Da gélida e contida Finlândia, eis um road movie sobre trilhos que aquece o coração apesar do cenário cheio de neve e temperatura negativa. Duas almas errantes e solitárias, uma estudante finlandesa e um mineiro russo, descobrem que atravessar fronteiras é algo além de metafórico, é primoroso. Ainda mais quando a verdadeira conexão ocorre. Talvez, por isso, o filme é mais pra ser sentido que demonstrado, pois dois recados claros e cristalinos abarrotam os olhos dos espectadores: não se deve julgar as pessoas rapidamente e há humanidade em todos, basta estar disposto a encontrá-la. Entre o frio do clima e o calor das relações humanas, os petróglifos do Ártico se tornam tão importantes e verdadeiros quanto um desenho sincero feito de afeição. Uma boa sessão presente no Prime Video.
Em alguns sites, este filme aparece com o nome 'Força Selvagem', um título abrasileirado muito metaforizado tal qual 'Dormindo Com Cães'. Aliás, sair do pacifismo idílico alienado para se transformar no mártir de uma revolução plebeia contra um governo e polícia fascistas já é uma transformação e tanto. Porque o protagonista Smith, sempre um estranho, vê-se envolvido nos problemas de um sociedade da qual ele não quer fazer parte. E isso na exemplar Nova Zelândia predominantemente rural dos anos 70. Mas, em linhas gerais, é uma fita sem requinte, técnicas de edição adequadas ou efeitos gráficos próximos a realidade, que seduz mais pela história ideológica mas que se opta pela neutralidade, pois se torna um longa de ação simplificado porém feroz. Foi a obra que levou Sam Neil e o cinema neozelandês ao cenário mundial.
Há senso crítico neste filme onde os personagens estão estereotipados, o que desanuvia aquele sentimento de que todo isso é isso e todo aquilo é aquilo. Inclusive, os diálogos vazios e toscos da alta sociedade estão sensacionais! Mas o diretor sueco poderia concentrar menos nas caricaturas e nas escatologias. As hipocrisias e conflitos sociais e de gêneros de uma casta abastada devidamente hospedada num iate de luxo não careceriam de uma retórica exagerada para serem alfinetadas. Bom que o terceiro ato é uma forte pisada no calo da pirâmide social, onde um rolex tem o mesmo valor que um grão de areia, além de demonstrar a real força do trabalhador braçal nessa relação tão melíflua pro patriarcado. Enfim, um filme de erros e acertos que faz pensar (e repensar) o papel de cada um na sociedade.
Uma obra extremamente importante que fora reduzida ao didatismo panfletário em tons pretos e brancos, como se envelhecidos. O que não faz sentido, visto que o longa se inspirou nos abusos sexuais ocorridos em 2009, em Manitoba, uma colônia menonita na Bolívia cujos moradores rejeitam a modernidade. Além de amplificar o grito feminista tão urgente quanto atual. Ou melhor, atemporal. Utilizando a abordagem espartana de confronto em antítese ao respeito à democracia, esta fita potencializa o forte e denso diálogo entre mulheres que nunca seriam ouvidas, ora pelo distanciamento social ora pelo fanatismo religioso da comunidade cristã. Com um elenco digno de aplausos, as variações entre cânticos melancólicos, imaginações sombrias e discussões adultas resultaram num material pesado, porém, especialíssimo em sororidade, empoderamento, moral e, sobretudo, alerta. Pena resultar num filme sisudo de debate cíclico e sem arco narrativo.
Pode-se dizer que escolher um microcosmo erudito para exemplificar as mazelas do mundo contemporâneo é uma ideia original. Em suas inquietantes nuances, as camadas retratadas nesta cinebiografia de uma personagem fictícia são atuais e comuns, já que Lydia Tár (Cate Blanchett em estado de glória), vencedora do EGOT (Emmy, Grammy, Oscar e Tony), cofundadora da Fundação Accordion e a primeira mulher a ser regente da Orquestra Filarmônica de Berlim, é tão alheia aos sentimentos daqueles ao seu entorno que suas ações provocam ruídos ensurdecedores, como assédio moral, relações transacionais e o famigerado cancelamento. Isso tudo entre pessoas poliglotas e amantes de Mozart e Gustav Mahler. Infelizmente, o hermetismo narrativo da obra a faz parecer uma ópera de uma nota só, o que pode causar estranhamento aos não versados em música clássica. Mas não deixa de ser um interessante estudo de personalidade e/ou um fascinante tratado sobre seres humanos e poder.
Uma tragicomédia do absurdo. Ainda mais por ser situada em 1923, época da guerra civil na Irlanda, numa ilha remota, inóspita e rural desse país. Após anos de amizade e companhia diária tomando cerveja, Colm (Breendan Gleeson), violinista idealista, simplesmente resolve não mais conversar com Pádraic (Colin Farrell), tolo e simplório trabalhador do campo. A razão infantil: não perder mais tempo com as besteiras que o amigo fala. Talvez seja esse o paralelo traçado pelo diretor britânico mas filho de irlandeses, já que, por motivos idiotas, guerras separam um mesmo povo (inclusive, uma guerra por um melhor amigo). Enquanto isso, a teimosia desses dois se amplifica de maneira irreal, sendo necessário um pouco de razão através dos outros. Porém, obviamente, sem sucesso. Muito bem fotografado, um filme simbólico, singelo e interessante com seus ideais pragmáticos e bucólicos.
Este filme já valeria apenas pelas tomadas aéreas. Combate, textura, impacto, comando, imagem e som formam uma pintura artística que dificilmente alguém se esquecerá. Ainda mais por se tratar de um blockbuster hollywoodiano que arrasa quarteirões com sua fórmula esquemática mas sem indulgência. Incrível como tudo aqui é acertado - abstrações, emoções, personagens caricatos e trilha sonora inspiradíssimos, apesar do roteiro raso. Com um quê de nostalgia oitentista, este longa traz, inclusive, profundidade e dimensão ao seu antecessor de 1986. Pois, assim como Maverick, Tom Cruise é uma estrela que se recusa a desistir. Energia magnética de uma adrenalina pura, do início ao fim.
A maior chateação de se fazer um filme sobre cinema é que a maioria dos espectadores não captará os efeitos sinceros dessa metalinguagem, ainda mais numa obra situada nos anos 50 e 60. Mestre Spielberg embrulhou sua memória cinéfila e a pôs sobre a mesa do jantar dizendo: deliciem-se! São tantas referências magnânimas que até o desenvolvimento narrativo, ora brusco ora parado demais, faz-se não ser notado (personagens entram e somem numa facilidade veloz). Entrecortando a leveza das reminiscências, as situações sérias e problemáticas encaradas pelo protagonista, o alter ego do diretor, estão dispostas na fita enfatizando, sem muito impacto, seu mote dramático - família, vocação e crescimento. Assim, passando por 'O Maior Espetáculo Da Terra' (1952) e finalizando com as dicas do icônico e excelente John Ford (o cerebral David Lynch fazendo este papel é um deleite), este longa emociona os amantes da sétima arte de maneira singela e genuína. Aos que preferem um roteiro esquemático independente sem intertextualidades, paciência.
Um road movie ambientalista que, ao utilizar um burro como protagonista, a lembrança do clássico 'A Grande Testemunha' (1966), de Robert Bresson, é inevitável. Enquanto o primeiro é mais intrínseco e humanista, este aborda o bem e o mal de forma tanto racional quanto sinestésica. Paradoxalmente, suas várias sub-histórias, irrelevantes em termos narrativos, são essenciais para a mensagem que o diretor polonês quer transmitir: o homem que raciocina é o mesmo que se iguala aos animais. E Eo, o personagem principal inumano com sua feição antiexpressiva, é o espectador que convida o espectador a gritarem socorro juntos no som mais surdo que ambos conseguirem. Pois o mundo real é cruel e egoísta.
Gravada em idioma gaélico e situada em 1981, esta obra irlandesa acompanha Cáit (Catherine Clinch), uma menina de nove anos que, ao passar as férias de verão com parentes distantes, vivencia, enfim, o amor no dia a dia de um lar. Fora de sintonia e quieta na maior parte do tempo, ela está a todo momento praticando suas próprias lembranças, pois sabe que esses dias serão passageiros. Um filme poético e melancólico que demonstra as possibilidades de um mundo novo apenas ofertando o óbvio, como conversar com os familiares, tomar banho diariamente, lavar as roupas e, primordialmente, importar com as pessoas ao redor. Em resumo, um ato de esperançar para uma vida largada ao léu.
A união da crítica especializada com o público cinéfilo jovem, ambos sedentos por originalidade e inovação, foi mais fundamental pro sucesso deste filme (inclusive como favorito a ganhar todos os prêmios) do que o filme em si. Excetuando as ótimas atuações de todo elenco, esta obra é uma pândega linguística feita freneticamente que, de modo inexplicável, não responde anarquicamente às situações propostas, prefere o caminho moralista embalsamado das relações familiares. E, se o espectador não mergulhar na temática diegética da narrativa, pode sair da sala e recomeçar do zero numa outra vez. Pois a pretensão de mexer nas camadas dos versos, universos e multiversos é uma pífia desculpa para que tudo possa ser explicado arbitrariamente. Em suma, enche os olhos da geração tik tok com dinamismo e leveza e se sustenta na força feminina da história. Mas aquelas pedras com olhinhos e as mãos de salsicha foram longe demais.
Quando a gama de elogios é intensa, necessita-se de um olhar mais atento. E Brendan Fraser merece todo esse hype de aplauso por sua atuação neste pungente filme. Ele é o motor, o coração, a engrenagem e as lágrimas de uma trama que deambula em direção ao melodrama. Ao se passar quase que inteiramente num mesmo cenário, o longa namora o teatro e pincela traços claustrofóbicos, apelativos e emocionais de um personagem obeso, gay e sufocado em seus erros e arrependimentos. Cheia de camadas a serem dissecadas, inclusive sob o aspecto bíblico da libertação espiritual, a obra não se edifica e nem emociona com seus subtemas inúteis de encaixes insípidos. As palmas são, realmente, pra caracterização memorável do protagonista.
Na tradução literal temos 'Marcel A Concha Com Sapatos'. E isso faz toda diferença para o entendimento global deste comovente mocumentário, porque as críticas ao imediatismo nas redes (anti)sociais estão clarificadas em forma de "tik toks" que a geração atual adora como verdade absoluta (por que as pessoas vem tirar foto da minha casa e não atende o meu pedido?, questiona Marcel). Visto que o filme foi baseado num curta viralizado do próprio diretor, em 2010, no YouTube. Concomitantemente, há a amabilidade e a originalidade de uma história sobre as pequenas coisas que se interconectam e sustentam cada família existente no planeta, mesmo com o exagero que a narrativa oferece. Senciente, a irrealidade, nesta obra, é ressonante e vitimizada. Quanto às separações, estas partem pedaços e transformam.
Há quem diga que os gatos têm nove vidas (no Brasil, o dito afirma ser sete) e sempre caem em pé. E quando um destemido felino descobre estar na sua última vida? Sim, o medo da morte, tema incomum no mundo infanto-juvenil, ganha predicativos coloridos e brilhantes que divertem e emocionam todos os espectadores, inclusive os adultos. Pois feridas são abertas, heróis aposentados e erros do passado expostos e acolhidos, tudo isso para, inevitavelmente, demonstrar o quão a vida é valorosa. Segue a herança de seus antecessores como conto de fadas fora da curva e exemplifica, de forma lúdica e fantasiosa, os ensinamentos da vida ao público primariamente infantil. Sobretudo, com o respeito que a criançada merece.
Longe de ser desnecessária, já que tal personagem surgiu em 'Shrek 2', esta animação tem mais de bang bang italiano do que drama infanto-juvenil como na história do ogro verde. O que diverte, mesmo com o conto de fadas do pé de feijão como norte trazendo o absurdo nas magníficas e quase reais imagens tridimensionais da DreamWorks. Na verdade, o design tão bem produzido é um deleite a cada cena, seja de ação, de tristeza ou de riso. Ademais, precisaria de um elenco secundário mais bem talhado. O ovo Humpty Dumpty, por exemplo, surge criativo e se torna amoral sem argumentos robustos, o que, paradoxalmente, conflita com sua casca fina e fraca, desencascando a narrativa da trama em algumas passagens importantes da fita. Porém, o carisma natural dos seus personagens segura o espectador, bem como o charme natural dos felídeos. Enfim, um filme que navega entre aventuras e galanteios sem o humor ácido esperado que ficou nalgum lugar noutro longa.
Aproveitando os aspectos monstruosos da história original de Carlo Collodi, eis uma animação que dialoga, em tom e fidelidade, tanto com a paz infantil quanto com os assombros fascistas ecoados por aí. Sim, retratar a trama na Itália dos anos 40 mostrou-se tão acertada como necessária para apagar fagulhas que os sistemas supremacistas teimaram em cultivar. E o simbolismo da vida de Pinóquio é algo extraordinário, variando da rebeldia diante de um estado autoritário à aceitação de ser marionete deliberadamente manipulada. Há algumas soluções dramáticas fáceis demais e realidades exageradamente fantasiosas, porém, as modificações narrativas são interessantes e essenciais em cada plano do filme, como se existissem vários climaxes nesta obra sombria, poética, artesanal, emocionante e afirmativa. Guillermo Del Toro é gênio e Pinocchio é sua fábula familiar definitiva, pois não existe vida sem morte.
Você já viu esse filme em algum lugar: alguém que não é observado por ninguém entra num ambiente violento entre humanos e criaturas estranhas, torna-se amigo de um dos bichos e ensina a todos que tal selvageria é desnecessária. Porém, as ideias visuais desta animação são um deleite numa paleta de cores vivas de saturação exagerada e a trama, mesmo que derivativa, é inteligente e crítica. Até porque só se desconstrói um governo poderoso edificado por mentiras quando se usa simplesmente a verdade. E não deixa de ser uma jornada empolgante e cativante para descobrir que ser herói não significa estar sempre certo. Em resumo, não inova mas faz bem o que se propõe.
O título já traz uma ideia do quanto o diretor quer impor a cumplicidade do amor na tela. Em closes fechados, a primeira metade da fita é um ímã que aproxima Léo (Eden Dambrine) e Rémi (Gustav De Waele), dois jovens que se amam (no sentido philia da palavra), com os espectadores. Impossível imaginar um sem o outro, até que se iniciam na escola quando surge o único confronto moral da trama: seriam eles um casal homossexual? Concomitantemente à narrativa, os afetos masculinos são postos em cena e as discriminações emergem em detrimento à aceitação social, sendo necessária uma tragédia para que amizade e respeito ao próximo ganhassem vez e voz. Como se o filme rodasse numa tranquila zona de segurança. Porém, a reflexão sobre os efeitos devastadores do reacionarismo existe e desvenda uma dor silenciosa daqueles padecentes de tal preconceito. Bom filme belga.
Na parede da memória infantil, nem todas reminiscências são líricas, pois os retratos podem ser bem mais borrados que o real. Ou vice-versa. Porque as lacunas invariavelmente se tornam personagens principais numa relação quase nula. E este belo e sutil filme é sobre isso - reconstruir a imagem de uma pessoa perdida e se reconhecer na ausência. Porém, as pontas soltas são tantas (e propositais) que é preciso um espectador totalmente animado em imersões, já que as respostas não chegam e as perguntas só aumentam conforme a fita acaba. Como se não houvesse enredo, a trama, paradoxalmente, penetra e hipnotiza de forma madura sob o olhar inocente de uma criança que se encontra afetada no limite das pressões sociais e financeiras. Lembrança, conexão e pertencimento, a tríade do acolhimento necessária e carente de uma observação bem mais profunda.
Como escrito no título, um filme realmente pálido, apesar da ideia interessante de misturar o real com o irreal. O grande problema da licença poética é saber lidar com ela, pois Edgar Allan Poe não é um qualquer e isto pode trazer pré-conceitos esperançosos que tendem a dissipar à medida que a fita passa. Porque tudo aqui é trabalhado de maneira rasa, sem a profundidade dramática e engajadora que os filmes de mistério pedem. Mesmo com a costumeira excelente atuação de Christian Bale e pitadas de críticas ao engembrado sistema militar estadunidense e ao fanatismo religioso, a obra soçobra e torna-se esquecível assim que termina. Ou seja, tem bons ingredientes, panela boa e chef adequado, mas o prato veio ralo, sem sal e pouco satisfatório.
'Im Westen Nichts Neues' (1929) de Erich Maria Remarque já nasceu um clássico da literatura. Apenas em seu primeiro ano, foram vendidos mais de um milhão de exemplares. O que logo chamou a atenção do cinema fazendo com que Lewis Milestone o adaptasse, em 1930, para as telonas de Hollywood. Ou seja, nascia um mesmo clássico de uma outra arte. E, desde então, o olhar sobre as batalhas se anuviou. Por mais que quisessem dar um ar de brilhantismo ou graciosidade aos horrores de um conflito, o semblante já estava desenhado e intacto: não há nada de heroico numa guerra. O cheiro de morte é constante, o desejo por sobrevivência é primitiva e o desleixo patriótico é a regra entre os que não lutam. Neste caso, uma adaptação alemã puro sangue, o soco no estômago é ainda mais sinestésico, pois, em quatro anos da primeira guerra mundial, as trincheiras da Alemanha avançaram poucos metros, matando gerações inteiras de jovens iludidos pelo falso discurso de soberania e poderio militar. Muito bem dirigido e tecnicamente primoroso, o filme cumpre seu papel e dá um resultado satisfatório (ainda que inferior ao de Milestone), ratificando a qualidade da Netflix em produção cinematográfica. Uma imersão no horror dos campos sangrentos de batalha.
Talvez seja o cinema do absurdo mais bem trabalhado em toda história. Inicia-se com aspectos de mistério, vira romance e termina em tragédia, tudo isso trespassando pelo gênero policial especificamente hitchcockiano (o detetive apaixonado pela suspeita). É denso e virtuoso ao mesmo tempo que é confuso e soberbo, já que o uso de alguns planos-sequência são tão hiperbólicos que o resultado, para o espectador, chega a ser bem diferente daquilo que o diretor sul-coreano desejava. Até as pequenas estranhezas típicas do cinema oriental estão tomadas de presunção. Porém, não há como não se apaixonar pela personagem chinesa Seo Rae da linda atriz Tang Wei. Ela rouba a cena e nos entrega a dúvida em pele e osso, pois, às vezes, é o suspeito quem tem as perguntas. Outra coisa: dá uma vontade imensa de ver 'Um Corpo Que Cai' (1958) assim que sobem os letreiros.
A história perde força com o passar dos anos. E mesmo algo terrível que abominávamos outrora tenta retornar como farsa ao se apropriar do absolutismo das verdades em tempos de "meias notícias". Assim, o cinema, como arte cultural responsável e eficaz, necessita, de quando em quando, apresentar certos documentos que transcendem o desejo individual. É o caso desta magnífica obra que retrata, corajosamente, a humanidade perdida de uma ditadura militar argentina (não somente esta, mas de todas as outras ditaduras!) e a coragem de um povo que foi mutilado apenas por pensar diferente - ou por puro sadismo daqueles que simplesmente podiam. Com leveza e naturalidade impensadas à trama, o filme entrega um controle de câmera sensacional em sequências alternadas e crescentes, enfatizando, desde o início, a necessidade de colaboração entre as várias gerações a fim de combater um mal comum. Excelente e, sobretudo, necessário.
Compartimento Nº 6
3.8 38Da gélida e contida Finlândia, eis um road movie sobre trilhos que aquece o coração apesar do cenário cheio de neve e temperatura negativa. Duas almas errantes e solitárias, uma estudante finlandesa e um mineiro russo, descobrem que atravessar fronteiras é algo além de metafórico, é primoroso. Ainda mais quando a verdadeira conexão ocorre. Talvez, por isso, o filme é mais pra ser sentido que demonstrado, pois dois recados claros e cristalinos abarrotam os olhos dos espectadores: não se deve julgar as pessoas rapidamente e há humanidade em todos, basta estar disposto a encontrá-la. Entre o frio do clima e o calor das relações humanas, os petróglifos do Ártico se tornam tão importantes e verdadeiros quanto um desenho sincero feito de afeição. Uma boa sessão presente no Prime Video.
Sleeping Dogs
2.9 4Em alguns sites, este filme aparece com o nome 'Força Selvagem', um título abrasileirado muito metaforizado tal qual 'Dormindo Com Cães'. Aliás, sair do pacifismo idílico alienado para se transformar no mártir de uma revolução plebeia contra um governo e polícia fascistas já é uma transformação e tanto. Porque o protagonista Smith, sempre um estranho, vê-se envolvido nos problemas de um sociedade da qual ele não quer fazer parte. E isso na exemplar Nova Zelândia predominantemente rural dos anos 70. Mas, em linhas gerais, é uma fita sem requinte, técnicas de edição adequadas ou efeitos gráficos próximos a realidade, que seduz mais pela história ideológica mas que se opta pela neutralidade, pois se torna um longa de ação simplificado porém feroz. Foi a obra que levou Sam Neil e o cinema neozelandês ao cenário mundial.
Triângulo da Tristeza
3.6 733 Assista AgoraHá senso crítico neste filme onde os personagens estão estereotipados, o que desanuvia aquele sentimento de que todo isso é isso e todo aquilo é aquilo. Inclusive, os diálogos vazios e toscos da alta sociedade estão sensacionais! Mas o diretor sueco poderia concentrar menos nas caricaturas e nas escatologias. As hipocrisias e conflitos sociais e de gêneros de uma casta abastada devidamente hospedada num iate de luxo não careceriam de uma retórica exagerada para serem alfinetadas. Bom que o terceiro ato é uma forte pisada no calo da pirâmide social, onde um rolex tem o mesmo valor que um grão de areia, além de demonstrar a real força do trabalhador braçal nessa relação tão melíflua pro patriarcado. Enfim, um filme de erros e acertos que faz pensar (e repensar) o papel de cada um na sociedade.
Entre Mulheres
3.7 262Uma obra extremamente importante que fora reduzida ao didatismo panfletário em tons pretos e brancos, como se envelhecidos. O que não faz sentido, visto que o longa se inspirou nos abusos sexuais ocorridos em 2009, em Manitoba, uma colônia menonita na Bolívia cujos moradores rejeitam a modernidade. Além de amplificar o grito feminista tão urgente quanto atual. Ou melhor, atemporal. Utilizando a abordagem espartana de confronto em antítese ao respeito à democracia, esta fita potencializa o forte e denso diálogo entre mulheres que nunca seriam ouvidas, ora pelo distanciamento social ora pelo fanatismo religioso da comunidade cristã. Com um elenco digno de aplausos, as variações entre cânticos melancólicos, imaginações sombrias e discussões adultas resultaram num material pesado, porém, especialíssimo em sororidade, empoderamento, moral e, sobretudo, alerta. Pena resultar num filme sisudo de debate cíclico e sem arco narrativo.
Tár
3.7 396 Assista AgoraPode-se dizer que escolher um microcosmo erudito para exemplificar as mazelas do mundo contemporâneo é uma ideia original. Em suas inquietantes nuances, as camadas retratadas nesta cinebiografia de uma personagem fictícia são atuais e comuns, já que Lydia Tár (Cate Blanchett em estado de glória), vencedora do EGOT (Emmy, Grammy, Oscar e Tony), cofundadora da Fundação Accordion e a primeira mulher a ser regente da Orquestra Filarmônica de Berlim, é tão alheia aos sentimentos daqueles ao seu entorno que suas ações provocam ruídos ensurdecedores, como assédio moral, relações transacionais e o famigerado cancelamento. Isso tudo entre pessoas poliglotas e amantes de Mozart e Gustav Mahler. Infelizmente, o hermetismo narrativo da obra a faz parecer uma ópera de uma nota só, o que pode causar estranhamento aos não versados em música clássica. Mas não deixa de ser um interessante estudo de personalidade e/ou um fascinante tratado sobre seres humanos e poder.
Os Banshees de Inisherin
3.9 572 Assista AgoraUma tragicomédia do absurdo. Ainda mais por ser situada em 1923, época da guerra civil na Irlanda, numa ilha remota, inóspita e rural desse país. Após anos de amizade e companhia diária tomando cerveja, Colm (Breendan Gleeson), violinista idealista, simplesmente resolve não mais conversar com Pádraic (Colin Farrell), tolo e simplório trabalhador do campo. A razão infantil: não perder mais tempo com as besteiras que o amigo fala. Talvez seja esse o paralelo traçado pelo diretor britânico mas filho de irlandeses, já que, por motivos idiotas, guerras separam um mesmo povo (inclusive, uma guerra por um melhor amigo). Enquanto isso, a teimosia desses dois se amplifica de maneira irreal, sendo necessário um pouco de razão através dos outros. Porém, obviamente, sem sucesso. Muito bem fotografado, um filme simbólico, singelo e interessante com seus ideais pragmáticos e bucólicos.
Top Gun: Maverick
4.1 1,1K Assista AgoraEste filme já valeria apenas pelas tomadas aéreas. Combate, textura, impacto, comando, imagem e som formam uma pintura artística que dificilmente alguém se esquecerá. Ainda mais por se tratar de um blockbuster hollywoodiano que arrasa quarteirões com sua fórmula esquemática mas sem indulgência. Incrível como tudo aqui é acertado - abstrações, emoções, personagens caricatos e trilha sonora inspiradíssimos, apesar do roteiro raso. Com um quê de nostalgia oitentista, este longa traz, inclusive, profundidade e dimensão ao seu antecessor de 1986. Pois, assim como Maverick, Tom Cruise é uma estrela que se recusa a desistir. Energia magnética de uma adrenalina pura, do início ao fim.
Os Fabelmans
4.0 389A maior chateação de se fazer um filme sobre cinema é que a maioria dos espectadores não captará os efeitos sinceros dessa metalinguagem, ainda mais numa obra situada nos anos 50 e 60. Mestre Spielberg embrulhou sua memória cinéfila e a pôs sobre a mesa do jantar dizendo: deliciem-se! São tantas referências magnânimas que até o desenvolvimento narrativo, ora brusco ora parado demais, faz-se não ser notado (personagens entram e somem numa facilidade veloz). Entrecortando a leveza das reminiscências, as situações sérias e problemáticas encaradas pelo protagonista, o alter ego do diretor, estão dispostas na fita enfatizando, sem muito impacto, seu mote dramático - família, vocação e crescimento. Assim, passando por 'O Maior Espetáculo Da Terra' (1952) e finalizando com as dicas do icônico e excelente John Ford (o cerebral David Lynch fazendo este papel é um deleite), este longa emociona os amantes da sétima arte de maneira singela e genuína. Aos que preferem um roteiro esquemático independente sem intertextualidades, paciência.
Eo
3.3 97 Assista AgoraUm road movie ambientalista que, ao utilizar um burro como protagonista, a lembrança do clássico 'A Grande Testemunha' (1966), de Robert Bresson, é inevitável. Enquanto o primeiro é mais intrínseco e humanista, este aborda o bem e o mal de forma tanto racional quanto sinestésica. Paradoxalmente, suas várias sub-histórias, irrelevantes em termos narrativos, são essenciais para a mensagem que o diretor polonês quer transmitir: o homem que raciocina é o mesmo que se iguala aos animais. E Eo, o personagem principal inumano com sua feição antiexpressiva, é o espectador que convida o espectador a gritarem socorro juntos no som mais surdo que ambos conseguirem. Pois o mundo real é cruel e egoísta.
A Menina Silenciosa
4.0 132Gravada em idioma gaélico e situada em 1981, esta obra irlandesa acompanha Cáit (Catherine Clinch), uma menina de nove anos que, ao passar as férias de verão com parentes distantes, vivencia, enfim, o amor no dia a dia de um lar. Fora de sintonia e quieta na maior parte do tempo, ela está a todo momento praticando suas próprias lembranças, pois sabe que esses dias serão passageiros. Um filme poético e melancólico que demonstra as possibilidades de um mundo novo apenas ofertando o óbvio, como conversar com os familiares, tomar banho diariamente, lavar as roupas e, primordialmente, importar com as pessoas ao redor. Em resumo, um ato de esperançar para uma vida largada ao léu.
Tudo em Todo O Lugar ao Mesmo Tempo
4.0 2,1K Assista AgoraA união da crítica especializada com o público cinéfilo jovem, ambos sedentos por originalidade e inovação, foi mais fundamental pro sucesso deste filme (inclusive como favorito a ganhar todos os prêmios) do que o filme em si. Excetuando as ótimas atuações de todo elenco, esta obra é uma pândega linguística feita freneticamente que, de modo inexplicável, não responde anarquicamente às situações propostas, prefere o caminho moralista embalsamado das relações familiares. E, se o espectador não mergulhar na temática diegética da narrativa, pode sair da sala e recomeçar do zero numa outra vez. Pois a pretensão de mexer nas camadas dos versos, universos e multiversos é uma pífia desculpa para que tudo possa ser explicado arbitrariamente. Em suma, enche os olhos da geração tik tok com dinamismo e leveza e se sustenta na força feminina da história. Mas aquelas pedras com olhinhos e as mãos de salsicha foram longe demais.
A Baleia
4.0 1,0K Assista AgoraQuando a gama de elogios é intensa, necessita-se de um olhar mais atento. E Brendan Fraser merece todo esse hype de aplauso por sua atuação neste pungente filme. Ele é o motor, o coração, a engrenagem e as lágrimas de uma trama que deambula em direção ao melodrama. Ao se passar quase que inteiramente num mesmo cenário, o longa namora o teatro e pincela traços claustrofóbicos, apelativos e emocionais de um personagem obeso, gay e sufocado em seus erros e arrependimentos. Cheia de camadas a serem dissecadas, inclusive sob o aspecto bíblico da libertação espiritual, a obra não se edifica e nem emociona com seus subtemas inúteis de encaixes insípidos. As palmas são, realmente, pra caracterização memorável do protagonista.
Marcel a Concha de Sapatos
3.8 104 Assista AgoraNa tradução literal temos 'Marcel A Concha Com Sapatos'. E isso faz toda diferença para o entendimento global deste comovente mocumentário, porque as críticas ao imediatismo nas redes (anti)sociais estão clarificadas em forma de "tik toks" que a geração atual adora como verdade absoluta (por que as pessoas vem tirar foto da minha casa e não atende o meu pedido?, questiona Marcel). Visto que o filme foi baseado num curta viralizado do próprio diretor, em 2010, no YouTube. Concomitantemente, há a amabilidade e a originalidade de uma história sobre as pequenas coisas que se interconectam e sustentam cada família existente no planeta, mesmo com o exagero que a narrativa oferece. Senciente, a irrealidade, nesta obra, é ressonante e vitimizada. Quanto às separações, estas partem pedaços e transformam.
Os Batutinhas
3.7 1,4K Assista AgoraA nostalgia de um sábado à tarde.
Gato de Botas 2: O Último Pedido
4.1 452 Assista AgoraHá quem diga que os gatos têm nove vidas (no Brasil, o dito afirma ser sete) e sempre caem em pé. E quando um destemido felino descobre estar na sua última vida? Sim, o medo da morte, tema incomum no mundo infanto-juvenil, ganha predicativos coloridos e brilhantes que divertem e emocionam todos os espectadores, inclusive os adultos. Pois feridas são abertas, heróis aposentados e erros do passado expostos e acolhidos, tudo isso para, inevitavelmente, demonstrar o quão a vida é valorosa. Segue a herança de seus antecessores como conto de fadas fora da curva e exemplifica, de forma lúdica e fantasiosa, os ensinamentos da vida ao público primariamente infantil. Sobretudo, com o respeito que a criançada merece.
Gato de Botas
3.4 1,7K Assista AgoraLonge de ser desnecessária, já que tal personagem surgiu em 'Shrek 2', esta animação tem mais de bang bang italiano do que drama infanto-juvenil como na história do ogro verde. O que diverte, mesmo com o conto de fadas do pé de feijão como norte trazendo o absurdo nas magníficas e quase reais imagens tridimensionais da DreamWorks. Na verdade, o design tão bem produzido é um deleite a cada cena, seja de ação, de tristeza ou de riso. Ademais, precisaria de um elenco secundário mais bem talhado. O ovo Humpty Dumpty, por exemplo, surge criativo e se torna amoral sem argumentos robustos, o que, paradoxalmente, conflita com sua casca fina e fraca, desencascando a narrativa da trama em algumas passagens importantes da fita. Porém, o carisma natural dos seus personagens segura o espectador, bem como o charme natural dos felídeos. Enfim, um filme que navega entre aventuras e galanteios sem o humor ácido esperado que ficou nalgum lugar noutro longa.
Pinóquio
4.2 543 Assista AgoraAproveitando os aspectos monstruosos da história original de Carlo Collodi, eis uma animação que dialoga, em tom e fidelidade, tanto com a paz infantil quanto com os assombros fascistas ecoados por aí. Sim, retratar a trama na Itália dos anos 40 mostrou-se tão acertada como necessária para apagar fagulhas que os sistemas supremacistas teimaram em cultivar. E o simbolismo da vida de Pinóquio é algo extraordinário, variando da rebeldia diante de um estado autoritário à aceitação de ser marionete deliberadamente manipulada. Há algumas soluções dramáticas fáceis demais e realidades exageradamente fantasiosas, porém, as modificações narrativas são interessantes e essenciais em cada plano do filme, como se existissem vários climaxes nesta obra sombria, poética, artesanal, emocionante e afirmativa. Guillermo Del Toro é gênio e Pinocchio é sua fábula familiar definitiva, pois não existe vida sem morte.
A Fera do Mar
3.7 237 Assista AgoraVocê já viu esse filme em algum lugar: alguém que não é observado por ninguém entra num ambiente violento entre humanos e criaturas estranhas, torna-se amigo de um dos bichos e ensina a todos que tal selvageria é desnecessária. Porém, as ideias visuais desta animação são um deleite numa paleta de cores vivas de saturação exagerada e a trama, mesmo que derivativa, é inteligente e crítica. Até porque só se desconstrói um governo poderoso edificado por mentiras quando se usa simplesmente a verdade. E não deixa de ser uma jornada empolgante e cativante para descobrir que ser herói não significa estar sempre certo. Em resumo, não inova mas faz bem o que se propõe.
Close
4.2 552 Assista AgoraO título já traz uma ideia do quanto o diretor quer impor a cumplicidade do amor na tela. Em closes fechados, a primeira metade da fita é um ímã que aproxima Léo (Eden Dambrine) e Rémi (Gustav De Waele), dois jovens que se amam (no sentido philia da palavra), com os espectadores. Impossível imaginar um sem o outro, até que se iniciam na escola quando surge o único confronto moral da trama: seriam eles um casal homossexual? Concomitantemente à narrativa, os afetos masculinos são postos em cena e as discriminações emergem em detrimento à aceitação social, sendo necessária uma tragédia para que amizade e respeito ao próximo ganhassem vez e voz. Como se o filme rodasse numa tranquila zona de segurança. Porém, a reflexão sobre os efeitos devastadores do reacionarismo existe e desvenda uma dor silenciosa daqueles padecentes de tal preconceito. Bom filme belga.
Aftersun
4.1 714Na parede da memória infantil, nem todas reminiscências são líricas, pois os retratos podem ser bem mais borrados que o real. Ou vice-versa. Porque as lacunas invariavelmente se tornam personagens principais numa relação quase nula. E este belo e sutil filme é sobre isso - reconstruir a imagem de uma pessoa perdida e se reconhecer na ausência. Porém, as pontas soltas são tantas (e propositais) que é preciso um espectador totalmente animado em imersões, já que as respostas não chegam e as perguntas só aumentam conforme a fita acaba. Como se não houvesse enredo, a trama, paradoxalmente, penetra e hipnotiza de forma madura sob o olhar inocente de uma criança que se encontra afetada no limite das pressões sociais e financeiras. Lembrança, conexão e pertencimento, a tríade do acolhimento necessária e carente de uma observação bem mais profunda.
O Pálido Olho Azul
3.3 275 Assista AgoraComo escrito no título, um filme realmente pálido, apesar da ideia interessante de misturar o real com o irreal. O grande problema da licença poética é saber lidar com ela, pois Edgar Allan Poe não é um qualquer e isto pode trazer pré-conceitos esperançosos que tendem a dissipar à medida que a fita passa. Porque tudo aqui é trabalhado de maneira rasa, sem a profundidade dramática e engajadora que os filmes de mistério pedem. Mesmo com a costumeira excelente atuação de Christian Bale e pitadas de críticas ao engembrado sistema militar estadunidense e ao fanatismo religioso, a obra soçobra e torna-se esquecível assim que termina. Ou seja, tem bons ingredientes, panela boa e chef adequado, mas o prato veio ralo, sem sal e pouco satisfatório.
Nada de Novo no Front
4.0 615 Assista Agora'Im Westen Nichts Neues' (1929) de Erich Maria Remarque já nasceu um clássico da literatura. Apenas em seu primeiro ano, foram vendidos mais de um milhão de exemplares. O que logo chamou a atenção do cinema fazendo com que Lewis Milestone o adaptasse, em 1930, para as telonas de Hollywood. Ou seja, nascia um mesmo clássico de uma outra arte. E, desde então, o olhar sobre as batalhas se anuviou. Por mais que quisessem dar um ar de brilhantismo ou graciosidade aos horrores de um conflito, o semblante já estava desenhado e intacto: não há nada de heroico numa guerra. O cheiro de morte é constante, o desejo por sobrevivência é primitiva e o desleixo patriótico é a regra entre os que não lutam. Neste caso, uma adaptação alemã puro sangue, o soco no estômago é ainda mais sinestésico, pois, em quatro anos da primeira guerra mundial, as trincheiras da Alemanha avançaram poucos metros, matando gerações inteiras de jovens iludidos pelo falso discurso de soberania e poderio militar. Muito bem dirigido e tecnicamente primoroso, o filme cumpre seu papel e dá um resultado satisfatório (ainda que inferior ao de Milestone), ratificando a qualidade da Netflix em produção cinematográfica. Uma imersão no horror dos campos sangrentos de batalha.
Decisão de Partir
3.6 143Talvez seja o cinema do absurdo mais bem trabalhado em toda história. Inicia-se com aspectos de mistério, vira romance e termina em tragédia, tudo isso trespassando pelo gênero policial especificamente hitchcockiano (o detetive apaixonado pela suspeita). É denso e virtuoso ao mesmo tempo que é confuso e soberbo, já que o uso de alguns planos-sequência são tão hiperbólicos que o resultado, para o espectador, chega a ser bem diferente daquilo que o diretor sul-coreano desejava. Até as pequenas estranhezas típicas do cinema oriental estão tomadas de presunção. Porém, não há como não se apaixonar pela personagem chinesa Seo Rae da linda atriz Tang Wei. Ela rouba a cena e nos entrega a dúvida em pele e osso, pois, às vezes, é o suspeito quem tem as perguntas. Outra coisa: dá uma vontade imensa de ver 'Um Corpo Que Cai' (1958) assim que sobem os letreiros.
Argentina, 1985
4.3 336A história perde força com o passar dos anos. E mesmo algo terrível que abominávamos outrora tenta retornar como farsa ao se apropriar do absolutismo das verdades em tempos de "meias notícias". Assim, o cinema, como arte cultural responsável e eficaz, necessita, de quando em quando, apresentar certos documentos que transcendem o desejo individual. É o caso desta magnífica obra que retrata, corajosamente, a humanidade perdida de uma ditadura militar argentina (não somente esta, mas de todas as outras ditaduras!) e a coragem de um povo que foi mutilado apenas por pensar diferente - ou por puro sadismo daqueles que simplesmente podiam. Com leveza e naturalidade impensadas à trama, o filme entrega um controle de câmera sensacional em sequências alternadas e crescentes, enfatizando, desde o início, a necessidade de colaboração entre as várias gerações a fim de combater um mal comum. Excelente e, sobretudo, necessário.