Apesar de estabelecerem suas raízes em linguagens bastante distintas, teatro e cinema são artes que frequentemente dialogam entre si. Com o advento do teatro pós-moderno e peças interativas, o limite da quarta parede inexiste - não existem atores e público, todos são participantes. Em Interrupção, o conceito é levado ao limite extremo, no qual ficção e realidade são sinônimos, culminando inevitavelmente num conflito perturbador.
- "Não quero ser mal educada, mas você não é muito bonito. Nos meus livros, os unicórnios são esbeltos e brancos." - "As coisas mais belas do mundo são as mais inúteis."
Baseado no conto literário Adeus à Matyora (Proshchanie s Matyoroy), de Valentin Rasputin, A Despedida apresenta, inicialmente, a vida dos habitantes do vilarejo de Matyora, seus costumes tradicionais, sua cultura e a convivência entre os mesmos. Esta apresentação serve de pretexto para a segunda metade do filme, na qual, graças à construção de uma hidrelétrica no ambiente, estas pessoas se veem forçadas a abandonar seus lares, sua terra, suas vidas.
Proibido na União Soviética por anos devido ao conteúdo anti-revolucionário, o filme, tal como a história em que se baseia, trata das consequências da migração obrigatória em prol do progresso, na qual o povo é destituído de suas próprias origens e de sua identidade cultural. Nostálgico por natureza, A Despedida é um grito de ajuda e pedido de compaixão à humanidade, um anseio pelo retorno de uma vida simples e orgânica.
Inicialmente, Rasputin não permitiria que sua obra fosse adaptada; foi somente após um encontro com Larisa Shepitko, com quem havia familiarizado ao assistir sua obra A Ascensão (Voskhozhdeniye), que o autor concedeu autorização para que seu conto fosse adaptado para o cinema. O nome desta adaptação de seu livro é dolorosamente apropriada; a despedida do povo de Matyora à sua terra natal é também o adeus da cineasta Larisa Shepitko, morta num acidente durante as filmagens, tal como a homenagem de seu marido Elem Klimov, que concluiu a obra, à esposa falecida.
O foco de Paz Para Nós em Nossos Sonhos é o luto. Luto do próprio Sharunas Bartas e o de sua filha, Ina Marika, após o suicídio da atriz Yekaterina Golubeva, em 2011 (que também fora homenageada em Holy Motors, de Leos Carax). Não à toa, os personagens do filme não possuem nomes: uma conversa franca entre pai e filha sobre a mãe nos revela o quanto esta obra é tão pessoal e autobiográfica. Contudo, não é um filme niilista: mesmo com sua abordagem fria e minimalista, através de suas reflexões intimistas e poderosas sobre a vida, como agimos, o que leva seres humanos a cometerem diversos erros - e por isso tantos são considerados erroneamente como "pessoas más" -, Paz Para Nós em Nossos Sonhos opta por orientar o espectador a superar essas perdas. Uma das obras mais belas e intimistas do diretor lituano.
Um loop interminável - não à toa, o filme se chama Eterno Retorno - da mesma cena, com atores diferentes, cada um deles interpretando os mesmos personagens de formas distintas. O diálogo permanece basicamente o mesmo, com algumas pequenas alterações, enquanto a história se desenvolve aos poucos. No entanto, essa ideia soa mais interessante na teoria do que na prática; a sequência sem fim pode ser um tanto cansativa para o espectador.
É na metade e, principalmente, no fim do filme que o objetivo real se revela: Eterno Retorno é um soco no estômago da indústria cinematográfica. As cenas são, na verdade, gravações deixadas por um diretor, que faleceu antes de concluir sua última obra. Testes feitos com atores, assistidos por um produtor e por um executivo do estúdio com o qual o cineasta falecido trabalhava. A sequência final nos revela a podridão dos executivos envolvidos, do produtor aos membros do estúdio, que desestimulam a criatividade dos cineastas e só pensam em seus próprios bolsos - por isso mesmo buscam por fórmulas prontas e acessíveis.
Ao anunciar que este é seu último trabalho, Kira Muratova se despede do cinema um tanto amargamente, mas com dignidade.
Em Cemitério do Esplendor, Weerasethakul aborda temáticas e localizações já conhecidas em seus filmes, mas realiza algo inédito usando esses mesmos elementos. Um tanto mais pessimista que seus antecessores - relatando, de forma menos implícita, ainda que metafórica, os problemas enfrentados pela sociedade atual tailandesa - a obra mescla a superstição de suas protagonistas com uma comicidade peculiar e criativa, através da sempre presente espiritualidade dos filmes do diretor.
Nômade Celestial é uma grande e agradável surpresa. Vindo do Quirguistão, o filme apresenta a história de uma família composta por avô, avó, filha e netos. O pai faleceu há muito tempo; para a neta de 7 anos, Umsunai, é contada por seus avós a lenda de que ele se tornou uma grande águia, que estará sempre por perto para proteger sua família. A garota Umsunai nos remete muito agradavelmente à inocência da infância, enquanto o filme em si nos apresenta um mundo desconhecido por grande parte do povo ocidental; andarilhos que vivem em acampamentos, caravanas pelo deserto, nômades sem residência fixa. Com a chegada do filho mais velho, que, por morar numa região industrializada, está mais acostumado com centros urbanos, o choque cultural se faz presente na hora certa: nenhuma cultura é melhor que a outra, não existem povos ou raças superiores a ninguém. É com essa leveza que Nômade Celestial se revela um filme tão poderoso, mesmo que seja através de sua simplicidade.
Dezenas de histórias compartilhadas entre mulheres que envolvem questões de gênero, abusos físicos e psicológicos, estupros, opressão (familiar e masculina) e a busca constante pela identidade própria, destruída após a convivência num mundo exclusivamente masculino que pouco fez para melhorar a condição de vida das mulheres. Embora tais assuntos já sejam debatidos por movimentos feministas há muito tempo, Matriarcado é um filme necessário para os dias atuais, especialmente em tempos de conservadorismo retrógrado se tornando cada vez mais dominante. O filme, contudo, peca pela extensa duração; a mensagem transmitida já ganharia muita força se o longa tivesse alguns 15 minutos a menos. Porém, isso não anula a importância da obra do veterano Nikos Cornilios, que, através de personagens fictícias, ilustra situações perturbadoramente reais para todas as mulheres em qualquer canto do planeta.
Após anos de opressão, o Kosovo parece estar finalmente conquistando, aos poucos, sua libertação ao território sérvio. Não somente em questões políticas, mas também culturais; Pai, filme de estreia do cineasta Visar Morina, é um bom exemplo deste progresso. A atuação do jovem Val Maloku ao interpretar Nori, o garoto que, sozinho, procura por seu pai - figura que, subitamente, torna-se tão ausente em sua vida - no território alemão, é um dos pontos mais altos do filme. Ao relatar a realidade cruel dos imigrantes do Leste Europeu através dos olhos de um garoto corajoso e repleto de esperanças, Pai não inova, mas surpreende de forma positiva.
No dia 12 de abril de 2010, o mundo perdeu um dos cineastas mais brilhantes e criativos que já existiu: Werner Schroeter. Precursor do Novo Cinema Alemão, o cinema de Schroeter foi de enorme influência para todos seus colegas, de Hans-Jürgen Syberberg a Rainer Werner Fassbinder, passando por Alexander Kluge, Ulrike Ottinger e o casal Volker Schlöndorff e Margarethe von Trotta. De notável versatilidade, os trabalhos de Schroeter não podiam ser categorizados num mero gênero, fluindo e atravessando o surrealismo abstrato, a crítica social, o teatro do absurdo, a ópera e a tragédia.
Schroeter teve dificuldades em ter seu trabalho reconhecido em seus primeiros anos como cineasta; porém, no restante da Europa, e mesmo na América, foi devidamente aclamado como merecia. Cada filme de Schroeter transparece diversas sensações; seja na beleza única de A Morte de Maria Malibran, ou no surrealismo abstrato de Duas, ou mesmo na crítica sociopolítica pessimista de Esta Noite, o cuidado e o perfeccionismo técnico e artístico estão sempre presentes, oferecendo ao espectador experiências únicas de um cinema belo e cada vez mais raro.
Mondo Lux, realizado por Elfi Mikesch, que trabalhou com o realizador por muitos anos como diretora de fotografia, é uma apresentação e, ao mesmo tempo, uma grande homenagem a Schroeter, tanto como cineasta quanto como pessoa - alguém que encantava seus atores e sua equipe técnica, que não escondiam o prazer de trabalhar com alguém como ele. Diagnosticado com câncer em 2008, Schroeter realizou sua última obra, Esta Noite, já adoecido. E então, Mondo Lux começou a ser rodado, contendo diversas entrevistas com o cineasta, que comenta sobre seus trabalhos, sua vida pessoal e suas próprias influências. Depoimentos de Ingrid Caven, Isabelle Huppert e Wim Wenders, que se orgulha de falar sobre a influência da obra de Schroeter em seus próprios trabalhos, unem-se às declarações do próprio diretor. O resultado final é um documentário esplêndido sobre uma pessoa (e um diretor) incrível.
Keisuke Kinoshita utiliza as cores de forma magnífica e surpreendente, em perfeita harmonia com a ambientação teatral do filme, que possui grande influência de kabuki. Uma fórmula que combina atores expressivos e cenários claramente feitos em estúdio pode ser bastante perigosa, mas o cineasta prova seu talento ao dirigir uma fábula belíssima amarga sobre a velhice, tendo a própria Montanha de Narayama como um símbolo do fim.
Não é possível comparar este com a versão de 1983, dirigida por Shohei Imamura, pois ambos os filmes funcionam como adaptações completamente distintas da mesma obra, o livro homônimo de 1956. Embora ambos sejam excelentes, minha preferência acabou sendo pelo trabalho de Kinoshita, que realizou arte mais pura em cada segundo de duração de seu filme.
Sarcástico e inteligente, Lola é a representação de uma Alemanha que ri de sua própria desgraça, em contraste aos dois anteriores da trilogia BRD. Ainda que tenha sido levemente inspirado no clássico O Anjo Azul, Lola destaca-se ainda mais com suas críticas nada sutis contra o capitalismo desenfreado e cada vez mais dominante.
Interessante ver como o primeiro da trilogia, O Casamento de Maria Braun, se inicia com um casamento, enquanto Lola, cronologicamente o último da mesma, termina com um.
No trailer de North by Northwest, Hitchcock afirmou: "I promise you nothing but entertainment". Acabou não só cumprindo o que prometeu, como também provou que um filme de entretenimento pode ter elevada qualidade artística. Obra prima do suspense, como já era de se esperar vindo de um dos maiores diretores que já existiu.
Através de simbolismos e metáforas, Chantrapas retrata a dura vida de um cineasta durante a USSR. Autobiográfico por natureza, já que o cineasta passou por problemas semelhantes durante o início de sua carreira, Chantrapas detalha o duro processo da criação de um filme. Alguns detalhes poderiam ser mais desenvolvidos, e a excessiva fantasia surrealista de alguns trechos pode tornar-se um pouco enfadonha, ainda que elas ilustrem o que cineastas de sua época eram obrigados a fazer para metaforizar críticas através de seus filmes sem sofrerem censura. Porém, com todos seus defeitos, um filme que merece ser visto pelo fã de cinema e por quem deseja trabalhar na área.
A "entrevista" com a cineasta não é tão bem conduzida quanto deveria, já que se foca em perguntas redundantes e até um pouco mal formuladas. Mas Chantal Akerman, com toda sua sinceridade, desenvolve respostas diretas e articuladas, respondendo muito mais do que os questionamentos simples que lhe foram dados. Recomendado para apreciadores de seu excelente trabalho ou no campo de trabalho de cinema, embora não extraia nada de muito inédito em ambos os quesitos.
Ótimo relato da vida de um assassino cujo comportamento desafiou a psiquiatria forense como ela era conhecida na época. Sem apelações e sensacionalismos, o filme prende o espectador mantendo a neutralidade, não condenando Pierre Rivière mas também sem transformá-lo em um mártir ou uma mera vítima da socidade. A direção impecável permite a reconstrução sóbria do crime.
Interessante melodrama italiano pós-neorrealismo que ainda carrega um pouco de suas conotações, como as críticas nada sutis ao fascismo e a reconstrução do país pós-guerra. Porém, apesar de ter características típicas de um filme do cineasta, Lattuada exagerou bastante em certos estrangeirismos no filme, inserindo cenas de musicais muito similares aos clássicos hollywoodianos dos anos 30 e 40 - inclusive, da trilha sonora do filme surgiram composições famosas como El Negro Zumbon (homenageada até em Cinema Paradiso anos mais tarde) e Non Dimenticar, regravada em inglês por Nat King Cole, Dean Martin, entre outro -, acabando por mesclar uma caricatura de seu estilo pessoal com o que costumava "vender" na época. Um ótimo filme em questões técnicas, especialmente pela presença de Otello Martelli como diretor de fotografia, e com o trio de protagonistas de Riso Amaro (Silvana Mangano, Raf Vallone e Vittorio Gassman), dirigido por Giuseppe de Santis, atuando juntos novamente e interpretando seus personagens de forma adequadamente exagerada, mas bela; o completo oposto do que haviam feito no filme de De Santis, com atuações frias e realistas.
Porém, certos valores impostos como a forte mensagem católica e o sacrifício cristão me pareceram atípicos e pouco adequados, algo que não me agradou e pode incomodar outros espectadores pelo moralismo desnecessário. Ainda assim, um bom filme e que vale a pena ser assistido.
Se em I Pugni in Tasca Bellochio destruiu os valores familiares tradicionais, dessa vez o alvo é a religião - ou melhor, os males causados pela mesma. A instituição católica de Nel Nome del Padre parece um manicômio, onde os alunos claramente não estão em suas melhores condições mentais, e os padres, que supostamente deveriam lecionar e guiá-los ao caminho "correto", apenas reforçam e incentivam a loucura, tanto direta quanto indiretamente.
Uma sátira inteligente e transgressora, que retrata os problemas de forma bem clara, da mesma forma que também não se importa em procurar uma solução que não há.
Peter Watkins é certamente um diretor subestimado. Um dos maiores responsáveis pelo formato docudrama, em Gladiatorerna ele decide por uma narrativa mais próxima da ficção convencional, mas seguindo seu próprio estilo único. O resultado é uma obra fascinante, um golpe no totalitarismo e na ditadura, mas decididamente pessimista, onde a suposta solução política na verdade é um problema ainda maior. É fácil perceber a influência de Gladiatorerna em obras contemporâneas, como Battle Royale, mas o filme vai um tanto mais além. Quando todos os líderes extremistas se unem, quem paga o preço são os inocentes. Mesmo aqueles que desejam mudar o sistema estão fadados a serem usados por ele. Ainda assim, o conformismo nunca é levado em consideração.
A fotografia em preto e branco e a ambientação solipsista nos remetem às obras mais profundas de Béla Tarr e Larisa Shepitko, enquanto o roteiro nos apresenta um Woyzeck mais soturno, existencialista, rodeado por coadjuvantes que exercem forte domínio sobre sua vida através de suas frases reflexivas e impactantes.
Esta versão de Woyzeck é uma adaptação peculiar, mas surpreendente, da peça homônima, que consegue divergir totalmente da adaptação mais famosa, de Werner Herzog, e conseguindo atingir um nível de qualidade tão alto quanto.
Gomorra é, possivelmente, um dos trabalhos mais interessantes já feitos sobre a máfia italiana. Assemelha-se ao neorrealismo ao utilizar atores não profissionais (incluindo um presidiário) para destruir a glamourização por volta do submundo do crime na Itália, longe do embelezamento personificado por Don Vito Corleone. Também se mostra bastante informativo em sua base histórica, onde os eventos são similares à acontecimentos reais, como é o caso da famosa "afaida di Scampia" entre as gangues de Camorra.
Gostaria muito de ler o livro do qual Gomorra foi adaptado, pois o filme foi elogiado pelo menos e as comparações entre ambos foram bem favoráveis.
Noventa minutos encantadores de puro eruditismo, conhecimento histórico e uma técnica quase inigualável. Alguns erros são perceptíveis, como a iluminação inapropriada de determinados quadros, mas como exigir tanto de um filme que foi gravado num único take? O valor artístico da obra é demonstrado naturalmente a cada momento, através dessa jornada pelo Palácio de Inverno, dentro de um dos museus mais belos do mundo, o Hermitage. Cada quadro possui sua história, transmitem suas próprias sensações e resgatam memórias perdidas, tanto de seus pintores quanto dos espectadores. Isso sem mencionar o roteiro impecável, que somente alguém com um nível respeitável de conhecimento histórico poderia ser capaz de fazer. Gostaria que o filme fosse ainda maior para poder aproveitar essa grandiosa jornada pela arte e pela história russa, mesmo que através dos olhos do fantasma-penetra, alter ego de Sokurov e uma das personificações mais divertidas do Cinema.
Bem antes de Kes e Cauwboy, Frantisék Vlácil realiza seu primeiro longa retratando o apego e a amizade entre um garoto e um animal - neste caso, uma pomba. Dentro desta medida necessária de drama, o roteiro não exagera, elaborando subplots coesos e que só contribuem à história principal. Como de costume, a fotografia bela dos trabalhos do cineasta exibe algumas das mais bem feitas cenas do cinema tchecoslovaco. Holubice / A Pomba Branca é um dos primeiros passos de uma carreira brilhante.
Com somente 26 anos, Carax já havia provado seu talento como cineasta. Mesclando elementos da nouvelle vague com um estilo bastante autoral, e ainda assim acessível, é possível notar a influência de Mauvais Sang no cinema até nos dias atuais. Mais do que recomendado.
Interrupção
3.6 10Apesar de estabelecerem suas raízes em linguagens bastante distintas, teatro e cinema são artes que frequentemente dialogam entre si. Com o advento do teatro pós-moderno e peças interativas, o limite da quarta parede inexiste - não existem atores e público, todos são participantes. Em Interrupção, o conceito é levado ao limite extremo, no qual ficção e realidade são sinônimos, culminando inevitavelmente num conflito perturbador.
Lua Negra
3.5 54- "Não quero ser mal educada, mas você não é muito bonito. Nos meus livros, os unicórnios são esbeltos e brancos."
- "As coisas mais belas do mundo são as mais inúteis."
A Despedida
4.3 16Baseado no conto literário Adeus à Matyora (Proshchanie s Matyoroy), de Valentin Rasputin, A Despedida apresenta, inicialmente, a vida dos habitantes do vilarejo de Matyora, seus costumes tradicionais, sua cultura e a convivência entre os mesmos. Esta apresentação serve de pretexto para a segunda metade do filme, na qual, graças à construção de uma hidrelétrica no ambiente, estas pessoas se veem forçadas a abandonar seus lares, sua terra, suas vidas.
Proibido na União Soviética por anos devido ao conteúdo anti-revolucionário, o filme, tal como a história em que se baseia, trata das consequências da migração obrigatória em prol do progresso, na qual o povo é destituído de suas próprias origens e de sua identidade cultural. Nostálgico por natureza, A Despedida é um grito de ajuda e pedido de compaixão à humanidade, um anseio pelo retorno de uma vida simples e orgânica.
Inicialmente, Rasputin não permitiria que sua obra fosse adaptada; foi somente após um encontro com Larisa Shepitko, com quem havia familiarizado ao assistir sua obra A Ascensão (Voskhozhdeniye), que o autor concedeu autorização para que seu conto fosse adaptado para o cinema. O nome desta adaptação de seu livro é dolorosamente apropriada; a despedida do povo de Matyora à sua terra natal é também o adeus da cineasta Larisa Shepitko, morta num acidente durante as filmagens, tal como a homenagem de seu marido Elem Klimov, que concluiu a obra, à esposa falecida.
Paz Para Nós em Nossos Sonhos
3.6 16O foco de Paz Para Nós em Nossos Sonhos é o luto. Luto do próprio Sharunas Bartas e o de sua filha, Ina Marika, após o suicídio da atriz Yekaterina Golubeva, em 2011 (que também fora homenageada em Holy Motors, de Leos Carax). Não à toa, os personagens do filme não possuem nomes: uma conversa franca entre pai e filha sobre a mãe nos revela o quanto esta obra é tão pessoal e autobiográfica. Contudo, não é um filme niilista: mesmo com sua abordagem fria e minimalista, através de suas reflexões intimistas e poderosas sobre a vida, como agimos, o que leva seres humanos a cometerem diversos erros - e por isso tantos são considerados erroneamente como "pessoas más" -, Paz Para Nós em Nossos Sonhos opta por orientar o espectador a superar essas perdas. Uma das obras mais belas e intimistas do diretor lituano.
Eterno Retorno
4.2 1Um loop interminável - não à toa, o filme se chama Eterno Retorno - da mesma cena, com atores diferentes, cada um deles interpretando os mesmos personagens de formas distintas. O diálogo permanece basicamente o mesmo, com algumas pequenas alterações, enquanto a história se desenvolve aos poucos. No entanto, essa ideia soa mais interessante na teoria do que na prática; a sequência sem fim pode ser um tanto cansativa para o espectador.
No entanto:
É na metade e, principalmente, no fim do filme que o objetivo real se revela: Eterno Retorno é um soco no estômago da indústria cinematográfica. As cenas são, na verdade, gravações deixadas por um diretor, que faleceu antes de concluir sua última obra. Testes feitos com atores, assistidos por um produtor e por um executivo do estúdio com o qual o cineasta falecido trabalhava. A sequência final nos revela a podridão dos executivos envolvidos, do produtor aos membros do estúdio, que desestimulam a criatividade dos cineastas e só pensam em seus próprios bolsos - por isso mesmo buscam por fórmulas prontas e acessíveis.
Ao anunciar que este é seu último trabalho, Kira Muratova se despede do cinema um tanto amargamente, mas com dignidade.
Cemitério do Esplendor
3.8 43Em Cemitério do Esplendor, Weerasethakul aborda temáticas e localizações já conhecidas em seus filmes, mas realiza algo inédito usando esses mesmos elementos. Um tanto mais pessimista que seus antecessores - relatando, de forma menos implícita, ainda que metafórica, os problemas enfrentados pela sociedade atual tailandesa - a obra mescla a superstição de suas protagonistas com uma comicidade peculiar e criativa, através da sempre presente espiritualidade dos filmes do diretor.
Nômade Celestial
3.5 2Nômade Celestial é uma grande e agradável surpresa. Vindo do Quirguistão, o filme apresenta a história de uma família composta por avô, avó, filha e netos. O pai faleceu há muito tempo; para a neta de 7 anos, Umsunai, é contada por seus avós a lenda de que ele se tornou uma grande águia, que estará sempre por perto para proteger sua família. A garota Umsunai nos remete muito agradavelmente à inocência da infância, enquanto o filme em si nos apresenta um mundo desconhecido por grande parte do povo ocidental; andarilhos que vivem em acampamentos, caravanas pelo deserto, nômades sem residência fixa. Com a chegada do filho mais velho, que, por morar numa região industrializada, está mais acostumado com centros urbanos, o choque cultural se faz presente na hora certa: nenhuma cultura é melhor que a outra, não existem povos ou raças superiores a ninguém. É com essa leveza que Nômade Celestial se revela um filme tão poderoso, mesmo que seja através de sua simplicidade.
Matriarcado
4.0 2Dezenas de histórias compartilhadas entre mulheres que envolvem questões de gênero, abusos físicos e psicológicos, estupros, opressão (familiar e masculina) e a busca constante pela identidade própria, destruída após a convivência num mundo exclusivamente masculino que pouco fez para melhorar a condição de vida das mulheres. Embora tais assuntos já sejam debatidos por movimentos feministas há muito tempo, Matriarcado é um filme necessário para os dias atuais, especialmente em tempos de conservadorismo retrógrado se tornando cada vez mais dominante. O filme, contudo, peca pela extensa duração; a mensagem transmitida já ganharia muita força se o longa tivesse alguns 15 minutos a menos. Porém, isso não anula a importância da obra do veterano Nikos Cornilios, que, através de personagens fictícias, ilustra situações perturbadoramente reais para todas as mulheres em qualquer canto do planeta.
Pai
3.7 1Após anos de opressão, o Kosovo parece estar finalmente conquistando, aos poucos, sua libertação ao território sérvio. Não somente em questões políticas, mas também culturais; Pai, filme de estreia do cineasta Visar Morina, é um bom exemplo deste progresso. A atuação do jovem Val Maloku ao interpretar Nori, o garoto que, sozinho, procura por seu pai - figura que, subitamente, torna-se tão ausente em sua vida - no território alemão, é um dos pontos mais altos do filme. Ao relatar a realidade cruel dos imigrantes do Leste Europeu através dos olhos de um garoto corajoso e repleto de esperanças, Pai não inova, mas surpreende de forma positiva.
Mondo Lux – O Mundo Visual de Werner Schroeter
4.2 2No dia 12 de abril de 2010, o mundo perdeu um dos cineastas mais brilhantes e criativos que já existiu: Werner Schroeter. Precursor do Novo Cinema Alemão, o cinema de Schroeter foi de enorme influência para todos seus colegas, de Hans-Jürgen Syberberg a Rainer Werner Fassbinder, passando por Alexander Kluge, Ulrike Ottinger e o casal Volker Schlöndorff e Margarethe von Trotta. De notável versatilidade, os trabalhos de Schroeter não podiam ser categorizados num mero gênero, fluindo e atravessando o surrealismo abstrato, a crítica social, o teatro do absurdo, a ópera e a tragédia.
Schroeter teve dificuldades em ter seu trabalho reconhecido em seus primeiros anos como cineasta; porém, no restante da Europa, e mesmo na América, foi devidamente aclamado como merecia. Cada filme de Schroeter transparece diversas sensações; seja na beleza única de A Morte de Maria Malibran, ou no surrealismo abstrato de Duas, ou mesmo na crítica sociopolítica pessimista de Esta Noite, o cuidado e o perfeccionismo técnico e artístico estão sempre presentes, oferecendo ao espectador experiências únicas de um cinema belo e cada vez mais raro.
Mondo Lux, realizado por Elfi Mikesch, que trabalhou com o realizador por muitos anos como diretora de fotografia, é uma apresentação e, ao mesmo tempo, uma grande homenagem a Schroeter, tanto como cineasta quanto como pessoa - alguém que encantava seus atores e sua equipe técnica, que não escondiam o prazer de trabalhar com alguém como ele. Diagnosticado com câncer em 2008, Schroeter realizou sua última obra, Esta Noite, já adoecido. E então, Mondo Lux começou a ser rodado, contendo diversas entrevistas com o cineasta, que comenta sobre seus trabalhos, sua vida pessoal e suas próprias influências. Depoimentos de Ingrid Caven, Isabelle Huppert e Wim Wenders, que se orgulha de falar sobre a influência da obra de Schroeter em seus próprios trabalhos, unem-se às declarações do próprio diretor. O resultado final é um documentário esplêndido sobre uma pessoa (e um diretor) incrível.
A Balada de Narayama
4.3 31Keisuke Kinoshita utiliza as cores de forma magnífica e surpreendente, em perfeita harmonia com a ambientação teatral do filme, que possui grande influência de kabuki. Uma fórmula que combina atores expressivos e cenários claramente feitos em estúdio pode ser bastante perigosa, mas o cineasta prova seu talento ao dirigir uma fábula belíssima amarga sobre a velhice, tendo a própria Montanha de Narayama como um símbolo do fim.
Não é possível comparar este com a versão de 1983, dirigida por Shohei Imamura, pois ambos os filmes funcionam como adaptações completamente distintas da mesma obra, o livro homônimo de 1956. Embora ambos sejam excelentes, minha preferência acabou sendo pelo trabalho de Kinoshita, que realizou arte mais pura em cada segundo de duração de seu filme.
Lola
3.9 33Sarcástico e inteligente, Lola é a representação de uma Alemanha que ri de sua própria desgraça, em contraste aos dois anteriores da trilogia BRD. Ainda que tenha sido levemente inspirado no clássico O Anjo Azul, Lola destaca-se ainda mais com suas críticas nada sutis contra o capitalismo desenfreado e cada vez mais dominante.
Interessante ver como o primeiro da trilogia, O Casamento de Maria Braun, se inicia com um casamento, enquanto Lola, cronologicamente o último da mesma, termina com um.
Intriga Internacional
4.1 347 Assista AgoraNo trailer de North by Northwest, Hitchcock afirmou: "I promise you nothing but entertainment". Acabou não só cumprindo o que prometeu, como também provou que um filme de entretenimento pode ter elevada qualidade artística. Obra prima do suspense, como já era de se esperar vindo de um dos maiores diretores que já existiu.
Chantrapas
3.3 2Através de simbolismos e metáforas, Chantrapas retrata a dura vida de um cineasta durante a USSR. Autobiográfico por natureza, já que o cineasta passou por problemas semelhantes durante o início de sua carreira, Chantrapas detalha o duro processo da criação de um filme. Alguns detalhes poderiam ser mais desenvolvidos, e a excessiva fantasia surrealista de alguns trechos pode tornar-se um pouco enfadonha, ainda que elas ilustrem o que cineastas de sua época eram obrigados a fazer para metaforizar críticas através de seus filmes sem sofrerem censura. Porém, com todos seus defeitos, um filme que merece ser visto pelo fã de cinema e por quem deseja trabalhar na área.
Chantal Akerman, De Cá
3.6 6A "entrevista" com a cineasta não é tão bem conduzida quanto deveria, já que se foca em perguntas redundantes e até um pouco mal formuladas. Mas Chantal Akerman, com toda sua sinceridade, desenvolve respostas diretas e articuladas, respondendo muito mais do que os questionamentos simples que lhe foram dados. Recomendado para apreciadores de seu excelente trabalho ou no campo de trabalho de cinema, embora não extraia nada de muito inédito em ambos os quesitos.
Eu, Pierre Rivière, que Degolei Minha Mãe, Minha Irmã e …
3.7 38Ótimo relato da vida de um assassino cujo comportamento desafiou a psiquiatria forense como ela era conhecida na época. Sem apelações e sensacionalismos, o filme prende o espectador mantendo a neutralidade, não condenando Pierre Rivière mas também sem transformá-lo em um mártir ou uma mera vítima da socidade. A direção impecável permite a reconstrução sóbria do crime.
Anna
3.6 2Interessante melodrama italiano pós-neorrealismo que ainda carrega um pouco de suas conotações, como as críticas nada sutis ao fascismo e a reconstrução do país pós-guerra. Porém, apesar de ter características típicas de um filme do cineasta, Lattuada exagerou bastante em certos estrangeirismos no filme, inserindo cenas de musicais muito similares aos clássicos hollywoodianos dos anos 30 e 40 - inclusive, da trilha sonora do filme surgiram composições famosas como El Negro Zumbon (homenageada até em Cinema Paradiso anos mais tarde) e Non Dimenticar, regravada em inglês por Nat King Cole, Dean Martin, entre outro -, acabando por mesclar uma caricatura de seu estilo pessoal com o que costumava "vender" na época.
Um ótimo filme em questões técnicas, especialmente pela presença de Otello Martelli como diretor de fotografia, e com o trio de protagonistas de Riso Amaro (Silvana Mangano, Raf Vallone e Vittorio Gassman), dirigido por Giuseppe de Santis, atuando juntos novamente e interpretando seus personagens de forma adequadamente exagerada, mas bela; o completo oposto do que haviam feito no filme de De Santis, com atuações frias e realistas.
Porém, certos valores impostos como a forte mensagem católica e o sacrifício cristão me pareceram atípicos e pouco adequados, algo que não me agradou e pode incomodar outros espectadores pelo moralismo desnecessário. Ainda assim, um bom filme e que vale a pena ser assistido.
Em Nome do Pai
3.6 2Se em I Pugni in Tasca Bellochio destruiu os valores familiares tradicionais, dessa vez o alvo é a religião - ou melhor, os males causados pela mesma. A instituição católica de Nel Nome del Padre parece um manicômio, onde os alunos claramente não estão em suas melhores condições mentais, e os padres, que supostamente deveriam lecionar e guiá-los ao caminho "correto", apenas reforçam e incentivam a loucura, tanto direta quanto indiretamente.
Uma sátira inteligente e transgressora, que retrata os problemas de forma bem clara, da mesma forma que também não se importa em procurar uma solução que não há.
The Gladiators
4.1 3Peter Watkins é certamente um diretor subestimado. Um dos maiores responsáveis pelo formato docudrama, em Gladiatorerna ele decide por uma narrativa mais próxima da ficção convencional, mas seguindo seu próprio estilo único. O resultado é uma obra fascinante, um golpe no totalitarismo e na ditadura, mas decididamente pessimista, onde a suposta solução política na verdade é um problema ainda maior.
É fácil perceber a influência de Gladiatorerna em obras contemporâneas, como Battle Royale, mas o filme vai um tanto mais além. Quando todos os líderes extremistas se unem, quem paga o preço são os inocentes. Mesmo aqueles que desejam mudar o sistema estão fadados a serem usados por ele. Ainda assim, o conformismo nunca é levado em consideração.
"Seja o seu sistema ou outro... são todos o mesmo."
Woyzeck
3.8 7A fotografia em preto e branco e a ambientação solipsista nos remetem às obras mais profundas de Béla Tarr e Larisa Shepitko, enquanto o roteiro nos apresenta um Woyzeck mais soturno, existencialista, rodeado por coadjuvantes que exercem forte domínio sobre sua vida através de suas frases reflexivas e impactantes.
Esta versão de Woyzeck é uma adaptação peculiar, mas surpreendente, da peça homônima, que consegue divergir totalmente da adaptação mais famosa, de Werner Herzog, e conseguindo atingir um nível de qualidade tão alto quanto.
Gomorra
3.3 130Gomorra é, possivelmente, um dos trabalhos mais interessantes já feitos sobre a máfia italiana. Assemelha-se ao neorrealismo ao utilizar atores não profissionais (incluindo um presidiário) para destruir a glamourização por volta do submundo do crime na Itália, longe do embelezamento personificado por Don Vito Corleone.
Também se mostra bastante informativo em sua base histórica, onde os eventos são similares à acontecimentos reais, como é o caso da famosa "afaida di Scampia" entre as gangues de Camorra.
Gostaria muito de ler o livro do qual Gomorra foi adaptado, pois o filme foi elogiado pelo menos e as comparações entre ambos foram bem favoráveis.
Arca Russa
4.0 182Noventa minutos encantadores de puro eruditismo, conhecimento histórico e uma técnica quase inigualável. Alguns erros são perceptíveis, como a iluminação inapropriada de determinados quadros, mas como exigir tanto de um filme que foi gravado num único take?
O valor artístico da obra é demonstrado naturalmente a cada momento, através dessa jornada pelo Palácio de Inverno, dentro de um dos museus mais belos do mundo, o Hermitage. Cada quadro possui sua história, transmitem suas próprias sensações e resgatam memórias perdidas, tanto de seus pintores quanto dos espectadores. Isso sem mencionar o roteiro impecável, que somente alguém com um nível respeitável de conhecimento histórico poderia ser capaz de fazer.
Gostaria que o filme fosse ainda maior para poder aproveitar essa grandiosa jornada pela arte e pela história russa, mesmo que através dos olhos do fantasma-penetra, alter ego de Sokurov e uma das personificações mais divertidas do Cinema.
A Pomba Branca
4.2 12Bem antes de Kes e Cauwboy, Frantisék Vlácil realiza seu primeiro longa retratando o apego e a amizade entre um garoto e um animal - neste caso, uma pomba. Dentro desta medida necessária de drama, o roteiro não exagera, elaborando subplots coesos e que só contribuem à história principal. Como de costume, a fotografia bela dos trabalhos do cineasta exibe algumas das mais bem feitas cenas do cinema tchecoslovaco. Holubice / A Pomba Branca é um dos primeiros passos de uma carreira brilhante.
Sangue Ruim
4.0 84 Assista AgoraCom somente 26 anos, Carax já havia provado seu talento como cineasta. Mesclando elementos da nouvelle vague com um estilo bastante autoral, e ainda assim acessível, é possível notar a influência de Mauvais Sang no cinema até nos dias atuais. Mais do que recomendado.