Com sua encantadora beleza visual e uma elegância muito refinada, Kaidan, a obra-prima de Masaki Kobayashi, pode ser considerado um dos mais belos e artísticos filmes já realizados. Kaidan é um conjunto de histórias fantásticas, aterrorizantes folclóricas e mitológicas, e certamente uma das melhores transposições da cultura japonesa no cinema.
Adaptação da obra Conversazione in Sicilia, de Elio Vittorini, escrita entre 1938 e 1939, Gente da Sicília é a história de um retorno. Mais precisamente, o retorno do protagonista, um escritor que volta para sua casa, na Sicília, após quinze anos de ausência. Durante sua viagem, conhece diversas pessoas, com quem dialoga sobre a vida como um todo e os motivos para seu retorno, e ao chegar em casa, finalmente reencontra sua mãe.
A sensação de sentir-se um estranho dentro de seu próprio lar, a dor de ter perdido coisas que nunca obteve. A falta de esperança em encontrar um lugar no mundo, tentando buscá-lo de alguma forma, seja em outras pessoas ou no passado. Ocasionalmente, tempo e espaço tornam-se apenas palavras sem significado algum. Com Gente da Sicília, o casal Straub-Huillet realiza uma de suas obras mais existencialistas, deixando parcialmente as conotações antifascistas do conto de Vittorini para enfatizar a destruição de valores socioculturais e o vazio existencial do ser humano como um todo.
O cineasta franco-suíço Barbet Schroeder recebe autorização para documentar e homenagear a vida de um dos mais cruéis e temidos líderes políticos da história: Idi Amin. O terceiro presidente da Uganda tem sua vida cotidiana acompanhada proximamente; de momentos simples como tocar acordeon numa banda de jazz durante um jantar formal até seus planos políticos, que incluem um ataque direto contra Israel. A influência de Amin durante a produção do documentário, considerando a permissão dada a Schroeder para relatar sua vida, é suficiente para que este seja nomeado como um autorretrato da vida do ditador.
Duas versões do documentário foram produzidas: uma foi exibida somente na Uganda, com diversos cortes, enquanto a versão internacional possui cerca de trinta minutos adicionais. Contudo, ainda que o intuito de Amin fosse realizar uma celebração a si mesmo, Schroeder relata, sutilmente, uma mente insana e psicótica, ainda que não seja necessária nenhum tipo de manipulação para que tal exposição seja feita. O resultado final é uma pequena prévia dos acontecimentos que levariam à queda de Idi Amin três anos mais tarde.
Charlotte von Mahlsdorf, registrada como Lothar Berflede em seu nascimento, nasceu no fim dos anos 1920 na Alemanha. O Partido Nazista estava em ascensão e não demorou para que o país fosse dominado pelo Terceiro Reich. Seu pai, Max, desejava torná-la um soldado e obrigou-a a ingressar na Juventude Hitlerista. Mas Charlotte não se identificava com a ideologia do pai, um homem abusivo, controlador e que aterrorizava a família; tampouco identificava-se com o sexo que lhe foi designado em seu nascimento. Os primeiros passos de Charlotte em direção à liberdade realizaram-se no momento em que matou seu pai enquanto dormia, após sofrer uma ameaça de morte do mesmo.
Assim inicia-se a vida de Charlotte von Mahlsdorf, travesti que lutou por seus direitos bravamente e estabeleceu o primeiro museu LGBT da Alemanha Oriental. O filme de Rosa Von Praunheim mescla ficção em formato biopic e narrativa documental: uma parte do filme narra a vida de Charlotte desde sua infância até o ano de 1989, quando a protagonista (interpretada, em determinados momentos do filme, pela própria Charlotte) presencia a queda do Muro de Berlim; a outra parte é composta por entrevistas com Von Mahsldorf, que relata sua vida, seus traumas e seus anos de luta com leveza e senso de humor comoventes.
O ano de 1968 foi vital para uma mudança drástica no panorama político do Brasil: foi neste ano em que foi aprovado o AI-5, ato institucional proibicionista responsável pelas maiores atrocidades da ditadura militar. Cineastas, artistas, jornalistas, ativistas políticos da oposição e diversas figuras do meio cultural sofreram exílio, prisão, tortura e assassinato. Nessa época, diversos movimentos cinematográficos surgiram no país, como o Cinema Marginal e o Udigrudi / "boca do lixo", com o intuito de destruir as correntes impostas pela política vigente. Distanciando-se destes e estabelecendo suas próprias regras, Fernando Cony Campos realizou Viagem ao Fim do Mundo, com sequências levemente baseadas nas obras de Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas) e Simone Weil, a quem a obra é dedicada.
Ambientado quase que completamente dentro de um avião, Viagem ao Fim do Mundo não possui uma estrutura narrativa convencional; cada personagem parece viver em seu próprio universo, como se os outros passageiros do voo fizessem parte de seus universos particulares, que acabam interagindo entre si. Um jovem encantado com a garota propaganda que acabara de conhecer e interage com Pandora, personificação da natureza; um velho decrépito que tenta seduzir garotas mais jovens e não possui as melhores das intenções; uma freira que condena sua já abalada fé em Deus; jogadores de futebol cujos pensamentos beiram o existencialismo; uma personagem denominada dentro do próprio filme como "um erro de continuidade que só aparece nos planos ímpares", quebrando a quarta parede do filme; nada em comum liga os protagonistas do filme, mas todos estes são essenciais para que o filme se desenvolva ao explorar o que há dentro das mentes de cada um destes.
No decorrer da história, filmagens de tiranos como Hitler, Mussolini e Stalin intercalam-se a cenas de morte, destruição e uma clara alusão ao regime militar brasileiro, quase como uma previsão do que estaria por vir no decorrer dos anos. O mito da existência de Deus, os dogmas católicos e a hipocrisia religiosa são denunciados sem misericórdia pela freira, representação da filosofia de Weil no filme, como uma afronta aos pilares da igreja, sempre unida à política, especialmente num país onde a falta de fé ou religião é mal vista até os dias atuais. Viagem ao Fim do Mundo é uma produção rigorosamente experimental, ambiciosa e corajosa até seu último minuto, exemplar único de um cinema que infelizmente torna-se cada vez mais raro.
O primeiro filme a cores de Kurosawa, Dodes'ka-den é um dos trabalhos mais diferentes de sua extensa filmografia. Após explorar existencialismo, a sociedade pós-guerra, adaptações literárias transportadas para o Japão Feudal e, principalmente, épicos envolvendo samurais, o cineasta retrata uma sociedade miserável, vivendo em casebres, numa das regiões mais pobres do Japão.
O elenco de Dodes'ka-den é quase totalmente composto por atores desconhecidos. O título provém da onomatopeia feita por um dos personagens, deficiente mental e físico, que vaga pelo subúrbio fantasiando ser um condutor de trem. Considerado pelo público como uma afronta política, o título acabou rechaçado pelos mais puristas e conservadores, pela ousadia de mostrar como é a vida nestes lugares esquecidos pela política e pelo resto da população do país. Ainda assim, e talvez por isso mesmo, uma das obras mais humanas da extensa carreira do cineasta.
Normalmente, os filmes coloridos de Fellini não recebem a mesma atenção que seus clássicos em preto e branco, mas na minha opinião é justamente esta fase de sua carreira que contém alguns de seus filmes mais maduros e sui generis. Embora não tenha lido o livro de Petrônio, gostei bastante dessa adaptação exuberante, que remete ao teatro do absurdo. Satyricon é a junção de um retrato da Roma despudorada e caótica da época com os elementos surreais que, não somente característicos do cineasta, relembram a própria mitologia greco-romana.
Kwaidan: As Quatro Faces do Medo
4.2 74Com sua encantadora beleza visual e uma elegância muito refinada, Kaidan, a obra-prima de Masaki Kobayashi, pode ser considerado um dos mais belos e artísticos filmes já realizados. Kaidan é um conjunto de histórias fantásticas, aterrorizantes folclóricas e mitológicas, e certamente uma das melhores transposições da cultura japonesa no cinema.
Gente da Sicília
4.0 11 Assista AgoraAdaptação da obra Conversazione in Sicilia, de Elio Vittorini, escrita entre 1938 e 1939, Gente da Sicília é a história de um retorno. Mais precisamente, o retorno do protagonista, um escritor que volta para sua casa, na Sicília, após quinze anos de ausência. Durante sua viagem, conhece diversas pessoas, com quem dialoga sobre a vida como um todo e os motivos para seu retorno, e ao chegar em casa, finalmente reencontra sua mãe.
A sensação de sentir-se um estranho dentro de seu próprio lar, a dor de ter perdido coisas que nunca obteve. A falta de esperança em encontrar um lugar no mundo, tentando buscá-lo de alguma forma, seja em outras pessoas ou no passado. Ocasionalmente, tempo e espaço tornam-se apenas palavras sem significado algum. Com Gente da Sicília, o casal Straub-Huillet realiza uma de suas obras mais existencialistas, deixando parcialmente as conotações antifascistas do conto de Vittorini para enfatizar a destruição de valores socioculturais e o vazio existencial do ser humano como um todo.
General Idi Amin Dada: Um Auto-Retrato
3.9 8O cineasta franco-suíço Barbet Schroeder recebe autorização para documentar e homenagear a vida de um dos mais cruéis e temidos líderes políticos da história: Idi Amin. O terceiro presidente da Uganda tem sua vida cotidiana acompanhada proximamente; de momentos simples como tocar acordeon numa banda de jazz durante um jantar formal até seus planos políticos, que incluem um ataque direto contra Israel. A influência de Amin durante a produção do documentário, considerando a permissão dada a Schroeder para relatar sua vida, é suficiente para que este seja nomeado como um autorretrato da vida do ditador.
Duas versões do documentário foram produzidas: uma foi exibida somente na Uganda, com diversos cortes, enquanto a versão internacional possui cerca de trinta minutos adicionais. Contudo, ainda que o intuito de Amin fosse realizar uma celebração a si mesmo, Schroeder relata, sutilmente, uma mente insana e psicótica, ainda que não seja necessária nenhum tipo de manipulação para que tal exposição seja feita. O resultado final é uma pequena prévia dos acontecimentos que levariam à queda de Idi Amin três anos mais tarde.
Eu Sou Minha Própria Mulher
4.0 10Charlotte von Mahlsdorf, registrada como Lothar Berflede em seu nascimento, nasceu no fim dos anos 1920 na Alemanha. O Partido Nazista estava em ascensão e não demorou para que o país fosse dominado pelo Terceiro Reich. Seu pai, Max, desejava torná-la um soldado e obrigou-a a ingressar na Juventude Hitlerista. Mas Charlotte não se identificava com a ideologia do pai, um homem abusivo, controlador e que aterrorizava a família; tampouco identificava-se com o sexo que lhe foi designado em seu nascimento. Os primeiros passos de Charlotte em direção à liberdade realizaram-se no momento em que matou seu pai enquanto dormia, após sofrer uma ameaça de morte do mesmo.
Assim inicia-se a vida de Charlotte von Mahlsdorf, travesti que lutou por seus direitos bravamente e estabeleceu o primeiro museu LGBT da Alemanha Oriental. O filme de Rosa Von Praunheim mescla ficção em formato biopic e narrativa documental: uma parte do filme narra a vida de Charlotte desde sua infância até o ano de 1989, quando a protagonista (interpretada, em determinados momentos do filme, pela própria Charlotte) presencia a queda do Muro de Berlim; a outra parte é composta por entrevistas com Von Mahsldorf, que relata sua vida, seus traumas e seus anos de luta com leveza e senso de humor comoventes.
Viagem ao Fim do Mundo
4.0 16O ano de 1968 foi vital para uma mudança drástica no panorama político do Brasil: foi neste ano em que foi aprovado o AI-5, ato institucional proibicionista responsável pelas maiores atrocidades da ditadura militar. Cineastas, artistas, jornalistas, ativistas políticos da oposição e diversas figuras do meio cultural sofreram exílio, prisão, tortura e assassinato. Nessa época, diversos movimentos cinematográficos surgiram no país, como o Cinema Marginal e o Udigrudi / "boca do lixo", com o intuito de destruir as correntes impostas pela política vigente. Distanciando-se destes e estabelecendo suas próprias regras, Fernando Cony Campos realizou Viagem ao Fim do Mundo, com sequências levemente baseadas nas obras de Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás Cubas) e Simone Weil, a quem a obra é dedicada.
Ambientado quase que completamente dentro de um avião, Viagem ao Fim do Mundo não possui uma estrutura narrativa convencional; cada personagem parece viver em seu próprio universo, como se os outros passageiros do voo fizessem parte de seus universos particulares, que acabam interagindo entre si. Um jovem encantado com a garota propaganda que acabara de conhecer e interage com Pandora, personificação da natureza; um velho decrépito que tenta seduzir garotas mais jovens e não possui as melhores das intenções; uma freira que condena sua já abalada fé em Deus; jogadores de futebol cujos pensamentos beiram o existencialismo; uma personagem denominada dentro do próprio filme como "um erro de continuidade que só aparece nos planos ímpares", quebrando a quarta parede do filme; nada em comum liga os protagonistas do filme, mas todos estes são essenciais para que o filme se desenvolva ao explorar o que há dentro das mentes de cada um destes.
No decorrer da história, filmagens de tiranos como Hitler, Mussolini e Stalin intercalam-se a cenas de morte, destruição e uma clara alusão ao regime militar brasileiro, quase como uma previsão do que estaria por vir no decorrer dos anos. O mito da existência de Deus, os dogmas católicos e a hipocrisia religiosa são denunciados sem misericórdia pela freira, representação da filosofia de Weil no filme, como uma afronta aos pilares da igreja, sempre unida à política, especialmente num país onde a falta de fé ou religião é mal vista até os dias atuais. Viagem ao Fim do Mundo é uma produção rigorosamente experimental, ambiciosa e corajosa até seu último minuto, exemplar único de um cinema que infelizmente torna-se cada vez mais raro.
Dodeskaden - O Caminho da Vida
4.3 45O primeiro filme a cores de Kurosawa, Dodes'ka-den é um dos trabalhos mais diferentes de sua extensa filmografia. Após explorar existencialismo, a sociedade pós-guerra, adaptações literárias transportadas para o Japão Feudal e, principalmente, épicos envolvendo samurais, o cineasta retrata uma sociedade miserável, vivendo em casebres, numa das regiões mais pobres do Japão.
O elenco de Dodes'ka-den é quase totalmente composto por atores desconhecidos. O título provém da onomatopeia feita por um dos personagens, deficiente mental e físico, que vaga pelo subúrbio fantasiando ser um condutor de trem. Considerado pelo público como uma afronta política, o título acabou rechaçado pelos mais puristas e conservadores, pela ousadia de mostrar como é a vida nestes lugares esquecidos pela política e pelo resto da população do país. Ainda assim, e talvez por isso mesmo, uma das obras mais humanas da extensa carreira do cineasta.
Satyricon de Fellini
3.8 145 Assista AgoraNormalmente, os filmes coloridos de Fellini não recebem a mesma atenção que seus clássicos em preto e branco, mas na minha opinião é justamente esta fase de sua carreira que contém alguns de seus filmes mais maduros e sui generis. Embora não tenha lido o livro de Petrônio, gostei bastante dessa adaptação exuberante, que remete ao teatro do absurdo. Satyricon é a junção de um retrato da Roma despudorada e caótica da época com os elementos surreais que, não somente característicos do cineasta, relembram a própria mitologia greco-romana.