Sinceramente?! Esperava algo muito pior e no fim me fez rir muito mais que muito filme de comédia brasileiro. A Xuxa traz ótimas risadas na primeira metade, muita referência legal. Roteiro fraco como esperado, mas tá tranquilo... O final ficou mais tosquinho, com uns efeitos piores, sei lá...parece que foi acabando o orçamento hauhau. Mas pra mim ficou uma sensação positiva, as crianças se prenderam e curtiram. E nunca é demais falar de bullying e cyberbullying mesmo que de forma superficial, apesar de falta de profundidade, a lição com certeza é válida.
Assisto filmes do Guy Ritchie porque os acho divertidos e entro com esse espírito de ver algo assim, e aqui se repete essa sensação, me diverti assistindo! Apesar de saber que seus filmes têm um pouco a vontade de mostrar diferentes povos meio esteriotipados num certo caldo cultural britânico, nesse eu acho que ele pesou a mão com os chineses, ficou algo muito "perigo amarelo", aquela coisa de caracterizar povos asiáticos orientais como perigo para a cultura e sociedade ocidental. Mas estudando um pouco sobre isso, sobre a Guerra do Ópio e tudo mais ligado à isso, é fácil perceber que a cena que Pearson dá todo um sermão à um chinês tomando chá, no máximo da sua esteriotipação, falando que eles trouxeram uma droga que destrói familias e os britânicos como santos que só querem fumar uma maconhinha, pegou bem mal pra mim. Eu sei que é chato denotar esses detalhes, parece uma politização forçada de minha parte, mas o problema é que a problematização vem antes do filme. Pois é através de produtos culturais que preconceitos criam alicerces lá no fundo da mente de pessoas predispostas a sentirem essa aversão à outros povos.
Só tenho um único problema e não acho que o diretor esteja errado, mas me incomoda. O filme deixa bem claro sua posição principal o tempo todo, uma crítica forte ao Estado, seu tamanho e possibilidades de corrompê-lo. E nada tenho contra essa crítica, de verdade, aquelas morreram por ausência de fiscalização de um Estado corrompido, desde a falta de saídas na Colectiv até não fazerem testes no desinfetante. E nisso eu tenho uma tendência a achar que aqueles que fazem tal crítica, ao mesmo tempo, levantam a bandeira da diminuição do Estado, o que pode ser uma falha minha em não perceber que não estão necessariamente atreladas. Mas o ponto que quero chegar é o incômodo que me causa a falta de percepção desse tipo de opinião que esquece que na base desse problema pode existir também um inescrupuloso e imoral acúmulo de capital. Em quase todo esquema de corrupção temos dois lados: o público de onde se manipulam leis, regras, licitações, etc... através de posições de poder político e também se desviam o dinheiro do contribuinte. E temos o outro lado, o privado, de onde vem a demanda por privilégios, isenções e vista grossa para que haja assim o acúmulo de capital e poder, para fazer girar essa roda de corrupção. A lógica do acúmulo de capital é típica de uma posição de direita, pró capitalismo que pretende diminuir o Estado. Por si só, não é um problema ao meu ver querer um Estado menor, mas aqui essa diminuição é justamente com a intenção de se destruir a fiscalização facilitando esquemas vantajosos para indivíduos. Eu digo tudo isso porque as vezes me soa que esquecem desse detalhe, o lado da demanda por corrupção do Estado vinda diretamente do setor privado. Seja numa Hexa Pharma do documentário, até uma Odebrecht, temos muito esquecido essa percepção, de responsabilidade social também das empresas. E o documentário me deu essa sensação, mas como eu disse anteriormente, não acho que o diretor estava errado, já que ele deve sim dar um enfoque que bem entender, ainda mais neste caso, já que tem toda razão em demonstrar a corrupção que se entranhou no governo romeno.
Minha nota seria 4...4,5. Mas como tem um monte de fascista aparecendo por aqui para dar nota mínima, melhor deixar em 5. Não que a nota seja importante ou que vá ser suficiente para equilibrar, mas prefiro assim.
Não, o filme não é imparcial e nem deve ser. Se você acha que já viu na vida um filme imparcial, é de uma ignorância gigantesca, provavelmente entende que caso se aproxime de sua opinião, certamente deve ser imparcialidade. O filme é todo muito bem feito, faz ótimas adaptações ao livro de Mario Magalhães. Ótimas atuações, ótima narrativa, construção de personagens, etc. Muito válido para o infeliz momento e governo que vivemos.
Me pareceu se explicar demais, as críticas e seus objetivos. Mas daí pego parte de sua própria temática, como uma parcela da população não tem problemas em enveredar pelo negacionismo, por mais que o problema esteja na cara, seja covid, desigualdade social, mudanças climáticas, etc ... Então se nem com esse cometas que já convivemos não é o suficiente para que olhem para cima...talvez seja necessário mesmo o filme ser tão explícito em suas críticas.
A cena em que Ruben come com os demais pela primeira vez. Como essa cena é boa, ali está a grande dificuldade do protagonista, a sensação de pertencimento de grupo em todos nós é algo bastante comum, nossos amigos têm maneiras de agir parecidas com as nossas, temos códigos próprios e que nos coloca dentro de padrões de normalidade. E quando deficientes auditivos têm de usar de forma contundente a expressão corporal, eles se destacam, eles passam a não ser vistos mais como "normais". Por mais que Ruben seja uma cara "diferentão", aquilo é uma mudança profunda e que é fora de suas escolhas quanto a um corte de cabelo ou uma camisa rasgada, é imposto a ele esse novo grupo, esse novo pertencimento. E isso me lembrou muito um trabalho de faculdade que fiz que era focado em deficientes auditivos, é um grupo muito fechado e muito protegido por aqueles que os circundam. Tive a experiência de ir à uma balada para deficientes auditivos, e é uma realidade completamente diferente em lidar com as pessoas. Exemplo simples: andar em uma festa qualquer você simplesmente andará pedindo licença para todos, no máximo um toque no ombro ou nas costas caso o som esteja alto. Ali não, você tem que deixar claro que seu toque é de quem está passando, então é mais firme, é algo mais físico. O corpo ali é um instrumento mais forte de percepção de mundo. Apenas um detalhe que eu nunca esqueci em um único dia. Agora imagine Ruben com uma nova vida e imagem perante a sociedade.
O filme me trouxe um sentimento muito forte, um sentimento que depois de assistir percebi o quão importante era para a trama, e esse sentimento foi o de puro cansaço. É cansativo estar na pele de Zain, viver pelo que ele vive, sentir o que ele sente. Não é por nada que Zain questiona sua própria existência, qual o sentido de nascer para sobreviver no lugar de viver? Qual o sentido de viver em uma sociedade que só lhe exige aquilo que nunca lhe ofereceu? Todos os caminhos dados a Zain terminam sempre nos mesmos lugares e o filme os deixa bem claros, burocracia, violência e aquele que me pareceu mais forte, a falta de dinheiro, como é duro que a vida seja tão precificada, e o pior, tão desproporcionalmente precificada. A desigualdade segue sendo a força mais voraz e destruidora no nosso mundo. Ao final, como eu disse, é cansaço, desalento, impotência. Apesar da tentativa de um final um pouco mais feliz, de um reencontro de uma mãe com seu filho, o gosto que fica é amargo, vontade de fazer algo para mudar e não saber nem por onde começar, saber o quão isso é maior que a minha existência e das gerações futuras. Mas Zain ainda nos mostra como é bom o sorriso de uma criança e o quanto vale a pena lutar por ele. Meio que piegas meu próprio sentimento com o final do filme, mas foi o que me trouxe, sentimentos simples e que deveriam ser universais, mas infelizmente não são.
Eu concordo com os comentários que dizem que o filme faz certa construção dá China como o mau, é meio maniqueísta em alguns pontos. Coloca cenas da bandeira americana tremulando com músicas épicas de fundo. Okay, eu entendo o ponto. Sim, eu sou contra imperialismo americano, a sua influência tanto dos diferentes governos e do Estado americano em geral, assim como de suas multinacionais em território estrangeiro, inclusive se aproveitando da própia cultura de trabalho chinesa que vimos apresentada no documentário. Mas acho que falta entender que o filme não tenta explicar o mundo e sim dar luz à um determinado recorte escolhido. Não sei se é uma tendência de esquerda (do qual me considero parte) querer dar contornos mais suaves aos problemas presentes naqueles que em tese estão do seu lado do espectro político, mas não podemos negar o problema apontado. Dentro desse "capitalismo de estado" que se diz existir na China, existe tanta voracidade pelo lucro e desprezo pela vida humana quanto há na estrutura do capitalismo convencional imposto pelo mundo. Não é aceitável de maneira alguma uma pessoa trabalhar 12 horas por dia só para justificar o crescimento "invejável" da China. Dentro do território chinês estamos cada vez mais acompanhando a mão pesada de um Estado autoritário crescente. Perseguição cada vez mais forte em Hong Kong, desrespeito com a região de Taiwan, perseguição e aprisionamento do povo uighur em campos de concentração para inclusive utilização de trabalho escravo. São tantas facetas do governo chinês que tem se apresentado tão atroz quanto o imperialismo americano. Eu prefiro os dois gigantes apontando o dedo na cara um do outro e mostrando as suas cicatrizes de suas políticas e seus modelos econômicos, porque no fim das contas temos que lutar tanto pelo chinês perdendo a vida dentro de uma fábrica, quanto pelo americano sofrendo com uma precarização do trabalho. Os dois são verdadeiros, os dois merecem nossa atenção.
Um filme que toca em diversos assuntos: velhice, juventude, sexualidade, memórias, família, classes sociais, elite inconsequente, poder público, etc... E sim, tudo se encaixa, se entrelaça e funciona muito bem.
De início nós mesmo participamos da construção de um trecho das tantas memórias da personagem principal, a escritora Clara. Temos uma festa, com relações entre as pessoas que ali se encontram, se gostam, partilham um ambiente e constroem ali um momento de suas vidas. Aquele apartamento abriga pessoas que passaram por problemas, como o câncer de Clara, tiveram felicidades como aquela festa de aniversário, foram jovens e transaram por todo canto, em cima da mobília, etc. Ali mora não só Clara, mas sua história de vida. Durante a festa, Tia Lúcia que faz 70 anos olha para sua cômoda, e lembra como aproveitou seus tempos mais jovens, e aqui o sexo tem uma forte relação com a ideia de jovialidade. Toda vez que ele aparece, o sexo e a juventude da personagem aparecem também. Clara é uma mulher ativa, que vai à praia, que caminha, que sai para dançar, que pensa sobre si, que pensa sobre o mundo, que indaga, que questiona. Não é, como ela mesmo diz, uma louca que simplesmente tem um apego exagerado por seus pertences. Ela não morreu, assim como o que possui. Seus LPs, seus livros, seus móveis, seus quadros, tudo ali ainda tem história para contar, ainda estão vivos. Mesmo a mídia não tem o mínimo interesse de demonstrar com essa história, como quando Clara conta sobre um de seus LPs, e a matéria que vai ao jornal simplesmente faz um recorte vazio de suas falas. E por isso Clara é persistente em se manter, é um grito de resistência àqueles que cismam em decretar que sua velhice se faz presente, chegando assim o momento de ficar reclusa em um apartamento cheio de seguranças e muros em sua volta esperando a morte chegar. Mesmo sua família não respeita isso, com desculpa de estar protegendo-a, mas não respeitam sua liberdade. A arte aqui também demonstra sua vitalidade eterna, ela se mantém não só na memória de Clara, ela é ainda relevante, mesmo que sejam LPs antigos, a arte é atemporal e conversa com situações dos tempos atuais. A arte é forma de resistência. Temos também alguns momentos interessantes de como o filme fala sobre família. O amor de Clara pelos filhos é claro e inegável, mas ela possui apoio em outras pessoas que não seriam os mais óbvios e cria com eles laços sutis, porém fortes. Seja com seu sobrinho, a nova namorada dele, com a mulher que trabalha em sua casa, com o salva-vidas na praia em frente ao apartamento. São relações que de forma inesperada, demonstram maior partilha e sinceridade. A desigualdade social e as relações de poder são outros dos assuntos presentes fortemente no filme. Aquarius nos coloca do lado de Clara, criamos empatia por sua luta, por sua forma de agir, por sua forma de bater de frente com aqueles que querem roubar aquilo que é seu. Mas ao mesmo tempo o filme nunca nos deixa esquecer que dentro dessa sociedade Clara também possui uma “superioridade” na relação de poder com muitos das personagens, com a sua “empregada”, com os empregados do condomínio e da construtora, com os pintores. Ela sim resolve os problemas, ela vai atrás, mas praticamente não coloca a mão na massa. O interessante é que a personagem parece perceber muito disso, mas quando lhe convém, se torna mais desejável utilizar esse poder. Resumindo... ”que os empregados limpem a merda vinda da escada lá de cima enquanto eu me mantenho incólume na segurança de meu apartamento”. Ou seja, o modo padrão de agir da classe média. Uma das cenas que achei forte foi a da família de Clara olhando álbuns e mais álbuns de fotos. Enquanto passam por suas memórias, pessoas e lugares do passado, Clara vê uma foto de uma “empregada” com a qual conviveu, e dela lembra duas coisas: que aquela pessoa fazia uma ótima comida e que roubou algumas joias, o que a fez ser mandada embora. Mas pena para lembrar seu nome. Aqui demonstra uma sutil mesquinhez. Aquilo que recorda diz apenas sobre si mesma: que fazia uma comida gostosa que CLARA gostava e que roubou joias de CLARA, mas é incapaz de buscar sem dificuldade o nome daquela pessoa, quem foi aquela pessoa, não sabe o que lhe aconteceu, e como mostra a cena em que Clara vai ao quarto e vemos um vulto “fantasmagórico” da esquecida “empregada” passar rapidamente para dentro de um quarto, porque no fim a isso ela foi resumida, um vulto. E logo depois a atual “empregada” passa mostrando uma pequena e simplória foto de seu filho, sem floreios, sem grandes feitos, apenas a foto de um filho, e a família não é capaz de demonstrar interesse. Achei essa cena especialmente pesada, ela demonstra como não é permitido ao pobre ter memória, ele deve ser apenas uma engrenagem invisível para a produção de memórias daqueles que serve. O que lhes resta é ser lembrado por seus feitos, e que sejam bons, caso contrário serão eternamente lembrados por roubarem as joias da patroa. A memória destes está nas mãos de seus “superiores”, eles vão decidir como você vai ser conhecido futuramente. Mas temos aqui a ideia de um mal menor, pois o mal mesmo, aquele que age para tal vem representado na família Bonfim, donos da Bonfim Engenharia e dona dos demais apartamentos. Temos Diego e seus avô que passa ao neto por laços familiares o poder sobre a empresa. Diego tem uma atuação perfeita para um tipo bastante comum hoje em dia, ele representa muito bem esse novo empreendedor cheio de sorrisos e maneiras educadas, ele seduz e te convence, mas não se diferencia em nada em suas ações mais básicas de perpetuação de poder. Diego faz festas nos apartamentos vazios acima do apartamento de Clara. Inclusive a própria estrutura do prédio é perfeita para a demonstração das classes. Os empregados são vistos mais no térreo ou descendo as escadas representando uma classe mais pobre, enquanto Clara é vista mais em seu apartamento, acima do térreo onde o serviço é feito e abaixo das ações da construtora que ocorrem acima dela, representando assim a classe média, e a construtora usa apenas os apartamentos que estão acima, representando uma elite. As festas são regadas pela mais pura...putaria... e até ai não temos problemas, até porque todos no fundo gostam de uma boa e velha putaria. O problema é que não há respeito pelo espaço de Clara, o som alto, bitucas de cigarro vindos do andar de cima que caem na casa dela, as fezes no chão da escada no dia seguinte, é uma representação de uma elite inconsequente e indiferente aos demais. O acontecido toma proporção ainda maior com as cenas de religiosos nos corredores até o apartamento onde a festa tinha sido feita, Diego tem ligações com as igrejas. Então temos aqui não só uma elite inconsequente e indiferente com aqueles abaixo, mas também moralista e que usa da fé da população de forma criminosa. O ambiente de putaria é o mesmo de falsa santidade. Essa elite é tal como é pois possui sempre uma classe trabalhadora que fará todo o trabalho sujo para alcançar os seus objetivos. Seja queimar os colchões marcados por suas perversões, seja obriga-los a subir com uma colmeia de cupim para ruir toda a estrutura e alcançar seus objetivos. Além disso, a elite é sempre muito bem relacionada, laços familiares ou qualquer relação para que se fortaleçam. O dono do jornal é irmão do padrasto do dono da construtora, que é amigo intimo do dono da igreja, que é genro do político, e por ai vai... São puros laços de poder. É estrutural e é grande, possui meios de se proteger ou usam da burocracia para embaralhar os caminhos, como fica claro na cena dos arquivos bagunçados. Mas Clara aqui surge realmente como salvadora, ela vai vasculhar, vai atrás de achar os podres deles. E nesse momento a cômoda que remetia a jovialidade, aparece em foco enquanto ela vasculha na internet informações. Aqui ela demonstra que apesar da idade, possui uma jovialidade de uma resistência feroz capaz de bater de frente com qualquer tipo de adversário. Ao final temos a descoberta do plano da construtora, onde acham a colmeia de cupim e nada mais representativo de uma elite que tem como principal objetivo vencer mesmo que seja corroendo toda a estrutura para demarcar o seu território, mesmo que reinem em cima de destroços. E como Kleber Mendonça Filho faz em O Som ao Redor, um recorte ali formado é uma representação da sociedade brasileira como um todo, e para mim o prédio é uma representação do Brasil e a utilização do cupim no final por uma empresa privada é bastante significativo. Uma crítica muito bem construída do desmonte dos bens públicos em favorecimento de uma futura aquisição dos mesmos pelo setor privado. Se corrói a estrutura, não respeitando a memória, a liberdade, a vontade daqueles que ainda ali residem, e isso tudo numa rede que inclui mídia, igreja, construtoras, políticos, etc. O estado é corroído e depois vendido. E no fim temos a angústia de Clara ao descobrir tudo isso, mas mesmo assim ela enfrenta e temos a ótima e satisfatória cena final dela jogando pedaços da madeira corroída e cheia de cupim. Clara é um personagem muito forte, em nenhum momento é negado que ela tem seus favorecimentos por ser uma mulher branca de uma pequena elite cultural, mas isso não diminui as suas lutas, ainda é uma mulher forte que não teve sua feminilidade destruída por uma mastectomia, que enfrenta dançando um homem que não a quis por simplesmente não ter um seio, nada disso tira a sua força de ser mulher. Aqui as mulheres muito se unem, enquanto a construtora é basicamente masculina. O filme mostra além de tudo o poder feminino e sua forma diferencia. Aquarius é incisivo e ao mesmo delicado em suas críticas, ele escalona lentamente e na reta final nos leva a um certo suspense sobre o que está acontecendo, prende e nos faz querer saber mais daquilo que está escondido, que está sendo feito pela construtora. Tenho como ponto negativo algumas poucas atuações que me incomodaram um pouco, e certos momentos em que o áudio dificulta o entendimento com uma mixagem ruim entre o som do ambiente e a da voz dos atores. Mas nada que atrapalhe e faça desse mais um filme excepcional de Kleber Mendonça Filho.
Um filme de um estética tão espetacular que é impossível não se prender a tela, seja pela beleza ou pela estranheza. Pega toda a estrutura comum aos contos de fada e o coloca em um mundo cruelmente real.
Shou, que não possui grandes expectativas em sua vida, e a vê de forma indiferente, é mandado por seu pai para limpar a casa de sua assassinada e desconhecida tia, e ao fazer isso, ele descobre uma história espetacular que poderia ter sido esquecida facilmente em mundo onde as intempéries de uma vida nos levam ao fundo do poço.
Matsuko, tia de Shou, era uma aplicada professora que amava o seu trabalho, ao ponto de defender seus alunos de maneiras até mesmo desproporcionais. E ao fazer isso, defende um aluno acusado de roubar dinheiro em uma excursão, chegando a assumir a culpa pelo delito. Matsuko é ingênua, não demonstra discernimento para defender e subjuga a si perante os demais com essa convicção. E assim destrói sua reputação na escola e com sua família, então o problema que vai lhe acompanhar a vida toda aparece, a violência psicológica e física que figuras masculinas não exitam em praticar com Matsuko. A violência psicológica mais importante é a indiferença que seu pai tem por Matsuko ao dar toda sua atenção à sua irmã doente, Kumi. Matsuka luta para conseguir se fazer perceber e também para tirar de seu pai a preocupação com a doença de sua irmã, e para isso cria uma careta que o faz sorrir, porém mesmo esta, não dura para sempre o pai se torna indiferente à esse artifício. Mas a careta fica internalizada, e é usada toda vez que Matsuko passa por situações de estresse, deixando clara a ferida que isso lhe criou. A violência física permeia o filme todo. Homens distintos, de diferentes atitudes e posições, seja o diretor da escola que chantageia para que mostre os peitos, seja o escritor "excêntrico" que agride e a manda se prostituir, seja o barbeiro que parecia um homem decente mas a larga na primeira dificuldade que apareceu, seja o ex-aluno que a fez ser expulsa e depois voltou falando que a amava, mas abusava, batia e a usava de todas as formas, todos entram em sua vida para agredir e se aproveitar de Matsuko.
Matsuko é uma pessoa de afeto incondicional, porém não recebe o mesmo de volta, não há afeto, e essa é a busca constante do personagem na maior parte do tempo. A clara falta de uma figura paterna amável constrói nela uma necessidade insaciável incapaz de perceber abusos. O afeto sempre vem de figuras femininas, mas ela parece incapaz de perceber isso de forma a se afastar das mesmas. O machismo é assunto predominante aqui. O homem manda na família, o homem manda na escola, o homem demite, o homem manda em seus pensamentos, o homem abusa, o homem abusa inclusive dizendo que é por amor, o homem é indiferente. O masculino é posto aqui de forma bastante negativa, e acho que isso deve ter até outros significados para um filme japonês que tem uma sociedade fortemente patriarcal até hoje. Toda ideia de conto de fadas com principes encantados é fortemente desconstruido enquanto vemos Matsuko sofrer.
Mas é sofrível mesmo ver como ela não consegue se desvincilhar da ideia dos contos de fadas. É interessante perceber como Matsuko tem um ideal e uma busca tão inabalável, que cada nova fase de sua vida é acompanhada de uma música típica de contos de fada, nesses momentos o filme se mostra mais teatral e lúdico, porque aqui você embarca de vez na visão distorcida e ingênua da protagonista. Mas é também fácil perceber como ao longo do filme, mesmo que hajam as músicas, o lúdico, o fantasioso, aos poucos o filme vai deixando essa característica de lado, as decepções vão trazendo Matsuko para o mundo normal, colocando seus pés no chão, até o ponto em que a desesperança a possuí e ela perde motivos para viver socialmente, buscando isolamento em um pequena casa onde inicia uma vida em meio ao acúmulo de lixo em sua casa e se deteriora fisicamente. Não há mais esperança.
Então o filme passa a tocar também em uma temática relativa à religião e como a praticamos. O filme mesmo diz não saber se existe um deus, mas se existe, ele toma formas desconhecidas, mas invariavelmente elas devem ser afetuosas, que seja capaz de perdoar, de aceitar o próximo. E essa foi a vida de Matsuko, sempre perdoou, sempre aceitou o próximo, sempre defendeu mesmo aqueles que cometeram erros, todos eram merecedores de sua atenção. O filme mostra mais de uma vez cenas em close do Novo Testamento, e claramente Matsuko é uma face moderna de Jesus Cristo, o filme pode facilmente ser lido como Caminho do Calvário por qual Jesus carregou sua cruz e sofreu de todas as violências possíveis até o local onde seria crucificado, para ainda assim perdoar aqueles que o crucificavam. Matsuko também tem sua crucificação. No final, quando surge novamente a esperança, quando surge uma amiga que lhe oferece um emprego e ela volta a acreditar que pode fazer algo, da mesma forma que Jesus sofreu o golpe fatal com a Lança que lhe perfurou, Matsuko recebe uma pancada com um taco de baseball em sua cabeça desferida por crianças. E então temos sua caminhada para o divino, sua ascenção e perdão até mesmo da irmã a qual tinha agredido quando saiu de casa ainda jovem. Ali acaba seu sofrimento, porque não mais faz parte da humanidade, que se mostrou totalmente incapaz de lhe dar afeto da mesma maneira que ela ofereceu aos demais. Esse final muito me fez lembrar do final de O Auto da Compadecida, onde João Grilo fala que aquele pedindo esmola jamais poderia ser Cristo, por que para ele Jesus não podia ser "pretinho" daquele jeito. Mesmo sendo ateu, acho muito bonita a ideia de Jesus não está no céu, mas sim naquele que passa por você todo dia, aquele ser invisível, as vezes um morador de rua, que pode ter uma história incrível, mas não conseguimos mais enxergar o próximo o suficiente para nos aproximarmos, e o quanto isso nos faz distanciar uns dos outros. E Matsuko absorveu em toda sua vida todo tipo de forma que esse ódio pode tomar. Apesar de toda as cores que a fotografia traz, todo o floreio que a estética do filme propositalmente força, não temos nada de contos da fadas aqui, apenas uma vida de tristeza profunda. E essa visão de Jesus estar no outro está cada vez mais "fora de moda" infelizmente, o afeto está longe de ser o sentimento vigente, o ódio nos torna cada vez mais alheios e indiferentes, e o filme se torna assim extremamente atual, só espero que não se torne atemporal, que um dia o afeto seja o padrão.
Coringa traz uma gama de temáticas tanto em nível individual de um ser quanto deste mesmo inserido no coletivo, e como esses são dois lados de uma mesma moeda, como conversam entre si.
Arthur é um marginal, no mais puro sentido da palavra, que está a margem da sociedade. Dentro de uma perspectiva de normalidade da sociedade ele é um desajustado. Ele nos causa estranheza e incômodo. Suas risadas, produto de um problema neurológico estão sempre em descompasso com os ambientes e situações que se encontra. Ele não se encaixa e não entende bem o porquê, sua vontade básica é de fazer os demais rirem, mas não se vive ali tempos de sorriso. O tecido social se encontra em estado de estresse, as pessoas não estão felizes, a situação da cidade é tão insatisfatória que afeta o humor e convívio dos cidadãos, ao passo que fazer uma criança rir no ônibus é visto como uma intromissão, algo errado e mal visto. E neste cenário um ser desajustado dificilmente terá uma vida de sanidade mental.
A sociedade aqui é tão personagem quanto o Coringa. Logo de início Arthur sofre violência física quando vestido de palhaço e é chutado no chão por garotos que nem ao menos tinham motivos para tal. E atos de violência se seguem, só que se apresentam mais através da violência psicológica, como uma precarização do trabalho, como é tratado pelos colegas de trabalho, como é tratado no ônibus, isso pode soar muito longe de nós quando vemos palhaços, mas eles são como qualquer trabalhador em nosso dia-a-dia, como qualquer engravatado em cubículos em escritórios sofrendo qualquer tipo de humilhação em seus trabalhos ou pegando transporte para suas casas. Aqui é fácil estabelecer como Coringa é qualquer um de nós, como ele nos representa, nossas mais arraigadas aflições sociais, por mais que não tenhamos tal disfunção neurológica, temos sentimentos quanto ao mundo que nos ronda, e aqui temos isso posto em forte destaque.
Então temos contato com uma das grandes temáticas do filme, a desigualdade social. Uma sociedade de homens ricos, brancos, poderosos, discutem e brincam com as necessidades do povo. Então Coringa se vê em mais uma situação de confronto no metrô, onde 3 rapazes com roupa social e bêbados (ao menos pareciam bêbabos), importunam uma mulher, e como em toda situação de estresse e incômodo, Arthur começa a rir, e isso irrita os rapazes, que começam a espanca-lo no chão até que este vira e atira matando dois deles, e depois persegue o terceiro para também matá-lo. Aqui temos um grande momento de revolta, os rapazes representam justamente a continuação de uma elite inconsequente. A morte desses gera o início de uma convulsão social, uma sociedade que não suporta mais a violência praticada pelos ricos, vai para a rua protestar e pedir a "morte dos ricos", principal palavra de ordem nos protestos, enquanto os ricos vão aos programas de televisão se soliedarizar, ou ainda como o candidato a prefeito chamar a população de "palhaços". E esse é um tema fortemente pertinente, especialmente para o mundo em que vivemos. A desigualdade social que se aprofunda é hoje um dos maiores problemas a ser enfrentado, apesar do aumento na média de compra no mundo inteiro, aumenta também a desigualdade, o que vem gerando no mundo diversos focos de ebulição social. Temos mais claramente o Chile que entrou em crise política e social, e uma das maiores reclamações do povo chileno apontam para a desigualdade social. Equador teve estopim com fim dos subsídios aos combustíveis decretado por Lenin Moreno, o que também afeta na percepção de desigualdade social, sendo que proporcionalmente, o mais prejudicado seria o mais pobre. Líbano com uma situação similar ao do Equador. E nisso temos outros diversos países na mesma situação. E o filme traz muito disso, o grande descontentamento da sociedade em olhar para "cima" e ver mansões e refinados eventos beneficentes como no filme, e ter de aguentar o lixo se acumulando na frente de suas casas. E Arthur, ao atirar nos 3 jovens, traz para o povo o sentimento de vingança, e a investigação ter apontado que um palhaço teria cometido o crime, leva milhares de pessoas as ruas com suas máscaras de palhaço, buscarem sua vingança contra a elite dominante.
Então no meio desta cidade entrando em ebulição, Arthur vai buscar em seu passado algum tipo de alicerce, já que a sociedade e o governo em nada o apoiaram. Arthur não tem figura paterna, o que o faz projetar buscar tal figura em seu ídolo, host de talkshow, Murray. Tem uma figura materna presente apenas em corpo, mas não em afeto. É levado a acreditar que Thomas Wayne é seu pai, mas também descobre que não. Na verdade foi adotado por sua mãe que negligenciou sua criação, deixando que sofresse agressões quando criança. Arthur não tem estrutura alguma onde possa se apoiar, ao matar sua mãe, enfim se torna Coringa de vez, ali quebra qualquer amarra que ainda possuía para que mantivesse sua sanidade e vai buscar a vingança contra todos aqueles que o subjugaram. Mata o ex-colega de trabalho que o prejudicou. E enfim vai para a televisão matar Murray, que era a face da elite, que o humilhou na televisão, que não consegue enxergar a indeferença com o próximo, que quer o show apenas pelo show, independente se é ético ou não. Murray então discursa e se vinga matando Murray em rede nacional, vira notícia, vira um símbolo, vira um ícone a ser seguido, ovacionado por seus feitos ao se vingar daqueles que compõem a elite daquela sociedade.
Nesses tantos protestos pelo mundo que comentei anteriormente, começaram a aparecer pessoas com os rostos pintados como o Coringa de Joaphin Phoenix. Mas o próprio filme mostra que Coringa é apolítico, ele mesmo o diz, e esse é um ponto preocupante da percepção em relação ao filme. Pensamentos revolucionários são importantes e necessárias de tempos em tempos, não tenho dúvida alguma disso, mas se tornam preocupantes quando vazios em pensar soluções. Coringa tem sim a insatisfação dentro dele e isso se traduz na vontade de instaurar o caos pelo caos, sem propor soluções. E o filme é justamente para isso, para demonstrar a insatisfação e como o Coringa consegue representar bem isto. Mas o personagem é vazio, ele para no caos, ele não é um ser capaz de propor uma nova forma de organizar a estrutura social, ele só quer destrui-la, e mesmo que o filme tente nos levar para o lado do Coringa e nos fazer ter empatia pelo mesmo, eu não consigo o ver como ídolo como muitos estão fazendo por ai, por que ele tem justamente aqui demonstrado a fonte de sua maldade, uma mistura de caótico, com anarquista (no sentido mais figurado da palavra), com um pouco de niilismo. Ele se torna uma mistura explosiva que conversa com diversos problemas que vemos hoje em dia como incels, proliferação da depressão, governos antidemocráticos eleitos, destruição das instituições, etc. O filme é ótimo em construir todas as engrenagens de nossas insatisfações, essa é a proposta, mas está longe de querer construir um ídolo, uma espécie de anti-herói, e se alguém o viu dessa forma, que me desculpe, mas perdeu alguns detalhes especialmente na reta final do filme.
Um ótimo filme que conseguiu pegar um personagem da cultura pop é o repensar e o colocar mais atual do que jamais o fizeram. Além de outros quesitos que o fazem brilhar, especialmente a atuação de Joaquin Phoenix. Vale muito a pena!
Gostaria de perguntar o que entendem por este diálogo entre Ana e Carlos quando passeavam pelos arredores do rio. Fiquei muito curioso para saber outras interpretações.
"-Existe sempre um porto, é um porto quando ainda não é. -Carlos, o que é esse lugar? -Era, hoje não é mais. -Carlos, o que era este lugar? -Era um porto, porto de areia. -Areia, barco. Os barcos o que eram? -Os barcos não eram barcos, os barcos eram patelões. Os patelões eram para a areia, a areia era para o vidro. Hoje a areia não é mais para o vidro. Hoje não tem mais vidro, hoje não tem mais."
A mim soa como a perda do significado em um processo. O filme que passa também pelo tema da industrialização e como o homem se encaixa nesse meio, parece nesse trecho falar de como nós, na loucura de transformar nosso ambiente, perdemos o valor, o significado das própria transformação. Já enxergamos tudo como portos onde podemos atracar. Depois nos estabelecemos e nos arraigamos nessa natureza, onde tinhamos patelos (Caranguejo, que se emprega no adubo das terras. Pequena arraia.) hoje temos barcos. E transformamos aquele ambiente, da areia para o vidro. E o transformamos até a exaustão e nem ao menos sabemos porque o fazemos, apenas o fazemos em nome de nossa vontade de consumir, até não ter mais vidro.
Gostaria realmente de ver outras interpretações desse trecho. Comentem ae, por favor. =D
Enquanto na mulher a simples exposição da existência de vontade sexual já se mostra como algo chocante, para o homem se demonstra uma sexualidade cheia de perversidade, violência e relações de poder. Mesmo na cena em que o homem se coloca na posição de dominado, o faz através de sua vontade, a violência vem ao seu comando. Destruir algo percebido como puro, disputas pela mulher tida como objeto de posse, tudo isso enquanto a mulher assisti amarrada o homem confabular situações desnecessárias que satisfaz apenas teu próprio ego e vontade de dominar.
Mesmo com uma globalização exacerbada e um multiculturalismo bem estabelecido, a empatia parece cada vez mais longe de ser lei. As metrópoles com seu gigantesco fluxo de pessoas, são também um triste centro de individualismo que causa o distanciamento entre todos. Não conseguimos parar e olhar para aquele do nosso lado, e como poderia ser diferente se mesmo dentro do âmbito familiar o mesmo se aplica? Apenas perdemos ao não conhecermos histórias e culturas daqueles que nos entornam e os quais ignoramos. A consequência é o deprimente isolamento de cada um de nós. Ótimo filme, Haneke retrata relações humanas como poucos.
Um filme para digerir muito lentamente. Espero logo mais assistir de novo. Mas a vontade de escrever sobre ele é grande. Preciso escrever sobre o que o filme passou! rs
Sabendo que era um filme de Aronofsky, já dá para esperar algo profundo depois de ter visto Cisne Negro e, especialmente, Réquiem para um Sonho. Mas o que ele trouxe dessa vez foi uma discussão profundamente filosófica que remete aos primórdios da própria filosofia.
Eu não quero nem me ater aos fatores técnicos do filme. Como diretor, não tem o que falar, câmeras, cortes, música, fotografia, vestimentas, etc… um mundo antes calmo e depois caótico perfeitamente orquestrado e mostrado por Aronofsky. Javier Bardem sensacional com os altos e baixos que o personagem pedia. Jennifer Lawrence sempre foi uma grande atriz, mas aqui ela alcançou o topo, aqui ela mostrou a atriz absurda de boa que é.
Mãe! começa numa calmaria plena, o despertar da Mãe (Jennifer Lawrence), a paz e a calmaria da solidão, assim surge a vida. O nome do filme já diz tudo, estamos aqui falando da Mãe Natureza, a vida em si, a existência por si só. Nada além disso, uma estrutura que dá lugar a vida, uma casa no meio de um mundo vasto e desconhecido. O nosso mundo, a Terra! Ela é bela, a Mãe passa uma sensação de beleza, mas não uma beleza sensual, mas sim de pureza. Vive numa casa criada por ela, em constante mutação, simples, sem grandes luxos. A Mãe busca pela casa e procura pelo Homem (Javier Bardem), este que vai representar muitos vícios e também muitas virtudes do Homem na história da humanidade. Assim que se encontram, esse casal que vive nesta casa, que estão longe de ser um simples casal, são na verdade a representação da relação do homem com a mundo e como ele experimenta e traduz a realidade. Nesse primeiro encontro que presenciamos, já enxergamos a primeira faceta do homem que nos apresentarão. O homem como um ser inquieto e insaciável em sua busca por criar, produzir, entender, crescer… Ele precisa escrever um poema, busca as palavras que façam a sua existência fazer sentido, mas simplesmente não consegue, tem um bloqueio constante. Nessa vontade de entender a própria existência, a sua relação com a Mãe, a vida, lhe parece não tão atrativa, a necessidade de buscar novos horizontes se demonstra inerente ao teu ser. Assim surge o primeiro fator que afetará a estrutura daquele ambiente. No meio da noite, de forma inoportuna surge um senhor na porta da casa, um completo estranho. Um senhor magro e fraco, que se diz médico, aparenta ser confiável, fuma e bebe em demasia. Com sua veneração pelo Homem (Javier), esse senhor se demonstra atraente por demonstrar um mundo diferente e cheio de novas experiências. Mesmo com a constante tosse pelo excesso de cigarro e vomitando pelo excesso de bebida, este senhor atraí o Homem (Javier), o ser humano sempre se entregou e sempre se entregará aos teus vícios de forma descontrolada, é de sua natureza ser assim. A curiosidade humana não se atem simplesmente à curiosidade pelo virtuoso, tendemos até mesmo a enxergar a vida de excessos como muito mais chamativa do que uma vida de temperança.
Assim começa a “queda” de toda aquela vida estabelecida. A aceitação incondicional desses vícios é o primeiro passo de toda a ruína que viria, e a Mãe responde a isso, assim como a estrutura da casa, algo não ia bem e isso era claramente sentido. Daí para frente temos uma lenta tomada de poder hierárquico por parte dos vícios. O senhor passa uma noite e no outro dia chega sua mulher, também entregue à bebida, mesquinha, insolente, não respeita espaço alheio, intrometida, corrói aquilo à sua volta, com seus vícios sexuais, etc. Esse casal toma o lugar e a mente do Homem, o seduz e o faz acreditar que eles fazem parte de tudo aquilo, que eles precisam estar ali, que eles são parte irreversível de sua essência. Afinal, os vícios são partes intrínsecas de nós, não? Devemos aceita-los de qualquer forma dentro de nossa casa, dentro de nós, não? Ou seria apenas essa uma fraqueza nossa? Assim temos uma crítica do filme à uma visão materialista hedonista , onde o homem se entrega aos seu sentidos, ao prazer, aos vícios.
Aos poucos a Mãe enxerga a casa perder sua paz inicial e o Homem lhe ignorar profundamente por ser tão adulado por essas representações dos vícios. No escritório do Homem há uma espécie de cristal que ele não deixa que ninguém toque, algo que demonstra ganância e obsessão. É, certamente, aquilo que ele mais possui apreço dentro daquela casa, mais até do que a própria Mãe. Assim fica clara a analogia do homem em busca de riquezas independente dos meios ou ao que ele destruirá. Então, mais a frente, o casal invade sem permissão e quebram o cristal. O que deixa o Homem transtornado e juntando os cacos sozinho dentro do escritório e os apertando contra as mãos as fazendo sangrar. Uma cena que demonstra grande fraqueza do homem, o quão patética é sua necessidade por riquezas, o quão ele se rasteja no chão nem que seja pelas migalhas de algo que ele considerou valioso sem nem saber os motivos.
Logo após os filhos do casal também aparecem sem serem convidados. Eles me parecem uma representação do ódio, pura e simplesmente. E depois de uma discussão entre a família, os filhos começam a brigar e apesar da tentativa da Mãe de segurar, a situação evoluí para a morte de um dos filhos. E neste momento a Mãe é deixada sozinha enquanto o Homem e o casal levam o filho ferido embora e o filho assassino foge. Então os vícios e excessos deram a cria ao ódio que não podia culminar em nada menos que a morte. E assim fica a Mãe e sua casa, desoladas e largadas no meio do nada, com todo o peso que a morte traz a existência. A casa mais uma vez demonstra seus efeitos. Aparece uma “ferida” no chão, onde parece ter até mesmo sangue, uma ferida aberta no meio de tudo aquilo, a morte é uma ferida que se expõem e é difícil ignorar, ela sangra e tudo o que podemos fazer é tentar ignorar ou colocar debaixo do tapete.
Homem volta a casa sozinho e parece que tudo está sossegado, mas novamente no meio da noite todos voltam a casa para começar um funeral. As cenas parecem todas muito hipócritas, choram, dizem palavras bonitas, ignoram o que levou àquele ponto, tudo aquilo que realmente representam. A casa vai se enchendo, pessoas inoportunas e sem sentimentos, todos são apenas uma casca. Não respeitam os demais, não respeitam o espaço alheio, a situação passa de um funeral para uma festa, denotando a indiferença pela morte que todos ali tinham. Apenas a Mãe vê a loucura disso tudo. A situação começa a deteriorar rapidamente, esse monte de pessoas desrespeitam a casa de todas as maneiras. A humanidade desrespeita o mundo de todas as maneiras, testam seus limites além da conta, destroem tudo que vêem. Até que a Mãe não aguenta mais e manda todos embora, toma conta da situação, bate de frente com o Homem, lhe mostra que a situação é insustentável e como ele simplesmente a ignorou esse tempo todo, como ele não “fodia” com ela e assim nunca criariam nada, nunca dariam continuidade a vida dessa forma. Então o Homem enfim enxerga isso, expulsa tudo, se vê longe de seus vícios e foca apenas nela. Eles transam e a Mãe enfim fica grávida. E o Homem então sabendo da gravidez, ligado a Mãe, longe dos vícios tem uma epifania e consegue fazer o seu poema perfeito inspirado na vida que criou com ela. Ele publica esse poema e depois de uns 9 meses, quando ela está próxima de parir, ele começa a ficar famoso, as pessoas querem saber tudo dele, o consideram um gênio, um messias, a mais pura idolatria se instaura, pessoas batem a porta procurando-o e o Homem ama toda essa atenção. E é aqui que o filme se torna bastante filosófico e Aronofsky claramente se posiciona. O homem nesse momento é colocado como o centro de tudo, a razão como criadora da realidade, uma ideia racionalista, algo mais ou menos como o “Penso, logo existo” de René Descartes, ou ainda uma visão de Platão quando busca a saída da caverna no Mito da Caverna. Aqui é como se o Homem tivesse saído da caverna através de sua razão, ignorando toda a influência de sua existência, ou seja, da Mãe. Aronofsky faz uma crítica ao racionalismo, a razão como centro de tudo, e se coloca em defesa de uma posição materialista, onde a matéria (a Mãe) é a realidade acima de tudo, ou como diria Sartre “A existência precede a essência”. O homem se colocou no pedestal, colocou a si mesmo e sua razão acima da existência própria e do mundo. O homem como criador ignorando o mundo que ao seu redor. Assim ignorou a vida, já que o homem pode tudo já que de sua razão emana a verdade. Então a situação dentro da casa vai caindo para algo obscuro. O Homem começa a receber seguidores por suas palavras, pessoas fazem filas, abarrotam todos os ambientes, criam símbolos de idolatria, criam rituais, criam uma verdadeira seita, criam suas próprias verdades do que é o certo e errado, matam para aplicar as suas verdades, definem o Homem como Deus de acordo com a sua vontade. A casa vira então uma breve história do mundo e das religiões. Toda a violência que foi imposta durante a história, toda a oposição de ideologias, tudo isso transformado em cultos e violência. Tudo isso pelo homem acreditar saber o porquê de sua existência sem ao menos respeitar a própria existência e vida (a casa e a Mãe). O caos é total! Até que a Mãe consegue junto com o Homem se isolar daquela loucura no escritório e dar a luz a seu filho. Os homens lá fora se silenciam, mais uma vez aguardam que o Homem, o seu messias, lhes mostre o rumo para o futuro. Mas a Mãe quer toda aquela loucura para fora e o Homem se recusa, pois ele é viciado na atenção que recebe, é viciado no caos, acredita poder ele, o mesmo que causou o caos, trazer a paz. Quer mostrar o seu filho à todos. Mas a Mãe reconhece enfim toda a falha do ser humana e quer proteger a sua cria do Homem. Mas ele se mostra implacável e quando ela adormece, lhe rouba o filho e o leva para ser cultuado. A criança é carregada e morta, uma cena forte e arrasadora, as pessoas então passam a cultuar novamente a morte, mais uma vez, como da primeira vez que morreu alguém naquela casa, querem achar uma justificativa para morte no lugar de aceitarem a sua culpa e preferem se perdoar. A Mãe se revolta, os chama de assassinos, e esses em resposta a agridem, outra cena forte, chutam seu rosto, xingam, etc, simplesmente por ela não querer perdoar esse lado agressor do humano. Então ela desiste e em seu último ato resolve queimar tudo isso, colocar tudo abaixo, explode a casa toda. E sobra só ela e o Homem, ela queimada, sem forças, o Homem ainda inteiro e insatisfeito, pois pede a última coisa que ela pode lhe dar, um cristal saído de seu coração. Ele não queria o amor dela, ele não queria o seu coração vivo, ele não queria vida, ele é frio e busca apenas aquilo que lhe brilha os olhos, a riqueza, o precioso cristal que tira de dentro do coração. Ao homem não importa que tudo vire cinzas, desde que sobre em sua mão, e apenas em suas próprias mãos, a riqueza conquistada através de sua ganância desenfreada. E é assim porque assim ele o é, ao menos sem nem saber o porque de o ser.
De início o filme crítica a entrega do homem em sentir o mundo lá fora e os vícios de uma posição hedonista. Depois a colocação do homem e sua razão ao centro de tudo como fonte da verdade plena. E no fim ele diz que ele é o que é. No fim me parece que a crítica ao racionalismo e as religiões ficou bem maior, então senti que o filme tem uma tendência a defesa de um materialismo com temperança, como o materialismo de Epicuro que disse “Nenhum prazer é em si um mal, porém certas coisas capazes de engendrar prazeres trazem consigo maior número de males que de prazeres.”
Assim o filme termina, sendo uma incrível crítica ao pensamento racionalista que deram origem à praticamente todas religiões, também uma crítica inicial ao materialismo hedonista individualista, uma crítica novamente ao homem e seu consumismo e vício descontrolado (semelhante ao que Réquiem para um Sonho traz), à idolatria humana, à guerra de ideologias que vivemos, e muito mais. Um filme incrível que é difícil organizar o quanto ele representa, haja visto esse texto meio sem nexo que escrevi, mas a vontade de escrever é maior para ver se organizo ele na minha cabeça, talvez depois de assistir mais uma vez consiga alinhar melhor meus pensamentos. rs E não tinha como não dar nota máxima para ele, um filme que me fez pensar e sentir tanto, não podia ser diferente.
Me lembrei da famosa frase de Paulo Freire que diz "quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor."
É o que é visto nesta microssociedade patriarcal, rigorosa, austera, moralista e violenta criada para o filme. Onde nada pode ser dito com liberdade, o que resta é se expressar através da violência silenciosa e indiferente.
Roteiro bem construído, acho que se engana quem acredita que a intenção era mostrar ao final a tal "revelação", me pareceu que a vontade estava em mostrar a verdadeira situação gradativamente e o telespectador ir aos poucos sentindo as trocas de papéis entre mãe e filho. Fotografia, enquadramentos, iluminação, etc...todos ótimos, se vê logo de começo, e muitas vezes utilizados de forma inteligente construindo imagens que passam muito sobre os sentimentos dos personagens. As atuações são boas, no início comedidas por necessidade, demonstrando certa frieza em uma situação que já se esticava demais, e se intensificando mais para o final de acordo com o desenvolvimento dos acontecimentos.
Achei interessante como foram construídos os opostos do filme, mas ao mesmo tempo apresenta que não é tudo uma divisão simples entre preto e branco, existindo muitos tons de cinza no meio. De um lado a escuridão de uma mãe que só quer esquecer o passado. Do outro a luz de um filho que quer a iluminação sobre a verdade, mas uma verdade que o satisfaça. Porém ambos podem tomar posições diferentes dependendo do prisma em que olhamos. No começo uma verdade, no final outra. De um lado a mãe que quer se isolar do mundo, fecha as janelas para não ver o que vem de fora e nem correr o risco de ser vista. Do outro o filho que quer desbravar, abre as cortinas pois quer ver a luz entrar, precisa entender e enxergar aquilo à sua volta. De um lado a escuridão, que para uns é conforto, para outros inibe, faz ter pesadelos, deixam perdidos e sem rumo. Do outro a luz, que para uns é iluminação perante a vida, para outros invade, expõe, agride, demonstra com clareza os defeitos da vida. Ambos podem ser usados para dar medo e machucar. E assim o filme foi feito, na primeira parte que traz a escuridão, temos um terror mais psicológico nas sombras, na segunda parte que traz a luz, temos clara violência e tortura, tudo a olho nu.
Talvez o finalzinho não tenha sido lá de muito bom grado, especialmente a última cena, que não me agradou muito, mas não apaga um filme que para mim mostrou um roteiro interessante de forma bastante inteligente.
Um personagem principal todo construído na ideia da beleza do ato da bondade e salvação, daí chega à reta final e o filme parece querer demonstrar quase que beleza no ato de matar os japoneses, além de transforma-lo em um filme que mais parece uma guerra santa cristã. Estava engolindo o lado cristão, afinal é uma história real e assim foi Desmond Doss, mas achei patético como o filme acaba tomando a ideologia de paz e amar ao próximo que Doss levou durante sua vida, e distorce e destrói o que Desmond fez em sua vida, transformando a barbárie em um ato lindo e maravilhoso quando vindo dos americanos cristãos para cima dos japoneses que foram caracterizados como seres de conduta exageradamente vilanesca. Me decepcionou no final...Mas é de se esperar esse viés cristão enlouquecido quando lembramos que o filme é do Mel Gibson, estava o achando até que bem comedido até chegar a reta final.
Apenas por tratar de um assunto já polêmico como a pedofilia e ainda questionando não o acusado, mas sim a vítima, o filme já merece os parabéns pela coragem. O melhor é que na verdade o maior alvo da filme não é nem vítima e nem acusado, e sim a sociedade como unidade pensante, e como cada um, dentro desta unidade, deixa facilmente o senso crítico de lado, afinal, quantas vezes não vimos em nossa mídia, pessoas serem acusadas e previamente condenadas sem uma definição da justiça? E como isso está ligado à um lado ruim do homem, como buscamos culpar sem ouvir todos os lados de uma história, uma verdadeira caça. Mostra como a maldade está ali instalada, como é alcançável independente das relações anteriormente construídas e tudo dentro de uma sensação de aplicação da justiça por meios próprios. Achei excepcional a tensão constante, cheio de cenas simples e sem exageros, mas com um peso lúgubre por trás de toda aquela aparente serenidade. Duas cenas em especial.
A primeira quando Lucas, já aceito novamente por todos, observa cada um, e é latente a sensação de desconfiança. O espectador naquele momento, junto com o protagonista, sabe o que cada um ali é capaz, e assim não consegue confiar em ninguém. E depois a cena em que Lucas ajuda Klara atravessar o corredor, onde um simples ato, que antes era normal, toma um peso absurdo.
O filme vem todo o tempo construindo uma visão sobre a obsessão que temos pela aparência, tanto em nós mesmos quanto nos demais, o quanto ela influencia positiva e negativamente, questionando profundamente como ligamos e relacionamos o amor com a aparência, quase como uma moeda de troca no convívio humano. E de forma ingênua, esperando ver um final feliz onde a mãe, com seu amor materno supostamente incondicional, recebe de braços abertos seu filho que foi transformado em uma mulher de aparência desconhecida, demonstrando uma postura resiliente e afetiva, o filme acaba! Te deixando nesse vazio aflitivo que só aumenta a sua tristeza pelas questões antes levantadas. Seria ao menos o amor materno, incondicional? (Mesmo Marília já tendo anteriormente mostrado que não). Ou nem este sobreviveria à tamanhas mudanças, não deixando espaço para a existência de um amor que ignorasse o externo?
Um ótimo filme. Roteiro algumas vezes previsível, mas mesmo dentro dessa previsibilidade, ele te guia de forma interessante à querer entender a sequência de fatos que levou àquela situação. As atuação de Antonio Banderas e Elena Anaya são excelentes, as demais ou passam batido ou não agradam muito. Fotografia tendendo para tons pastéis, acho que ligado à própria questão da pele, e também trazendo frieza e beleza ao mesmo tempo. Trilha sonora não me chamou muita atenção. Jogo de câmeras de Almodóvar se torna mais marcante no ato final.
Lembrando de Irreversível de Gaspar Nóe, que atira em nossa face, através de uma narrativa ironicamente inversa, que a vida possuí uma característica fortemente atroz, ela é duramente linear, incorrigivelmente irreversível e somos totalmente impotentes quanto a isso. Não adianta tentar vencer o relógio, tentar fazê-lo voltar, apenas perderá seu tempo.
E Confissões tem muito disso, tudo isso construído inicialmente em uma "inocente" sala de aula, um microssistema que é o tempo presente de muitas vidas que carregam toda sua irreversibilidade. O ambiente de uma classe de pré-adolescentes é uma escolha muito acertada, onde pessoas são obrigadas a conviver na idade de maior e mais complexa formação de caráter. E já se mostra ali uma estrutura pronta para o conflito, uma sociedade formada, com posições estabelecidas, vontades explícitas, hierarquia, etc. E é nessa microssociedade já desforme que a professora que está deixando de lecionar, traz um conflito moral de absurda escala. Essa, uma mãe que perdeu sua filha em um assassinato cometido por dois de seus alunos, mas que pelo relatório da polícia foi apenas um acidente. Sabendo que por conta das leis eles não seriam presos, a professora Moriguchi resolve se vingar dos assassinos Shuya e Naoki, colocando sangue com HIV positivo no leite que tomaram, e toda a história, como ela descobriu os assassinos e sua vingança são prontamente revelados perante toda a sala de aula logo no início. E então as relações e as atitudes daquele ambiente imediatamente mudam com todo a situação criada.
A primeira das reações com a notícia de que o vírus HIV está presente em uma pessoa daquela sala, é o medo gerado pela ignorância, todos evitam encostar e até uma garota que prende a respiração acreditando que pode contrair por vias aéreas. E isso se mantêm durante todo o tempo mesmo sendo impossível contrair HIV daquela forma, mostrando como a falta de conhecimento, a ignorância muitas vezes prevalece e exclui as pessoas umas das outras, gerando desinformação e antipatia. E isso tudo cria força por conta da sala tomar para si uma unidade, onde todos agem como massa, ninguém pensa muito bem, suas atitudes são englobadas e banalizadas pelo grupo que visam se encaixar. Formam ali uma sociedade, que age como um só, o que um faz inicialmente de maneira impulsiva, todos seguem sem pensar direito, apenas reagem de forma impensada. Como grupo, vivem de forma anestésica, de forma à esquecer o acontecido. Naoki não aparece mais na escola, e todos, de forma velada, concordam em maquiar aquilo que sabem. Com Shuya se colocam de forma violenta, o oprimem, decidiram ser o bem contra o mal, sendo que é claro durante todo o filme como aquele ambiente é doentio, onde todos possuem sua dualidade entre o bem e o mal, e nada de uma moral perfeita acima dos demais. A única capaz de ver além dessa consciência coletiva é a aluna Mizuki, e justamente por sua visão e por se negar a agir como manada, ela também é hostilizada.
Este é o ambiente formado após as revelações da professora, e daí se inicia a construção de cada personagem envolvido. O filme mantêm uma narrativa irregular, diversas vezes voltando no tempo de cada um dos personagens, colocando novas camadas de tinta sobre cada um, fazendo com que seu sentimento com cada um mude diversas vezes. Os conceitos de bem ou mal são repetidamente postos à prova do espectador quando vemos todos essas pessoas sendo empiricamente construídas e destruídas durante suas vidas, resultando naqueles que se tornaram. Todos os personagens mostram lados diferentes de si mesmo e o que fica claro é que todos correm atrás de um único fator, o afeto. A mãe que perdeu sua sanidade junto com a sua filha. O menino que busca a mãe através do reconhecimento de seus feitos. O menino que busca o reconhecimento de todos mostrando que é capaz de agir. Todos esses chegaram ao extremo por conta dessas vontades.
Os atos de cada um são inicialmente rasos, mas o filme trata de arquitetar uma rede de causa e efeito para tudo. A mãe que bate em Shuya por sua infelicidade profissional. A mãe que o deixa para trás. Shuya que cria uma obsessão por chamar atenção por seus feitos para que sua mãe perceba e volte. Este manipula Naoki que busca reconhecimento. Naoki sabendo que podia salvar a filha da professora, mata mesmo assim, pois quer mostrar que é capaz de algo. A professora Moriguchi que sofre com a morte de sua filha. Moriguchi então age sobre os dois. Destrói a vida de Naoki que se torna obsessivo por acreditar estar doente. A devota mãe de Naoki vê a situação do filho e só consegue enxergar a morte dele como solução. Etc. Etc. Etc...diversas vidas influenciadas em efeito dominó. Até que tudo culmina na busca da professora pela redenção de Shuya, a sua vingança é completa, o destrói completamente, literalmente explode todo seu passado que o fez, para quem sabe assim ele perceba o que se tornou e comece uma nova vida (o que é difícil de acreditar que aconteceria). Dando tanta ênfase nessa linearidade da vida e sua brutal irreversibilidade, o filme questiona o quão nossos atos devem ser pensados, o quão devemos cuidar da criação de nossas crianças, o quão falho pode ser a construção do caráter tanto no âmbito familiar ou no sistema educacional. A vida é complexa, escolhas reverberam.
O filme possuí uma cara muito moderna e "estilosa". A edição rápida e ousada em alguns pontos, os enquadramentos diferenciados, a trilha sonora em alguns momentos surpreendentes, a fotografia predominantemente azul e soturna que mantem uma frieza. As atuações muito convincentes, especialmente dos mais novos. Tudo muito bem feito ao meu ver.
Um filme que vale muito ver. Personagens bem desenvolvidos, críticas acertadas e bem colocadas, um visual interessante e o mais importante, um roteiro que foge de uma estrutura previsível.
Uma falha: eu ainda não assisti "2001-Uma Odisséia no Espaço" de Kubrick, apenas li o livro de Arthur C. Clarke. Mas levando em consideração apenas a leitura e a temática que é trazida, a comparação que diz ser Solaris o "2001 Soviético" me parece um pouco desnecessária e até simplória. O que eles partilham é uma ficção científica com forte apelo filosófico, mas que no seu âmbito filosófico não se assemelham tanto assim. Então se for para comparar só por serem duas ficções científicas, me parece muito pouco e até uma vontade de denegrir Solaris, pois dizer isso nos leva ao pensamento de uma cópia pura e simplesmente.
Solaris conta a história de uma situação em que fomos capazes de mandar e manter uma expedição para averiguar um planeta, nomeado Solaris. Porém a pesquisa sobre este planeta já se extende por muito tempo devido aos problemas, especialmente psicológicos, que a tripulação vem apresentando, incluindo suicídios. Resolve-se que alguém irá lá decidir se vale dar continuidade a empreitada ou se o melhor é abortar de vez. Para isso é chamado o psicólogo Kris Kelvin.
Antes mesmo de embarcar, Kelvin já se depara com alguns segredos envolvendo Solaris. O caso é de um piloto chamado Berton que teve gravado um de seus depoimentos sobre coisas que viu no tal "mar" de Solaris e que mudaram sua vida para sempre. Na gravação que Kelvin assiste na presença do próprio Berton anos depois, são descritas imagens se formando na superfície, descreve e afirma algo muito maior do que uma simples alucinação, e sim algo da mais pura materialização. Mas ainda assim é desacredito por Kelvin, que menospreza seu depoimento. Assim segue então para a estação espacial.
Kelvin chega a estação e se depara com uma situação de degradação geral. Segue pelos ambientes onde o filme vai realmente se desenvolver. Conversa com dois dos tripulantes que sobraram, assiste um vídeo de um amigo que ali estava mas acabou se matando, se depara com a superfície de Solaris. Ali ele enfrenta Solaris que responde materializando a sua maior fraqueza, um antigo amor, Khari, que se matou após uma briga do casal. O filme realmente começa na estação, é ali que os conceitos e a parte filosófica são jogadas para o espectador, não de forma lá muito simples e declarada. É um filme para se assistir mais de uma vez, apesar da narrativa lenta que pode cansar alguns, e para ficar pensando depois, sobre todo o existencialismo e epistemologia presente.
A ambientação é interessante, bem a cara de filme futurista retro dos anos 70 mesmo, estruturas arredondadas, pouco funcionais, raros painéis, etc. A fotografia é realmente interessante, mas ainda vou dar uma nova assistida, pois sinceramente não consegui pegar bem o que algumas claras trocas de tonalidade e saturação quiseram trazer. A trilha é bastante ausente, mas quando aparece causa uma aflição e tensão muito boas. A atuação de Kelvin não me agrada muito, achei umas partes um pouco forçadas e me passaram uma irrealidade de reação muito grande por parte dele. O que se vê também em algumas cenas que acredito que deveriam ser românticas e demonstrar a grande necessidade que ele tinha por Khari, mas que me acabaram soando forçadas, desnecessárias e piegas. Mas foram poucas, felizmente. As demais atuações são boas, especialmente de Khari, que se apresenta de forma quase angelical e de poucas expressões.
O filme é dividido em duas partes, e até aqui resume a primeira. A segunda é onde o filme realmente se desenvolve em seu lado conceitual, entre as conversas de Kelvin com Khari, Sartorius e Snaut, e o mais importante personagem, o mar de Solaris que parece ser classificado como uma espécie de substância pensante. O filme trabalha muito fortemente com dualidades, o futuro e o passado, a incerto arriscado e a certeza segura, o conhecimento complexo e o humano conhecido, a vida e a morte, e resumindo tudo isso, o fluído e o estático.
Kelvin encara o mar de Solaris e este lhe reflete Khari, ou seja, refletiu a si mesmo, sua mente presa não só a idealização de Khari, mas também à culpa pela morte dela. Em uma primeira tentativa de Solaris, Kelvin "mata" a recém-criada Khari jogando-a de volta para Solaris. Mas a materialização da mente de Kelvin se repete e ele dessa vez aceita este simulacro de Khari. Ele sabe que a situação na estação é insustentável, não dá para continuar com o projeto. Ainda assim, ele procrastina sua decisão pois se apegou ao simulacro idealizado, portanto falso, de sua falecida amada. Ele se prende ao passado, não consegue seguir em frente. Os demais tripulantes mesmo perguntam o que será feito e tudo que ele faz é ficar deitado aproveitando aquele amor que perdeu ainda na Terra. Ele está preso à estática segura do passado e teme o futuro impalpável, desforme como a água, fluído.
Sartorius e Snaut representam outra discussão, respectivamente a da busca do conhecimento e da superação de um lado, ou do entendimento do homem, suas vontades e necessidades. Sartorius se irrita com os demais, a falta de objetividade, as divagações, se tranca em seu laboratório, está ali em uma busca absoluta pelo entendimento daquilo que enfrentam, uma caçada implacável pelo conhecimento, mas acaba desenvolvendo assim uma antipatia, uma quebra com o humano. Já Snaut enxerga a busca pelo desconhecido com algo desnecessário, como apenas um artifício criado pelo homem para encontrar e entender a si mesmo, o tal espelho, uma tentativa de expandir a humanidade de forma universal, já ele desenvolve uma falta de comprometimento e vontade com aquilo que o envolve. E com tudo isso o mar está lá, ele é difícil de se encarar, é uma barreira que devemos superar? Ou a barreira somos apenas nós mesmos que ainda não nos definimos?
Então chegamos a cena final, onde Solaris não traz mais a materialização de Khari, e descobrimos qual foi a decisão de Kelvin. Este jogou o seu futuro para o passado, se jogou no mar, mas não para enfrenta-lo, mas para confortar a si mesmo com imagens de do que já passou, ele foi engolido ao perseguir Khari. E o filme traz à tona o fluído e o estático de volta. Nos lembra a primeira cena (no que eu faria uma minúscula crítica, não acho que seria necessária relembrar o espectador disso, apesar de o filme se tornar um pouco mais autoexplicativo no final, relembrar uma cena me pareceu um pouco demais, perdendo na sutileza que vinha como padrão antes), onde algumas plantas aquáticas se mexem na água, a vida em movimento que o psicólogo encarava no começo, e corta para Kelvin encarando o lago de sua casa congelada, tudo muito estático e falso, tudo uma simulação sem vida humana criada na superfície de Solaris. E então Tarkovsky se posiciona, demonstra um Kelvin que se levou pelo medo, que acabou de joelhos por medo de seguir em frente e prendeu sua vida ao passado, uma clara espécie de morte.
A história é muito boa, o filme é muito bem filmado, as cenas são belas mesmo em forte tristeza, as atrizes são muito boas, especialmente as crianças, e também muito legal ver como o filme prefere retratar mais o lado da mulher, que ao mesmo tempo sofre maior cobrança e preconceito, (spoilerzinho) como quando Jonah diz que o problema está no leite da mãe e não no sémen, mas também mostra que a mulher é de força e ao mesmo tempo de compaixão.
O filme traz a ignorância e a desinformação gerando medo, este por sua vez gera o afastamento entre as pessoas, superstições, os charlatões que se aproveitam da ignorância estabelecida, a crença no inconsistente, a utilização dessa para a condenação pública e muitos outros problemas. A situação é comum no Brasil também, mas é ainda mais forte em um continente deixado de lado pelo resto do mundo. O filme traz a Aids, mas a realidades é muito mais ampla, as crenças na Africa passam dos limites, assim podemos ver bebês que são utilizados em rituais ou albinos que são mutilados por serem considerados afrodisíacos. E Chanda se coloca contra tudo isso, ela é cética, ela estuda, ela questiona. O nome do filme, apesar de condizer com o original, chega a ser irônico, já que toda a cultura daquele ambiente gira entorno da segregação entre as pessoas e da morte. Uma bela crítica não às crenças em si, mas como são utilizadas, o que fica claro no final, onde a crença enfim busca a empatia e a junção entre pessoas.
Uma Fada Veio me Visitar
3.0 34 Assista AgoraSinceramente?! Esperava algo muito pior e no fim me fez rir muito mais que muito filme de comédia brasileiro. A Xuxa traz ótimas risadas na primeira metade, muita referência legal. Roteiro fraco como esperado, mas tá tranquilo... O final ficou mais tosquinho, com uns efeitos piores, sei lá...parece que foi acabando o orçamento hauhau. Mas pra mim ficou uma sensação positiva, as crianças se prenderam e curtiram. E nunca é demais falar de bullying e cyberbullying mesmo que de forma superficial, apesar de falta de profundidade, a lição com certeza é válida.
Magnatas do Crime
3.8 300 Assista AgoraAssisto filmes do Guy Ritchie porque os acho divertidos e entro com esse espírito de ver algo assim, e aqui se repete essa sensação, me diverti assistindo! Apesar de saber que seus filmes têm um pouco a vontade de mostrar diferentes povos meio esteriotipados num certo caldo cultural britânico, nesse eu acho que ele pesou a mão com os chineses, ficou algo muito "perigo amarelo", aquela coisa de caracterizar povos asiáticos orientais como perigo para a cultura e sociedade ocidental. Mas estudando um pouco sobre isso, sobre a Guerra do Ópio e tudo mais ligado à isso, é fácil perceber que a cena que Pearson dá todo um sermão à um chinês tomando chá, no máximo da sua esteriotipação, falando que eles trouxeram uma droga que destrói familias e os britânicos como santos que só querem fumar uma maconhinha, pegou bem mal pra mim. Eu sei que é chato denotar esses detalhes, parece uma politização forçada de minha parte, mas o problema é que a problematização vem antes do filme. Pois é através de produtos culturais que preconceitos criam alicerces lá no fundo da mente de pessoas predispostas a sentirem essa aversão à outros povos.
Colectiv
4.0 99Só tenho um único problema e não acho que o diretor esteja errado, mas me incomoda. O filme deixa bem claro sua posição principal o tempo todo, uma crítica forte ao Estado, seu tamanho e possibilidades de corrompê-lo. E nada tenho contra essa crítica, de verdade, aquelas morreram por ausência de fiscalização de um Estado corrompido, desde a falta de saídas na Colectiv até não fazerem testes no desinfetante. E nisso eu tenho uma tendência a achar que aqueles que fazem tal crítica, ao mesmo tempo, levantam a bandeira da diminuição do Estado, o que pode ser uma falha minha em não perceber que não estão necessariamente atreladas. Mas o ponto que quero chegar é o incômodo que me causa a falta de percepção desse tipo de opinião que esquece que na base desse problema pode existir também um inescrupuloso e imoral acúmulo de capital. Em quase todo esquema de corrupção temos dois lados: o público de onde se manipulam leis, regras, licitações, etc... através de posições de poder político e também se desviam o dinheiro do contribuinte. E temos o outro lado, o privado, de onde vem a demanda por privilégios, isenções e vista grossa para que haja assim o acúmulo de capital e poder, para fazer girar essa roda de corrupção. A lógica do acúmulo de capital é típica de uma posição de direita, pró capitalismo que pretende diminuir o Estado. Por si só, não é um problema ao meu ver querer um Estado menor, mas aqui essa diminuição é justamente com a intenção de se destruir a fiscalização facilitando esquemas vantajosos para indivíduos. Eu digo tudo isso porque as vezes me soa que esquecem desse detalhe, o lado da demanda por corrupção do Estado vinda diretamente do setor privado. Seja numa Hexa Pharma do documentário, até uma Odebrecht, temos muito esquecido essa percepção, de responsabilidade social também das empresas. E o documentário me deu essa sensação, mas como eu disse anteriormente, não acho que o diretor estava errado, já que ele deve sim dar um enfoque que bem entender, ainda mais neste caso, já que tem toda razão em demonstrar a corrupção que se entranhou no governo romeno.
Marighella
3.9 1,1K Assista AgoraMinha nota seria 4...4,5. Mas como tem um monte de fascista aparecendo por aqui para dar nota mínima, melhor deixar em 5. Não que a nota seja importante ou que vá ser suficiente para equilibrar, mas prefiro assim.
Não, o filme não é imparcial e nem deve ser. Se você acha que já viu na vida um filme imparcial, é de uma ignorância gigantesca, provavelmente entende que caso se aproxime de sua opinião, certamente deve ser imparcialidade. O filme é todo muito bem feito, faz ótimas adaptações ao livro de Mario Magalhães. Ótimas atuações, ótima narrativa, construção de personagens, etc. Muito válido para o infeliz momento e governo que vivemos.
Não Olhe para Cima
3.7 1,9K Assista AgoraMe pareceu se explicar demais, as críticas e seus objetivos. Mas daí pego parte de sua própria temática, como uma parcela da população não tem problemas em enveredar pelo negacionismo, por mais que o problema esteja na cara, seja covid, desigualdade social, mudanças climáticas, etc ... Então se nem com esse cometas que já convivemos não é o suficiente para que olhem para cima...talvez seja necessário mesmo o filme ser tão explícito em suas críticas.
O Som do Silêncio
4.1 985 Assista AgoraO filme é todo muito bom, mas uma cena me pegou fortemente:
A cena em que Ruben come com os demais pela primeira vez. Como essa cena é boa, ali está a grande dificuldade do protagonista, a sensação de pertencimento de grupo em todos nós é algo bastante comum, nossos amigos têm maneiras de agir parecidas com as nossas, temos códigos próprios e que nos coloca dentro de padrões de normalidade. E quando deficientes auditivos têm de usar de forma contundente a expressão corporal, eles se destacam, eles passam a não ser vistos mais como "normais". Por mais que Ruben seja uma cara "diferentão", aquilo é uma mudança profunda e que é fora de suas escolhas quanto a um corte de cabelo ou uma camisa rasgada, é imposto a ele esse novo grupo, esse novo pertencimento. E isso me lembrou muito um trabalho de faculdade que fiz que era focado em deficientes auditivos, é um grupo muito fechado e muito protegido por aqueles que os circundam. Tive a experiência de ir à uma balada para deficientes auditivos, e é uma realidade completamente diferente em lidar com as pessoas. Exemplo simples: andar em uma festa qualquer você simplesmente andará pedindo licença para todos, no máximo um toque no ombro ou nas costas caso o som esteja alto. Ali não, você tem que deixar claro que seu toque é de quem está passando, então é mais firme, é algo mais físico. O corpo ali é um instrumento mais forte de percepção de mundo. Apenas um detalhe que eu nunca esqueci em um único dia. Agora imagine Ruben com uma nova vida e imagem perante a sociedade.
Cafarnaum
4.6 673 Assista AgoraO filme me trouxe um sentimento muito forte, um sentimento que depois de assistir percebi o quão importante era para a trama, e esse sentimento foi o de puro cansaço. É cansativo estar na pele de Zain, viver pelo que ele vive, sentir o que ele sente. Não é por nada que Zain questiona sua própria existência, qual o sentido de nascer para sobreviver no lugar de viver? Qual o sentido de viver em uma sociedade que só lhe exige aquilo que nunca lhe ofereceu?
Todos os caminhos dados a Zain terminam sempre nos mesmos lugares e o filme os deixa bem claros, burocracia, violência e aquele que me pareceu mais forte, a falta de dinheiro, como é duro que a vida seja tão precificada, e o pior, tão desproporcionalmente precificada. A desigualdade segue sendo a força mais voraz e destruidora no nosso mundo.
Ao final, como eu disse, é cansaço, desalento, impotência. Apesar da tentativa de um final um pouco mais feliz, de um reencontro de uma mãe com seu filho, o gosto que fica é amargo, vontade de fazer algo para mudar e não saber nem por onde começar, saber o quão isso é maior que a minha existência e das gerações futuras. Mas Zain ainda nos mostra como é bom o sorriso de uma criança e o quanto vale a pena lutar por ele. Meio que piegas meu próprio sentimento com o final do filme, mas foi o que me trouxe, sentimentos simples e que deveriam ser universais, mas infelizmente não são.
Indústria Americana
3.6 168Eu concordo com os comentários que dizem que o filme faz certa construção dá China como o mau, é meio maniqueísta em alguns pontos. Coloca cenas da bandeira americana tremulando com músicas épicas de fundo. Okay, eu entendo o ponto. Sim, eu sou contra imperialismo americano, a sua influência tanto dos diferentes governos e do Estado americano em geral, assim como de suas multinacionais em território estrangeiro, inclusive se aproveitando da própia cultura de trabalho chinesa que vimos apresentada no documentário. Mas acho que falta entender que o filme não tenta explicar o mundo e sim dar luz à um determinado recorte escolhido. Não sei se é uma tendência de esquerda (do qual me considero parte) querer dar contornos mais suaves aos problemas presentes naqueles que em tese estão do seu lado do espectro político, mas não podemos negar o problema apontado. Dentro desse "capitalismo de estado" que se diz existir na China, existe tanta voracidade pelo lucro e desprezo pela vida humana quanto há na estrutura do capitalismo convencional imposto pelo mundo. Não é aceitável de maneira alguma uma pessoa trabalhar 12 horas por dia só para justificar o crescimento "invejável" da China. Dentro do território chinês estamos cada vez mais acompanhando a mão pesada de um Estado autoritário crescente. Perseguição cada vez mais forte em Hong Kong, desrespeito com a região de Taiwan, perseguição e aprisionamento do povo uighur em campos de concentração para inclusive utilização de trabalho escravo. São tantas facetas do governo chinês que tem se apresentado tão atroz quanto o imperialismo americano. Eu prefiro os dois gigantes apontando o dedo na cara um do outro e mostrando as suas cicatrizes de suas políticas e seus modelos econômicos, porque no fim das contas temos que lutar tanto pelo chinês perdendo a vida dentro de uma fábrica, quanto pelo americano sofrendo com uma precarização do trabalho. Os dois são verdadeiros, os dois merecem nossa atenção.
Aquarius
4.2 1,9K Assista AgoraUm filme que toca em diversos assuntos: velhice, juventude, sexualidade, memórias, família, classes sociais, elite inconsequente, poder público, etc... E sim, tudo se encaixa, se entrelaça e funciona muito bem.
De início nós mesmo participamos da construção de um trecho das tantas memórias da personagem principal, a escritora Clara. Temos uma festa, com relações entre as pessoas que ali se encontram, se gostam, partilham um ambiente e constroem ali um momento de suas vidas. Aquele apartamento abriga pessoas que passaram por problemas, como o câncer de Clara, tiveram felicidades como aquela festa de aniversário, foram jovens e transaram por todo canto, em cima da mobília, etc. Ali mora não só Clara, mas sua história de vida. Durante a festa, Tia Lúcia que faz 70 anos olha para sua cômoda, e lembra como aproveitou seus tempos mais jovens, e aqui o sexo tem uma forte relação com a ideia de jovialidade. Toda vez que ele aparece, o sexo e a juventude da personagem aparecem também.
Clara é uma mulher ativa, que vai à praia, que caminha, que sai para dançar, que pensa sobre si, que pensa sobre o mundo, que indaga, que questiona. Não é, como ela mesmo diz, uma louca que simplesmente tem um apego exagerado por seus pertences. Ela não morreu, assim como o que possui. Seus LPs, seus livros, seus móveis, seus quadros, tudo ali ainda tem história para contar, ainda estão vivos. Mesmo a mídia não tem o mínimo interesse de demonstrar com essa história, como quando Clara conta sobre um de seus LPs, e a matéria que vai ao jornal simplesmente faz um recorte vazio de suas falas. E por isso Clara é persistente em se manter, é um grito de resistência àqueles que cismam em decretar que sua velhice se faz presente, chegando assim o momento de ficar reclusa em um apartamento cheio de seguranças e muros em sua volta esperando a morte chegar. Mesmo sua família não respeita isso, com desculpa de estar protegendo-a, mas não respeitam sua liberdade. A arte aqui também demonstra sua vitalidade eterna, ela se mantém não só na memória de Clara, ela é ainda relevante, mesmo que sejam LPs antigos, a arte é atemporal e conversa com situações dos tempos atuais. A arte é forma de resistência.
Temos também alguns momentos interessantes de como o filme fala sobre família. O amor de Clara pelos filhos é claro e inegável, mas ela possui apoio em outras pessoas que não seriam os mais óbvios e cria com eles laços sutis, porém fortes. Seja com seu sobrinho, a nova namorada dele, com a mulher que trabalha em sua casa, com o salva-vidas na praia em frente ao apartamento. São relações que de forma inesperada, demonstram maior partilha e sinceridade.
A desigualdade social e as relações de poder são outros dos assuntos presentes fortemente no filme. Aquarius nos coloca do lado de Clara, criamos empatia por sua luta, por sua forma de agir, por sua forma de bater de frente com aqueles que querem roubar aquilo que é seu. Mas ao mesmo tempo o filme nunca nos deixa esquecer que dentro dessa sociedade Clara também possui uma “superioridade” na relação de poder com muitos das personagens, com a sua “empregada”, com os empregados do condomínio e da construtora, com os pintores. Ela sim resolve os problemas, ela vai atrás, mas praticamente não coloca a mão na massa. O interessante é que a personagem parece perceber muito disso, mas quando lhe convém, se torna mais desejável utilizar esse poder. Resumindo... ”que os empregados limpem a merda vinda da escada lá de cima enquanto eu me mantenho incólume na segurança de meu apartamento”. Ou seja, o modo padrão de agir da classe média.
Uma das cenas que achei forte foi a da família de Clara olhando álbuns e mais álbuns de fotos. Enquanto passam por suas memórias, pessoas e lugares do passado, Clara vê uma foto de uma “empregada” com a qual conviveu, e dela lembra duas coisas: que aquela pessoa fazia uma ótima comida e que roubou algumas joias, o que a fez ser mandada embora. Mas pena para lembrar seu nome. Aqui demonstra uma sutil mesquinhez. Aquilo que recorda diz apenas sobre si mesma: que fazia uma comida gostosa que CLARA gostava e que roubou joias de CLARA, mas é incapaz de buscar sem dificuldade o nome daquela pessoa, quem foi aquela pessoa, não sabe o que lhe aconteceu, e como mostra a cena em que Clara vai ao quarto e vemos um vulto “fantasmagórico” da esquecida “empregada” passar rapidamente para dentro de um quarto, porque no fim a isso ela foi resumida, um vulto. E logo depois a atual “empregada” passa mostrando uma pequena e simplória foto de seu filho, sem floreios, sem grandes feitos, apenas a foto de um filho, e a família não é capaz de demonstrar interesse. Achei essa cena especialmente pesada, ela demonstra como não é permitido ao pobre ter memória, ele deve ser apenas uma engrenagem invisível para a produção de memórias daqueles que serve. O que lhes resta é ser lembrado por seus feitos, e que sejam bons, caso contrário serão eternamente lembrados por roubarem as joias da patroa. A memória destes está nas mãos de seus “superiores”, eles vão decidir como você vai ser conhecido futuramente.
Mas temos aqui a ideia de um mal menor, pois o mal mesmo, aquele que age para tal vem representado na família Bonfim, donos da Bonfim Engenharia e dona dos demais apartamentos. Temos Diego e seus avô que passa ao neto por laços familiares o poder sobre a empresa. Diego tem uma atuação perfeita para um tipo bastante comum hoje em dia, ele representa muito bem esse novo empreendedor cheio de sorrisos e maneiras educadas, ele seduz e te convence, mas não se diferencia em nada em suas ações mais básicas de perpetuação de poder.
Diego faz festas nos apartamentos vazios acima do apartamento de Clara. Inclusive a própria estrutura do prédio é perfeita para a demonstração das classes. Os empregados são vistos mais no térreo ou descendo as escadas representando uma classe mais pobre, enquanto Clara é vista mais em seu apartamento, acima do térreo onde o serviço é feito e abaixo das ações da construtora que ocorrem acima dela, representando assim a classe média, e a construtora usa apenas os apartamentos que estão acima, representando uma elite. As festas são regadas pela mais pura...putaria... e até ai não temos problemas, até porque todos no fundo gostam de uma boa e velha putaria. O problema é que não há respeito pelo espaço de Clara, o som alto, bitucas de cigarro vindos do andar de cima que caem na casa dela, as fezes no chão da escada no dia seguinte, é uma representação de uma elite inconsequente e indiferente aos demais. O acontecido toma proporção ainda maior com as cenas de religiosos nos corredores até o apartamento onde a festa tinha sido feita, Diego tem ligações com as igrejas. Então temos aqui não só uma elite inconsequente e indiferente com aqueles abaixo, mas também moralista e que usa da fé da população de forma criminosa. O ambiente de putaria é o mesmo de falsa santidade.
Essa elite é tal como é pois possui sempre uma classe trabalhadora que fará todo o trabalho sujo para alcançar os seus objetivos. Seja queimar os colchões marcados por suas perversões, seja obriga-los a subir com uma colmeia de cupim para ruir toda a estrutura e alcançar seus objetivos. Além disso, a elite é sempre muito bem relacionada, laços familiares ou qualquer relação para que se fortaleçam. O dono do jornal é irmão do padrasto do dono da construtora, que é amigo intimo do dono da igreja, que é genro do político, e por ai vai... São puros laços de poder. É estrutural e é grande, possui meios de se proteger ou usam da burocracia para embaralhar os caminhos, como fica claro na cena dos arquivos bagunçados. Mas Clara aqui surge realmente como salvadora, ela vai vasculhar, vai atrás de achar os podres deles. E nesse momento a cômoda que remetia a jovialidade, aparece em foco enquanto ela vasculha na internet informações. Aqui ela demonstra que apesar da idade, possui uma jovialidade de uma resistência feroz capaz de bater de frente com qualquer tipo de adversário.
Ao final temos a descoberta do plano da construtora, onde acham a colmeia de cupim e nada mais representativo de uma elite que tem como principal objetivo vencer mesmo que seja corroendo toda a estrutura para demarcar o seu território, mesmo que reinem em cima de destroços. E como Kleber Mendonça Filho faz em O Som ao Redor, um recorte ali formado é uma representação da sociedade brasileira como um todo, e para mim o prédio é uma representação do Brasil e a utilização do cupim no final por uma empresa privada é bastante significativo. Uma crítica muito bem construída do desmonte dos bens públicos em favorecimento de uma futura aquisição dos mesmos pelo setor privado. Se corrói a estrutura, não respeitando a memória, a liberdade, a vontade daqueles que ainda ali residem, e isso tudo numa rede que inclui mídia, igreja, construtoras, políticos, etc. O estado é corroído e depois vendido. E no fim temos a angústia de Clara ao descobrir tudo isso, mas mesmo assim ela enfrenta e temos a ótima e satisfatória cena final dela jogando pedaços da madeira corroída e cheia de cupim.
Clara é um personagem muito forte, em nenhum momento é negado que ela tem seus favorecimentos por ser uma mulher branca de uma pequena elite cultural, mas isso não diminui as suas lutas, ainda é uma mulher forte que não teve sua feminilidade destruída por uma mastectomia, que enfrenta dançando um homem que não a quis por simplesmente não ter um seio, nada disso tira a sua força de ser mulher. Aqui as mulheres muito se unem, enquanto a construtora é basicamente masculina. O filme mostra além de tudo o poder feminino e sua forma diferencia.
Aquarius é incisivo e ao mesmo delicado em suas críticas, ele escalona lentamente e na reta final nos leva a um certo suspense sobre o que está acontecendo, prende e nos faz querer saber mais daquilo que está escondido, que está sendo feito pela construtora. Tenho como ponto negativo algumas poucas atuações que me incomodaram um pouco, e certos momentos em que o áudio dificulta o entendimento com uma mixagem ruim entre o som do ambiente e a da voz dos atores. Mas nada que atrapalhe e faça desse mais um filme excepcional de Kleber Mendonça Filho.
Memórias de Matsuko
4.3 49Um filme de um estética tão espetacular que é impossível não se prender a tela, seja pela beleza ou pela estranheza. Pega toda a estrutura comum aos contos de fada e o coloca em um mundo cruelmente real.
Shou, que não possui grandes expectativas em sua vida, e a vê de forma indiferente, é mandado por seu pai para limpar a casa de sua assassinada e desconhecida tia, e ao fazer isso, ele descobre uma história espetacular que poderia ter sido esquecida facilmente em mundo onde as intempéries de uma vida nos levam ao fundo do poço.
Matsuko, tia de Shou, era uma aplicada professora que amava o seu trabalho, ao ponto de defender seus alunos de maneiras até mesmo desproporcionais. E ao fazer isso, defende um aluno acusado de roubar dinheiro em uma excursão, chegando a assumir a culpa pelo delito. Matsuko é ingênua, não demonstra discernimento para defender e subjuga a si perante os demais com essa convicção. E assim destrói sua reputação na escola e com sua família, então o problema que vai lhe acompanhar a vida toda aparece, a violência psicológica e física que figuras masculinas não exitam em praticar com Matsuko. A violência psicológica mais importante é a indiferença que seu pai tem por Matsuko ao dar toda sua atenção à sua irmã doente, Kumi. Matsuka luta para conseguir se fazer perceber e também para tirar de seu pai a preocupação com a doença de sua irmã, e para isso cria uma careta que o faz sorrir, porém mesmo esta, não dura para sempre o pai se torna indiferente à esse artifício. Mas a careta fica internalizada, e é usada toda vez que Matsuko passa por situações de estresse, deixando clara a ferida que isso lhe criou. A violência física permeia o filme todo. Homens distintos, de diferentes atitudes e posições, seja o diretor da escola que chantageia para que mostre os peitos, seja o escritor "excêntrico" que agride e a manda se prostituir, seja o barbeiro que parecia um homem decente mas a larga na primeira dificuldade que apareceu, seja o ex-aluno que a fez ser expulsa e depois voltou falando que a amava, mas abusava, batia e a usava de todas as formas, todos entram em sua vida para agredir e se aproveitar de Matsuko.
Matsuko é uma pessoa de afeto incondicional, porém não recebe o mesmo de volta, não há afeto, e essa é a busca constante do personagem na maior parte do tempo. A clara falta de uma figura paterna amável constrói nela uma necessidade insaciável incapaz de perceber abusos. O afeto sempre vem de figuras femininas, mas ela parece incapaz de perceber isso de forma a se afastar das mesmas. O machismo é assunto predominante aqui. O homem manda na família, o homem manda na escola, o homem demite, o homem manda em seus pensamentos, o homem abusa, o homem abusa inclusive dizendo que é por amor, o homem é indiferente. O masculino é posto aqui de forma bastante negativa, e acho que isso deve ter até outros significados para um filme japonês que tem uma sociedade fortemente patriarcal até hoje. Toda ideia de conto de fadas com principes encantados é fortemente desconstruido enquanto vemos Matsuko sofrer.
Mas é sofrível mesmo ver como ela não consegue se desvincilhar da ideia dos contos de fadas. É interessante perceber como Matsuko tem um ideal e uma busca tão inabalável, que cada nova fase de sua vida é acompanhada de uma música típica de contos de fada, nesses momentos o filme se mostra mais teatral e lúdico, porque aqui você embarca de vez na visão distorcida e ingênua da protagonista. Mas é também fácil perceber como ao longo do filme, mesmo que hajam as músicas, o lúdico, o fantasioso, aos poucos o filme vai deixando essa característica de lado, as decepções vão trazendo Matsuko para o mundo normal, colocando seus pés no chão, até o ponto em que a desesperança a possuí e ela perde motivos para viver socialmente, buscando isolamento em um pequena casa onde inicia uma vida em meio ao acúmulo de lixo em sua casa e se deteriora fisicamente. Não há mais esperança.
Então o filme passa a tocar também em uma temática relativa à religião e como a praticamos. O filme mesmo diz não saber se existe um deus, mas se existe, ele toma formas desconhecidas, mas invariavelmente elas devem ser afetuosas, que seja capaz de perdoar, de aceitar o próximo. E essa foi a vida de Matsuko, sempre perdoou, sempre aceitou o próximo, sempre defendeu mesmo aqueles que cometeram erros, todos eram merecedores de sua atenção. O filme mostra mais de uma vez cenas em close do Novo Testamento, e claramente Matsuko é uma face moderna de Jesus Cristo, o filme pode facilmente ser lido como Caminho do Calvário por qual Jesus carregou sua cruz e sofreu de todas as violências possíveis até o local onde seria crucificado, para ainda assim perdoar aqueles que o crucificavam. Matsuko também tem sua crucificação. No final, quando surge novamente a esperança, quando surge uma amiga que lhe oferece um emprego e ela volta a acreditar que pode fazer algo, da mesma forma que Jesus sofreu o golpe fatal com a Lança que lhe perfurou, Matsuko recebe uma pancada com um taco de baseball em sua cabeça desferida por crianças. E então temos sua caminhada para o divino, sua ascenção e perdão até mesmo da irmã a qual tinha agredido quando saiu de casa ainda jovem. Ali acaba seu sofrimento, porque não mais faz parte da humanidade, que se mostrou totalmente incapaz de lhe dar afeto da mesma maneira que ela ofereceu aos demais. Esse final muito me fez lembrar do final de O Auto da Compadecida, onde João Grilo fala que aquele pedindo esmola jamais poderia ser Cristo, por que para ele Jesus não podia ser "pretinho" daquele jeito. Mesmo sendo ateu, acho muito bonita a ideia de Jesus não está no céu, mas sim naquele que passa por você todo dia, aquele ser invisível, as vezes um morador de rua, que pode ter uma história incrível, mas não conseguimos mais enxergar o próximo o suficiente para nos aproximarmos, e o quanto isso nos faz distanciar uns dos outros. E Matsuko absorveu em toda sua vida todo tipo de forma que esse ódio pode tomar. Apesar de toda as cores que a fotografia traz, todo o floreio que a estética do filme propositalmente força, não temos nada de contos da fadas aqui, apenas uma vida de tristeza profunda. E essa visão de Jesus estar no outro está cada vez mais "fora de moda" infelizmente, o afeto está longe de ser o sentimento vigente, o ódio nos torna cada vez mais alheios e indiferentes, e o filme se torna assim extremamente atual, só espero que não se torne atemporal, que um dia o afeto seja o padrão.
Coringa
4.4 4,1K Assista AgoraCoringa traz uma gama de temáticas tanto em nível individual de um ser quanto deste mesmo inserido no coletivo, e como esses são dois lados de uma mesma moeda, como conversam entre si.
Arthur é um marginal, no mais puro sentido da palavra, que está a margem da sociedade. Dentro de uma perspectiva de normalidade da sociedade ele é um desajustado. Ele nos causa estranheza e incômodo. Suas risadas, produto de um problema neurológico estão sempre em descompasso com os ambientes e situações que se encontra. Ele não se encaixa e não entende bem o porquê, sua vontade básica é de fazer os demais rirem, mas não se vive ali tempos de sorriso. O tecido social se encontra em estado de estresse, as pessoas não estão felizes, a situação da cidade é tão insatisfatória que afeta o humor e convívio dos cidadãos, ao passo que fazer uma criança rir no ônibus é visto como uma intromissão, algo errado e mal visto. E neste cenário um ser desajustado dificilmente terá uma vida de sanidade mental.
A sociedade aqui é tão personagem quanto o Coringa. Logo de início Arthur sofre violência física quando vestido de palhaço e é chutado no chão por garotos que nem ao menos tinham motivos para tal. E atos de violência se seguem, só que se apresentam mais através da violência psicológica, como uma precarização do trabalho, como é tratado pelos colegas de trabalho, como é tratado no ônibus, isso pode soar muito longe de nós quando vemos palhaços, mas eles são como qualquer trabalhador em nosso dia-a-dia, como qualquer engravatado em cubículos em escritórios sofrendo qualquer tipo de humilhação em seus trabalhos ou pegando transporte para suas casas. Aqui é fácil estabelecer como Coringa é qualquer um de nós, como ele nos representa, nossas mais arraigadas aflições sociais, por mais que não tenhamos tal disfunção neurológica, temos sentimentos quanto ao mundo que nos ronda, e aqui temos isso posto em forte destaque.
Então temos contato com uma das grandes temáticas do filme, a desigualdade social. Uma sociedade de homens ricos, brancos, poderosos, discutem e brincam com as necessidades do povo. Então Coringa se vê em mais uma situação de confronto no metrô, onde 3 rapazes com roupa social e bêbados (ao menos pareciam bêbabos), importunam uma mulher, e como em toda situação de estresse e incômodo, Arthur começa a rir, e isso irrita os rapazes, que começam a espanca-lo no chão até que este vira e atira matando dois deles, e depois persegue o terceiro para também matá-lo. Aqui temos um grande momento de revolta, os rapazes representam justamente a continuação de uma elite inconsequente. A morte desses gera o início de uma convulsão social, uma sociedade que não suporta mais a violência praticada pelos ricos, vai para a rua protestar e pedir a "morte dos ricos", principal palavra de ordem nos protestos, enquanto os ricos vão aos programas de televisão se soliedarizar, ou ainda como o candidato a prefeito chamar a população de "palhaços". E esse é um tema fortemente pertinente, especialmente para o mundo em que vivemos. A desigualdade social que se aprofunda é hoje um dos maiores problemas a ser enfrentado, apesar do aumento na média de compra no mundo inteiro, aumenta também a desigualdade, o que vem gerando no mundo diversos focos de ebulição social. Temos mais claramente o Chile que entrou em crise política e social, e uma das maiores reclamações do povo chileno apontam para a desigualdade social. Equador teve estopim com fim dos subsídios aos combustíveis decretado por Lenin Moreno, o que também afeta na percepção de desigualdade social, sendo que proporcionalmente, o mais prejudicado seria o mais pobre. Líbano com uma situação similar ao do Equador. E nisso temos outros diversos países na mesma situação. E o filme traz muito disso, o grande descontentamento da sociedade em olhar para "cima" e ver mansões e refinados eventos beneficentes como no filme, e ter de aguentar o lixo se acumulando na frente de suas casas. E Arthur, ao atirar nos 3 jovens, traz para o povo o sentimento de vingança, e a investigação ter apontado que um palhaço teria cometido o crime, leva milhares de pessoas as ruas com suas máscaras de palhaço, buscarem sua vingança contra a elite dominante.
Então no meio desta cidade entrando em ebulição, Arthur vai buscar em seu passado algum tipo de alicerce, já que a sociedade e o governo em nada o apoiaram. Arthur não tem figura paterna, o que o faz projetar buscar tal figura em seu ídolo, host de talkshow, Murray. Tem uma figura materna presente apenas em corpo, mas não em afeto. É levado a acreditar que Thomas Wayne é seu pai, mas também descobre que não. Na verdade foi adotado por sua mãe que negligenciou sua criação, deixando que sofresse agressões quando criança. Arthur não tem estrutura alguma onde possa se apoiar, ao matar sua mãe, enfim se torna Coringa de vez, ali quebra qualquer amarra que ainda possuía para que mantivesse sua sanidade e vai buscar a vingança contra todos aqueles que o subjugaram. Mata o ex-colega de trabalho que o prejudicou. E enfim vai para a televisão matar Murray, que era a face da elite, que o humilhou na televisão, que não consegue enxergar a indeferença com o próximo, que quer o show apenas pelo show, independente se é ético ou não. Murray então discursa e se vinga matando Murray em rede nacional, vira notícia, vira um símbolo, vira um ícone a ser seguido, ovacionado por seus feitos ao se vingar daqueles que compõem a elite daquela sociedade.
Nesses tantos protestos pelo mundo que comentei anteriormente, começaram a aparecer pessoas com os rostos pintados como o Coringa de Joaphin Phoenix. Mas o próprio filme mostra que Coringa é apolítico, ele mesmo o diz, e esse é um ponto preocupante da percepção em relação ao filme. Pensamentos revolucionários são importantes e necessárias de tempos em tempos, não tenho dúvida alguma disso, mas se tornam preocupantes quando vazios em pensar soluções. Coringa tem sim a insatisfação dentro dele e isso se traduz na vontade de instaurar o caos pelo caos, sem propor soluções. E o filme é justamente para isso, para demonstrar a insatisfação e como o Coringa consegue representar bem isto. Mas o personagem é vazio, ele para no caos, ele não é um ser capaz de propor uma nova forma de organizar a estrutura social, ele só quer destrui-la, e mesmo que o filme tente nos levar para o lado do Coringa e nos fazer ter empatia pelo mesmo, eu não consigo o ver como ídolo como muitos estão fazendo por ai, por que ele tem justamente aqui demonstrado a fonte de sua maldade, uma mistura de caótico, com anarquista (no sentido mais figurado da palavra), com um pouco de niilismo. Ele se torna uma mistura explosiva que conversa com diversos problemas que vemos hoje em dia como incels, proliferação da depressão, governos antidemocráticos eleitos, destruição das instituições, etc. O filme é ótimo em construir todas as engrenagens de nossas insatisfações, essa é a proposta, mas está longe de querer construir um ídolo, uma espécie de anti-herói, e se alguém o viu dessa forma, que me desculpe, mas perdeu alguns detalhes especialmente na reta final do filme.
Um ótimo filme que conseguiu pegar um personagem da cultura pop é o repensar e o colocar mais atual do que jamais o fizeram. Além de outros quesitos que o fazem brilhar, especialmente a atuação de Joaquin Phoenix. Vale muito a pena!
São Paulo Sociedade Anônima
4.2 172Gostaria de perguntar o que entendem por este diálogo entre Ana e Carlos quando passeavam pelos arredores do rio. Fiquei muito curioso para saber outras interpretações.
"-Existe sempre um porto, é um porto quando ainda não é.
-Carlos, o que é esse lugar?
-Era, hoje não é mais.
-Carlos, o que era este lugar?
-Era um porto, porto de areia.
-Areia, barco. Os barcos o que eram?
-Os barcos não eram barcos, os barcos eram patelões. Os patelões eram para a areia, a areia era para o vidro. Hoje a areia não é mais para o vidro. Hoje não tem mais vidro, hoje não tem mais."
A mim soa como a perda do significado em um processo. O filme que passa também pelo tema da industrialização e como o homem se encaixa nesse meio, parece nesse trecho falar de como nós, na loucura de transformar nosso ambiente, perdemos o valor, o significado das própria transformação. Já enxergamos tudo como portos onde podemos atracar. Depois nos estabelecemos e nos arraigamos nessa natureza, onde tinhamos patelos (Caranguejo, que se emprega no adubo das terras. Pequena arraia.) hoje temos barcos. E transformamos aquele ambiente, da areia para o vidro. E o transformamos até a exaustão e nem ao menos sabemos porque o fazemos, apenas o fazemos em nome de nossa vontade de consumir, até não ter mais vidro.
Gostaria realmente de ver outras interpretações desse trecho. Comentem ae, por favor. =D
A Bela da Tarde
4.1 341 Assista AgoraEnquanto na mulher a simples exposição da existência de vontade sexual já se mostra como algo chocante, para o homem se demonstra uma sexualidade cheia de perversidade, violência e relações de poder. Mesmo na cena em que o homem se coloca na posição de dominado, o faz através de sua vontade, a violência vem ao seu comando. Destruir algo percebido como puro, disputas pela mulher tida como objeto de posse, tudo isso enquanto a mulher assisti amarrada o homem confabular situações desnecessárias que satisfaz apenas teu próprio ego e vontade de dominar.
Código Desconhecido
3.7 79 Assista AgoraMesmo com uma globalização exacerbada e um multiculturalismo bem estabelecido, a empatia parece cada vez mais longe de ser lei. As metrópoles com seu gigantesco fluxo de pessoas, são também um triste centro de individualismo que causa o distanciamento entre todos. Não conseguimos parar e olhar para aquele do nosso lado, e como poderia ser diferente se mesmo dentro do âmbito familiar o mesmo se aplica? Apenas perdemos ao não conhecermos histórias e culturas daqueles que nos entornam e os quais ignoramos. A consequência é o deprimente isolamento de cada um de nós. Ótimo filme, Haneke retrata relações humanas como poucos.
Mãe!
4.0 3,9K Assista AgoraUm filme para digerir muito lentamente. Espero logo mais assistir de novo. Mas a vontade de escrever sobre ele é grande. Preciso escrever sobre o que o filme passou! rs
Sabendo que era um filme de Aronofsky, já dá para esperar algo profundo depois de ter visto Cisne Negro e, especialmente, Réquiem para um Sonho. Mas o que ele trouxe dessa vez foi uma discussão profundamente filosófica que remete aos primórdios da própria filosofia.
Eu não quero nem me ater aos fatores técnicos do filme. Como diretor, não tem o que falar, câmeras, cortes, música, fotografia, vestimentas, etc… um mundo antes calmo e depois caótico perfeitamente orquestrado e mostrado por Aronofsky. Javier Bardem sensacional com os altos e baixos que o personagem pedia. Jennifer Lawrence sempre foi uma grande atriz, mas aqui ela alcançou o topo, aqui ela mostrou a atriz absurda de boa que é.
Mãe! começa numa calmaria plena, o despertar da Mãe (Jennifer Lawrence), a paz e a calmaria da solidão, assim surge a vida. O nome do filme já diz tudo, estamos aqui falando da Mãe Natureza, a vida em si, a existência por si só. Nada além disso, uma estrutura que dá lugar a vida, uma casa no meio de um mundo vasto e desconhecido. O nosso mundo, a Terra! Ela é bela, a Mãe passa uma sensação de beleza, mas não uma beleza sensual, mas sim de pureza. Vive numa casa criada por ela, em constante mutação, simples, sem grandes luxos. A Mãe busca pela casa e procura pelo Homem (Javier Bardem), este que vai representar muitos vícios e também muitas virtudes do Homem na história da humanidade. Assim que se encontram, esse casal que vive nesta casa, que estão longe de ser um simples casal, são na verdade a representação da relação do homem com a mundo e como ele experimenta e traduz a realidade. Nesse primeiro encontro que presenciamos, já enxergamos a primeira faceta do homem que nos apresentarão. O homem como um ser inquieto e insaciável em sua busca por criar, produzir, entender, crescer… Ele precisa escrever um poema, busca as palavras que façam a sua existência fazer sentido, mas simplesmente não consegue, tem um bloqueio constante. Nessa vontade de entender a própria existência, a sua relação com a Mãe, a vida, lhe parece não tão atrativa, a necessidade de buscar novos horizontes se demonstra inerente ao teu ser. Assim surge o primeiro fator que afetará a estrutura daquele ambiente. No meio da noite, de forma inoportuna surge um senhor na porta da casa, um completo estranho. Um senhor magro e fraco, que se diz médico, aparenta ser confiável, fuma e bebe em demasia. Com sua veneração pelo Homem (Javier), esse senhor se demonstra atraente por demonstrar um mundo diferente e cheio de novas experiências. Mesmo com a constante tosse pelo excesso de cigarro e vomitando pelo excesso de bebida, este senhor atraí o Homem (Javier), o ser humano sempre se entregou e sempre se entregará aos teus vícios de forma descontrolada, é de sua natureza ser assim. A curiosidade humana não se atem simplesmente à curiosidade pelo virtuoso, tendemos até mesmo a enxergar a vida de excessos como muito mais chamativa do que uma vida de temperança.
Assim começa a “queda” de toda aquela vida estabelecida. A aceitação incondicional desses vícios é o primeiro passo de toda a ruína que viria, e a Mãe responde a isso, assim como a estrutura da casa, algo não ia bem e isso era claramente sentido. Daí para frente temos uma lenta tomada de poder hierárquico por parte dos vícios. O senhor passa uma noite e no outro dia chega sua mulher, também entregue à bebida, mesquinha, insolente, não respeita espaço alheio, intrometida, corrói aquilo à sua volta, com seus vícios sexuais, etc. Esse casal toma o lugar e a mente do Homem, o seduz e o faz acreditar que eles fazem parte de tudo aquilo, que eles precisam estar ali, que eles são parte irreversível de sua essência. Afinal, os vícios são partes intrínsecas de nós, não? Devemos aceita-los de qualquer forma dentro de nossa casa, dentro de nós, não? Ou seria apenas essa uma fraqueza nossa? Assim temos uma crítica do filme à uma visão materialista hedonista , onde o homem se entrega aos seu sentidos, ao prazer, aos vícios.
Aos poucos a Mãe enxerga a casa perder sua paz inicial e o Homem lhe ignorar profundamente por ser tão adulado por essas representações dos vícios. No escritório do Homem há uma espécie de cristal que ele não deixa que ninguém toque, algo que demonstra ganância e obsessão. É, certamente, aquilo que ele mais possui apreço dentro daquela casa, mais até do que a própria Mãe. Assim fica clara a analogia do homem em busca de riquezas independente dos meios ou ao que ele destruirá. Então, mais a frente, o casal invade sem permissão e quebram o cristal. O que deixa o Homem transtornado e juntando os cacos sozinho dentro do escritório e os apertando contra as mãos as fazendo sangrar. Uma cena que demonstra grande fraqueza do homem, o quão patética é sua necessidade por riquezas, o quão ele se rasteja no chão nem que seja pelas migalhas de algo que ele considerou valioso sem nem saber os motivos.
Logo após os filhos do casal também aparecem sem serem convidados. Eles me parecem uma representação do ódio, pura e simplesmente. E depois de uma discussão entre a família, os filhos começam a brigar e apesar da tentativa da Mãe de segurar, a situação evoluí para a morte de um dos filhos. E neste momento a Mãe é deixada sozinha enquanto o Homem e o casal levam o filho ferido embora e o filho assassino foge. Então os vícios e excessos deram a cria ao ódio que não podia culminar em nada menos que a morte. E assim fica a Mãe e sua casa, desoladas e largadas no meio do nada, com todo o peso que a morte traz a existência. A casa mais uma vez demonstra seus efeitos. Aparece uma “ferida” no chão, onde parece ter até mesmo sangue, uma ferida aberta no meio de tudo aquilo, a morte é uma ferida que se expõem e é difícil ignorar, ela sangra e tudo o que podemos fazer é tentar ignorar ou colocar debaixo do tapete.
Homem volta a casa sozinho e parece que tudo está sossegado, mas novamente no meio da noite todos voltam a casa para começar um funeral. As cenas parecem todas muito hipócritas, choram, dizem palavras bonitas, ignoram o que levou àquele ponto, tudo aquilo que realmente representam. A casa vai se enchendo, pessoas inoportunas e sem sentimentos, todos são apenas uma casca. Não respeitam os demais, não respeitam o espaço alheio, a situação passa de um funeral para uma festa, denotando a indiferença pela morte que todos ali tinham. Apenas a Mãe vê a loucura disso tudo. A situação começa a deteriorar rapidamente, esse monte de pessoas desrespeitam a casa de todas as maneiras. A humanidade desrespeita o mundo de todas as maneiras, testam seus limites além da conta, destroem tudo que vêem. Até que a Mãe não aguenta mais e manda todos embora, toma conta da situação, bate de frente com o Homem, lhe mostra que a situação é insustentável e como ele simplesmente a ignorou esse tempo todo, como ele não “fodia” com ela e assim nunca criariam nada, nunca dariam continuidade a vida dessa forma. Então o Homem enfim enxerga isso, expulsa tudo, se vê longe de seus vícios e foca apenas nela. Eles transam e a Mãe enfim fica grávida. E o Homem então sabendo da gravidez, ligado a Mãe, longe dos vícios tem uma epifania e consegue fazer o seu poema perfeito inspirado na vida que criou com ela. Ele publica esse poema e depois de uns 9 meses, quando ela está próxima de parir, ele começa a ficar famoso, as pessoas querem saber tudo dele, o consideram um gênio, um messias, a mais pura idolatria se instaura, pessoas batem a porta procurando-o e o Homem ama toda essa atenção. E é aqui que o filme se torna bastante filosófico e Aronofsky claramente se posiciona. O homem nesse momento é colocado como o centro de tudo, a razão como criadora da realidade, uma ideia racionalista, algo mais ou menos como o “Penso, logo existo” de René Descartes, ou ainda uma visão de Platão quando busca a saída da caverna no Mito da Caverna. Aqui é como se o Homem tivesse saído da caverna através de sua razão, ignorando toda a influência de sua existência, ou seja, da Mãe. Aronofsky faz uma crítica ao racionalismo, a razão como centro de tudo, e se coloca em defesa de uma posição materialista, onde a matéria (a Mãe) é a realidade acima de tudo, ou como diria Sartre “A existência precede a essência”. O homem se colocou no pedestal, colocou a si mesmo e sua razão acima da existência própria e do mundo. O homem como criador ignorando o mundo que ao seu redor. Assim ignorou a vida, já que o homem pode tudo já que de sua razão emana a verdade. Então a situação dentro da casa vai caindo para algo obscuro. O Homem começa a receber seguidores por suas palavras, pessoas fazem filas, abarrotam todos os ambientes, criam símbolos de idolatria, criam rituais, criam uma verdadeira seita, criam suas próprias verdades do que é o certo e errado, matam para aplicar as suas verdades, definem o Homem como Deus de acordo com a sua vontade. A casa vira então uma breve história do mundo e das religiões. Toda a violência que foi imposta durante a história, toda a oposição de ideologias, tudo isso transformado em cultos e violência. Tudo isso pelo homem acreditar saber o porquê de sua existência sem ao menos respeitar a própria existência e vida (a casa e a Mãe). O caos é total! Até que a Mãe consegue junto com o Homem se isolar daquela loucura no escritório e dar a luz a seu filho. Os homens lá fora se silenciam, mais uma vez aguardam que o Homem, o seu messias, lhes mostre o rumo para o futuro. Mas a Mãe quer toda aquela loucura para fora e o Homem se recusa, pois ele é viciado na atenção que recebe, é viciado no caos, acredita poder ele, o mesmo que causou o caos, trazer a paz. Quer mostrar o seu filho à todos. Mas a Mãe reconhece enfim toda a falha do ser humana e quer proteger a sua cria do Homem. Mas ele se mostra implacável e quando ela adormece, lhe rouba o filho e o leva para ser cultuado. A criança é carregada e morta, uma cena forte e arrasadora, as pessoas então passam a cultuar novamente a morte, mais uma vez, como da primeira vez que morreu alguém naquela casa, querem achar uma justificativa para morte no lugar de aceitarem a sua culpa e preferem se perdoar. A Mãe se revolta, os chama de assassinos, e esses em resposta a agridem, outra cena forte, chutam seu rosto, xingam, etc, simplesmente por ela não querer perdoar esse lado agressor do humano. Então ela desiste e em seu último ato resolve queimar tudo isso, colocar tudo abaixo, explode a casa toda. E sobra só ela e o Homem, ela queimada, sem forças, o Homem ainda inteiro e insatisfeito, pois pede a última coisa que ela pode lhe dar, um cristal saído de seu coração. Ele não queria o amor dela, ele não queria o seu coração vivo, ele não queria vida, ele é frio e busca apenas aquilo que lhe brilha os olhos, a riqueza, o precioso cristal que tira de dentro do coração. Ao homem não importa que tudo vire cinzas, desde que sobre em sua mão, e apenas em suas próprias mãos, a riqueza conquistada através de sua ganância desenfreada. E é assim porque assim ele o é, ao menos sem nem saber o porque de o ser.
De início o filme crítica a entrega do homem em sentir o mundo lá fora e os vícios de uma posição hedonista. Depois a colocação do homem e sua razão ao centro de tudo como fonte da verdade plena. E no fim ele diz que ele é o que é. No fim me parece que a crítica ao racionalismo e as religiões ficou bem maior, então senti que o filme tem uma tendência a defesa de um materialismo com temperança, como o materialismo de Epicuro que disse “Nenhum prazer é em si um mal, porém certas coisas capazes de engendrar prazeres trazem consigo maior número de males que de prazeres.”
Assim o filme termina, sendo uma incrível crítica ao pensamento racionalista que deram origem à praticamente todas religiões, também uma crítica inicial ao materialismo hedonista individualista, uma crítica novamente ao homem e seu consumismo e vício descontrolado (semelhante ao que Réquiem para um Sonho traz), à idolatria humana, à guerra de ideologias que vivemos, e muito mais. Um filme incrível que é difícil organizar o quanto ele representa, haja visto esse texto meio sem nexo que escrevi, mas a vontade de escrever é maior para ver se organizo ele na minha cabeça, talvez depois de assistir mais uma vez consiga alinhar melhor meus pensamentos. rs E não tinha como não dar nota máxima para ele, um filme que me fez pensar e sentir tanto, não podia ser diferente.
A Fita Branca
4.0 756 Assista AgoraMe lembrei da famosa frase de Paulo Freire que diz "quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor."
É o que é visto nesta microssociedade patriarcal, rigorosa, austera, moralista e violenta criada para o filme. Onde nada pode ser dito com liberdade, o que resta é se expressar através da violência silenciosa e indiferente.
Boa Noite, Mamãe
3.5 1,5K Assista AgoraGostei bastante do filme e achei que tem muitos pontos bons.
Roteiro bem construído, acho que se engana quem acredita que a intenção era mostrar ao final a tal "revelação", me pareceu que a vontade estava em mostrar a verdadeira situação gradativamente e o telespectador ir aos poucos sentindo as trocas de papéis entre mãe e filho. Fotografia, enquadramentos, iluminação, etc...todos ótimos, se vê logo de começo, e muitas vezes utilizados de forma inteligente construindo imagens que passam muito sobre os sentimentos dos personagens. As atuações são boas, no início comedidas por necessidade, demonstrando certa frieza em uma situação que já se esticava demais, e se intensificando mais para o final de acordo com o desenvolvimento dos acontecimentos.
Achei interessante como foram construídos os opostos do filme, mas ao mesmo tempo apresenta que não é tudo uma divisão simples entre preto e branco, existindo muitos tons de cinza no meio. De um lado a escuridão de uma mãe que só quer esquecer o passado. Do outro a luz de um filho que quer a iluminação sobre a verdade, mas uma verdade que o satisfaça. Porém ambos podem tomar posições diferentes dependendo do prisma em que olhamos. No começo uma verdade, no final outra. De um lado a mãe que quer se isolar do mundo, fecha as janelas para não ver o que vem de fora e nem correr o risco de ser vista. Do outro o filho que quer desbravar, abre as cortinas pois quer ver a luz entrar, precisa entender e enxergar aquilo à sua volta. De um lado a escuridão, que para uns é conforto, para outros inibe, faz ter pesadelos, deixam perdidos e sem rumo. Do outro a luz, que para uns é iluminação perante a vida, para outros invade, expõe, agride, demonstra com clareza os defeitos da vida. Ambos podem ser usados para dar medo e machucar. E assim o filme foi feito, na primeira parte que traz a escuridão, temos um terror mais psicológico nas sombras, na segunda parte que traz a luz, temos clara violência e tortura, tudo a olho nu.
Talvez o finalzinho não tenha sido lá de muito bom grado, especialmente a última cena, que não me agradou muito, mas não apaga um filme que para mim mostrou um roteiro interessante de forma bastante inteligente.
Até o Último Homem
4.2 2,0K Assista AgoraUm personagem principal todo construído na ideia da beleza do ato da bondade e salvação, daí chega à reta final e o filme parece querer demonstrar quase que beleza no ato de matar os japoneses, além de transforma-lo em um filme que mais parece uma guerra santa cristã. Estava engolindo o lado cristão, afinal é uma história real e assim foi Desmond Doss, mas achei patético como o filme acaba tomando a ideologia de paz e amar ao próximo que Doss levou durante sua vida, e distorce e destrói o que Desmond fez em sua vida, transformando a barbárie em um ato lindo e maravilhoso quando vindo dos americanos cristãos para cima dos japoneses que foram caracterizados como seres de conduta exageradamente vilanesca. Me decepcionou no final...Mas é de se esperar esse viés cristão enlouquecido quando lembramos que o filme é do Mel Gibson, estava o achando até que bem comedido até chegar a reta final.
A Caça
4.2 2,0K Assista AgoraApenas por tratar de um assunto já polêmico como a pedofilia e ainda questionando não o acusado, mas sim a vítima, o filme já merece os parabéns pela coragem. O melhor é que na verdade o maior alvo da filme não é nem vítima e nem acusado, e sim a sociedade como unidade pensante, e como cada um, dentro desta unidade, deixa facilmente o senso crítico de lado, afinal, quantas vezes não vimos em nossa mídia, pessoas serem acusadas e previamente condenadas sem uma definição da justiça? E como isso está ligado à um lado ruim do homem, como buscamos culpar sem ouvir todos os lados de uma história, uma verdadeira caça. Mostra como a maldade está ali instalada, como é alcançável independente das relações anteriormente construídas e tudo dentro de uma sensação de aplicação da justiça por meios próprios.
Achei excepcional a tensão constante, cheio de cenas simples e sem exageros, mas com um peso lúgubre por trás de toda aquela aparente serenidade. Duas cenas em especial.
A primeira quando Lucas, já aceito novamente por todos, observa cada um, e é latente a sensação de desconfiança. O espectador naquele momento, junto com o protagonista, sabe o que cada um ali é capaz, e assim não consegue confiar em ninguém. E depois a cena em que Lucas ajuda Klara atravessar o corredor, onde um simples ato, que antes era normal, toma um peso absurdo.
Ótimo filme, um tanto corajoso e bem executado.
Beasts of No Nation
4.3 831 Assista AgoraMe lembrou uma frase do filme O Senhor das Armas, quando Yuri Orlov (Nicolas Cage), estando na África, diz:
"Often, the most barbaric atrocities occur when both combatants proclaim themselves Freedom Fighters."
A Pele que Habito
4.2 5,1K Assista AgoraA cena final simplesmente me quebrou!
O filme vem todo o tempo construindo uma visão sobre a obsessão que temos pela aparência, tanto em nós mesmos quanto nos demais, o quanto ela influencia positiva e negativamente, questionando profundamente como ligamos e relacionamos o amor com a aparência, quase como uma moeda de troca no convívio humano. E de forma ingênua, esperando ver um final feliz onde a mãe, com seu amor materno supostamente incondicional, recebe de braços abertos seu filho que foi transformado em uma mulher de aparência desconhecida, demonstrando uma postura resiliente e afetiva, o filme acaba! Te deixando nesse vazio aflitivo que só aumenta a sua tristeza pelas questões antes levantadas. Seria ao menos o amor materno, incondicional? (Mesmo Marília já tendo anteriormente mostrado que não). Ou nem este sobreviveria à tamanhas mudanças, não deixando espaço para a existência de um amor que ignorasse o externo?
Um ótimo filme. Roteiro algumas vezes previsível, mas mesmo dentro dessa previsibilidade, ele te guia de forma interessante à querer entender a sequência de fatos que levou àquela situação. As atuação de Antonio Banderas e Elena Anaya são excelentes, as demais ou passam batido ou não agradam muito. Fotografia tendendo para tons pastéis, acho que ligado à própria questão da pele, e também trazendo frieza e beleza ao mesmo tempo. Trilha sonora não me chamou muita atenção. Jogo de câmeras de Almodóvar se torna mais marcante no ato final.
Confissões
4.2 854Lembrando de Irreversível de Gaspar Nóe, que atira em nossa face, através de uma narrativa ironicamente inversa, que a vida possuí uma característica fortemente atroz, ela é duramente linear, incorrigivelmente irreversível e somos totalmente impotentes quanto a isso. Não adianta tentar vencer o relógio, tentar fazê-lo voltar, apenas perderá seu tempo.
E Confissões tem muito disso, tudo isso construído inicialmente em uma "inocente" sala de aula, um microssistema que é o tempo presente de muitas vidas que carregam toda sua irreversibilidade. O ambiente de uma classe de pré-adolescentes é uma escolha muito acertada, onde pessoas são obrigadas a conviver na idade de maior e mais complexa formação de caráter. E já se mostra ali uma estrutura pronta para o conflito, uma sociedade formada, com posições estabelecidas, vontades explícitas, hierarquia, etc. E é nessa microssociedade já desforme que a professora que está deixando de lecionar, traz um conflito moral de absurda escala. Essa, uma mãe que perdeu sua filha em um assassinato cometido por dois de seus alunos, mas que pelo relatório da polícia foi apenas um acidente. Sabendo que por conta das leis eles não seriam presos, a professora Moriguchi resolve se vingar dos assassinos Shuya e Naoki, colocando sangue com HIV positivo no leite que tomaram, e toda a história, como ela descobriu os assassinos e sua vingança são prontamente revelados perante toda a sala de aula logo no início. E então as relações e as atitudes daquele ambiente imediatamente mudam com todo a situação criada.
A primeira das reações com a notícia de que o vírus HIV está presente em uma pessoa daquela sala, é o medo gerado pela ignorância, todos evitam encostar e até uma garota que prende a respiração acreditando que pode contrair por vias aéreas. E isso se mantêm durante todo o tempo mesmo sendo impossível contrair HIV daquela forma, mostrando como a falta de conhecimento, a ignorância muitas vezes prevalece e exclui as pessoas umas das outras, gerando desinformação e antipatia. E isso tudo cria força por conta da sala tomar para si uma unidade, onde todos agem como massa, ninguém pensa muito bem, suas atitudes são englobadas e banalizadas pelo grupo que visam se encaixar. Formam ali uma sociedade, que age como um só, o que um faz inicialmente de maneira impulsiva, todos seguem sem pensar direito, apenas reagem de forma impensada. Como grupo, vivem de forma anestésica, de forma à esquecer o acontecido. Naoki não aparece mais na escola, e todos, de forma velada, concordam em maquiar aquilo que sabem. Com Shuya se colocam de forma violenta, o oprimem, decidiram ser o bem contra o mal, sendo que é claro durante todo o filme como aquele ambiente é doentio, onde todos possuem sua dualidade entre o bem e o mal, e nada de uma moral perfeita acima dos demais. A única capaz de ver além dessa consciência coletiva é a aluna Mizuki, e justamente por sua visão e por se negar a agir como manada, ela também é hostilizada.
Este é o ambiente formado após as revelações da professora, e daí se inicia a construção de cada personagem envolvido. O filme mantêm uma narrativa irregular, diversas vezes voltando no tempo de cada um dos personagens, colocando novas camadas de tinta sobre cada um, fazendo com que seu sentimento com cada um mude diversas vezes. Os conceitos de bem ou mal são repetidamente postos à prova do espectador quando vemos todos essas pessoas sendo empiricamente construídas e destruídas durante suas vidas, resultando naqueles que se tornaram. Todos os personagens mostram lados diferentes de si mesmo e o que fica claro é que todos correm atrás de um único fator, o afeto. A mãe que perdeu sua sanidade junto com a sua filha. O menino que busca a mãe através do reconhecimento de seus feitos. O menino que busca o reconhecimento de todos mostrando que é capaz de agir. Todos esses chegaram ao extremo por conta dessas vontades.
Os atos de cada um são inicialmente rasos, mas o filme trata de arquitetar uma rede de causa e efeito para tudo. A mãe que bate em Shuya por sua infelicidade profissional. A mãe que o deixa para trás. Shuya que cria uma obsessão por chamar atenção por seus feitos para que sua mãe perceba e volte. Este manipula Naoki que busca reconhecimento. Naoki sabendo que podia salvar a filha da professora, mata mesmo assim, pois quer mostrar que é capaz de algo. A professora Moriguchi que sofre com a morte de sua filha. Moriguchi então age sobre os dois. Destrói a vida de Naoki que se torna obsessivo por acreditar estar doente. A devota mãe de Naoki vê a situação do filho e só consegue enxergar a morte dele como solução. Etc. Etc. Etc...diversas vidas influenciadas em efeito dominó. Até que tudo culmina na busca da professora pela redenção de Shuya, a sua vingança é completa, o destrói completamente, literalmente explode todo seu passado que o fez, para quem sabe assim ele perceba o que se tornou e comece uma nova vida (o que é difícil de acreditar que aconteceria). Dando tanta ênfase nessa linearidade da vida e sua brutal irreversibilidade, o filme questiona o quão nossos atos devem ser pensados, o quão devemos cuidar da criação de nossas crianças, o quão falho pode ser a construção do caráter tanto no âmbito familiar ou no sistema educacional. A vida é complexa, escolhas reverberam.
O filme possuí uma cara muito moderna e "estilosa". A edição rápida e ousada em alguns pontos, os enquadramentos diferenciados, a trilha sonora em alguns momentos surpreendentes, a fotografia predominantemente azul e soturna que mantem uma frieza. As atuações muito convincentes, especialmente dos mais novos. Tudo muito bem feito ao meu ver.
Um filme que vale muito ver. Personagens bem desenvolvidos, críticas acertadas e bem colocadas, um visual interessante e o mais importante, um roteiro que foge de uma estrutura previsível.
Solaris
4.2 369 Assista AgoraUma falha: eu ainda não assisti "2001-Uma Odisséia no Espaço" de Kubrick, apenas li o livro de Arthur C. Clarke. Mas levando em consideração apenas a leitura e a temática que é trazida, a comparação que diz ser Solaris o "2001 Soviético" me parece um pouco desnecessária e até simplória. O que eles partilham é uma ficção científica com forte apelo filosófico, mas que no seu âmbito filosófico não se assemelham tanto assim. Então se for para comparar só por serem duas ficções científicas, me parece muito pouco e até uma vontade de denegrir Solaris, pois dizer isso nos leva ao pensamento de uma cópia pura e simplesmente.
Solaris conta a história de uma situação em que fomos capazes de mandar e manter uma expedição para averiguar um planeta, nomeado Solaris. Porém a pesquisa sobre este planeta já se extende por muito tempo devido aos problemas, especialmente psicológicos, que a tripulação vem apresentando, incluindo suicídios. Resolve-se que alguém irá lá decidir se vale dar continuidade a empreitada ou se o melhor é abortar de vez. Para isso é chamado o psicólogo Kris Kelvin.
Antes mesmo de embarcar, Kelvin já se depara com alguns segredos envolvendo Solaris. O caso é de um piloto chamado Berton que teve gravado um de seus depoimentos sobre coisas que viu no tal "mar" de Solaris e que mudaram sua vida para sempre. Na gravação que Kelvin assiste na presença do próprio Berton anos depois, são descritas imagens se formando na superfície, descreve e afirma algo muito maior do que uma simples alucinação, e sim algo da mais pura materialização. Mas ainda assim é desacredito por Kelvin, que menospreza seu depoimento. Assim segue então para a estação espacial.
Kelvin chega a estação e se depara com uma situação de degradação geral. Segue pelos ambientes onde o filme vai realmente se desenvolver. Conversa com dois dos tripulantes que sobraram, assiste um vídeo de um amigo que ali estava mas acabou se matando, se depara com a superfície de Solaris. Ali ele enfrenta Solaris que responde materializando a sua maior fraqueza, um antigo amor, Khari, que se matou após uma briga do casal. O filme realmente começa na estação, é ali que os conceitos e a parte filosófica são jogadas para o espectador, não de forma lá muito simples e declarada. É um filme para se assistir mais de uma vez, apesar da narrativa lenta que pode cansar alguns, e para ficar pensando depois, sobre todo o existencialismo e epistemologia presente.
A ambientação é interessante, bem a cara de filme futurista retro dos anos 70 mesmo, estruturas arredondadas, pouco funcionais, raros painéis, etc. A fotografia é realmente interessante, mas ainda vou dar uma nova assistida, pois sinceramente não consegui pegar bem o que algumas claras trocas de tonalidade e saturação quiseram trazer. A trilha é bastante ausente, mas quando aparece causa uma aflição e tensão muito boas. A atuação de Kelvin não me agrada muito, achei umas partes um pouco forçadas e me passaram uma irrealidade de reação muito grande por parte dele. O que se vê também em algumas cenas que acredito que deveriam ser românticas e demonstrar a grande necessidade que ele tinha por Khari, mas que me acabaram soando forçadas, desnecessárias e piegas. Mas foram poucas, felizmente. As demais atuações são boas, especialmente de Khari, que se apresenta de forma quase angelical e de poucas expressões.
O filme é dividido em duas partes, e até aqui resume a primeira. A segunda é onde o filme realmente se desenvolve em seu lado conceitual, entre as conversas de Kelvin com Khari, Sartorius e Snaut, e o mais importante personagem, o mar de Solaris que parece ser classificado como uma espécie de substância pensante. O filme trabalha muito fortemente com dualidades, o futuro e o passado, a incerto arriscado e a certeza segura, o conhecimento complexo e o humano conhecido, a vida e a morte, e resumindo tudo isso, o fluído e o estático.
Kelvin encara o mar de Solaris e este lhe reflete Khari, ou seja, refletiu a si mesmo, sua mente presa não só a idealização de Khari, mas também à culpa pela morte dela. Em uma primeira tentativa de Solaris, Kelvin "mata" a recém-criada Khari jogando-a de volta para Solaris. Mas a materialização da mente de Kelvin se repete e ele dessa vez aceita este simulacro de Khari. Ele sabe que a situação na estação é insustentável, não dá para continuar com o projeto. Ainda assim, ele procrastina sua decisão pois se apegou ao simulacro idealizado, portanto falso, de sua falecida amada. Ele se prende ao passado, não consegue seguir em frente. Os demais tripulantes mesmo perguntam o que será feito e tudo que ele faz é ficar deitado aproveitando aquele amor que perdeu ainda na Terra. Ele está preso à estática segura do passado e teme o futuro impalpável, desforme como a água, fluído.
Sartorius e Snaut representam outra discussão, respectivamente a da busca do conhecimento e da superação de um lado, ou do entendimento do homem, suas vontades e necessidades. Sartorius se irrita com os demais, a falta de objetividade, as divagações, se tranca em seu laboratório, está ali em uma busca absoluta pelo entendimento daquilo que enfrentam, uma caçada implacável pelo conhecimento, mas acaba desenvolvendo assim uma antipatia, uma quebra com o humano. Já Snaut enxerga a busca pelo desconhecido com algo desnecessário, como apenas um artifício criado pelo homem para encontrar e entender a si mesmo, o tal espelho, uma tentativa de expandir a humanidade de forma universal, já ele desenvolve uma falta de comprometimento e vontade com aquilo que o envolve. E com tudo isso o mar está lá, ele é difícil de se encarar, é uma barreira que devemos superar? Ou a barreira somos apenas nós mesmos que ainda não nos definimos?
Então chegamos a cena final, onde Solaris não traz mais a materialização de Khari, e descobrimos qual foi a decisão de Kelvin. Este jogou o seu futuro para o passado, se jogou no mar, mas não para enfrenta-lo, mas para confortar a si mesmo com imagens de do que já passou, ele foi engolido ao perseguir Khari. E o filme traz à tona o fluído e o estático de volta. Nos lembra a primeira cena (no que eu faria uma minúscula crítica, não acho que seria necessária relembrar o espectador disso, apesar de o filme se tornar um pouco mais autoexplicativo no final, relembrar uma cena me pareceu um pouco demais, perdendo na sutileza que vinha como padrão antes), onde algumas plantas aquáticas se mexem na água, a vida em movimento que o psicólogo encarava no começo, e corta para Kelvin encarando o lago de sua casa congelada, tudo muito estático e falso, tudo uma simulação sem vida humana criada na superfície de Solaris. E então Tarkovsky se posiciona, demonstra um Kelvin que se levou pelo medo, que acabou de joelhos por medo de seguir em frente e prendeu sua vida ao passado, uma clara espécie de morte.
A Vida, Acima de Tudo
4.2 19A história é muito boa, o filme é muito bem filmado, as cenas são belas mesmo em forte tristeza, as atrizes são muito boas, especialmente as crianças, e também muito legal ver como o filme prefere retratar mais o lado da mulher, que ao mesmo tempo sofre maior cobrança e preconceito, (spoilerzinho) como quando Jonah diz que o problema está no leite da mãe e não no sémen, mas também mostra que a mulher é de força e ao mesmo tempo de compaixão.
O filme traz a ignorância e a desinformação gerando medo, este por sua vez gera o afastamento entre as pessoas, superstições, os charlatões que se aproveitam da ignorância estabelecida, a crença no inconsistente, a utilização dessa para a condenação pública e muitos outros problemas. A situação é comum no Brasil também, mas é ainda mais forte em um continente deixado de lado pelo resto do mundo. O filme traz a Aids, mas a realidades é muito mais ampla, as crenças na Africa passam dos limites, assim podemos ver bebês que são utilizados em rituais ou albinos que são mutilados por serem considerados afrodisíacos. E Chanda se coloca contra tudo isso, ela é cética, ela estuda, ela questiona. O nome do filme, apesar de condizer com o original, chega a ser irônico, já que toda a cultura daquele ambiente gira entorno da segregação entre as pessoas e da morte. Uma bela crítica não às crenças em si, mas como são utilizadas, o que fica claro no final, onde a crença enfim busca a empatia e a junção entre pessoas.