomende! Faça você também um textão, pois filmes como esse, merecem.
O Brasil deu Certo. E Agora?
3.3 17Me considero de esquerda, e achei o documentário bastante lúcido. Há muitos hipócritas como poderíamos esperar, mas o documentário consegue traçar um panorama do que aconteceu na história do Brasil para que ele desse certo. Ou não. São muitas ideologias propostas, e portanto o debate é livre. Não se pode negar o êxito do plano real, como muitos tentam fazer na tentativa de diminuir o lado da chamada direita. O único problema é a forma como o Fernando Henrique veste a camisa do real, como se ele a tivesse confeccionado sozinho, no fundo de seu quintal. Foi um trabalho conjunto, com muito estudo das experiências passadas, dos fracassos e êxitos não somente de planos da economia brasileira, mas também da mundial. Portanto também é muita falácia inútil dizer que o governo Lula se aproveitou das reformas do governo FHC. Ora, se todo governo é uma herança e também um projeto de futuro, logo não existe aproveitamento no sentido pejorativo. Quando um governo assume mantendo o que houve de positivo e expurgando aquilo que foi danoso, todos nós, brasileiros, temos somente a ganhar. Parem com essa mentalidade de campo de batalha onde alguém vence e outro perde. Quando um governo perde, todos os brasileiros perdem. O êxito do Brasil como nação depende do êxito do governo em exercício, seja ele representado pelo presidente ou o partido que seja. Lembrando sempre de que o Brasil é uma república federativa, e portanto nem todas as contas devem ser cobradas do presidente. Fiquem de olho nos governadores, prefeitos, senadores, deputados, vereadores. São todos parte do sistema político e têm suas responsabilidades.
Drácula de Bram Stoker
4.0 1,4K Assista AgoraAs pessoas precisam aprender de uma vez por todas que há o mundo literário e há o mundo cinematográfico. São diferentes, distintos, separados, apesar de colidirem em muitos momentos. O público do cinema não é necessariamente o da biblioteca. Garanto que muitas pessoas nunca leram "Drácula" de Bram Stoker e se sentiram muito satisfeitos com a adaptação do Coppola, exatamente por não ter conteúdo para comparações e avaliar o filme por ele mesmo. Desmerecer uma obra de cinema por ela não seguir as definições de um livro, é muito indevido. Você pode sim, ter suas ressalvas quanto ao que foi projetado na tela se comparado ao material de origem, mas rebaixar o filme porque a cor da cadeira da sala do protagonista não é da mesma cor descrita no livro é deveras injusto. O cinema tem seus maneirismos e muitas vezes pede algumas liberdades. "Drácula" de Francis Ford Coppola é um filme que sabe dosar seu suspense de forma muito equilibrada através de um senso de urgência que se instaura através da música composta por Wojciech Kilar e o iminente encontro e reencontro de Drácula e Mina. O filme possui um caráter sombrio que certamente irá agradar os fãs do gênero, com direito a cenas horripilantes de possessão e transformação. Destaque para as objetivas do Drácula e para o trabalho de maquiagem da equipe que rendeu Oscar em 1993. A cena de abertura é primorosa, principalmente a sequência rodada em forma de sombras sobre tons quentes.
Rebecca, a Mulher Inesquecível
4.2 359 Assista AgoraRebecca está morta. Deixou viúvo o Mr. de Winter. Não há porque escalar uma atriz para representar o seu papel, não irão utilizar os recursos do flashback. Mas se engana quem pensa que pelo fato de estar morta, Rebecca não está presente no filme. E o que mais me espanta e me agrada nesse filme é a capacidade admirável de Hitchcock conseguir construir e imprimir uma personagem que é o cerne da trama, mas que sequer existe, sequer aparece na tela por qualquer momento que seja.
A certo ponto, Mrs. Danvers indaga à segunda Mrs. de Winter:
"Você acha que os mortos voltam e assistem os vivos? (...) Às vezes, me pergunto se ela não volta aqui em Manderley, para assistir você e o Mr. de Winter juntos."
Diria que que Rebecca nunca precisou retornar à Manderlay pois ela nunca de fato partiu. Ela se manteve viva nas entranhas daquela mansão, na memória de quem a ama e de quem a odeia. E não há nada mais poderoso do que as lembranças. É assustador pensar o quão fantasmagórica podem se tornar as lembranças sobre uma pessoa.
"Rebecca" é de fato um filme muito bem desenvolvido, mesmo que um tanto quanto lento. Temos um bom exercício de ambientação, somos bem situados com as particularidades do personagens, e depois de imersos nessa realidade, conseguimos ter a revelação do que de fato aconteceu naquele lugar. Aí sim então, vemos Hitchcock pesar sua mão no filme, inserindo seu habitual suspense. A cena de abertura é particularmente hipnotizante.
Na Natureza Selvagem
4.3 4,5K Assista AgoraSempre me incomodei com pessoas que propagam a mensagem vazia de "se libertar da sociedade". Inclusive, comecei a assistir o filme com uma postura bastante hostil a esse comportamento raivoso e rebelde do garoto. Não que eu ache que a sociedade como estrutura seja irrepreensível, mas também acho que pode se extrair algo muito válido de ambos os lados, de ambas as experiências. A natureza e a "civilização" não precisam se opor. Elas podem e devem viver em harmonia. Esse deveria ser o núcleo do pensamento de todos. O ser humano é único ser que se porta como um vírus, aquele que extrai sua energia através da destruição do seu meio. Fiquei muito contente ao ver que conforme o filme seguia, convergia para um ponto de vista mais moderado, menos radical do que o mostrado de início através do personagem principal. O ser humano não é feito somente do instinto animal de sobrevivência. E por isso ele evoluiu. Se o que importasse para a raça humana fosse somente se alimentar e se reproduzir, ou seja, sobreviver, não teríamos evoluído em forma de sociedade, desenvolvendo a cultura e outras particularidades de nossa existência. Precisamos compreender que para nossa evolução pessoal é necessário autoconhecimento. E este, vem da reflexão, do conhecimento íntimo de você como pessoa, você e seu ambiente; e também vem da partilha de conhecimento e experiências com outros seres. Afinal, "a felicidade só é real quando compartilhada". Chris finalmente compreende que seu intuito não era ser outro, se tornar o alter ego Alex. Mas afim de encontrar a sua verdade, o seu ser mais legítimo, ele precisou abandonar o que era, adotar outro, para então chegar numa soma autêntica. Ele percebe que seu radicalismo perante aos seus problemas, nada mais era do que sair do ponto 0, girar 360, e cair no mesmo lugar. Ele percebe que o mais lindo e o mais valioso durante sua jornada não foram os seus momentos sozinhos, mas aqueles compartilhados com pessoas que ele havia amado e aprendido algo em sua companhia. No final das contas, Chris é traído pela própria natureza que resolve por fim assumir o seu lado selvagem. Ele é traído pelo seus livros e suas verdades relativas. E sentimos um amargor de partir o coração. Mas também aprendemos algo. A todos nós, seres pensantes e errantes, só nos resta torcer para que não precisemos chegar até a ponta do abismo para ter nossa vertigem de sabedoria.
"When you want something in life, you just gotta reach out and grab it"
Sangue Azul
3.3 54 Assista AgoraO mais novo longa de Lírio Ferreira começa nostálgico, em preto e branco, não por acaso. O tom de nostalgia e melancolia percorre todo o filme como um personagem. Mais tarde, ainda no início do filme, Kaleb com uma foto de Marlon Brando nas mãos associa a intromissão rebelde do circo na ilha de Noronha com a do personagem de Brando em O Selvagem, afirmando que o cinema nasceu do circo. Não haveria forma mais adequada de homenagear o cinema, sem deixar o terreno emocional do filme. Os números circenses são hipnotizantes, nos transportam para debaixo de sua tenda, como se fôssemos não expectadores na poltrona de um cinema, mas sim, na arquibancada de um circo. E é tudo belíssimo. Como supracitado, Sangue Azul é uma obra extremamente bem elaborada com maestria em todos os seus aspectos. É uma primorosa combinação de ambiente, personagens e história. Falando em personagens, são desenvolvidos minuciosamente e constantemente emparelhados com o ambiente que adquire um tom místico (no entanto, não fantasioso). Apesar de ter essa paisagem tropical estonteante, Noronha se torna palco de dores e pesares, de uma infelicidade misteriosa que não se sabe de onde emana. O roteiro é muito competente em sempre fazer esse enlace entre ambientação e os personagens, é tudo muito sólido. Em seu último diálogo, o filme explana de forma poética e recheada de signos o romance proibido de Zolah e Raquel o associando a uma lenda da formação geológica de Fernando de Noronha. Zolah, um dia Pedro, sente que tivera a vida roubada. E decerto, tivera. Sua mãe, pressentindo o "perigo" da paixão dos filhos, mandara o garoto para longe com a desculpa de que ele era "grande demais para aquela ilha". E sim, o garoto percorreu o mundo e se expandiu da melhor forma possível. Porém, Pedro, agora Zolah, se sente traído, vazio, sem propósito ou empatia por ninguém. Ele vê em cada canto daquela ilha, buracos que ele poderia ter preenchido. Quem sabe se nunca tivesse partido, poderia ter sido feliz. Quem sabe, o contato físico, porém não íntimo explicitado em suas constantes relações sexuais durante o filme, pudessem ser contatos mais profundos e sinceros. Aquele contato apaixonado direcionado à irmã, repreendido pela mãe. Então, sem perspectivas de felicidade em seu horizonte, Zolah resolve literalmente mergulhar no universo de sua amada, em uma das cenas mais belas do cinema nacional, onde debaixo d'água, eles dançam, correm, e brincam. São felizes juntos, recobrando um pouco do que lhes fora tirado. Zolah (ou quem sabe agora, novamente Pedro), enfrenta o seu medo da água (representado como o universo da irmã), mas enfrenta também, de forma alegórica, o medo que sempre tivera do seu sentimento por Raquel. Mas o medo já não importa mais, porque ao contrário do que afirma Kaleb no começo dessa jornada, Pedro se torna uma fragata, sem medo de mergulhar para buscar o que deseja. Sem medo do preço que o futuro possa cobrar.
Rio, Eu Te Amo
2.5 481 Assista AgoraO nome da série é "Cities of Love". Os produtores não mudariam o teor do projeto só para agradar brasileiros chorões que não entendem a importância do nosso patrimônio. O Rio não é dos cariocas, ele é do Brasil e de quem mais o quiser chamar de seu. Não é novidade de que a cidade mais conhecida do Brasil no mundo é o Rio de Janeiro, a mais impressa no imaginário coletivo. E é sim, uma das mais lindas do país. Ninguém aqui afirmou que é a cidade mais linda e nem a mais importante só por terem feito um filme sobre ela. Até porque beleza é relativa e cada lugar tem seu charme e sua história. Eu moro em e amo São Paulo e isso não me impede de amar também o Rio, Florianópolis, Curitiba, e mesmo sem conhecer, Pernambuco e seu estupendo cinema. O filme segue a linha da série como foi no mundo, uma cidade em foco. Nova York representa o Texas e outras regiões dos Estados Unidos? Não. Representa os Estados Unidos? Com certeza! Quanta falta de maturidade esse tipo de rivalidade regional. Mas enfim. Só lamento que o filme não seja tão excelente como "Paris, Eu Te Amo". Falta vigor nos segmentos, é um problema de roteiro mesmo. Acabamos entretidos pela beleza das filmagens e só. O único curta que realmente me cativou foi o da diretora Nadine Labaki cujo trabalho eu admiro,e que conseguiu captar a essência da simplicidade. Diria que os segmentos do Meirelles e do Sorrentino sejam interessantes e também compensem a experiência. Já Turturro imputou uma lindíssima fotografia em um ambiente fechado, e Padilha capturou as mais belas paisagens do Rio.
Grey Gardens
4.3 105"We better check on mother and the cats. She's a lot of fun, I hope she doesn't die. I hate to spend another winter here though. Oh God, another winter."
Essa frase resume bem o sentimento de Edie sobre sua mãe: ela a ama, mas odeia estar presa à ela e àquele lugar que lhe rememora seus fracassos, que lhe lembra de que não está onde sonhava estar. O filme te insere de uma forma tão absurda na realidade louca dessas duas que parece inacreditável que se trate de um documentário. Parece um cenário construído para ilustrar um roteiro surreal. Você se vê ali, presente entre gatos e restos de comida em uma cama suja, hipnotizado pelos diálogos insanos dessas duas figuras. São tão expansivas que precisam impregnar cada canto daquela casa, preenche-la com suas histórias e lembranças, com suas músicas. É triste como o espírito das duas, envelhecido como o passado que elas tanto relutam em abandonar. Quando dão por si, estão envoltas literalmente em seu passado, em seu próprio lixo, pois nada além vale a pena.
"Para tornar a realidade suportável, todos temos de cultivar em nós certas pequenas loucuras."
Boa Sorte
3.6 438Frontal com Fanta por Jorge Furtado
Ela me perguntou quantas pessoas eu já vi morrer. Quantas pessoas você já viu morrer? Nenhuma, eu disse. Ela sorriu e disse eu vou ser a primeira. Eu disse vai. Ela disse boa sorte.
— Boa sorte.
E morreu. Os lábios dela continuavam vivos, vermelhos. Parecia que ela estava dormindo. Ela morreu e pronto. Era bom ficar olhando seu corpo, bonito. A enfermeira entrou, viu que ela tinha morrido e me disse para sair do quarto, chamou o médico, eu saí do quarto.
Uns dias depois o enfermeiro me disse que ela estava grávida. Ele disse também que achou melhor ela ter morrido, imagina ela com um filho.
Eu imaginei ela com um filho, um filho meu, e agarrei o enfermeiro pela garganta.
Dois enfermeiros correram e me seguraram e me deram uma injeção. Eu acordei amarrado e fiquei ali alguns dias. Eles mudaram meu remédio. Eu me lembrei que ela havia me pedido para ficar vivo pra me lembrar dela e resolvi não tomar o remédio, não tomar mais remédio nenhum. Passei mais seis meses na clínica, fingi que estava curado, saí, voltei a estudar. Fiz o supletivo do segundo grau, passei no vestibular, me formei, casei, tive um filho, me separei. Hoje trabalho nesta farmácia. Continuo vivo e me lembrando dela.
Eu não me lembro muito bem se tinha 13 ou 14 anos na primeira vez em que fiquei invisível. Eu acho que tinha 14, estava frio, devia ser inverno e eu faço aniversário no verão. Também podia ser no inverno antes de eu fazer 14, mas eu acho que não, porque a minha irmã já estava usando aparelho e estes dias eu perguntei e ela tem certeza que tinha dez anos quando começou a usar. É muito provável que eu já tivesse ficado invisível muitas vezes antes, tenho certeza que sim. Quando a minha mãe e o meu pai discutiam, quando ele gritou que ela é que quis ter filho e agora não gosta de ficar com as crianças e só quer viajar, quando ela bebia e andava quase nua pela casa, quando o meu irmão punha a mão nos peitos da namorada, quando o meu pai mudava a televisão de canal pouco antes do fim do filme que eu estava assistindo havia mais de uma hora, é claro que eu estava invisível, só que não percebia.
Eu estava na escola na primeira vez que percebi que estava invisível. O professor mandou todo mundo se apressar para o passeio. Eu demorei a me levantar juntando as coisas, todos saíram e o professor olhou para a sala, olhou na minha direção, apagou a luz, saiu e fechou a porta. Talvez eu tenha ficado invisível para não ir naquele passeio, não queria passar o dia vendo as meninas mais lindas me virando a cara, e todos aqueles meninos idiotas gritando e correndo e se batendo. Fiquei algum tempo parado, peguei minhas coisas e saí da sala. Caminhei pelo corredor, cruzei com alguns alunos, olhei bem para eles e eles não me viram. Saí do colégio e caminhei seis quadras até a minha casa, passando por muitas pessoas que não me viram. Entrei em casa sem ser visto, fui para o meu quarto.
Saí do quarto e minha mãe estava jantando, com minha irmã. Meu irmão mais velho vai chegar no próximo fim de semana e elas querem arrumar a casa. Ele vem com a namorada e vai dormir no meu quarto, eu vou dormir com a minha irmã, no chão do quarto dela. Elas falaram todo o tempo, decidindo o que ia acontecer comigo, sem me ver. Comi frango com arroz e legumes e fui ao banheiro. Abri o armário dos remédios, peguei um remédio da minha mãe, frontal. Li a bula. "Componente ativo: alprazolam. Indicado no tratamento de estados de ansiedade. Seu mecanismo de ação exato é desconhecido." Talvez fosse isso, ansiedade se cura com remédio. Não é recomendado a pacientes psicóticos. Os sintomas da ansiedade são: tensão, medo, aflição, agonia, intranqüilidade, dificuldades de concentração, irritabilidade, insônia e ou hiperatividade. Os sintomas da ansiedade sou eu. Peguei o vidro e fui para o meu quarto. Tomei dois, devia ter pegado água, não é bom tomar remédio com fanta. Deitei e dormi.
Acordei, era outra pessoa. E continuava invisível. Minha irmã, minha mãe e a empregada não me viram. Tomei café e mais um comprimido e fui para a escola caminhando sem ninguém me ver. Assisti às três primeiras aulas sem ser visto. Entendi tudo, anotei, gostei de estar aprendendo coisas. Estava feliz, feliz e invisível. No recreio fui até o banheiro e tomei outro comprimido.
Saí do banheiro, o sol batia no pátio, nos cabelos das meninas, nas pernas das meninas. Duas delas, das mais lindas, passaram na minha frente, entraram no banheiro. Entrei atrás delas. É claro que elas não me viram. Uma delas baixou a calcinha e sentou no vaso, mas não deu para ver nada, ela estava de saia. A outra abriu a blusa na frente do espelho e ficou ajeitando os peitos dentro do sutiã. Eu estava muito feliz de estar ali, pensei em gritar ou botar a mão nos peitos dela, mas ela ia levar um susto, achei melhor não. Elas falaram de uma festa e saíram sem me ver.
Passei o resto da semana invisível e feliz. Comecei a economizar os comprimidos, tomava três por dia, um antes de ir para a escola, outro depois do almoço, outro antes de dormir. Não sonhava com nada, acordava feliz. No sábado tinha a festa e eu estava louco para ir, invisível.
Levei o remédio para a festa para tomar um lá. Não conseguia entrar no banheiro das meninas, era muito apertado, mas escutei todas as conversas, histórias incríveis de quem deu ou queria dar para quem. Tomei dois comprimidos com vinho, vários copos de vinho. Resolvi entrar no banheiro das meninas, seguindo uma das mais lindas. Ela entrou, eu entrei junto. Ela tirou a blusa e tirou da bolsa um desodorante roll-on. Começou a passar desodorante, erguendo os braços e se olhando no espelho, muito linda, a coisa mais linda que eu já tinha visto. Não consegui me controlar e lambi seu braço.
Ela deu um grito, começou a me bater, gritar. Abriu a porta, gritando, um monte de gente veio correndo, o pai dela, o namorado dela, todos começaram a me bater enquanto ela gritava que eu tinha entrado no banheiro e lambido ela e todos me batiam. Aparentemente minha invisibilidade tinha passado, talvez por causa da lambida. A mãe dela, que me conhecia, me ajudou a levantar do chão. Ficou me olhando, assustada. E aí eu vomitei.
Quebrei dois dedos da mão esquerda, acho que foi um dos chutes. Todos em casa me viram, me olharam muito bem. Meu pai olhava para mim com medo, minha irmã com nojo e minha mãe chorava.
Meu irmão chegou com a namorada, ninguém disse nada para ela que eu era um drogado e maníaco sexual. Minha irmã não quis me deixar dormir no chão do quarto dela e eu dormi uma semana na sala, no sofá. Dormia ouvindo meu irmão e a namorada trepando no meu quarto. Um dia acordei e fiquei parado, no escuro. Ela passou pela sala só de calcinha, ótimos peitos, bunda boa. Voltou da cozinha e ficou parada no meio da sala, tomando água no bico da garrafa, sem me ver. Me levantei e fiquei olhando para ela, ela não me viu. Eu estava invisível outra vez. Me aproximei e toquei no peito dela. Ela deu um grito.
Me levaram num médico que me disse que eu precisava aprender a relaxar e outras coisas que eu já sabia e me receitou paxon. Li a bula. Princípio ativo: cloridrato de buspirona. Agente ansiolítico indicado no alívio a curto prazo dos sintomas da ansiedade e da apreensão, do medo e dos maus pressentimentos. Era o meu caso. Cinco a dez miligramas duas vezes por dia. Perfeito. Não estava mais invisível mas continuava feliz.
Mudei de escola e passei o resto do ano feliz. No final do ano fiquei preocupado com as provas e com as festas e comecei a tomar três comprimidos por dia, às vezes quatro. Às vezes tomava com vodca, nas festas. Depois comecei a tomar também o frontal da minha mãe, ela descobriu e escondeu no armário. Achei e tomei. Meu pai disse que ia me internar, minha irmã disse que eles deviam chamar a polícia.
O médico cortou o ansitec e me deu valium. Li a bula. O princípio ativo do valium é o diazepam. Indicado para distúrbios emocionais, especialmente ansiedade, e distúrbios comportamentais, como a má adaptação social. Agora sim. Um antes de dormir, às vezes dois.
Um dia eu tomei dois no almoço, com cerveja, e depois fui para o supermercado. Tinha uma menina, bonitinha, acho que com menos de
três anos, no corredor dos biscoitos. Ela pegou um pacote grande de biscoitos, quase maior que ela, e tentou botar no carrinho. A mãe estava falando no celular e não viu. Ela chamava, mãe, mãe, bicoito, mãe, mãe. A mãe caminhava pelo corredor e falava no celular, discutia com alguém sobre prazo de entrega, horário de entrega de alguma coisa. A menina tentava botar o pacote, não alcançava no carrinho. O pacote caiu no chão, a mãe empurrou o carrinho que passou por cima do pacote. A menina se desequilibrou e caiu sentada no chão. A mãe gritou, disse que a menina tinha derrubado tudo no supermercado, desligou o celular e começou a gritar com a menina, que começou a chorar. A mãe viu os biscoitos quebrados, botou na prateleira, ergueu a menina pelo braço e continuou gritando enquanto ela chorava. Eu me aproximei, queria estar invisível. Não estava, a mulher olhou para mim e perguntou o que foi. Eu dei um soco no rosto dela, acho que acertei a boca e o nariz. Ela caiu, gritando de dor. A menina começou a gritar e a chorar. Tinha sangue na minha mão, não sei se meu ou dela. A mulher me olhava, apavorada, gritando e tapando o nariz e a boca com a mão. Ela viu sangue na mão dela e começou a gritar, a menina chorando. Um casal saiu correndo, algumas pessoas se aproximaram. Um garoto de uniforme me olhou com medo. Um segurança se aproximou, me olhando e falando num rádio.
Um segurança do supermercado me deu um tapa na cabeça. Me assustei, mas não doeu muito. Um policial veio e foi embora. Meu pai chegou, muito nervoso. Pediu desculpas para todo mundo, disse que eu era doente. Olhei para o meu pai, sofrendo, triste, tentando não aparentar toda a tristeza que realmente sentia, com vergonha de imaginar uma parte dele em mim, e tive certeza de que ele estava falando a verdade, eu era doente mesmo.
Meu pai, minha mãe e meu irmão sugeriram que eu fosse internado, ficasse um tempo numa clínica. Achei ótimo, eu não queria mais ficar olhando para as pessoas que estavam sofrendo por minha causa. Meu irmão me ajudou a fazer a mala. Meu pai me deu um beijo, fazia muito tempo que eu não via ele tão feliz. Minha mãe chorou um pouco mas também estava feliz. Só quem parecia triste era a minha irmã. Eu disse que ia me tratar e ia voltar logo. Ela perguntou se podia pegar o meu videogame, eu disse que sim.
Eu falei com um médico e com uma médica. Contei de tudo, dos remédios e do fato de eu ficar invisível. Eles me disseram que eu nunca fiquei invisível e eu acabei concordando. Ele perguntou se eu tinha tremores, dor ou tensão muscular, se eu me irritava ou ficava nervoso com facilidade, se eu sentia as mãos frias e pegajosas, se às vezes eu tinha dificuldade para engolir, sentia aquele nó na garganta, se às vezes sentia a boca seca, suor, enjôo ou diarréia. Eu disse que tinha tudo, menos diarréia. Ela perguntou se eu ficava muito preocupado com as minhas notas na escola ou num jogo de futebol, se eu me preocupava muito em chegar na hora, se costumava chegar muito cedo nas festas, se eu me preocupava com terremotos ou com a guerra, se eu costumava refazer uma coisa muitas vezes, até achar que estava perfeito, se eu costumava perguntar para as pessoas se o que eu fiz estava bem-feito ou não. Eu respondi sim para tudo, menos para a guerra.
Eles tinham certeza de que eu era um sessenta ponto seis, personalidade ansiosa. Eles me disseram que os sintomas da personalidade ansiosa são um sentimento de tensão constante, um sentimento de insegurança e inferioridade, um desejo permanente de ser amado, de ser aceito, hipersensibilidade à crítica e à rejeição, uma dificuldade ou desconforto para encontrar pessoas ou para
sair da rotina, sempre com medo que aconteça alguma coisa de ruim.
É perfeito, é exatamente isso. Finalmente eu encontrei alguém que descobria o que eu tinha. Só que eles tinham dúvidas se a minha ansiedade era generalizada e já se manifestava na infância, ou se era induzida por substância. A ansiedade induzida por substância surge com a intoxicação ou a abstinência. A ansiedade primária, que vem da infância, pode provocar o uso da substância. Enfim, eles tinham dúvidas se eu era louco porque me drogava ou me drogava porque era louco. Perguntaram se eu tinha ataques de pânico ou alguma fobia. Contei da vez que eu ataquei a menina no banheiro da festa, da namorada do meu irmão e do soco na mulher no supermercado, mas isso eles já sabiam. Eles conversaram um pouco e concordaram que eu devia tomar nervium. Princípio ativo: bromazepam. Indicado para distúrbios emocionais, tensão nervosa, agitação e insônia, ansiedade e humor depressivo ansioso. É exatamente o meu caso, humor depressivo ansioso.
Antes de sair da clínica e encontrar meus pais e minha irmã, e todo mundo ficar feliz por eu fingir tão bem que estava curado, eu achei um disquete no lixo da clínica. O ferrinho do disquete estava um pouco torto mas eu trouxe para casa e um dia consegui abrir dois arquivos. Um era uma tabela, sem graça. O outro tinha várias anotações, nenhuma sobre mim. Todas eram parecidas.
J.S. estava aparentemente saudável. H.M.C tinha o comportamento normal. T.H.N vinha aparentemente bem. J.M.R. havia começado a ingerir álcool combinado com o uso de codeína (xarope para tosse) três anos antes da primeira hospitalização. N.T. vinha apresentando alterações do comportamento social associado à ingestão progressiva de álcool desde quatro anos antes da primeira hospitalização. Oito semanas antes da internação, ela fez uso de amineptina com álcool pela primeira vez. O paciente M.C.S. usou cannabis durante dois anos. O paciente N.G.F. mostra o semblante apreensivo. A paciente M.F, cuja mãe é esquizofrênica, vinha consumindo cannabis e, ocasionalmente, diazepam com álcool há três anos. O paciente B.T. vinha consumindo ecstasy regularmente durante dois anos e, ocasionalmente, cocaína. Uma grave perda da capacidade de conviver socialmente foi a causa de sua internação. A paciente D.J. teve alucinações auditivas importantes seguidas de delírios. Gesticula muito ao falar. Olhar triste. Uma grave disfunção cognitiva foi percebida pelos pais da paciente, que encaminharam a internação. Segundo a mãe do paciente, dois meses antes de ser internado o filho apresentou idéias paranóides e uma importante perda de função intelectual. Gesticula muito ao falar. Não consegue se concentrar. Quatro dias antes da hospitalização, ela tomou um comprimido de certralina associado com álcool e cannabis e apresentou imediatamente delírios e alucinações auditivas. Tomou LSD por um ano antes de ser hospitalizado. Não consegue ficar parado, gesticula muito ao falar. Ouvia vozes imperativas. Alucinações auditivas, delírios e disfunção cognitiva, percebida por seus pais. Esses sintomas persistiram durante nove meses e cessaram espontaneamente. Não tem energia para nada. Ao narrar suas brigas com a mãe, fica exaltada, com o olhar brilhante. Experimentou cogumelos alucinógenos. Afirma que não confia na namorada e que seu maior desejo é desmascará-la. Tem delírios e alucinações permanentes. Seis meses antes da internação, fez uso de LSD. Gesticula muito ao falar. Medos difusos e delírios culminaram com sua hospitalização. A partir daí, houve uma mudança em seu comportamento caracterizada por uma perda de sociabilidade seguida da presença de delírios, segundo declarações dos pais da paciente. Tem um olhar triste, perdido. Um dia antes de ser internada experimentou cocaína pela primeira vez. Um mês antes da internação, ela começou a ter idéias paranóides e hiperatividade motora. Tem a testa franzida, o olhar baixo, as mãos crispadas. Cinco semanas depois da ingestão de drogas, ela apresentou delírios paranóicos persistentes. Mostra-se muito aflito e exaltado durante a consulta. No dia da hospitalização, apresentava alucinações visuais. O uso de hipofagin com álcool culminou com delírios, alucinações e comportamento agressivo em relação aos pais. Gesticula muito ao falar. Foi observada uma diminuição de sua capacidade intelectual com problemas de concentração, segundo os pais da paciente. De acordo com os pais do paciente. Descrito pelos pais do paciente. Os pais do paciente. São eles que pagam as contas e limpam a sujeira. São eles que pagam para você ficar longe, normal. Um dia meus pais conversaram com os médicos e eles me mandaram para casa. Provavelmente acharam que eu era um efe treze ponto oito, transtorno de ansiedade induzido por ingestão de sedativos, hipnóticos ou ansiolíticos. Eu podia ir para casa, provavelmente não ia sujar nada nem atacar ninguém. Estava curado. Precisava estudar, cuidar da vida, me concentrar. Foi o que eu fiz.
Cidade dos Sonhos
4.2 1,7K Assista AgoraLynch se recusou a dar interpretações pessoais do que ele pretendia transmitir com sua história, deixando que a audiência, críticos e até mesmo o elenco especulassem seu significado, o que torna a obra ainda mais instigante. Ele deu ao filme o slogan “Uma história de amor na cidade dos sonhos”, o que somente ajuda a criar mais suposições. Há aí um paralelo entre o ato físico de sonhar, que parece impregnar todo o filme, onde realidade e delírio se misturam; e o sonho metafórico relacionado aos desejos humanos, nesse caso referente ao estrelato em Hollywood.
Cidade dos Sonhos merece tanto louvor pela forma como brinca com o seu espectador. Emana um ar de mistério e tensão ao longo de toda sua projeção, e para além dela. Apesar de conclusivo de forma que a história possua um desfecho, o teor psicodélico e surrealista dos eventos não nos permite ratificar uma verdade fundamental sobre o que assistimos. O filme solicita quase que um culto pós-projeção para que possamos absorver tantas informações e tantas imagens poéticas e simbolistas. Talvez seja necessário até mesmo um pouco de pesquisa para que possamos clarear nossa mente, portanto não se preocupe se você estiver perdido ao término da projeção, pois tenho certeza que até o mais sagaz dos espectadores precisaram de um momento para processar tanta informação e juntar as peças do quebra-cabeça.
Mulholland Dr. é bastante comparado ao clássico de Billy Wilder Sunset Boulevard (1950), que conta a história de uma atriz decadente que após ser descartada das produções hollywoodianas por sua idade avançada, começa a perder a noção da realidade e ter delírios sobre seu grande retorno às telas. É irônico ao traçar esse paralelo que um dos motivos da recusa da ABC para o piloto da série tenha sido exatamente a idade de Watts e Harring. Lynch parece tecer uma crítica à indústria hollywoodiana que muitas vezes drena suas estrelas, que para chegarem ao topo precisam passar por muitas provações na “cidade das ilusões letais”. Naomi Watts inclusive declarou se identificar com a história, pois também sofrera para chegar ao estrelato, passando por muitas decepções antes de conseguir papéis promissores.
Lynch parece querer nos transportar para um sonho delirante onde cada um terá sua interpretação de acordo com sua experiência. Sua diversão é observar tantas teorias para uma história que segundo ele, é coerente e compreensível. Acontece que para além dessa linha da história que é coerente e compreensível, ele adiciona inúmeras camadas de símbolos além de um labirinto de acontecimentos. Você pode assistir ao filme pela primeira vez e pensar que é puramente uma crítica à Hollywood. Ao assistir pela segunda vez, você pode se aproximar mais do caráter existencial que o filme projeta ao indagar questões de identidade. E assim se segue a experiência fílmica de Mulholland Dr., onde o podemos assistir inúmeras vezes e sempre ter uma nova percepção sobre a história, seus personagens, detalhes, etc.
Se o mestre dessa obra-prima se recusa a estabelecer uma verdade absoluta para sua história, quem sou eu para tal? É exatamente por prezar a filosofia de que a realidade é relativa que Lynch mantém sua obra eternamente envolta em mistério. Se foi um sonho ou se foi real, você é quem vai dizer.
Gata Velha Ainda Mia
3.6 97 Assista Agora"Quando eu trago um bibelô pra dentro da minha casa, é uma memória que eu agarro pra mim. Pra sempre. Até meu último dia. A minha memória se perde, ela se esvai sem tudo isso aqui. A geração de vocês não gosta de quinquilharia, vocês não precisam. Vocês fotografam, digitalizam, editam, deletam. Mas não retêm. A informação tá em todo canto, mas passa. Se perde."