Resenha do filme "Possessão" (1981), escrita especialmente para o livro "Obras-primas do terror - Treze filmes essenciais da coleção", lançado pela Versátil Home Video em março de 2023.
“Possessão”: o horror que ronda o casamento em ruínas
Quando apresentado ao público pela primeira vez, no Festival de Cannes de 1981, em 25 de maio, “Possessão” (1981) levou parte dos espectadores à euforia, enquanto outra desviou o olhar das cenas mais grotescas e chocantes, vaiando o filme do ucraniano/polonês Andrzej Zulawski. Naquele noite, havia expectativa de o filme arrancar boas críticas dos presentes e também da crítica, porém isso não ocorreu. Na época, “Possessão” foi mal interpretado, tido como uma obra rebelde, com imagens polêmicas que beiravam a repulsa pelo conteúdo de sangue explícito, momentos escatológicos e estranhos demais, até uma cena de sexo entre uma mulher e uma criatura gosmenta. O festival acabou, o filme foi lançado poucos cinemas, em um pequeno circuito em cerca de 30 países, e rapidamente tornou-se cult – o fato se repetiria anos depois com o home vídeo e mais adiante com o dvd, em que muita gente teve acesso ao filme. É uma obra difícil e ao mesmo tempo a mais notória do universo cinematográfico do sempre controverso diretor Andrzej Zulawski (1940-2016). Escreveu o roteiro durante o processo de seu divórcio, com colaboração do romancista norte-americano Frederich Tuten. Por isso, há uma gama de elementos autobiográficos do cineasta, que foca o desespero de dois personagens: a de mulher desiludida com o casamento, que foge em busca de novos parceiros, e a do marido abandonado, numa busca infernal por ela, na tentativa de trazê-la de volta para casa. Essa é a premissa básica de “Possessão”, que é um drama doloroso, porém com ganchos do cinema de horror, um horror mais psicológico – há sim imagens violentas, de mortes brutais e sangue vivo, e ainda monstros, no entanto isso tudo é secundário no teor desse filme sobre casamento em ruínas. A francesa Isabelle Adjani, de “Nosfertu, o vampiro da noite” (1979) e “A rainha Margot” (1994), interpreta Anna, essa mulher que está prestes a explodir e não vê mais sentido na vida a dois. Por isso, acaba escapando vez ou outra, e aos poucos entendemos que ela procura outros homens. O marido, Mark, papel do neozelandês Sam Neill, de “Terror a bordo” (1989) e “Jurassic Park – O parque dos dinossauros” (1993) – repare que o filme é bem eclético, com atores e diretor de diversos países, e “Possessão” é uma coprodução França e Alemanha Ocidental, percebe a mudança de comportamento dela, a questiona, chegam a brigar e quando o divórcio é sugerido, ele não aceita o fim do relacionamento, tanto por amar Anna quanto pensando no pequeno filho que ambos têm. Sufocada, Anna foge, e Mark passa dias perambulando pelas ruas para encontrá-la. Sufocada, ela adoece, passa a ter momentos de fúrias, e o marido também. Mark descobre um dos casos da esposa, com Heinrich (Heinz Bennett - de “O último metrô”, de 1974, e “O ovo da serpente”, de 1977), então começa a vigiá-lo e a se corresponder com a mãe do cidadão. Até que Anna frequentemente é vista numa região degradada, com edifícios antigos, descascados, e sem moradores nos arredores. É num dos quartos decrépitos de um dos prédios que surge um caso inesperado de Anna, com uma criatura com rabo e traços humanos. Ela se deita com esse ser insaciável, para longas tardes e noites de sexo. A pergunta fica e, como espectadores, somos sempre indagados: o que está acontecendo com Anna e com Mark? Os filmes de Zulawski dialogam com países em guerra, divididos e invadidos, com personagens sufocados em constante alucinação, e o diretor ainda insere ares profanos – eu vejo “Possessão” como a última parte de uma trilogia de filmes vendidos como “terror”, mas que são dramas contundentes e simbólicos, que trazem o horror psicológico como forma de questionar estruturas, sistemas e identidades; trilogia porque começaria com “A terça parte da noite” (1971), que se passa na Polônia ocupada pelos nazistas e tem como protagonista um jovem infectado com tifo que sofre devaneios quando se muda para a casa de uma mulher grávida parecida com a esposa morta; no ano seguinte viria “O diabo” (1972), filme banido da Polônia, com trama na Polônia invadida pelos prussianos em 1793 e lá um prisioneiro político segue um desconhecido que o apresenta a um mundo dominado pelo caos e por degradações cruéis; e finalmente “Possessão”, cuja história é na Guerra Fria, na Berlim dividida (o filme não deixa claro onde e quando se passa a trama, mas se percebem nomes alemães, como Anna, Heinrich, Zimmerman e Margit, por exemplo). Os três filmes têm semelhanças no roteiro, na construção dos personagens, nos enquadramentos e em outros pontos técnicos. Zulawski gera em nós, espectadores, um incômodo permanente devido ao enquadramento, que joga a câmera no rosto dos personagens e vai seguindo com eles atrás, formando imagens corridas, trepidadas, em constante movimento. Há plongée, contraplongée, os personagens ficam confinados em lugares fechados, sempre com as paredes apertadas (uma metáfora da tensão do casamento, do aprisionamento do lar), para trazer à tona a alma de uma mulher ferida e desiludida com o marido, que aos poucos perde a sanidade a ponto de cometer crimes. Numa cena emblemática, e a mais lembrada, Anna tem um ataque de fúria no metrô vazio, como se fosse uma possessão, onde destrói as sacolas de compras do mercado na parede, estilhaçando garrafas de leite. Debate-se na parede e no chão, até sangrar por todos os poros e orifícios, numa espécie de aborto. É uma sequência que choca, constrange, de quase 3 minutos, de pura gritaria e torpor (a banda de trip hop inglesa Massive Attack adaptou a cena para o clipe da música “Voodoo in my blood”, em 2016, com Rosamund Pike na pele da personagem, com vestido parecido e tendo um ataque no metrô, enquanto é controlada por uma bola robótica voadora). Isabelle Adjani conta que ficou perturbada durante o processo de criação da personagem, demorou anos para superar Anna. Na época estava no auge da carreira e da beleza e ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes pelo trabalho em “Possessão” – na verdade, ela ganhou dois em Cannes, também pelo papel de Marya, em “Quarteto de paixão” (1981). Rodado inteiramente em Berlim Ocidental (lembrando que era Guerra Fria, e Berlim Oriental estava barrada pelo muro), há muitas cenas que trazem o contraste da cidade moderna (quando as sequências são no bonito aparamento de Mark) com a parte decadente (onde Anna se encontra com o monstro – essas cenas foram rodadas no bairro turco de Kreuzberg, uma área devastada). São três aparições do monstro, bem rápidas, que proporcionam um choque visual imediato, devido às poéticas do horror contemporâneo – o efeito se dá graças ao trabalho do mestre em efeitos visuais Carlo Rambaldi, criador de “Alien, o oitavo passageiro” (1979) e “E.T. – O extraterrestre” (1982), pelos quais ganhou o Oscar na categoria. Banido do Reino Unido, lá tachado de “filme nasty” e só liberado pelo British Board of Film Classification em 1999, foi censurado nos Estados Unidos também, saindo no mercado com quase 40 minutos a menos, em que foram retiradas as cenas de violência e depravação. Há outras simbologias e poéticas de linguagem no perturbador filme de Zulawski. Quando assume aspecto de thriller de espionagem, da metade com a aparição de outra figura elementar, a da professora do filho pequeno (a mesma Isabelle Adjani), até o desfecho com as sirenes e explosões, o diretor faz um comentário crítico e social sobre a Guerra Fria, sobre o medo do ataque nuclear que rondava o pensamento de muita gente. Grande parte das locações estava a 10 metros do muro de Berlim, e conta-se que a equipe técnica era constantemente vigiada pela polícia do Oriente, ou seja, do outro lado do muro, no entanto havia aprovação e respaldo das gravações pelo Senado de Berlim. No documentário “The other side of the wall: The making of ‘Possession’”, de 2011, dirigido por Daniel Bird (que está como extra do filme “Possessão” no box Obras-primas do cinema - Volume 11), o diretor Zulawksi, além de contar sobre o seu processo de divórcio que inspirou a ideia do filme, narra sobre o aspecto político da obra: um diretor que viveu sob a perseguição do regime comunista, viu a sovietização da Polônia e os rumos atrozes a que seu país natal foi levado. Discute, no documentário, muito sobre o mal espalhado ao redor dos personagens, o mal que espreita e vigia, e muito se deve às consequências do momento político da Guerra Fria entre os anos de 1950 e 1980. O muro de Berlim aparece em vários lances, e há cenas da Berlim Oriental toda destruída, como forma de relacionar a ideia de ruína arquitetônica com a decomposição da alma dos dois personagens centrais da história. E aliado a isso está a criação de todo um clima de desconfiança, medo e agonia entre as figuras do filme. Zulawski conta ainda no documentário que “Possessão” teve vaias e aplausos em Cannes, dividiu o público e a crítica, e não teve a repercussão como esperado. Relata que pouca gente entendeu o sentido da obra, do que ele quis realmente dizer (é complexo até hoje). A Palma de Ouro foi para outro filme de cunho político, “O homem de ferro”, de Andrzej Wajda, e Zulawski afirma que ficou feliz pelo prêmio a Wajda. “Possessão” tem uma trilha sonora moderna e sinistra, fundamental para o clima de estranheza da trama, assinada pelo polonês Andrzej Korzynski, com quem o diretor Zulawski havia trabalhado em “Globo de prata” (1988), “A fidelidade” (2000) e “Cosmos” (2015) – ele usa sons de objetos tilintando e assovios que arrepiam! Quem assina a produção é uma mulher, a francesa Marie-Laure Reyre, de “Olivier, Olivier” (1992), que com coragem e muita audácia fez de “Possessão” se transformar em uma obra única, complexa, sugestiva e altamente criativa. (FELIPE BOSO BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB)
Resenha do filme "Quem matou Rosemary?" (1981), escrita por mim especialmente para o livro "Slashers - 11 filmes essenciais da coleção", lançado pela Versátil Home Video em novembro de 2022.
Medo e terror em Avalon Bay
É noite de formatura na escola feminina de Avalon Bay, em New Jersey. A festa é minuciosamente preparada pela comunidade, para receber formandos, familiares, professores e amigos. No mesmo local, há 35 anos, uma garota chamada Rosemary e seu namorado foram brutalmente assassinados. O assassino fugiu, o crime nunca foi resolvido, e aquele fato marcou a memória das pessoas. À medida que a formatura se aproxima, o psicopata de décadas atrás volta a atacar os jovens em uma noite de medo e tensão. Essa é a trama central de “Quem matou Rosemary?”, um slasher icônico do início dos anos 80 e um dos mais violentos já produzidos no cinema americano. O filme foi lançado exatamente no ano de ouro do cinema slasher, 1981, um período em que os fãs de terror deliraram com os melhores exemplares desse subgênero. São fitas a perder de vista produzidas em 1981: “Sexta-feira 13 - Parte 2” (de Steve Miner), “Chamas da morte” (de Tony Maylam – também conhecido como “A vingança de Cropsy”), “Feliz aniversário para mim” (de J. Lee Thompson), “Halloween II – O pesadelo continua!” (de Rick Rosenthal), “Noite infernal” (de Tom DeSimone), “Aniversário sangrento” (de Ed Hunt), “A hora das sombras” (de Jimmy Huston), “Pouco antes do amanhecer” (de Jeff Lieberman), “Escola noturna” (de Ken Hughes), “Olhos assassinos” (de Ken Wiederhorn) e o the best one, “Dia dos Namorados macabro” (de George Mihalka). Cada um com suas qualidades e diferenças, há slasher com serial killer mascarado, outros com pessoas deformadas em busca de vingança etc. “Quem matou Rosemary?” abre com duas cenas distintas em preto-e-branco, mas que dialogam: a primeira, de um antigo cinejornal, sobre o fim da Segunda Guerra Mundial, com soldados combatentes retornando da Europa em navios lotados - e em breve se encontrarão com suas famílias. Na sequência, aparece uma carta romântica escrita por Rosemary. O ano é 1945, e em Avalon Bay haverá uma badalada festa de formatura onde parte dos soldados festejarão com seus grupos. Rosemary também está lá, com um namoradinho em um gazebo. Sozinhos, conversam até que alguém se aproxima. A câmera capta pormenores do desconhecido, em que se vê botas e uma farda camuflada do exército. Quando Rosemary abraça seu affair, uma forquilha pontiaguda atravessa o corpo dos dois, e o sangue escorre veloz. O assassino estica uma rosa e a deposita na mão de Rosemary. O tempo passa, e estamos em 1980, na mesma Avalon Bay, onde haverá outra festa de formatura. O assassino fardado e mascarado pega uma faca de caça, coloca na bainha e junta a forquilha para novos assassinatos. Quem é ele e por que está cometendo os crimes? Ao longo do filme juntamos pistas para descobrir a identidade do sádico serial killer que mata com fúria, sem pestanejar, no melhor estilo “Whodunit” (“Quem fez isso”, “Quem matou”). O rosto dele só será revelado na cena final (inclusive uma cena bem forte). Até lá uma série de mortes violentas será cometida. O gore corre solto, com momentos notórios – a sequência do banho, por exemplo, ficou famosa, é assustadora e traz todo um clima de tensão. Por falar em gore e cenas sanguinárias, elas são convincentes, dado o grau de realismo da maquiagem e dos efeitos, assinados por Tom Savini, mestre no assunto desde os anos 70 – Savini, que trabalhou como ator em “Um drink no inferno” (1996), fez a maquiagem de “Despertar dos mortos” (1978) e de outros slashers como “Sexta-feira 13” (1980), “O maníaco” (1980) e “Noite de pânico” (1982). A direção conduzida por Joseph Zito, diretor de “Sexta-feira 13 – Parte 4: O capítulo final” (1984) e de “Braddock: O supercomando” (1984), é de um tom sombrio e de angústia, ele investe pouco no humor, foca no suspense e até no terror psicológico, para que o público possa entrar na mente do assassino, ver o lado doentio dele e “entender” as razões do assassinato. Zito também assina como produtor, ao lado de David Streit, produtor executivo de “A experiência” (1995). O elenco reúne atores novatos da época, como Vicky Dawson, de “A cara do pai” (1981), Christopher Goutman e Cindy Weintraub, e participação de dois veteranos (o cinema slasher costumava convidar atores e atrizes de peso para puxar público além dos jovens), Farley Granger – que esteve em dois filmaços de Alfred Hitchcock, “Festim diabólico” (1948) e “Pacto sinistro” (1951), e Lawrence Tierney, de “Nascido para matar” (1947) e “Cães de aluguel” (1992). Até pouco tempo atrás a única cópia disponível de “Quem matou Rosemary?” no Brasil era da própria Universal Pictures, com metragem menor que a exibida nos cinemas da época (a metragem desse DVD era de 84 minutos, editada devido à violência). Em 2019, a Versátil distribuiu o filme na versão original de cinema, sem cortes e restaurada, igual à lançada nos Estados Unidos (de 89 minutos), dentro do box “Slashers vol. VI - uma caixa em edição limitada com quatro cards e duas horas de extras, onde acompanham também os filmes “Sombra no escuro” (1979, de Denny Harris), “Prefácio da morte” (1989, de Tibor Takács) e “Popcorn – O pesadelo está de volta” (1991, de Mark Herrier). Sou fã do cinema slasher desde pequeno, e não posso deixar de recomendar “Quem matou Rosemary?”, um dos melhores do gênero. Um filme de terror bem escrito e assustador, que faz o sangue escorrer pela tela da TV! (FELIPE BOSO BRIDA)
Num fundo preto, surgem, um a um, os créditos de O padrasto (1987) com uma cor sugestiva: vermelho sangue. A trilha mistura tons poéticos e sinistros, até que aparece a primeira cena, um travelling que capta, bem no alto, um bairro aparentemente pacato, com as folhas das árvores caindo. De bike, um entregador de jornal faz seu trabalho. A câmera foca uma das casas, que leva o espectador para dentro do local. Vemos a cintura de um homem que coloca objetos em uma maleta. A tranquilidade de quem assiste ao filme é abalada quando as mãos e o rosto do cidadão irrompem sujos de sangue... ele olha para o espelho do banheiro, limpa-se, a pia fica com gotas vermelhas. Corta a barba e entra no banho. Em sequência, coloca uma lente de contato, veste terno e gravata e se transforma num novo homem. Prepara-se para sair de casa, pega a maleta, arruma brinquedos espalhados pelo corredor. Quando desce as escadas, novamente somos impactados com um amontoado de pessoas mortas. Há sangue para todos os cantos da casa, uma verdadeira chacina. Despreocupado, ele sai pela porta da frente, assobiando e recolhe o jornal caído na varanda. O mesmo travelling da abertura acompanha-o andar pela rua, sozinho, revigorado e feliz, rumo ao trabalho. Esse é Jerry Blake (Terry O'Quinn), um sujeito que assassinou a família inteira, trocou de identidade e agora procura uma nova mulher para se casar e formar um lar. A próxima vítima no radar de Blake será Susan (Shelley Hack), que vive de maneira harmoniosa com a filha adolescente, Stephanie (Jill Schoelen). Será que Blake conseguirá realizar outro plano sanguinário? Esse roteiro objetivo e bem elaborado, com um personagem central complexo, cheio de camadas e baseado em um assassino de verdade que aterrorizou New Jersey nos anos 70 fez com que O padrasto virasse uma fita cultuada pelos fãs de terror. Um filme independente com muitos méritos, inúmeras vezes reprisado na TV aberta e que ganhou continuações e remake. A figura do padrasto acima de qualquer suspeita, que esconde um lado sombrio, é a chave da trama. O sinistro cidadão toma forma sob a interpretação derradeira do ator Terry O’Quinn, que foi indicado ao Independent Spirit Award pelo papel – ele depois ficaria marcado entre os jovens na série “Lost” (2004-2010) e faria diversos filmes como coadjuvante, como “Os jovens pistoleiros” (1988). No filme, ele carrega traços de psicopata, que alterna constantemente o humor (se porta na frente dos outros como um homem atencioso, boa pinta, só que escondido, extravasa de forma violenta a ponto de ter alucinações e pensar em mortes brutais). Outro papel de destaque é o da jovem Jill Schoelen, dos terrir “Assassinato no colégio” (1989) e “Popcorn: O pesadelo está de volta” (1991), a enteada adolescente de Blake, que suspeita do padrasto, chegando a presenciar um ataque de fúria dele no porão. Uma outra questão preponderante no filme é uma segunda história que corre paralela e dá todo sentido ao desdobramento da aterrorizante trama: a de um rapaz disposto a descobrir o paradeiro do assassino daquela primeira família, ocorrido um ano antes, contando inclusive com a ajuda de um experiente jornalista. Eles arriscam a própria pele para encontrar Blake, que agora vive com nome diferente em uma região longe dali. O diretor Joseph Reuben, de “Morte nos sonhos” (1984), faria nos anos 90 pelo menos dois filmes de suspense de sucesso, muitas vezes exibidos na TV aberta, “Dormindo com o inimigo” (1991, com Julia Roberts) e “O anjo malvado” (1993, com Macaulay Culkin). Ele soube aqui conduzir uma obra “de gênero”, com todas as qualidades do chamado slasher: cenas sangrentas, mortes violentas, clima de terror no ar. Apesar de não ser um exemplar do slasher tradicional, por ter menos mortes que o habitual, o filme explora uma dimensão mais psicológica do protagonista, ao invadir a mente desse homem insano, impulsivo e desequilibrado. Também não é o slasher na linha do whodunit (“Who do it?” ou “Quem matou”), em que se descobre a identidade do serial killer somente nos minutos finais. Sabemos desde o início que Blake é o criminoso, e ele não usa máscaras como os matadores slasherianos. Por isso O padrasto tem um diferencial ao aproximar Blake a um cidadão comum, um assassino infiltrado na sociedade, no meio de nós, e não precisa se mascarar para cometer atrocidades. Blake pode ser qualquer um, pode se disfarçar de bom homem e na calada da noite, de maneira sorrateira, matar sem culpa. Talvez isso é o que dê mais medo na personalidade de Jerry Blake. Destaco que são poucas, mas bem realizadas sequências de morte, com um pontual suspense, embutido em todos os momentos. O roteiro foi escrito a seis mãos, por Brian Garfield, escritor de romances que viraram fitas de ação, como “Desejo de matar” (1974) e “Sentença de morte” (2007), Donald E. Westlake - indicado ao Oscar de melhor roteiro por “Os imorais” (1990), cujo argumento original de O padrasto é dele, e Carolyn Lefcourt (que não fez nada mais relevante). O roteiro teve uma inspiração real: uma parte da vida de John List (1925-2008), assassino em série que em 1971 trucidou a família, composta pela esposa, a mãe e os três filhos, na cidade de Westfield, em Nova Jersey. E depois fugiu, usando identidade falsa e arrumando outra família. List integra a lista dos piores criminosos da história dos Estados Unidos. Ele só foi descoberto 17 anos depois, em 1989, em decorrência de uma reportagem de TV (como ocorre no filme O padrasto); ao ser preso pela polícia, confessou que tinha novos planos de morte. Ficou na cadeia até morrer, em 2005, então com 82 anos. O padrasto deu origem a duas continuações: a primeira para o cinema, intitulado “A volta do padrasto” (1989), novamente com Terry O’Quinn, e uma para a TV, “O padrasto: Ele voltou para ficar” (1992), cujo papel foi para o ator Robert Wightman, ator da série “Os Waltons” (1972-1981) e do filme “Gigolô americano” (1980). E teve ainda uma refilmagem bastante inferior, “O padrasto” (2009), com Dylan Walsh, ator de “Congo” (1995) e “A casa do lago” (2006), na pele do assassino. Filme presente em DVD, em ótima cópia, no box “Slashers volume 11”, juntamente com obras aterrorizantes como “Motel diabólico” (1980), “Incubus” (1981) e “Massacre no colégio” (1986). Para ter em sua coleção e rever quantas vezes quiser!
Resenha do filme "O padrasto" (1987) escrita especialmente para o livro "Slashers - 11 filmes essenciais da coleção", lançado pela Versátil Home Video em novembro de 2022. Livro disponível para venda no site da Versátil.
Uma das melhores revisões de filme de terror dos últimos anos, “A lenda de Candyman” (2021) se encaixa tanto como uma continuação quanto um remake do original, “O mistério de Candyman” (1992), que me assombrou muito quando pequeno. Agora a jovem diretora Nia DaCosta, que fez antes o drama/policial “Passando dos limites” (2018, com Tessa Thompson e Lily James), dá um novo tom e novas críticas sociais para contar a história de um artista visual que nasceu pobre e ficou rico e vai morar numa região gentrificada de Chicago, palco dos assassinatos pelo espírito de Candyman tempos atrás, um escravo com um gancho na mão. O ator Yahya Abdul-Mateen II, de “Aquaman” (2018) e “Nós” (2019), acerta em cheio com sua interpretação dupla do protagonista, que vai enlouquecendo ao longo da história, enquanto uma série de crimes brutais ocorre. O visual do filme (um terror psicológico com forte crítica social) incomoda com suas cores fortes (ótima fotografia de John Guleserian, de “Questão de tempo”, aliada a uma boa direção de arte – destaque para a cena da galeria toda neon, com banhos de sangue), e há uma série de enquadramentos diferenciados, com inversão de imagem, plongée, jogo de espelho etc É terror, mas é acima de tudo um drama social triste e impactante, que discute uma sociedade racista e ameaçadora – o tema central é a gentrificação em Chicago e suas complicações urbanas e sociais, com a expulsão forçada da população periférica para que o local sirva de espaços modernos e receba população da alta classe. Também se fala de lendas urbanas no gueto, com diálogo abrangente sobre racismo, escravidão e violência policial (é um filme mais profundo que o primeiro, de 1992). Na abertura vemos a logo ao contrário da Universal ao som da música “Candyman”, cantada por Sammy Davis Jr – que integrou a trilha sonora de “A fantástica fábrica de chocolates” (1971 – lá cantada por Aubrey Woods). Escrito e produzido por Jordan Peele, de “Corra!” (2017 – em que venceu o Oscar de melhor roteiro original), “Nós” (2019) e “Não! Não olhe!” (2022), hoje um mestre do cinema de horror contemporâneo. Com a colaboração da diretora Nia DaCosta no roteiro, Peele baseou-se no conto “Candyman”, de Clive Barker (originalmente intitulado “The forbidden”, de 1978) e reutilizou ideias do filme “O mistério de Candyman” (1992). Assisti ao filme duas vezes e pretendo uma terceira revisão.
Aventura classe A da Columbia Pictures, muitas vezes exibida na TV, que agora pode ser conferida numa boa edição em DVD da Classicline. É a melhor e mais querida adaptação do livro homônimo do escritor francês Julio Verne, autor de obras clássicas consagradas sobre expedições a mundos desconhecidos (como “Viagem ao centro da Terra”) e de humanos lutando contra formas de vida ameaçadoras (como “20.000 léguas submarinas”). O notório personagem Capitão Nemo apareceu em duas histórias de Verne: primeiramente em “20.000 léguas submarinas” e depois, com menor destaque, em “A ilha misteriosa” - chamado de Príncipe Dakkar, é um intelectual, conhecedor dos mares, que cria um submarino, o Nautilus, e acaba se isolando numa ilha fora da civilização, decepcionado com a humanidade e suas atrocidades. Em “A ilha misteriosa”, um grupo de soldados, numa viagem de balão, cai numa ilha do Pacífico tomado por animais gigantes, como uma galinha, um caranguejo e abelhas. Escapam para sobreviver, até serem socorridos por Capitão Nemo (que aparece somente na meia hora final). O diretor Cy Endfield, de “Na rota do inferno” (1957) e “Zulu” (1964), realizou uma fita de entretenimento ágil, bem feita e cheia de momentos de fuga e aventuras malucas. A trilha sonora de Bernard Herrmann (de “Taxi driver”) ajuda, assim como os efeitos especiais de Ray Harryhausen, de “Simbad e a princesa” (1958) e “Jasão e o velo de ouro” (1963), sem falar da fotografia paradisíaca de Wilkie Cooper (o filme foi rodado no Reino Unido e grande parte na costa da Espanha, onde seria a ilha). Michael Craig, de “A cinco passos da morte” (1958), Joan Greenwood, de “As aventuras de Tom Jones” (1964) e Michael Callan, de “Dívida de sangue” (1965), estão no elenco central. Já Herbert Lom, o inspetor Dreyfuss de vários filmes da franquia “A Pantera cor-de-rosa”, faz Nemo, numa participação bem legal. Assistam sem medo de errar! POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Ray Harryhausen (1920-2013) abriu novos horizontes para os efeitos visuais do cinema americano a partir dos anos de 1950, responsável em criar efeitos em stop-motion que até hoje inspiram diretores – o stop-motion, também chamado de “quadro-a-quadro”, já existia desde a década de 1910, no entanto era trabalhoso de ser feito, e Harryhausen o projetou com intensidade no cinema de entretenimento tornando a técnica mundialmente famosa. Harryhausen começou no departamento de efeitos especiais de um filme em que nem foi creditado, “Monstro de um mundo perdido” (1949), a primeira versão de “Poderoso Joe”, que por sua vez vem do universo do gorila King Kong. Em seguida assinou pela primeira vez os efeitos de um filme, “O monstro do mar” (1953), sobre um Godzilla mortal, e mais tarde, “O monstro do mar revolto” (1955), com um polvo gigante atacando São Francisco. Depois vieram “Invasão dos discos voadores” (1956), um filme sobre ataque de alienígenas à Terra, até chegar esse aqui, “A 20 milhões de léguas da Terra” (1957), sobre um réptil que vem de Vênus e cresce a ponto de se tornar um monstro terrível. Fez ainda três fitas de “Simbad” para o cinema, “Jasão e o velo de ouro” (1963), o icônico “Fúria de titãs” (1981) e outros. O filme é puro entretenimento no aspecto “Sessão da Tarde”: descompromissado, ágil, curtinho, fácil de se apreciar (e ainda por cima, nostálgico – fica na memória a saudade de um cinema artesanal de outrora e também fica a pergunta, “Como eles faziam esses efeitos”?). Quem dirige é Nathan Juran (1907-2002), cineasta austro-húngaro que começou como diretor de arte (de clássicos dos anos 40 e 50 como “Como era verde o meu vale” e “Meu amigo Harvey”), e que nos anos de 1950 partiu ser diretor de filmes de terror (como “O castelo do pavor”), de faroeste (“Com a lei e a ordem” e “A morte tem seu preço”), além, claro, de aventuras com ficção científica com criaturas fantasiosas, como “Fúria de uma região perdida” (1957), com um gafanhoto enorme e assassino, esse “A 20 milhões de léguas da Terra”, “O ataque da mulher de 15 metros” (1958), com uma mulher gigante, e “Simbad e a princesa” (1958), o primeiro de uma série de filmes de aventura com monstros míticos e animais ferozes (também com efeitos de Harryhausen). Curioso que rodaram parte em Los Angeles e sequências na Itália, em Roma (vê-se o Coliseu, onde conseguiram gravar dentro dele). Lançado em DVD pela Classicline em disco duplo: no primeiro disco, a versão original, em preto-e-branco, juntamente com a colorizada, e mais um disco de bônus, com mais de duas horas de making of, bastidores e entrevistas. Para se ter na coleção.
Para a época, 1955 (período frutífero do cinema scifi americano com filmes com criaturas gigantes ameaçadoras), “O monstro do mar revolto” foi vendido como terror, invadindo as salas pelo mundo afora, empolgando uma legião de fãs. Esse aqui fez tanto burburinho que chegou a influenciar outros futuros longas-metragens com polvos assassinos, como as duas versões de “Tentáculos” (1977 e 1998). A trama desse e de muitas fitas do cinema scifi do período carregava um ar de aventura, porém aos poucos assumia um outro lado, com elementos absurdos do universo da ficção científica literária (típicos de H.G. Wells e Julio Verne), com seres estranhos em mundos desconhecidos, que habitavam oceanos, florestas e o espaço sideral – e quase sempre esses “monstros” eram frutos de experimentos genéticos malsucedidos. Aqui, a Marinha investiga um ser subaquático que ataca navios, e descobrem que ele é um polvo contaminado com elementos radioativos. O animal abandona o fundo do mar e vem para a superfície atacar barcos e pessoas na praia. O principal alvo será a cidade de São Francisco – numa das cenas antológicas, ele chega a escalar o maior cartão-postal de lá, a ponte de São Francisco, destruindo tudo pela frente. Como cinemão, diverte e chama a atenção pela criatividade e pelos efeitos visuais, do mestre Ray Harryhausen, famoso por criar truques visuais com stop-motion (como aqui, que foi seu segundo trabalho – anteriormente fez os efeitos de “O monstro do mar”, de 1953, sobre um Godzilla americano); Harryhausen deixou um legado importante na área técnica com duas dezenas de obras, como “Simbad e a princesa” (1958) e a primeira versão de “Fúria de titãs” (1981). O ator Kenneth Tobey, protagonista do filme, foi o capitão Hendry de “O monstro do Ártico” (1951), outro clássico do cinema scifi (com terror), que inspirou um de meus filmes de terror preferidos, “O enigma de outro mundo” (1982), de John Carpenter. Saiu em DVD recentemente pela Classicline, em disco duplo: no primeiro disco, o filme com a versão original, em preto-e-branco, e a versão colorizada, e no disco dois, extras com mais de 1h40 de making of, bastidores, entrevistas etc
Em 1860, o cientista e químico francês Louis Pasteur (Paul Muni) estuda uma forma de diminuir a morte de mulheres durante o parto e de recém-nascidos por infecções. Publica a “Teoria dos Germes”, explicando aos médicos formas de esterilização de equipamentos cirúrgicos e higiene dos locais. No entanto, a academia médica não dá a devida importância para ele. Uma década depois, rebanhos de ovelhas em várias regiões da França morrem por causa de um vírus, exceto naquela parte do país em que Pasteur desenvolveu uma vacina e a aplicou nos animais. Novamente ele é descredibilizado. Mas aos poucos a França reconhece seu trabalho pioneiro com vacinas e no tratamento de infecções.
Nascido na Alemanha, o diretor William Dieterle realizou duas cinebiografias premiadas para os estúdios da Warner Bros: “A história de Louis Pasteur” (1936) e “A vida de Emile Zola” (1937), ambas protagonizadas por Paul Muni. Muni recebeu o apelido de “rei das biografias para cinema” durante a Era de Ouro de Hollywood, por interpretar personagens reais em drama sociais de forte contestação. O ator austro-húngaro fez, por exemplo, só na Warner, três filmes sequenciais contando histórias verídicas de líderes rejeitados devido a seus inventos extraordinários ou pela visão de mundo - e que foram perseguidos por seus posicionamentos políticos: os já mencionados Pasteur e Zola, e depois o drama “Juarez” (1939), onde interpretou Benito Juárez, chefe indígena mexicano que foi cinco vezes presidente do México. Zola, vale destacar, foi mal interpretado pelo público, na época, pois foca no lado ativista do escritor francês de “A besta humana”, quando redigiu a famosa carta “J’accuse” (“Eu acuso”), escrita para defender um capitão da artilharia francesa de origem judia erroneamente acusado de traição em 1894 – o que ficou conhecido como “Caso Dreyfuss”, um dos erros mais terríveis do judiciário mundial. Muni também fez a primeira versão de “Scarface”, cujo subtítulo era “A vergonha de uma nação” (1932), seu filme mais notório na linha policial, depois refilmado por Brian De Palma com Al Pacino no início dos anos de 1980. Muni virou um rosto muito conhecido nos anos de 1930 e 1940, e por Louis Pasteur, ele venceu como melhor ator no Festival de Veneza e o Oscar – ainda no Oscar, a produção recebeu outros dois prêmios, nas categorias de roteiro e história original/argumento (categoria que não existe mais). Dieterle realizou aqui um bom filme que resgata a trajetória de Louis Pasteur (1822-1895), com forte comentário crítico e político (o popular estúdio da Warner desafiava as regras da época, enfrentando um sistema de censura que contaminou a indústria de Hollywood entre os anos de 1930 e 1950). Na história, contada com mínimos detalhes, mostra Pasteur rejeitado pela Medicina que aos poucos desenvolveu métodos pioneiros de eliminar infecções em ambientes hospitalares. O reconhecimento das técnicas se deu décadas e décadas posteriores, quase próximo de sua morte, o que o levou a intensas discussões com a academia médica, sem contar uma angústia feroz que o deprimiu. O diretor William Dieterle começou como ator de teatro no país natal, na década de 1910, depois apareceu em filmes de F.W. Murnau, e aos 30 anos, em 1923, dirigiu seu primeiro filme, o primeiro com Marlene Dietrich, em terras alemãs, até ser chamado para trabalhar como diretor e ator nos EUA em 1930. Realizou 60 longas nos EUA, entre romance, dramas sociais, comédias e filmes de ação, com uma perceptível direção própria. Foi perseguido pelo Macartismo no começo dos anos 1950, teve os documentos pessoais e passaporte cassados e foi banido por ser considerado comunista. Mudou-se para a Europa onde realizou filmes e telefilmes na Alemanha e na Itália. Retornou com poucos recursos aos EUA, isolado de todos, e morreu na Alemanha em 1972, aos 79 anos, deixando um extenso legado de filmes inteligentes, à frente de seu tempo.
“Guerra dos mundos” ou “A guerra dos mundos” é considerado um dos 10 filmes mais emblemáticos e assustadores sobre invasão alienígena na Terra, produzido no auge da Guerra Fria, em 1953, e, portanto, trazendo todas as paranoias da época. Há alegorias diversas, sendo as principais a das naves e das criaturas siderais como se fossem espiões vindos da Rússia, e a perseguição cruel dos ETs aos humanos, semelhante ao Macartismo, que vasculhava a vida de americanos considerados comunistas. Apesar de ser baseado no famoso livro homônimo de H.G. Wells, um dos papas da literatura de ficção científica, publicado em 1897 (nesse período não existia a Guerra Fria), a história teve novos contornos, dentro do clima de medo, angústia e aprisionamento do contexto político e social do pós-guerra e da divisão do mundo em dois blocos. Gene Barry, protagonista da série “Bat Masterson” (1958-1961), e Ann Robinson, de “A muralha da esperança” (1953), estrelam essa formidável adaptação. Eles são duas testemunhas de objetos estranhos aparentando meteoros que caem na Califórnia. É uma invasão extraterrestre, cujas naves chegam aos poucos espalhando destruição, até atingir proporções mundiais. Cientistas se unem então para encontrar um jeito de liquidar com aquela forma de vida. Causou fortes emoções no público no lançamento por ser um dos primeiros filmes coloridos de ficção científica, cujas cores dão realce e impacto nas cenas de destruição e terror provocados pelos alienígenas. Aqui os ETs não são amigáveis. A ciência já explorava formas de vida fora da Terra, e a visão de Wells e dos produtores era de puro pessimismo: as criaturas têm formato de aracnídeos que vinham em grandes máquinas, e de dentro delas saíam pequenas naves indestrutíveis, protegidas por cápsulas eletromagnéticas, parecidas com um cisne, com uma cabeça de periscópio, que espia ao redor, e de repente, dispara raios que faziam humanos virarem pó. Ganhou um Oscar especial de efeitos especiais e foi indicado a melhor som e edição. O diretor Byron Haskin era especializado em efeitos visuais, começou a carreira nesse departamento, pelo qual foi indicado a quatro Oscars nos anos de 1940. Dirigiu filmes de aventura, como “A selva nua” (1954) e scifi, como esse, que seria seu maior trabalho, e depois “Robinson Crusoé em Marte” (1964). O produtor era outro nome importante do mundo scifi: George Pal, de fitas populares como “Destino à Lua” (1950), “O fim do mundo” (1951) e “A conquista do espaço” (1955). “Guerra dos mundos” virou duas séries, nos anos de 1980 e 2010, e um outro bom filme, de 2005, dirigido por Steven Spielberg, com Tom Cruise. Há duas edições do filme de 1953 em DVD: uma antiga da Paramount, de 2005, em boa edição, e a recente cópia da Obras-Primas do Cinema proveniente de uma nova restauração em 4k norte-americana, com imagem superior – os extras de ambos são os mesmos, com mais de um hora de making of, bastidores e entrevistas.
Figura louvável do cinema blockbuster americano da década de 1980, diretor de filmes memoráveis como “Grito de horror” (1981), “Gremlins” (1984), “Viagem insólita” (1987) e “Meus vizinhos são um terror” (1989), Joe Dante presta aqui uma singela homenagem ao cinema de baixo orçamento (os “filmes B”) dos anos de 1950 e 1960, em especial aqueles de terror e ficção científica, tão populares nos Estados Unidos, cujas sessões lotavam as salas. Em seu trabalho menos lembrado (mas muito especial para os cinéfilos que gostam de conhecer os bastidores do mundo do cinema), acompanhamos as loucuras por trás do lançamento de um filme nas salas, do marketing para divulgá-lo até caçar gente para comprar ingresso. Numa cidade da Florida durante a Guerra Fria, os moradores estão à flor da pele com medo de uma guerra nuclear. Um produtor de um filme B aproveita o momento para distribui-lo numa grande sala. Será um longa-metragem preto-e-branco com um homem-formiga assassino, fruto da mutação genética causada por radiação nuclear (ele é chamado de “Hormiga”, ou em inglês, “Mant”, junção de “man” e “ant”). Para dar impacto durante a projeção, o produtor instala nas poltronas do cinema equipamentos para dar choque no público, e durante a exibição, fumaças saem da tela e ouvem-se estouros como bombas – isso tudo existiu nos cinemas da época, com poltronas que chacoalhavam, da tela espirrava água nas pessoas em filmes de naufrágio no mar etc O produtor contrata por fim um rapaz para se vestir de formiga e assustar o público perambulando pelas fileiras. O ator John Goodman (ele está bonachão e à vontade) interpreta esse destemido produtor de cinema, cujo papel foi inspirado no lendário produtor e diretor William Castle (1914-1977), realizador de filmes B de terror e scifi com efeitos especiais altamente inusitados - por exemplo, dirigiu e produziu “Força diabólica” (1959), com um monstro parasita que estraçalhava as pessoas num laboratório, e “13 fantasmas” (1960), com espíritos malignos aterrorizantes. Narrado por um adolescente que é fã de cinema, o filme retrata, em segundo plano, o medo de uma guerra nuclear - o contexto é a crise dos mísseis de Cuba, durante 13 dias em outubro de 1962, os tais “13 dias que abalaram o mundo”, quando os soviéticos, em plena Guerra Fria, em resposta à instalação de mísseis na Turquia e na Itália pelos Estados Unidos, revidaram colocando ogivas em Cuba viradas para o país norte-americano; e por pouco não houve uma guerra atômica com proporções impensáveis! Tudo isso está nesse passatempo delicioso, inteligente e brincalhão de Joe Dante, que conta com boas atuações de John Goodman, de “Os Flinstones: O filme” (1994), e Cathy Moriarty, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante por “Touro indomável” (1980), e participações menores de Dick Miller, John Sayles e Naomi Watts (numa pontinha em início de carreira). Sai em bluray pela Obras-primas do Cinema numa cópia excelente, com mais de duas horas de extras e uma luva especial.
Rodado nos desertos da Namíbia e em cidades da África do Sul, o terror independente é uma experiência sensorial incrível, que há tempos eu não sentia. Graças à fotografia deslumbrante, toda alaranjada que reforça o calor do deserto, e muita poeira. O lugar é como se fosse a entrada para o inferno, de onde surge um misterioso andarilho à espreita de pessoas perdidas para levar a alma delas (a fotografia é do diretor de fotografia de “Highlander 3, o feiticeiro”, Steven Chivers). O roteiro, modesto na forma, mas místico no conteúdo, com momentos assustadores e outros bem chocantes com os rituais sangrentos, é do roteirista sul-africano Richard Stanley, que também dirige a fita, responsável por pelo menos dois filmes de terror independentes e criativos: “Hardware: O destruidor do futuro” (1990), que mistura ficção científica, com Dylan McDermott, e o recente “A cor que caiu do espaço” (2019), baseado num conto de H.P. Lovecraft, com Nicolas Cage e Joely Richardson. Os elementos técnicos/gráficos desse filme (lançado em 1992, e praticamente apagado da memória do público), ganham nova dimensão na excelente cópia em DVD da Obras-primas do Cinema, que o lançou há poucos meses. A versão disponível em DVD é a ‘Final cut’, o corte final, de 108 minutos, com sete minutos a menos do que aquela que saiu nos cinemas (de 115 minutos); houve depois outro corte, lançado na França, Itália e EUA, de 87 minutos, com menos violência, e por fim o corte do diretor, com 103 minutos. Robert John Burke, de “Robocop3” (1993) e “A maldição” (1996), incorpora com nítida entrega a figura central de um “Dust devil”, uma espécie de espírito do mal que assume formas diferentes, e caminha pelas estradas caçando gente. Chelsea Field, atriz de fitas populares nos anos de 1980 e 1990, como “Mestres do universo” (1987) e “O último boy scout” (1991), também se destaca como a mulher que foge do marido abusivo e terá um terrível encontro com o protagonista. No elenco, participações de coadjuvantes curiosos, dentre eles a alemã Marianne Sägebrecht, de “Bagdad Café” (1987), e dois atores sul-africanos, John Matshikiza, de “Um grito de liberdade” (1987), e Zakes Mokae, de “A maldição dos mortos-vivos” (1988) – Mokae interpreta um papel importante, de um sargento que tem premonições envolvendo o andarilho e as mortes cometidas por ele. “O colecionador de almas” concorreu a prêmios nos principais festivais de terror, como Avoriaz, Fangoria e Fantasporto. Conheçam essa preciosidade do cinema cult de terror, uma coprodução África do Sul e Reino Unido.
Produzido para a TV inglesa, “A mulher de preto” é um sofisticado telefilme de terror sobrenatural que irá assustar aqueles que curtem o tema. Não somente a trama é sinistra, mas também as locações, a fotografia perturbadora e os elementos técnicos, como neblina a todo instante e as sombras nos ambientes fechados – foi filmado na região de Lacock, no condado inglês de Wiltshire, com ruelas e casinhas de aspecto medieval, que parecem ter saído do universo de Arhur Conan Doyle (destaque para o velho casarão da falecida, com um cemitério decrépito ao fundo). Começa como uma história de investigação, aos poucos o suspense assume forma e depois atinge o ápice como terror com direito a aparições de fantasmas e um segredo aterrador guardado a sete-chaves. Baseado no livro da premiada escritora inglesa Susan Hill, publicado em 1983, teve uma versão para cinema, da qual gosto muito, assinado pela Hammer Films, “A mulher de preto” (2012), com Daniel Radcliffe e Janet McTeer. Recebeu indicação a quatro prêmios Bafta, nas categorias de TV: melhor design, maquiagem, som e trilha sonora, e foi dirigido por um especialista em séries e telefilmes britânicos, Herbert Wise. O telefilme acaba de ser lançado em DVD pela Obras-primas do Cinema, numa cópia muito boa, digna para ter na coleção (como extra apenas galeria de imagens e cards impressos).
Terceiro longa-metragem dirigido por Sam Mendes, renomado diretor britânico, que antes havia realizado “Beleza americana” (1999), pelo qual ganhou o Oscar de melhor diretor, e “Estrada para a perdição” (2002). Na época de “Soldado anônimo”, em 2005, estava casado com a atriz Kate Winslet. O filme serviria de veículo para o ator Jake Gyllenhaal, que naquele ano faria “O segredo de Brokeback Mountain”, em que receberia sua primeira indicação ao Oscar, de ator coadjuvante (Jake é irmão da atriz Maggie Gyllenhaal, de “Secretária” e “Batman – O cavaleiro das trevas”). Mendes nos entrega um filme de guerra duro, complexo, repleto de críticas disfarçadas, com doses certeiras de um humor ácido e negro. A história, que é real, foi baseada no livro de memórias de mesmo título, “Jarhead”, de Anthony Swofford, um fuzileiro naval que viveu quatro dias de horror na Guerra do Golfo – o livro tornou-se campeão de vendas nos Estados Unidos, e o autor relata com precisão suas experiências traumáticas naquela guerra insana. A história se acerca de um rapaz que vinha da terceira geração de sua família a servir o Exército. No fundo, ele não queria estar lá. Como fuzileiro num grupo de uma dezena de soldados, é enviado no meio do deserto escaldante do Iraque carregando mais de 50 quilos de armas e bombas nas costas. Sem entender os motivos da guerra, viverá momentos desconfortáveis e ameaçadores. Os quatro dias que retratam a jornada exaustiva de Swofford são no momento mais feroz da Operação ‘Tempestade do Deserto’, durante a Guerra do Golfo, que ocorreu entre agosto de 1990 e fevereiro de 1991. Nessa operação, os Estados Unidos, sob o governo George H. Bush (o Bush pai), recorreram a ataques aéreos, terrestres e marítimos para libertar Kuwait dos domínios das forças armadas iraquianas, comandadas por Saddam Hussein. Calcula-se que foram mortos 100 mil soldados iraquianos, além de 30 mil kuwaitianos, e cerca de quatro mil soldados americanos. Uma década depois, o Iraque voltaria a ser atacado pelos Estados Unidos, num desdobramento da primeira Guerra do Golfo – o filme foi produzido nesse período, durante o governo de Bush filho, quando houve também a invasão a outro país do Oriente Médio, o Afeganistão, portanto o longa faz críticas, mesmo que subentendidas, a essas duas guerras, consideradas insanas e absurdas. “Soldado anônimo” não teve tanta repercussão no lançamento, virou cult e ganhou três continuações para home vídeo, entre 2014 e 2019 – a cada filme o time de fuzileiros está em uma guerra diferente, como Afeganistão e depois Síria. Disponível em DVD e para aluguel no Amazon Prime. PS: 14 anos depois de “Soldado anônimo”, em 2019, Sam Mendes dirigiria outro filme de guerra dos bons, premiado com três Oscars técnicos, “1917”. Ele ficou conhecido também por dirigir dois filmes da franquia James Bond, “007 – Operação Skyfall” (2012) e “007 contra Spectre” (2015).
Franco Zeffirelli (1923-2019), italiano que filmou nos Estados Unidos, adaptou para o cinema duas peças clássicas de William Shakespeare nos anos de 1960, com roteiro dele: “A megera domada” (1967), com Elizabeth Taylor e Richard Burton (casados à época) e “Romeu e Julieta” (1968), esta a melhor versão da tragédia do jovem casal num romance proibido, que lançaria a linda atriz Olivia Hussey. Fez sucesso com os dois filmes, depois viria “Irmão sol, irmã lua” (1972), que narrava uma parte da vida de São Francisco, a minissérie “Jesus de Nazaré” (1977), com elenco estelar, além de óperas, algumas para a telona, como “La Traviatta” (1982), e outras para a TV, como “Pagliacci” (1982) e “Turandot” (1983). Sua carreira alternava altos e baixos quando foi convidado, em 1980, pelas produtoras Polygram e Universal para dirigir uma fita juvenil de um amor levado às últimas consequências, esse “Amor sem fim”. O filme foi escrito por Judith Rascoe, corroteirista de “Soldados da morte” (1978) e “Havana” (1990), que baseou a história no romance homônimo de Scott Spencer, lançado no ano anterior. Era praticamente um “Romeu e Julieta” moderno, mais melodramático, diálogos e momentos cafonas e resultado bem bobinho (mas nostálgico para quem assistia ao filme na TV, como eu vi muitas vezes). Zeffirelli foi criticado pelo público, o longa foi perseguido pela crítica especializada a ponto de ser indicado a diversos Razzie Awards, o Framboesa de Ouro, que premia os piores filmes – “Amor sem fim” recebeu indicação de pior diretor, roteiro, filme e parte do elenco, como atriz (Brooke Shields), ator (Matin Hewitt) e atriz coadjuvante (Shirley Knight). E o inseriram na lista das 100 piores produções do cinema americano (o que é um exagero danado, convenhamos...). Pois bem, “Amor sem fim” fez certo sucesso no cinema (com custo de U$ 9 milhões, faturou U$ 32 milhões) e explodiu nas locadoras num momento em que as fitas de vídeo viviam seu auge. O sucesso veio principalmente por causa da canção-título, “Endless love”, indicada ao Oscar e virou hit romântico da década de 1980, composta por Lionel Ritchie e cantada por ele e Diana Ross – a música concorreu também ao Globo de Ouro de melhor canção, e o álbum de Ritchie foi indicado ao Grammy. O drama romântico é previsível, acompanha dias de uma paixão avassaladora entre dois adolescentes, Jade e David, cujo relacionamento passa a ser malvisto pelos pais da menina. Eles sofrem tanto por amor a ponto de cometer tragédias, o que irá ocorrer da metade para o fim do filme – quando se intensificam os problemas entre o garoto obsessivo e a menina ingênua, e deles com a família. Brooke Shields vinha do sucesso de “A lagoa azul” (1980), depois de passar por filmes setentistas independentes como “Menina bonita” (1978), “Rei dos ciganos” (1978) e “Wanda Nevada” (1979), e nunca mais daria certo nas telas. Martin Hewitt estreava aqui, era uma promessa pelo rosto de galãzinho, no entanto teve o mesmo destino de Brooke: participar de uma meia dúzia de fitas menores – como “O pirata da barba amarela” (1983), e desaparecer (ele esteve no elenco de oito filmes e fez participações especiais em episódios de umas seis ou sete séries, como “Plantão médico”). Os novatos atores atuam ao lado de veteranos, parte deles até ganhadores de Oscar, como Richard Kiley e Beatrice Straight, que interpretam os pais do personagem de Martin Hewitt; Don Murray e Shirley Knight, como os pais de Brooke. Nota-se ainda James Spader, em seu segundo filme, e há uma pontinha de Tom Cruise, que era estreante. “Amor sem fim” ganhou um bom remake em 2014, de mesmo título, com Gabriella Wilde e Alex Pettyfer, dirigido por Shana Feste, de “Em busca de uma nova chance” (2009). O original e a refilmagem estão disponíveis em DVD, pela Universal Pictures, e também no streaming, na Amazon Prime e na Globoplay.
A distribuidora Imovision, fundada no Brasil em 1987, foi uma das porta-vozes em trazer aos cinemas do nosso país fitas de arte francesas numa época em que o cinema americano dominava. A partir da metade dos anos 2000, investiu em lançamentos de filmes de outros países não só nos cinemas como também em DVD e bluray para os colecionadores, o que faz muito bem até hoje! E todos os lançamentos da Imovision pertencem ao circuito independente, quase não vemos esses filmes em TV aberta ou no streaming. Em 2021, no auge da pandemia, a distribuidora, para concorrer com diversos streaming que se popularizam no período, lançou sua plataforma online, de assinatura, o “Reserva Imovision”, em parceria com o Reserva Cultural, louvável cinema de rua de São Paulo que ainda resiste e é mantido pelo grupo da Imovision. Explico tudo isso por dois motivos: o filme que comentarei, “Lola Pater” (2017), está tanto no Reserva Imovision para quem quiser assisti-lo (é necessário assinar um plano) quanto disponível em DVD – há milhares de colecionadores de DVDs e Blurays no Brasil (eu sou um deles), e a Imovision não desistiu da mídia física, o que é extremamente positivo! Não vi “Lola Pater” no cinema, pude conferir o filme somente agora, em DVD. E é uma das grandes produções franco-belgas dos últimos anos. Que história bonita, delicada e humana, com sabor de Almodóvar! Escrito e dirigido pelo francês descendente de marroquinos Nadir Moknèche, de “Goodbye Morocco” (2012), conta com uma das mais belas interpretações de Fanny Ardant, estrela do cinema francês nos anos de 1980 e 1990, de “A mulher do lado” (1981) e “De repente num domingo” (1983). Com 68 anos à época, ela se desafia num personagem original, cheio de camadas, entregando um papel emocionante e sensível como uma mulher trans (o filme causou falatório na França por não terem convidado uma atriz trans, e hoje o cinema é mais criterioso nas escolhas do elenco pensando na diversidade sexual e na inclusão). No passado, Lola era Farid, um homem de origem argelina, que teve um filho e o abandonou, retornando à terra natal. Nunca mais teve contato com a família e mudou de sexo e identidade, chamando-se Lola, que atualmente trabalha como professora de dança. O filho, Zino, de 27 anos, marca então um encontro com ela para discutirem uma herança e resolverem pontos que ficaram abertos. Exibido no Festival de Locarno, o filme é bem simples na forma, trata de reconciliação, e o ator Tewfik Jallab, de “A marcha” (2013), que interpreta Zino, tem um bom desempenho como um jovem dividido entre momentos de dor, frustração, alegria e alívio. Jallab e Fanny complementam um ao outro, tornando o resultado do filme eficiente e ao mesmo tempo surpreendente. POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Uma das animações para adultos mais complexas do cinema, uma fita pessoal do diretor Ari Folman recheada de cifras e enigmas, que discorre sobre temas que vão da área da saúde ao mundo das artes, como clonagem, farmacologia, indústria cultural, crise de identidade, bloqueio criativo e direito de imagem. Folman, natural de Israel, surpreendeu com o documentário em animação sobre a Guerra do Líbano “Valsa com Bashir” (2008), que recebeu indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro e acabou vencendo o Globo de Ouro na categoria, além de ter sido indicado à Palma de Ouro em Cannes. Passados cinco anos, inovou, mais uma vez, o universo das animações com esse filme diferentaço, que faz referências ao mundo pop e recorre à linguagem da ficção científica para contar uma história – é inspirado no livro do escritor ucraniano Stanislaw Lem, de “Solaris”, intitulado “O incrível congresso de futurologia”, lançado em 1971. Parecem as discussões existenciais de Charlie Kaufman, misturando formatos usados no psicodelismo dos anos de 1970. Há também junção de variadas modalidades de desenho, como as animações clássicas à mão, computação gráfica, e ainda uso de cores fortes intercalado com quadros em preto-e-branco. Lembrou-me também não só a forma como o conteúdo dos filmes de animação de Richard Linklater, especialmente “O homem duplo” (2006). Robin Wright se desafia num papel autocrítico, que fala da própria atriz em crise. Na época, ela, que fez sucessos como “A princesa prometida” (1987), “Forrest Gump: O contador de histórias” (1994) e “Corpo fechado” (2000), enfrentava sérios problemas pessoais, aparecia em poucos papeis importantes no cinema e reclamava de ter vivido por 15 anos à sombra do ex-marido, o premiado ator Sean Penn. Por isso seu papel de protagonista é real e ao mesmo tempo irônico. Ao falar do scanner/clonagem para a vida eterna na tela, o filme toca num ponto crucial, motivo de discussões intermináveis: de como o cinema vem utilizando as tecnologias que tornam tudo superficial, efêmero e rápido. Além de Robin Wright, há participações de Harvey Keitel, Danny Huston e Paul Giamatti, bem como Jon Hamm como o narrador. Veja, mas vá preparado: é um filme de arte para poucos, que intriga, desafia a nossa mente e propõe discussões fundamentais sobre a indústria do cinema na atualidade.
Crianças, jovens e adultos curtiram à beça o resultado do primeiro filme “Hotel Transilvânia” (sites de críticas com participação popular indicaram isso), tanto que a produtora (Sony Pictures Animation) realizou mais três continuações. A bilheteria foi quatro vezes maior que o orçamento (U$ 85 milhões contra U$ 358 milhões), indicando que o bom marketing para a promoção do filme na época reverteu-se em público. A animação em computação gráfica é repleta de gags e referências a filmes clássicos de terror com monstros famosos do cinema, como o Conde Drácula, protagonista aqui, a Múmia, Frankenstein e Lobisomem, sem contar bruxas, caveiras e mortos-vivos que desfilam com graça e um estranho charme. Emprestaram suas vozes para a dublagem original nomes de peso, como Adam Sandler, Andy Samberg e Selena Gomez, somando-se a eles Kevin James, Fran Drescher, Steve Buscemi, David Spade e Jon Lovitz. A história é bacaninha, nada de especial, arrancando bons risos de quem assiste – os mais ligados ao mundo do cinema verão homenagens a “Nosferatu”, “A Família Addams” etc Indicado ao Globo de Ouro de animação, o filme tem como diretor o russo radicado nos Estados Unidos Genndy Tartakovsky. Ele dirigiu os três primeiros, um pouco inferiores ao original e com mais maluquices (as continuações são “Hotel Transilvânia 2”, de 2015, e “Hotel Transilvânia 3: Férias monstruosas”, de 2018), e produziu a parte quatro, que depois de passar nos cinemas, entrou diretamente na Amazon Prime, “Hotel Transilvânia 4: Transformonstrão” (2022).
Na época do lançamento, em 1961, esse filme independente britânico dividiu a opinião por tocar em um tema tabu, pois fala de uma rede (que realmente existiu) que perseguia gays nos anos de 1950 e 1960, cuja prática passou a ser considerada crime no país tempos depois. O filme veio no auge da Nouvelle Vague Britânica, conta com uma história complexa, cheia de detalhes e grandes atores em cena, com destaque para Dirk Bogarde, de “O criado” (1963) e “Morte em Veneza” (1971). Desafiador, faz uma incisiva crítica social em tom de “filme de denúncia” – a tal rede de chantagistas enxergava os gays como delinquentes e criminosos, portanto poderiam puni-los com as próprias mãos (a “chantagem” aqui seriam ameaças, com grupos organizados que pichavam xingamentos e humilhações contra os homossexuais nas paredes das casas onde moravam, bem como em carros e enviando cartas secretas). O filme rompeu barreiras, influenciando o comportamento e a mentalidade do público da época. Foi escrito por John McCormick, de “7 mulheres” (1965), e por uma roteirista visionária, que tocava em feridas abertas da sociedade, Janet Green, que antes fez um filme apontando o racismo, “Safira, a mulher sem alma” (1959). Recebeu indicação ao Bafta de melhor ator (Dirk Bogarde) e roteiro, e ainda ao Leão de Ouro no Festival de Veneza. O diretor, Basil Dearden, de “Na solidão da noite” (1945), drama de terror sobrenatural codirigido pelo brasileiro Alberto Cavalcanti, morreu prematuramente em 1971 aos 60 anos, vítima de acidente de carro em Londres. Ele é pai do diretor e roteirista James Dearden, de “Um beijo antes de morrer” (1991), e indicado ao Oscar de melhor roteiro por “Atração fatal” (1988). O filme ganhou uma ótima versão em DVD pela Obras-primas do Cinema, com 1h30 de extras, que incluem entrevista com Dirk Bogarde e um documentário especial.
Um filme-família descompromissado e bem divertido para assistir hoje, dia de Páscoa. Um dos criadores da série infantil “Bob Esponja”, Tim Hill dirigiu várias fitinhas corriqueiras para a criançada, ressuscitando clássicos com nova roupagem, como fez em “Muppets no espaço” (1999), “Garfield 2” (2006) e “Alvin e os esquilos” (2007). Em “Hop”, Hill dirige uma história da dupla Cinco Paul e Ken Daurio, roteiristas de “Meu malvado favorito” (2010), que reinventa o coelho da Páscoa com um perfil mais adolescente. Aqui o coelho E.B. Junior - voz de Russell Brand, de “O pior trabalho do mundo” (2010), nascido na Ilha de Páscoa (Rapa Nui), na Polinésia, não quer seguir os negócios do pai, E.B. (voz de Hugh Laurie, da série “House”). Ele é o verdadeiro coelho da Páscoa, que possui uma empresa de produção de ovos de chocolate e em breve irá se aposentar. Junior quer entrar no mundo do rock, gosta de bateria, e para conquistar o sonho, foge para Hollywood numa espécie de fenda mágica. Na cidade dos astros e estrelas, é atropelado por Fred, um rapaz desempregado (James Marsden, da franquia “X-Men: O filme”). Machucado, fica sob cuidado de Fred. Enquanto isso, na Ilha de Páscoa, o pintinho francês Carlos - voz de Hank Azaria, de “A gaiola das loucas” (1996), organiza um golpe para assumir a fábrica de chocolates de E.B, o que faz Junior retornar para salvar o lugar. A aventura então começa, com perseguições, sequestros e maluquices que uma fita desse naipe exige. O filme mistura animação em computação gráfica com atores de verdade. Aparecem, além de James Marsden, Kaley Cuoco, Elizabeth Perkins, Gary Cole e David Hasselhoff (como ele mesmo), e tem vozes de Russell Brand, Hugh Laurie e até de Hugh Hefner, o fundador da Playboy, que faz uma piadinha infame com as coelhinhas da revista erótica. Um passatempo para todos, fita rápida e engraçadinha, produzida pela Universal com a Illumination, estúdios que lançaram franquias de animações campeãs de bilheteria, como “Meu malvado favorito”, “Minions”, “A vida secreta dos bichos” e “Sing”, e hoje é forte concorrente da Disney.
Na década de 1930, o cinema americano produziu uma infinidade de cinebiografias de cientistas que revolucionaram o mundo com suas pesquisas. Dois deles são obras notáveis, que não perderam o encanto: “A história de Louis Pasteur” (1936), que deu o Oscar a Paul Muni, no papel do inventor francês que desenvolveu os primeiros medicamentos para tratamento de infecções, e “A vida de Alexander Graham Bell” (1939), com Don Ameche no papel central do homem que ajudou a criar o telefone (no filme temos também Henry Fonda como Thomas Watson, assistente de Bell). Como muitos filmes daquele período, a biografia é romanceada, com apelo romântico – além de Bell inventor, temos o Bell em busca de um amor, quando conhece sua futura esposa, Mabel (interpretada por Loretta Young). Nascido de uma família de estudiosos do som e das palavras, de Edimburgo (avô e pai eram professores de linguagem e elocução, pioneiros com trabalhos com pessoas surdas), Alexander seguiu a carreira de professor nas mesmas áreas, e de música também, na Escócia e na Inglaterra. A mãe ficou surda, e isso o motivou nas pesquisas de surdez. Morou no Canadá, onde se debruçou, em 1870, no campo da transmissão de som por meios eletrônicos. Três anos depois foi para os EUA (com residência em Boston) continuar os estudos na área e fundou sua companhia de telefone, a Bell Telephone Company, obtendo mais de 10 patentes de aparatos de som e de telefonia que revolucionariam o mundo. Nessa época também era professor de crianças surdas. Porém virou uma discussão quem inventou o telefone: parte da sociedade atribuía a ideia a Bell, outros ao italiano Antonio Meucci (Meucci fez um protótipo e o vendeu a Bell em 1870, e Bell expandiu o negócio). Na metade do filme há a passagem histórica que ficou conhecida como “Guerra das Patentes”, uma disputa judicial travada entre cientistas que de um jeito ou de outro tinham criado sistemas de transmissão de som (dentre eles Meucci e o americano Elisha Gray) e, portanto, reivindicavam a patente – a batalha perdurou por mais de um século, só encerrando em 2002, quando o Congresso, por meio de uma resolução, reconheceu Meucci como o verdadeiro inventor do telefone. Há duas passagens reais e importantes no filme de 1939: quando Bell faz a primeira demonstração pública do telefone, que deu errado e por isso foi humilhado; e quando apresentou o telefone à rainha Vitória – ela foi a primeira a comprar os equipamentos para a corte e daí a notícia correu o mundo, consolidando o trabalho de Bell. Assim como todos os cientistas da época, Bell não se fixou em apenas um projeto; estudou com afinco o telégrafo, a locução, a acústica e a fonologia, além de desenvolver inventos ligados à aeronáutica (infelizmente flertou com movimentos de eugenia no final do século XX). Dirigido por Irving Cummings, realizador de 80 filmes, muitos deles mudos e da era de Ouro de Hollywood – destaque na sua filmografia o premiado faroeste musical “No velho Arizona” (1928) e vários infantis com Shirley Temple, como “A pequena órfã” (1935). Saiu em DVD pela Classicline anos atrás, com o título modificado para “A história de Alexander Graham Bell”, e depois pela Versátil Home Video na coleção da Folha “Grandes biografias no cinema”.
Produzido pela MGM, o filme de terror e ficção científica, uma coprodução Austrália, EUA e Canadá, totalmente rodada no Canadá, fez certa carreira no extinto VHS depois de fracassar nos cinemas - independente, custou barato, U$ 15 milhões, rendendo apenas U$ 17 milhões ao redor do mundo. Parece um episódio saído das histórias sobrenaturais da premiadíssima série “Arquivo X” – o diretor David Nutter dirigiu e produziu episódios do famoso seriado e de outro de estilo semelhante muito assistido no fim dos anos de 1990, “Millennium”. “Comportamento suspeito” foi o primeiro e único filme para cinema de Nutter, e foi escrito por Scott Rosenberg, roteirista de “Con Air: A rota da fuga” (1997). Rosenberg botou um tom sobrenatural, com visível pegada scifi vinda de fitas B dos anos 60 e 70, para criar esse filme teen que não investe em violência e aos poucos vai se tornando uma fita de investigação, mistério e fantasia. Ao trazer garotos e garotas tomados por uma estranha força sinistra, cujo comportamento é alterado, o filme toca em outro ponto, mesmo não sendo a tônica da obra: a discussão sobre tribos nas escolas, com grupos próprios e isolados que representavam a cara dos anos 1990: os nerds, os riquinhos, os skatistas, os rebeldes, aqueles que afrontam professores, outros que não se enquadram em nenhum estilo, as vítimas de bullying etc. Não é um filme tão bem realizado, falta gás nas cenas de suspense, a conclusão é rápida e há momentos irregulares, porém tem uma história curiosa (adoro filmes sobrenaturais de scifi) que prende o público até o fim para saber do segredo que ronda o comportamento dos adolescentes. Marcou a estreia de James Marsden (que depois viveria o Cyclope na franquia de cinema “X-Men”) e Katie Holmes, da série “Dawson’s creek” - depois se casaria com Tom Cruise. E no elenco também vemos Nick Stahl, coadjuvante de filmes premiados como “Além da linha vermelha” (1998) e “Entre quatro paredes” (2001), e os veteranos Steve Railsback, William Sadler e Bruce Greenwood. A Classicline acaba de lançar o filme em DVD, com extras e card colecionável.
Nos anos de 1970 o cinema dos EUA, da França e de outros países inauguraram um subgênero do terror chamado “rape and revenge”, dentro da linha dos filmes exploitation, aqueles que exploravam a violência e a tortura. “A vingança de Jennifer” (1978) é o mais conhecido deles, refilmado em 2010 como “Doce vingança”. Wes Craven também realizou “Quadrilha de sádicos” (1977), outro bom exemplo, e até Ingmar Bergman fez um filme que anteciparia a ideia, em “A fonte da donzela” (1960). Nos anos de 1990 e 2000, o “rape and revenge” (na tradução, “estupro e vingança”), voltaria com tudo, foram feitos filmes fortes e violentos como “Viagem maldita” (2006) e “A última casa” (2009). “Vingança”, de 2017, retoma agora esse aclamado subgênero do cinema independente atrelando uma história sobre empoderamento feminino, mesmo que levado às últimas consequências. A trama é de um tom só, e nela se inserem reviravoltas e muita, mas muita violência, com banhos de sangue. Três amigos, casados e ricos, organizam anualmente uma caçada no deserto. Dessa vez, um deles leva a amante, uma jovem de beleza estonteante, que acaba estuprada enquanto o namorado está fora. Há uma discussão, a garota tenta fugir, mas é jogada num desfiladeiro. Eles acham que ela morreu, mas não... Abandonada à própria sorte, machucada (fica presa num galho que vara seu corpo), com formigas picando-a debaixo de um sol de lascar, miraculosamente renasce como uma fênix para se vingar dos criminosos. E daí é uma caçada infernal, com armadilhas, mortes brutais etc Foi vendido como terror, com uma capa sanguinária da personagem ensanguentada segurando um rifle, no entanto é ação e um drama pesadíssimo – mas entendo que o que a personagem vive é um terror real, que dói na alma. São apenas quatro atores em cena – a jovem e os três homens (destaque para a italiana Matilda Lutz, que tem forte presença em cena, é bonita e chama a atenção, e assume a figura de uma ‘final girl’). O filme é econômico nos diálogos, investe-se em cenas tensas que deixam o coração na mão. A diretora e roteirista francesa Coralie Fargeat, estreante em longa-metragem aqui, usa uma boa direção de arte e fotografia que incomodam: no meio do deserto acalorado, vidros rosas, brincos da protagonista que reluzem, em formato de estrela, sem falar do sangue que explode na tela. Há cenas criativas, com destaque para a da fênix, citada acima, que estampa o rótulo de uma lata de cerveja e é usada pela personagem para cicatrizar a ferida provocada pelo galho – a fênix acaba como um decalque na barriga dela. E o desfecho do filme é terrivelmente violento. Polêmico e simbólico, com sequências chocantes que podem incomodar (como a do vidro no pé, que se assemelha a uma vagina), o filme teve exibições altas horas da noite nos festivais de Sundance e Toronto devido à violência, para selecionar o público. Lançado em bluray pela Versátil numa edição especial em parceria com a Fênix Filmes – em disco único, com uma hora e meia de extras, acompanhado de um pôster, um livreto e dois cards colecionáveis.
No Dia da Mulher, data internacional marcada para relembrar (e reforçar) a luta das mulheres pelos seus direitos, nada melhor que assistir a um emocionante filme com duas atrizes excepcionais que brilham na tela, duas Catherines, Frot e Deneuve. São hoje as maiores estrelas da França, de presença deleitosa mesmo em uma obra com temática batida. Com elas em cena, o drama atinge outro nível de delicadeza e intensidade: Frot interpreta uma gentil parteira, de personalidade forte, que ama seu ofício, porém vive agora um conflito com a idade (ela tem 50 e poucos anos e mais da metade dedicado ao trabalho). Um dia recebe um telefonema que a assusta e irá mudar sua rotina: a amante de seu falecido pai quer estabelecer contato para contar-lhe algo urgente (é Catherine Deneuve no papel). As duas vão tomar café, a parteira vê aquela senhora bonita e extravagante que abandonou o pai dela há 30 anos e sumiu do mapa, e tenta entender o porquê daquele reencontro. Ela diz enfrentar um câncer cerebral, e não sabe quanto tempo tem de vida. Aqueles mulheres, de temperamentos diferentes, passarão um breve tempo juntas, trocando confidências, relembrando momentos importantes do passado a partir do elo com a figura do pai/amante, e quem sabe recuperar os anos perdidos. Voltado ao público feminino, o filme, uma produção França/Bélgica, centra-se nas duas atrizes de forma quase que integral, e é muito bonito acompanhar o trabalho dessas grandes damas do cinema francês – Frot fez dezenas de trabalhos, como “Odeio te amar” (1986) e “Marguerite” (2015), e na época do lançamento de “O reencontro”, em 2016, estava com 60 anos, enquanto Deneuve, que foi um dos maiores nomes do cinema mundial nos anos 60 e 70, de clássicos como “A bela da tarde” (1967), “Pele de asno” (1970) e tantos outros, nunca parou de filmar - a atriz circulou por vários períodos e produções do mundo inteiro, tem mais de 150 longas no currículo e permanece atuante; em outubro completa 80 anos! Do roteirista e diretor Martin Provost, de dois filmes cultuados sobre mulheres fortes, empoderadas e que enfrentam duros preconceitos, “Séraphine” (2008) e “Violette” (2013), ambos baseados em fatos reais.
Um filme de arte independente de alta qualidade que mais uma vez comprova a força do cinema palestino – é uma coprodução entre Território Palestino Ocupado, França e Qatar, assinada por dois irmãos gêmeos, Arab e Tarzan Nasser, e rodado na conflituosa Faixa de Gaza. Os diretores dedicaram o filme à mãe. Nesse drama feminino, com elenco composto exclusivamente por mulheres (são 13 ao todo), elas discutem o papel da mulher na autoritária e patriarcal sociedade do mundo árabe. São mulheres diferentes, de idades diversas: uma grávida, uma noiva, uma religiosa, uma divorciada, uma viciada em remédios etc (que compõem um quadro real daquela sociedade). Elas cuidam de suas aparências, trocam conversas íntimas, até que tudo é interrompido quando o Hamas procura por um bandido que roubou o leão do zoológico da cidade. Com o tiroteio, ficam presas no salão, enquanto a tensão cresce: bombas estouram, a água acaba, cortam a energia elétrica (o título “Degradê” pode se referir à variação de tonalidades dos problemas que se agravam, também dos tons dos cabelos delas quando modificados no salão e até mesmo à degradação, dia a dia, das mulheres nessa sociedade regida por obrigações, proibições e castigos). Lembra um “teatro filmado”, pois tudo ocorre no salão de beleza, com uma câmera que pouco se movimenta, e com uma fotografia peculiar, alternando cenas escuras daquele espaço confinado com a claridade da luz que vem de fora e atravessa as janelas (fotografia assinada por Eric Devin). No elenco, destaque para Hiam Abbass, atriz palestina que fez filmes em sua terra, como “A noiva síria” (2004) e “Paradise now” (2005), e nos Estados Unidos, como “Blade runner 2049” (2017) – uma atriz de forte presença e que tem o papel mais chamativo da trama. Importante conhecer esse filme por vezes duro, mas muito sincero e humano. Em DVD pela Imovision. POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Possessão
3.9 589Resenha do filme "Possessão" (1981), escrita especialmente para o livro "Obras-primas do terror - Treze filmes essenciais da coleção", lançado pela Versátil Home Video em março de 2023.
“Possessão”: o horror que ronda o casamento em ruínas
Quando apresentado ao público pela primeira vez, no Festival de Cannes de 1981, em 25 de maio, “Possessão” (1981) levou parte dos espectadores à euforia, enquanto outra desviou o olhar das cenas mais grotescas e chocantes, vaiando o filme do ucraniano/polonês Andrzej Zulawski. Naquele noite, havia expectativa de o filme arrancar boas críticas dos presentes e também da crítica, porém isso não ocorreu. Na época, “Possessão” foi mal interpretado, tido como uma obra rebelde, com imagens polêmicas que beiravam a repulsa pelo conteúdo de sangue explícito, momentos escatológicos e estranhos demais, até uma cena de sexo entre uma mulher e uma criatura gosmenta. O festival acabou, o filme foi lançado poucos cinemas, em um pequeno circuito em cerca de 30 países, e rapidamente tornou-se cult – o fato se repetiria anos depois com o home vídeo e mais adiante com o dvd, em que muita gente teve acesso ao filme.
É uma obra difícil e ao mesmo tempo a mais notória do universo cinematográfico do sempre controverso diretor Andrzej Zulawski (1940-2016). Escreveu o roteiro durante o processo de seu divórcio, com colaboração do romancista norte-americano Frederich Tuten. Por isso, há uma gama de elementos autobiográficos do cineasta, que foca o desespero de dois personagens: a de mulher desiludida com o casamento, que foge em busca de novos parceiros, e a do marido abandonado, numa busca infernal por ela, na tentativa de trazê-la de volta para casa. Essa é a premissa básica de “Possessão”, que é um drama doloroso, porém com ganchos do cinema de horror, um horror mais psicológico – há sim imagens violentas, de mortes brutais e sangue vivo, e ainda monstros, no entanto isso tudo é secundário no teor desse filme sobre casamento em ruínas.
A francesa Isabelle Adjani, de “Nosfertu, o vampiro da noite” (1979) e “A rainha Margot” (1994), interpreta Anna, essa mulher que está prestes a explodir e não vê mais sentido na vida a dois. Por isso, acaba escapando vez ou outra, e aos poucos entendemos que ela procura outros homens. O marido, Mark, papel do neozelandês Sam Neill, de “Terror a bordo” (1989) e “Jurassic Park – O parque dos dinossauros” (1993) – repare que o filme é bem eclético, com atores e diretor de diversos países, e “Possessão” é uma coprodução França e Alemanha Ocidental, percebe a mudança de comportamento dela, a questiona, chegam a brigar e quando o divórcio é sugerido, ele não aceita o fim do relacionamento, tanto por amar Anna quanto pensando no pequeno filho que ambos têm. Sufocada, Anna foge, e Mark passa dias perambulando pelas ruas para encontrá-la. Sufocada, ela adoece, passa a ter momentos de fúrias, e o marido também. Mark descobre um dos casos da esposa, com Heinrich (Heinz Bennett - de “O último metrô”, de 1974, e “O ovo da serpente”, de 1977), então começa a vigiá-lo e a se corresponder com a mãe do cidadão. Até que Anna frequentemente é vista numa região degradada, com edifícios antigos, descascados, e sem moradores nos arredores. É num dos quartos decrépitos de um dos prédios que surge um caso inesperado de Anna, com uma criatura com rabo e traços humanos. Ela se deita com esse ser insaciável, para longas tardes e noites de sexo. A pergunta fica e, como espectadores, somos sempre indagados: o que está acontecendo com Anna e com Mark?
Os filmes de Zulawski dialogam com países em guerra, divididos e invadidos, com personagens sufocados em constante alucinação, e o diretor ainda insere ares profanos – eu vejo “Possessão” como a última parte de uma trilogia de filmes vendidos como “terror”, mas que são dramas contundentes e simbólicos, que trazem o horror psicológico como forma de questionar estruturas, sistemas e identidades; trilogia porque começaria com “A terça parte da noite” (1971), que se passa na Polônia ocupada pelos nazistas e tem como protagonista um jovem infectado com tifo que sofre devaneios quando se muda para a casa de uma mulher grávida parecida com a esposa morta; no ano seguinte viria “O diabo” (1972), filme banido da Polônia, com trama na Polônia invadida pelos prussianos em 1793 e lá um prisioneiro político segue um desconhecido que o apresenta a um mundo dominado pelo caos e por degradações cruéis; e finalmente “Possessão”, cuja história é na Guerra Fria, na Berlim dividida (o filme não deixa claro onde e quando se passa a trama, mas se percebem nomes alemães, como Anna, Heinrich, Zimmerman e Margit, por exemplo). Os três filmes têm semelhanças no roteiro, na construção dos personagens, nos enquadramentos e em outros pontos técnicos.
Zulawski gera em nós, espectadores, um incômodo permanente devido ao enquadramento, que joga a câmera no rosto dos personagens e vai seguindo com eles atrás, formando imagens corridas, trepidadas, em constante movimento. Há plongée, contraplongée, os personagens ficam confinados em lugares fechados, sempre com as paredes apertadas (uma metáfora da tensão do casamento, do aprisionamento do lar), para trazer à tona a alma de uma mulher ferida e desiludida com o marido, que aos poucos perde a sanidade a ponto de cometer crimes. Numa cena emblemática, e a mais lembrada, Anna tem um ataque de fúria no metrô vazio, como se fosse uma possessão, onde destrói as sacolas de compras do mercado na parede, estilhaçando garrafas de leite. Debate-se na parede e no chão, até sangrar por todos os poros e orifícios, numa espécie de aborto. É uma sequência que choca, constrange, de quase 3 minutos, de pura gritaria e torpor (a banda de trip hop inglesa Massive Attack adaptou a cena para o clipe da música “Voodoo in my blood”, em 2016, com Rosamund Pike na pele da personagem, com vestido parecido e tendo um ataque no metrô, enquanto é controlada por uma bola robótica voadora). Isabelle Adjani conta que ficou perturbada durante o processo de criação da personagem, demorou anos para superar Anna. Na época estava no auge da carreira e da beleza e ganhou o prêmio de melhor atriz em Cannes pelo trabalho em “Possessão” – na verdade, ela ganhou dois em Cannes, também pelo papel de Marya, em “Quarteto de paixão” (1981).
Rodado inteiramente em Berlim Ocidental (lembrando que era Guerra Fria, e Berlim Oriental estava barrada pelo muro), há muitas cenas que trazem o contraste da cidade moderna (quando as sequências são no bonito aparamento de Mark) com a parte decadente (onde Anna se encontra com o monstro – essas cenas foram rodadas no bairro turco de Kreuzberg, uma área devastada). São três aparições do monstro, bem rápidas, que proporcionam um choque visual imediato, devido às poéticas do horror contemporâneo – o efeito se dá graças ao trabalho do mestre em efeitos visuais Carlo Rambaldi, criador de “Alien, o oitavo passageiro” (1979) e “E.T. – O extraterrestre” (1982), pelos quais ganhou o Oscar na categoria.
Banido do Reino Unido, lá tachado de “filme nasty” e só liberado pelo British Board of Film Classification em 1999, foi censurado nos Estados Unidos também, saindo no mercado com quase 40 minutos a menos, em que foram retiradas as cenas de violência e depravação.
Há outras simbologias e poéticas de linguagem no perturbador filme de Zulawski. Quando assume aspecto de thriller de espionagem, da metade com a aparição de outra figura elementar, a da professora do filho pequeno (a mesma Isabelle Adjani), até o desfecho com as sirenes e explosões, o diretor faz um comentário crítico e social sobre a Guerra Fria, sobre o medo do ataque nuclear que rondava o pensamento de muita gente. Grande parte das locações estava a 10 metros do muro de Berlim, e conta-se que a equipe técnica era constantemente vigiada pela polícia do Oriente, ou seja, do outro lado do muro, no entanto havia aprovação e respaldo das gravações pelo Senado de Berlim.
No documentário “The other side of the wall: The making of ‘Possession’”, de 2011, dirigido por Daniel Bird (que está como extra do filme “Possessão” no box Obras-primas do cinema - Volume 11), o diretor Zulawksi, além de contar sobre o seu processo de divórcio que inspirou a ideia do filme, narra sobre o aspecto político da obra: um diretor que viveu sob a perseguição do regime comunista, viu a sovietização da Polônia e os rumos atrozes a que seu país natal foi levado. Discute, no documentário, muito sobre o mal espalhado ao redor dos personagens, o mal que espreita e vigia, e muito se deve às consequências do momento político da Guerra Fria entre os anos de 1950 e 1980. O muro de Berlim aparece em vários lances, e há cenas da Berlim Oriental toda destruída, como forma de relacionar a ideia de ruína arquitetônica com a decomposição da alma dos dois personagens centrais da história. E aliado a isso está a criação de todo um clima de desconfiança, medo e agonia entre as figuras do filme.
Zulawski conta ainda no documentário que “Possessão” teve vaias e aplausos em Cannes, dividiu o público e a crítica, e não teve a repercussão como esperado. Relata que pouca gente entendeu o sentido da obra, do que ele quis realmente dizer (é complexo até hoje). A Palma de Ouro foi para outro filme de cunho político, “O homem de ferro”, de Andrzej Wajda, e Zulawski afirma que ficou feliz pelo prêmio a Wajda.
“Possessão” tem uma trilha sonora moderna e sinistra, fundamental para o clima de estranheza da trama, assinada pelo polonês Andrzej Korzynski, com quem o diretor Zulawski havia trabalhado em “Globo de prata” (1988), “A fidelidade” (2000) e “Cosmos” (2015) – ele usa sons de objetos tilintando e assovios que arrepiam!
Quem assina a produção é uma mulher, a francesa Marie-Laure Reyre, de “Olivier, Olivier” (1992), que com coragem e muita audácia fez de “Possessão” se transformar em uma obra única, complexa, sugestiva e altamente criativa. (FELIPE BOSO BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB)
Quem Matou Rosemary?
3.2 104Resenha do filme "Quem matou Rosemary?" (1981), escrita por mim especialmente para o livro "Slashers - 11 filmes essenciais da coleção", lançado pela Versátil Home Video em novembro de 2022.
Medo e terror em Avalon Bay
É noite de formatura na escola feminina de Avalon Bay, em New Jersey. A festa é minuciosamente preparada pela comunidade, para receber formandos, familiares, professores e amigos. No mesmo local, há 35 anos, uma garota chamada Rosemary e seu namorado foram brutalmente assassinados. O assassino fugiu, o crime nunca foi resolvido, e aquele fato marcou a memória das pessoas. À medida que a formatura se aproxima, o psicopata de décadas atrás volta a atacar os jovens em uma noite de medo e tensão.
Essa é a trama central de “Quem matou Rosemary?”, um slasher icônico do início dos anos 80 e um dos mais violentos já produzidos no cinema americano. O filme foi lançado exatamente no ano de ouro do cinema slasher, 1981, um período em que os fãs de terror deliraram com os melhores exemplares desse subgênero. São fitas a perder de vista produzidas em 1981: “Sexta-feira 13 - Parte 2” (de Steve Miner), “Chamas da morte” (de Tony Maylam – também conhecido como “A vingança de Cropsy”), “Feliz aniversário para mim” (de J. Lee Thompson), “Halloween II – O pesadelo continua!” (de Rick Rosenthal), “Noite infernal” (de Tom DeSimone), “Aniversário sangrento” (de Ed Hunt), “A hora das sombras” (de Jimmy Huston), “Pouco antes do amanhecer” (de Jeff Lieberman), “Escola noturna” (de Ken Hughes), “Olhos assassinos” (de Ken Wiederhorn) e o the best one, “Dia dos Namorados macabro” (de George Mihalka). Cada um com suas qualidades e diferenças, há slasher com serial killer mascarado, outros com pessoas deformadas em busca de vingança etc.
“Quem matou Rosemary?” abre com duas cenas distintas em preto-e-branco, mas que dialogam: a primeira, de um antigo cinejornal, sobre o fim da Segunda Guerra Mundial, com soldados combatentes retornando da Europa em navios lotados - e em breve se encontrarão com suas famílias. Na sequência, aparece uma carta romântica escrita por Rosemary. O ano é 1945, e em Avalon Bay haverá uma badalada festa de formatura onde parte dos soldados festejarão com seus grupos. Rosemary também está lá, com um namoradinho em um gazebo. Sozinhos, conversam até que alguém se aproxima. A câmera capta pormenores do desconhecido, em que se vê botas e uma farda camuflada do exército. Quando Rosemary abraça seu affair, uma forquilha pontiaguda atravessa o corpo dos dois, e o sangue escorre veloz. O assassino estica uma rosa e a deposita na mão de Rosemary. O tempo passa, e estamos em 1980, na mesma Avalon Bay, onde haverá outra festa de formatura. O assassino fardado e mascarado pega uma faca de caça, coloca na bainha e junta a forquilha para novos assassinatos. Quem é ele e por que está cometendo os crimes?
Ao longo do filme juntamos pistas para descobrir a identidade do sádico serial killer que mata com fúria, sem pestanejar, no melhor estilo “Whodunit” (“Quem fez isso”, “Quem matou”). O rosto dele só será revelado na cena final (inclusive uma cena bem forte). Até lá uma série de mortes violentas será cometida. O gore corre solto, com momentos notórios – a sequência do banho, por exemplo, ficou famosa, é assustadora e traz todo um clima de tensão.
Por falar em gore e cenas sanguinárias, elas são convincentes, dado o grau de realismo da maquiagem e dos efeitos, assinados por Tom Savini, mestre no assunto desde os anos 70 – Savini, que trabalhou como ator em “Um drink no inferno” (1996), fez a maquiagem de “Despertar dos mortos” (1978) e de outros slashers como “Sexta-feira 13” (1980), “O maníaco” (1980) e “Noite de pânico” (1982).
A direção conduzida por Joseph Zito, diretor de “Sexta-feira 13 – Parte 4: O capítulo final” (1984) e de “Braddock: O supercomando” (1984), é de um tom sombrio e de angústia, ele investe pouco no humor, foca no suspense e até no terror psicológico, para que o público possa entrar na mente do assassino, ver o lado doentio dele e “entender” as razões do assassinato. Zito também assina como produtor, ao lado de David Streit, produtor executivo de “A experiência” (1995).
O elenco reúne atores novatos da época, como Vicky Dawson, de “A cara do pai” (1981), Christopher Goutman e Cindy Weintraub, e participação de dois veteranos (o cinema slasher costumava convidar atores e atrizes de peso para puxar público além dos jovens), Farley Granger – que esteve em dois filmaços de Alfred Hitchcock, “Festim diabólico” (1948) e “Pacto sinistro” (1951), e Lawrence Tierney, de “Nascido para matar” (1947) e “Cães de aluguel” (1992).
Até pouco tempo atrás a única cópia disponível de “Quem matou Rosemary?” no Brasil era da própria Universal Pictures, com metragem menor que a exibida nos cinemas da época (a metragem desse DVD era de 84 minutos, editada devido à violência). Em 2019, a Versátil distribuiu o filme na versão original de cinema, sem cortes e restaurada, igual à lançada nos Estados Unidos (de 89 minutos), dentro do box “Slashers vol. VI - uma caixa em edição limitada com quatro cards e duas horas de extras, onde acompanham também os filmes “Sombra no escuro” (1979, de Denny Harris), “Prefácio da morte” (1989, de Tibor Takács) e “Popcorn – O pesadelo está de volta” (1991, de Mark Herrier).
Sou fã do cinema slasher desde pequeno, e não posso deixar de recomendar “Quem matou Rosemary?”, um dos melhores do gênero. Um filme de terror bem escrito e assustador, que faz o sangue escorrer pela tela da TV! (FELIPE BOSO BRIDA)
O Padrasto
3.4 84 Assista AgoraSob o signo do mal: uma revisão de O padrasto
Num fundo preto, surgem, um a um, os créditos de O padrasto (1987) com uma cor sugestiva: vermelho sangue. A trilha mistura tons poéticos e sinistros, até que aparece a primeira cena, um travelling que capta, bem no alto, um bairro aparentemente pacato, com as folhas das árvores caindo. De bike, um entregador de jornal faz seu trabalho. A câmera foca uma das casas, que leva o espectador para dentro do local. Vemos a cintura de um homem que coloca objetos em uma maleta. A tranquilidade de quem assiste ao filme é abalada quando as mãos e o rosto do cidadão irrompem sujos de sangue... ele olha para o espelho do banheiro, limpa-se, a pia fica com gotas vermelhas. Corta a barba e entra no banho. Em sequência, coloca uma lente de contato, veste terno e gravata e se transforma num novo homem. Prepara-se para sair de casa, pega a maleta, arruma brinquedos espalhados pelo corredor. Quando desce as escadas, novamente somos impactados com um amontoado de pessoas mortas. Há sangue para todos os cantos da casa, uma verdadeira chacina. Despreocupado, ele sai pela porta da frente, assobiando e recolhe o jornal caído na varanda. O mesmo travelling da abertura acompanha-o andar pela rua, sozinho, revigorado e feliz, rumo ao trabalho. Esse é Jerry Blake (Terry O'Quinn), um sujeito que assassinou a família inteira, trocou de identidade e agora procura uma nova mulher para se casar e formar um lar. A próxima vítima no radar de Blake será Susan (Shelley Hack), que vive de maneira harmoniosa com a filha adolescente, Stephanie (Jill Schoelen). Será que Blake conseguirá realizar outro plano sanguinário?
Esse roteiro objetivo e bem elaborado, com um personagem central complexo, cheio de camadas e baseado em um assassino de verdade que aterrorizou New Jersey nos anos 70 fez com que O padrasto virasse uma fita cultuada pelos fãs de terror. Um filme independente com muitos méritos, inúmeras vezes reprisado na TV aberta e que ganhou continuações e remake.
A figura do padrasto acima de qualquer suspeita, que esconde um lado sombrio, é a chave da trama. O sinistro cidadão toma forma sob a interpretação derradeira do ator Terry O’Quinn, que foi indicado ao Independent Spirit Award pelo papel – ele depois ficaria marcado entre os jovens na série “Lost” (2004-2010) e faria diversos filmes como coadjuvante, como “Os jovens pistoleiros” (1988). No filme, ele carrega traços de psicopata, que alterna constantemente o humor (se porta na frente dos outros como um homem atencioso, boa pinta, só que escondido, extravasa de forma violenta a ponto de ter alucinações e pensar em mortes brutais). Outro papel de destaque é o da jovem Jill Schoelen, dos terrir “Assassinato no colégio” (1989) e “Popcorn: O pesadelo está de volta” (1991), a enteada adolescente de Blake, que suspeita do padrasto, chegando a presenciar um ataque de fúria dele no porão.
Uma outra questão preponderante no filme é uma segunda história que corre paralela e dá todo sentido ao desdobramento da aterrorizante trama: a de um rapaz disposto a descobrir o paradeiro do assassino daquela primeira família, ocorrido um ano antes, contando inclusive com a ajuda de um experiente jornalista. Eles arriscam a própria pele para encontrar Blake, que agora vive com nome diferente em uma região longe dali.
O diretor Joseph Reuben, de “Morte nos sonhos” (1984), faria nos anos 90 pelo menos dois filmes de suspense de sucesso, muitas vezes exibidos na TV aberta, “Dormindo com o inimigo” (1991, com Julia Roberts) e “O anjo malvado” (1993, com Macaulay Culkin). Ele soube aqui conduzir uma obra “de gênero”, com todas as qualidades do chamado slasher: cenas sangrentas, mortes violentas, clima de terror no ar. Apesar de não ser um exemplar do slasher tradicional, por ter menos mortes que o habitual, o filme explora uma dimensão mais psicológica do protagonista, ao invadir a mente desse homem insano, impulsivo e desequilibrado. Também não é o slasher na linha do whodunit (“Who do it?” ou “Quem matou”), em que se descobre a identidade do serial killer somente nos minutos finais. Sabemos desde o início que Blake é o criminoso, e ele não usa máscaras como os matadores slasherianos. Por isso O padrasto tem um diferencial ao aproximar Blake a um cidadão comum, um assassino infiltrado na sociedade, no meio de nós, e não precisa se mascarar para cometer atrocidades. Blake pode ser qualquer um, pode se disfarçar de bom homem e na calada da noite, de maneira sorrateira, matar sem culpa. Talvez isso é o que dê mais medo na personalidade de Jerry Blake. Destaco que são poucas, mas bem realizadas sequências de morte, com um pontual suspense, embutido em todos os momentos.
O roteiro foi escrito a seis mãos, por Brian Garfield, escritor de romances que viraram fitas de ação, como “Desejo de matar” (1974) e “Sentença de morte” (2007), Donald E. Westlake - indicado ao Oscar de melhor roteiro por “Os imorais” (1990), cujo argumento original de O padrasto é dele, e Carolyn Lefcourt (que não fez nada mais relevante). O roteiro teve uma inspiração real: uma parte da vida de John List (1925-2008), assassino em série que em 1971 trucidou a família, composta pela esposa, a mãe e os três filhos, na cidade de Westfield, em Nova Jersey. E depois fugiu, usando identidade falsa e arrumando outra família. List integra a lista dos piores criminosos da história dos Estados Unidos. Ele só foi descoberto 17 anos depois, em 1989, em decorrência de uma reportagem de TV (como ocorre no filme O padrasto); ao ser preso pela polícia, confessou que tinha novos planos de morte. Ficou na cadeia até morrer, em 2005, então com 82 anos.
O padrasto deu origem a duas continuações: a primeira para o cinema, intitulado “A volta do padrasto” (1989), novamente com Terry O’Quinn, e uma para a TV, “O padrasto: Ele voltou para ficar” (1992), cujo papel foi para o ator Robert Wightman, ator da série “Os Waltons” (1972-1981) e do filme “Gigolô americano” (1980). E teve ainda uma refilmagem bastante inferior, “O padrasto” (2009), com Dylan Walsh, ator de “Congo” (1995) e “A casa do lago” (2006), na pele do assassino.
Filme presente em DVD, em ótima cópia, no box “Slashers volume 11”, juntamente com obras aterrorizantes como “Motel diabólico” (1980), “Incubus” (1981) e “Massacre no colégio” (1986). Para ter em sua coleção e rever quantas vezes quiser!
Resenha do filme "O padrasto" (1987) escrita especialmente para o livro "Slashers - 11 filmes essenciais da coleção", lançado pela Versátil Home Video em novembro de 2022. Livro disponível para venda no site da Versátil.
A Lenda de Candyman
3.3 508 Assista AgoraUma das melhores revisões de filme de terror dos últimos anos, “A lenda de Candyman” (2021) se encaixa tanto como uma continuação quanto um remake do original, “O mistério de Candyman” (1992), que me assombrou muito quando pequeno. Agora a jovem diretora Nia DaCosta, que fez antes o drama/policial “Passando dos limites” (2018, com Tessa Thompson e Lily James), dá um novo tom e novas críticas sociais para contar a história de um artista visual que nasceu pobre e ficou rico e vai morar numa região gentrificada de Chicago, palco dos assassinatos pelo espírito de Candyman tempos atrás, um escravo com um gancho na mão. O ator Yahya Abdul-Mateen II, de “Aquaman” (2018) e “Nós” (2019), acerta em cheio com sua interpretação dupla do protagonista, que vai enlouquecendo ao longo da história, enquanto uma série de crimes brutais ocorre.
O visual do filme (um terror psicológico com forte crítica social) incomoda com suas cores fortes (ótima fotografia de John Guleserian, de “Questão de tempo”, aliada a uma boa direção de arte – destaque para a cena da galeria toda neon, com banhos de sangue), e há uma série de enquadramentos diferenciados, com inversão de imagem, plongée, jogo de espelho etc
É terror, mas é acima de tudo um drama social triste e impactante, que discute uma sociedade racista e ameaçadora – o tema central é a gentrificação em Chicago e suas complicações urbanas e sociais, com a expulsão forçada da população periférica para que o local sirva de espaços modernos e receba população da alta classe. Também se fala de lendas urbanas no gueto, com diálogo abrangente sobre racismo, escravidão e violência policial (é um filme mais profundo que o primeiro, de 1992).
Na abertura vemos a logo ao contrário da Universal ao som da música “Candyman”, cantada por Sammy Davis Jr – que integrou a trilha sonora de “A fantástica fábrica de chocolates” (1971 – lá cantada por Aubrey Woods).
Escrito e produzido por Jordan Peele, de “Corra!” (2017 – em que venceu o Oscar de melhor roteiro original), “Nós” (2019) e “Não! Não olhe!” (2022), hoje um mestre do cinema de horror contemporâneo. Com a colaboração da diretora Nia DaCosta no roteiro, Peele baseou-se no conto “Candyman”, de Clive Barker (originalmente intitulado “The forbidden”, de 1978) e reutilizou ideias do filme “O mistério de Candyman” (1992).
Assisti ao filme duas vezes e pretendo uma terceira revisão.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
A Ilha Misteriosa
3.4 33 Assista AgoraAventura classe A da Columbia Pictures, muitas vezes exibida na TV, que agora pode ser conferida numa boa edição em DVD da Classicline. É a melhor e mais querida adaptação do livro homônimo do escritor francês Julio Verne, autor de obras clássicas consagradas sobre expedições a mundos desconhecidos (como “Viagem ao centro da Terra”) e de humanos lutando contra formas de vida ameaçadoras (como “20.000 léguas submarinas”). O notório personagem Capitão Nemo apareceu em duas histórias de Verne: primeiramente em “20.000 léguas submarinas” e depois, com menor destaque, em “A ilha misteriosa” - chamado de Príncipe Dakkar, é um intelectual, conhecedor dos mares, que cria um submarino, o Nautilus, e acaba se isolando numa ilha fora da civilização, decepcionado com a humanidade e suas atrocidades.
Em “A ilha misteriosa”, um grupo de soldados, numa viagem de balão, cai numa ilha do Pacífico tomado por animais gigantes, como uma galinha, um caranguejo e abelhas. Escapam para sobreviver, até serem socorridos por Capitão Nemo (que aparece somente na meia hora final).
O diretor Cy Endfield, de “Na rota do inferno” (1957) e “Zulu” (1964), realizou uma fita de entretenimento ágil, bem feita e cheia de momentos de fuga e aventuras malucas. A trilha sonora de Bernard Herrmann (de “Taxi driver”) ajuda, assim como os efeitos especiais de Ray Harryhausen, de “Simbad e a princesa” (1958) e “Jasão e o velo de ouro” (1963), sem falar da fotografia paradisíaca de Wilkie Cooper (o filme foi rodado no Reino Unido e grande parte na costa da Espanha, onde seria a ilha).
Michael Craig, de “A cinco passos da morte” (1958), Joan Greenwood, de “As aventuras de Tom Jones” (1964) e Michael Callan, de “Dívida de sangue” (1965), estão no elenco central. Já Herbert Lom, o inspetor Dreyfuss de vários filmes da franquia “A Pantera cor-de-rosa”, faz Nemo, numa participação bem legal. Assistam sem medo de errar!
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
A Vinte Milhões de Léguas da Terra
3.5 24 Assista AgoraRay Harryhausen (1920-2013) abriu novos horizontes para os efeitos visuais do cinema americano a partir dos anos de 1950, responsável em criar efeitos em stop-motion que até hoje inspiram diretores – o stop-motion, também chamado de “quadro-a-quadro”, já existia desde a década de 1910, no entanto era trabalhoso de ser feito, e Harryhausen o projetou com intensidade no cinema de entretenimento tornando a técnica mundialmente famosa. Harryhausen começou no departamento de efeitos especiais de um filme em que nem foi creditado, “Monstro de um mundo perdido” (1949), a primeira versão de “Poderoso Joe”, que por sua vez vem do universo do gorila King Kong. Em seguida assinou pela primeira vez os efeitos de um filme, “O monstro do mar” (1953), sobre um Godzilla mortal, e mais tarde, “O monstro do mar revolto” (1955), com um polvo gigante atacando São Francisco. Depois vieram “Invasão dos discos voadores” (1956), um filme sobre ataque de alienígenas à Terra, até chegar esse aqui, “A 20 milhões de léguas da Terra” (1957), sobre um réptil que vem de Vênus e cresce a ponto de se tornar um monstro terrível. Fez ainda três fitas de “Simbad” para o cinema, “Jasão e o velo de ouro” (1963), o icônico “Fúria de titãs” (1981) e outros.
O filme é puro entretenimento no aspecto “Sessão da Tarde”: descompromissado, ágil, curtinho, fácil de se apreciar (e ainda por cima, nostálgico – fica na memória a saudade de um cinema artesanal de outrora e também fica a pergunta, “Como eles faziam esses efeitos”?).
Quem dirige é Nathan Juran (1907-2002), cineasta austro-húngaro que começou como diretor de arte (de clássicos dos anos 40 e 50 como “Como era verde o meu vale” e “Meu amigo Harvey”), e que nos anos de 1950 partiu ser diretor de filmes de terror (como “O castelo do pavor”), de faroeste (“Com a lei e a ordem” e “A morte tem seu preço”), além, claro, de aventuras com ficção científica com criaturas fantasiosas, como “Fúria de uma região perdida” (1957), com um gafanhoto enorme e assassino, esse “A 20 milhões de léguas da Terra”, “O ataque da mulher de 15 metros” (1958), com uma mulher gigante, e “Simbad e a princesa” (1958), o primeiro de uma série de filmes de aventura com monstros míticos e animais ferozes (também com efeitos de Harryhausen).
Curioso que rodaram parte em Los Angeles e sequências na Itália, em Roma (vê-se o Coliseu, onde conseguiram gravar dentro dele).
Lançado em DVD pela Classicline em disco duplo: no primeiro disco, a versão original, em preto-e-branco, juntamente com a colorizada, e mais um disco de bônus, com mais de duas horas de making of, bastidores e entrevistas.
Para se ter na coleção.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
O Monstro do Mar Revolto
2.9 29 Assista AgoraPara a época, 1955 (período frutífero do cinema scifi americano com filmes com criaturas gigantes ameaçadoras), “O monstro do mar revolto” foi vendido como terror, invadindo as salas pelo mundo afora, empolgando uma legião de fãs. Esse aqui fez tanto burburinho que chegou a influenciar outros futuros longas-metragens com polvos assassinos, como as duas versões de “Tentáculos” (1977 e 1998). A trama desse e de muitas fitas do cinema scifi do período carregava um ar de aventura, porém aos poucos assumia um outro lado, com elementos absurdos do universo da ficção científica literária (típicos de H.G. Wells e Julio Verne), com seres estranhos em mundos desconhecidos, que habitavam oceanos, florestas e o espaço sideral – e quase sempre esses “monstros” eram frutos de experimentos genéticos malsucedidos. Aqui, a Marinha investiga um ser subaquático que ataca navios, e descobrem que ele é um polvo contaminado com elementos radioativos. O animal abandona o fundo do mar e vem para a superfície atacar barcos e pessoas na praia. O principal alvo será a cidade de São Francisco – numa das cenas antológicas, ele chega a escalar o maior cartão-postal de lá, a ponte de São Francisco, destruindo tudo pela frente. Como cinemão, diverte e chama a atenção pela criatividade e pelos efeitos visuais, do mestre Ray Harryhausen, famoso por criar truques visuais com stop-motion (como aqui, que foi seu segundo trabalho – anteriormente fez os efeitos de “O monstro do mar”, de 1953, sobre um Godzilla americano); Harryhausen deixou um legado importante na área técnica com duas dezenas de obras, como “Simbad e a princesa” (1958) e a primeira versão de “Fúria de titãs” (1981).
O ator Kenneth Tobey, protagonista do filme, foi o capitão Hendry de “O monstro do Ártico” (1951), outro clássico do cinema scifi (com terror), que inspirou um de meus filmes de terror preferidos, “O enigma de outro mundo” (1982), de John Carpenter.
Saiu em DVD recentemente pela Classicline, em disco duplo: no primeiro disco, o filme com a versão original, em preto-e-branco, e a versão colorizada, e no disco dois, extras com mais de 1h40 de making of, bastidores, entrevistas etc
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
A História de Louis Pasteur
3.9 21Em 1860, o cientista e químico francês Louis Pasteur (Paul Muni) estuda uma forma de diminuir a morte de mulheres durante o parto e de recém-nascidos por infecções. Publica a “Teoria dos Germes”, explicando aos médicos formas de esterilização de equipamentos cirúrgicos e higiene dos locais. No entanto, a academia médica não dá a devida importância para ele. Uma década depois, rebanhos de ovelhas em várias regiões da França morrem por causa de um vírus, exceto naquela parte do país em que Pasteur desenvolveu uma vacina e a aplicou nos animais. Novamente ele é descredibilizado. Mas aos poucos a França reconhece seu trabalho pioneiro com vacinas e no tratamento de infecções.
Nascido na Alemanha, o diretor William Dieterle realizou duas cinebiografias premiadas para os estúdios da Warner Bros: “A história de Louis Pasteur” (1936) e “A vida de Emile Zola” (1937), ambas protagonizadas por Paul Muni. Muni recebeu o apelido de “rei das biografias para cinema” durante a Era de Ouro de Hollywood, por interpretar personagens reais em drama sociais de forte contestação. O ator austro-húngaro fez, por exemplo, só na Warner, três filmes sequenciais contando histórias verídicas de líderes rejeitados devido a seus inventos extraordinários ou pela visão de mundo - e que foram perseguidos por seus posicionamentos políticos: os já mencionados Pasteur e Zola, e depois o drama “Juarez” (1939), onde interpretou Benito Juárez, chefe indígena mexicano que foi cinco vezes presidente do México. Zola, vale destacar, foi mal interpretado pelo público, na época, pois foca no lado ativista do escritor francês de “A besta humana”, quando redigiu a famosa carta “J’accuse” (“Eu acuso”), escrita para defender um capitão da artilharia francesa de origem judia erroneamente acusado de traição em 1894 – o que ficou conhecido como “Caso Dreyfuss”, um dos erros mais terríveis do judiciário mundial. Muni também fez a primeira versão de “Scarface”, cujo subtítulo era “A vergonha de uma nação” (1932), seu filme mais notório na linha policial, depois refilmado por Brian De Palma com Al Pacino no início dos anos de 1980. Muni virou um rosto muito conhecido nos anos de 1930 e 1940, e por Louis Pasteur, ele venceu como melhor ator no Festival de Veneza e o Oscar – ainda no Oscar, a produção recebeu outros dois prêmios, nas categorias de roteiro e história original/argumento (categoria que não existe mais).
Dieterle realizou aqui um bom filme que resgata a trajetória de Louis Pasteur (1822-1895), com forte comentário crítico e político (o popular estúdio da Warner desafiava as regras da época, enfrentando um sistema de censura que contaminou a indústria de Hollywood entre os anos de 1930 e 1950). Na história, contada com mínimos detalhes, mostra Pasteur rejeitado pela Medicina que aos poucos desenvolveu métodos pioneiros de eliminar infecções em ambientes hospitalares. O reconhecimento das técnicas se deu décadas e décadas posteriores, quase próximo de sua morte, o que o levou a intensas discussões com a academia médica, sem contar uma angústia feroz que o deprimiu.
O diretor William Dieterle começou como ator de teatro no país natal, na década de 1910, depois apareceu em filmes de F.W. Murnau, e aos 30 anos, em 1923, dirigiu seu primeiro filme, o primeiro com Marlene Dietrich, em terras alemãs, até ser chamado para trabalhar como diretor e ator nos EUA em 1930. Realizou 60 longas nos EUA, entre romance, dramas sociais, comédias e filmes de ação, com uma perceptível direção própria. Foi perseguido pelo Macartismo no começo dos anos 1950, teve os documentos pessoais e passaporte cassados e foi banido por ser considerado comunista. Mudou-se para a Europa onde realizou filmes e telefilmes na Alemanha e na Itália. Retornou com poucos recursos aos EUA, isolado de todos, e morreu na Alemanha em 1972, aos 79 anos, deixando um extenso legado de filmes inteligentes, à frente de seu tempo.
POR FELIPE BRIDA - Blog Cinema na Web
A Guerra dos Mundos
3.5 114 Assista Agora“Guerra dos mundos” ou “A guerra dos mundos” é considerado um dos 10 filmes mais emblemáticos e assustadores sobre invasão alienígena na Terra, produzido no auge da Guerra Fria, em 1953, e, portanto, trazendo todas as paranoias da época. Há alegorias diversas, sendo as principais a das naves e das criaturas siderais como se fossem espiões vindos da Rússia, e a perseguição cruel dos ETs aos humanos, semelhante ao Macartismo, que vasculhava a vida de americanos considerados comunistas. Apesar de ser baseado no famoso livro homônimo de H.G. Wells, um dos papas da literatura de ficção científica, publicado em 1897 (nesse período não existia a Guerra Fria), a história teve novos contornos, dentro do clima de medo, angústia e aprisionamento do contexto político e social do pós-guerra e da divisão do mundo em dois blocos.
Gene Barry, protagonista da série “Bat Masterson” (1958-1961), e Ann Robinson, de “A muralha da esperança” (1953), estrelam essa formidável adaptação. Eles são duas testemunhas de objetos estranhos aparentando meteoros que caem na Califórnia. É uma invasão extraterrestre, cujas naves chegam aos poucos espalhando destruição, até atingir proporções mundiais. Cientistas se unem então para encontrar um jeito de liquidar com aquela forma de vida.
Causou fortes emoções no público no lançamento por ser um dos primeiros filmes coloridos de ficção científica, cujas cores dão realce e impacto nas cenas de destruição e terror provocados pelos alienígenas. Aqui os ETs não são amigáveis. A ciência já explorava formas de vida fora da Terra, e a visão de Wells e dos produtores era de puro pessimismo: as criaturas têm formato de aracnídeos que vinham em grandes máquinas, e de dentro delas saíam pequenas naves indestrutíveis, protegidas por cápsulas eletromagnéticas, parecidas com um cisne, com uma cabeça de periscópio, que espia ao redor, e de repente, dispara raios que faziam humanos virarem pó.
Ganhou um Oscar especial de efeitos especiais e foi indicado a melhor som e edição. O diretor Byron Haskin era especializado em efeitos visuais, começou a carreira nesse departamento, pelo qual foi indicado a quatro Oscars nos anos de 1940. Dirigiu filmes de aventura, como “A selva nua” (1954) e scifi, como esse, que seria seu maior trabalho, e depois “Robinson Crusoé em Marte” (1964). O produtor era outro nome importante do mundo scifi: George Pal, de fitas populares como “Destino à Lua” (1950), “O fim do mundo” (1951) e “A conquista do espaço” (1955).
“Guerra dos mundos” virou duas séries, nos anos de 1980 e 2010, e um outro bom filme, de 2005, dirigido por Steven Spielberg, com Tom Cruise.
Há duas edições do filme de 1953 em DVD: uma antiga da Paramount, de 2005, em boa edição, e a recente cópia da Obras-Primas do Cinema proveniente de uma nova restauração em 4k norte-americana, com imagem superior – os extras de ambos são os mesmos, com mais de um hora de making of, bastidores e entrevistas.
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Matinee: Uma Sessão Muito Louca
3.3 60 Assista AgoraFigura louvável do cinema blockbuster americano da década de 1980, diretor de filmes memoráveis como “Grito de horror” (1981), “Gremlins” (1984), “Viagem insólita” (1987) e “Meus vizinhos são um terror” (1989), Joe Dante presta aqui uma singela homenagem ao cinema de baixo orçamento (os “filmes B”) dos anos de 1950 e 1960, em especial aqueles de terror e ficção científica, tão populares nos Estados Unidos, cujas sessões lotavam as salas. Em seu trabalho menos lembrado (mas muito especial para os cinéfilos que gostam de conhecer os bastidores do mundo do cinema), acompanhamos as loucuras por trás do lançamento de um filme nas salas, do marketing para divulgá-lo até caçar gente para comprar ingresso. Numa cidade da Florida durante a Guerra Fria, os moradores estão à flor da pele com medo de uma guerra nuclear. Um produtor de um filme B aproveita o momento para distribui-lo numa grande sala. Será um longa-metragem preto-e-branco com um homem-formiga assassino, fruto da mutação genética causada por radiação nuclear (ele é chamado de “Hormiga”, ou em inglês, “Mant”, junção de “man” e “ant”). Para dar impacto durante a projeção, o produtor instala nas poltronas do cinema equipamentos para dar choque no público, e durante a exibição, fumaças saem da tela e ouvem-se estouros como bombas – isso tudo existiu nos cinemas da época, com poltronas que chacoalhavam, da tela espirrava água nas pessoas em filmes de naufrágio no mar etc O produtor contrata por fim um rapaz para se vestir de formiga e assustar o público perambulando pelas fileiras.
O ator John Goodman (ele está bonachão e à vontade) interpreta esse destemido produtor de cinema, cujo papel foi inspirado no lendário produtor e diretor William Castle (1914-1977), realizador de filmes B de terror e scifi com efeitos especiais altamente inusitados - por exemplo, dirigiu e produziu “Força diabólica” (1959), com um monstro parasita que estraçalhava as pessoas num laboratório, e “13 fantasmas” (1960), com espíritos malignos aterrorizantes.
Narrado por um adolescente que é fã de cinema, o filme retrata, em segundo plano, o medo de uma guerra nuclear - o contexto é a crise dos mísseis de Cuba, durante 13 dias em outubro de 1962, os tais “13 dias que abalaram o mundo”, quando os soviéticos, em plena Guerra Fria, em resposta à instalação de mísseis na Turquia e na Itália pelos Estados Unidos, revidaram colocando ogivas em Cuba viradas para o país norte-americano; e por pouco não houve uma guerra atômica com proporções impensáveis!
Tudo isso está nesse passatempo delicioso, inteligente e brincalhão de Joe Dante, que conta com boas atuações de John Goodman, de “Os Flinstones: O filme” (1994), e Cathy Moriarty, indicada ao Oscar de atriz coadjuvante por “Touro indomável” (1980), e participações menores de Dick Miller, John Sayles e Naomi Watts (numa pontinha em início de carreira).
Sai em bluray pela Obras-primas do Cinema numa cópia excelente, com mais de duas horas de extras e uma luva especial.
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O Colecionador de Almas
3.4 24Rodado nos desertos da Namíbia e em cidades da África do Sul, o terror independente é uma experiência sensorial incrível, que há tempos eu não sentia. Graças à fotografia deslumbrante, toda alaranjada que reforça o calor do deserto, e muita poeira. O lugar é como se fosse a entrada para o inferno, de onde surge um misterioso andarilho à espreita de pessoas perdidas para levar a alma delas (a fotografia é do diretor de fotografia de “Highlander 3, o feiticeiro”, Steven Chivers). O roteiro, modesto na forma, mas místico no conteúdo, com momentos assustadores e outros bem chocantes com os rituais sangrentos, é do roteirista sul-africano Richard Stanley, que também dirige a fita, responsável por pelo menos dois filmes de terror independentes e criativos: “Hardware: O destruidor do futuro” (1990), que mistura ficção científica, com Dylan McDermott, e o recente “A cor que caiu do espaço” (2019), baseado num conto de H.P. Lovecraft, com Nicolas Cage e Joely Richardson.
Os elementos técnicos/gráficos desse filme (lançado em 1992, e praticamente apagado da memória do público), ganham nova dimensão na excelente cópia em DVD da Obras-primas do Cinema, que o lançou há poucos meses. A versão disponível em DVD é a ‘Final cut’, o corte final, de 108 minutos, com sete minutos a menos do que aquela que saiu nos cinemas (de 115 minutos); houve depois outro corte, lançado na França, Itália e EUA, de 87 minutos, com menos violência, e por fim o corte do diretor, com 103 minutos.
Robert John Burke, de “Robocop3” (1993) e “A maldição” (1996), incorpora com nítida entrega a figura central de um “Dust devil”, uma espécie de espírito do mal que assume formas diferentes, e caminha pelas estradas caçando gente. Chelsea Field, atriz de fitas populares nos anos de 1980 e 1990, como “Mestres do universo” (1987) e “O último boy scout” (1991), também se destaca como a mulher que foge do marido abusivo e terá um terrível encontro com o protagonista. No elenco, participações de coadjuvantes curiosos, dentre eles a alemã Marianne Sägebrecht, de “Bagdad Café” (1987), e dois atores sul-africanos, John Matshikiza, de “Um grito de liberdade” (1987), e Zakes Mokae, de “A maldição dos mortos-vivos” (1988) – Mokae interpreta um papel importante, de um sargento que tem premonições envolvendo o andarilho e as mortes cometidas por ele.
“O colecionador de almas” concorreu a prêmios nos principais festivais de terror, como Avoriaz, Fangoria e Fantasporto.
Conheçam essa preciosidade do cinema cult de terror, uma coprodução África do Sul e Reino Unido.
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A Mulher de Preto
3.0 50Produzido para a TV inglesa, “A mulher de preto” é um sofisticado telefilme de terror sobrenatural que irá assustar aqueles que curtem o tema. Não somente a trama é sinistra, mas também as locações, a fotografia perturbadora e os elementos técnicos, como neblina a todo instante e as sombras nos ambientes fechados – foi filmado na região de Lacock, no condado inglês de Wiltshire, com ruelas e casinhas de aspecto medieval, que parecem ter saído do universo de Arhur Conan Doyle (destaque para o velho casarão da falecida, com um cemitério decrépito ao fundo). Começa como uma história de investigação, aos poucos o suspense assume forma e depois atinge o ápice como terror com direito a aparições de fantasmas e um segredo aterrador guardado a sete-chaves.
Baseado no livro da premiada escritora inglesa Susan Hill, publicado em 1983, teve uma versão para cinema, da qual gosto muito, assinado pela Hammer Films, “A mulher de preto” (2012), com Daniel Radcliffe e Janet McTeer.
Recebeu indicação a quatro prêmios Bafta, nas categorias de TV: melhor design, maquiagem, som e trilha sonora, e foi dirigido por um especialista em séries e telefilmes britânicos, Herbert Wise.
O telefilme acaba de ser lançado em DVD pela Obras-primas do Cinema, numa cópia muito boa, digna para ter na coleção (como extra apenas galeria de imagens e cards impressos).
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Soldado Anônimo
3.6 262 Assista AgoraTerceiro longa-metragem dirigido por Sam Mendes, renomado diretor britânico, que antes havia realizado “Beleza americana” (1999), pelo qual ganhou o Oscar de melhor diretor, e “Estrada para a perdição” (2002). Na época de “Soldado anônimo”, em 2005, estava casado com a atriz Kate Winslet. O filme serviria de veículo para o ator Jake Gyllenhaal, que naquele ano faria “O segredo de Brokeback Mountain”, em que receberia sua primeira indicação ao Oscar, de ator coadjuvante (Jake é irmão da atriz Maggie Gyllenhaal, de “Secretária” e “Batman – O cavaleiro das trevas”).
Mendes nos entrega um filme de guerra duro, complexo, repleto de críticas disfarçadas, com doses certeiras de um humor ácido e negro. A história, que é real, foi baseada no livro de memórias de mesmo título, “Jarhead”, de Anthony Swofford, um fuzileiro naval que viveu quatro dias de horror na Guerra do Golfo – o livro tornou-se campeão de vendas nos Estados Unidos, e o autor relata com precisão suas experiências traumáticas naquela guerra insana.
A história se acerca de um rapaz que vinha da terceira geração de sua família a servir o Exército. No fundo, ele não queria estar lá. Como fuzileiro num grupo de uma dezena de soldados, é enviado no meio do deserto escaldante do Iraque carregando mais de 50 quilos de armas e bombas nas costas. Sem entender os motivos da guerra, viverá momentos desconfortáveis e ameaçadores.
Os quatro dias que retratam a jornada exaustiva de Swofford são no momento mais feroz da Operação ‘Tempestade do Deserto’, durante a Guerra do Golfo, que ocorreu entre agosto de 1990 e fevereiro de 1991. Nessa operação, os Estados Unidos, sob o governo George H. Bush (o Bush pai), recorreram a ataques aéreos, terrestres e marítimos para libertar Kuwait dos domínios das forças armadas iraquianas, comandadas por Saddam Hussein. Calcula-se que foram mortos 100 mil soldados iraquianos, além de 30 mil kuwaitianos, e cerca de quatro mil soldados americanos. Uma década depois, o Iraque voltaria a ser atacado pelos Estados Unidos, num desdobramento da primeira Guerra do Golfo – o filme foi produzido nesse período, durante o governo de Bush filho, quando houve também a invasão a outro país do Oriente Médio, o Afeganistão, portanto o longa faz críticas, mesmo que subentendidas, a essas duas guerras, consideradas insanas e absurdas.
“Soldado anônimo” não teve tanta repercussão no lançamento, virou cult e ganhou três continuações para home vídeo, entre 2014 e 2019 – a cada filme o time de fuzileiros está em uma guerra diferente, como Afeganistão e depois Síria. Disponível em DVD e para aluguel no Amazon Prime.
PS: 14 anos depois de “Soldado anônimo”, em 2019, Sam Mendes dirigiria outro filme de guerra dos bons, premiado com três Oscars técnicos, “1917”. Ele ficou conhecido também por dirigir dois filmes da franquia James Bond, “007 – Operação Skyfall” (2012) e “007 contra Spectre” (2015).
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Amor Sem Fim
3.1 191 Assista AgoraFranco Zeffirelli (1923-2019), italiano que filmou nos Estados Unidos, adaptou para o cinema duas peças clássicas de William Shakespeare nos anos de 1960, com roteiro dele: “A megera domada” (1967), com Elizabeth Taylor e Richard Burton (casados à época) e “Romeu e Julieta” (1968), esta a melhor versão da tragédia do jovem casal num romance proibido, que lançaria a linda atriz Olivia Hussey. Fez sucesso com os dois filmes, depois viria “Irmão sol, irmã lua” (1972), que narrava uma parte da vida de São Francisco, a minissérie “Jesus de Nazaré” (1977), com elenco estelar, além de óperas, algumas para a telona, como “La Traviatta” (1982), e outras para a TV, como “Pagliacci” (1982) e “Turandot” (1983). Sua carreira alternava altos e baixos quando foi convidado, em 1980, pelas produtoras Polygram e Universal para dirigir uma fita juvenil de um amor levado às últimas consequências, esse “Amor sem fim”. O filme foi escrito por Judith Rascoe, corroteirista de “Soldados da morte” (1978) e “Havana” (1990), que baseou a história no romance homônimo de Scott Spencer, lançado no ano anterior. Era praticamente um “Romeu e Julieta” moderno, mais melodramático, diálogos e momentos cafonas e resultado bem bobinho (mas nostálgico para quem assistia ao filme na TV, como eu vi muitas vezes). Zeffirelli foi criticado pelo público, o longa foi perseguido pela crítica especializada a ponto de ser indicado a diversos Razzie Awards, o Framboesa de Ouro, que premia os piores filmes – “Amor sem fim” recebeu indicação de pior diretor, roteiro, filme e parte do elenco, como atriz (Brooke Shields), ator (Matin Hewitt) e atriz coadjuvante (Shirley Knight). E o inseriram na lista das 100 piores produções do cinema americano (o que é um exagero danado, convenhamos...).
Pois bem, “Amor sem fim” fez certo sucesso no cinema (com custo de U$ 9 milhões, faturou U$ 32 milhões) e explodiu nas locadoras num momento em que as fitas de vídeo viviam seu auge. O sucesso veio principalmente por causa da canção-título, “Endless love”, indicada ao Oscar e virou hit romântico da década de 1980, composta por Lionel Ritchie e cantada por ele e Diana Ross – a música concorreu também ao Globo de Ouro de melhor canção, e o álbum de Ritchie foi indicado ao Grammy.
O drama romântico é previsível, acompanha dias de uma paixão avassaladora entre dois adolescentes, Jade e David, cujo relacionamento passa a ser malvisto pelos pais da menina. Eles sofrem tanto por amor a ponto de cometer tragédias, o que irá ocorrer da metade para o fim do filme – quando se intensificam os problemas entre o garoto obsessivo e a menina ingênua, e deles com a família.
Brooke Shields vinha do sucesso de “A lagoa azul” (1980), depois de passar por filmes setentistas independentes como “Menina bonita” (1978), “Rei dos ciganos” (1978) e “Wanda Nevada” (1979), e nunca mais daria certo nas telas. Martin Hewitt estreava aqui, era uma promessa pelo rosto de galãzinho, no entanto teve o mesmo destino de Brooke: participar de uma meia dúzia de fitas menores – como “O pirata da barba amarela” (1983), e desaparecer (ele esteve no elenco de oito filmes e fez participações especiais em episódios de umas seis ou sete séries, como “Plantão médico”). Os novatos atores atuam ao lado de veteranos, parte deles até ganhadores de Oscar, como Richard Kiley e Beatrice Straight, que interpretam os pais do personagem de Martin Hewitt; Don Murray e Shirley Knight, como os pais de Brooke. Nota-se ainda James Spader, em seu segundo filme, e há uma pontinha de Tom Cruise, que era estreante.
“Amor sem fim” ganhou um bom remake em 2014, de mesmo título, com Gabriella Wilde e Alex Pettyfer, dirigido por Shana Feste, de “Em busca de uma nova chance” (2009). O original e a refilmagem estão disponíveis em DVD, pela Universal Pictures, e também no streaming, na Amazon Prime e na Globoplay.
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Lola Pater
3.3 10 Assista AgoraA distribuidora Imovision, fundada no Brasil em 1987, foi uma das porta-vozes em trazer aos cinemas do nosso país fitas de arte francesas numa época em que o cinema americano dominava. A partir da metade dos anos 2000, investiu em lançamentos de filmes de outros países não só nos cinemas como também em DVD e bluray para os colecionadores, o que faz muito bem até hoje! E todos os lançamentos da Imovision pertencem ao circuito independente, quase não vemos esses filmes em TV aberta ou no streaming. Em 2021, no auge da pandemia, a distribuidora, para concorrer com diversos streaming que se popularizam no período, lançou sua plataforma online, de assinatura, o “Reserva Imovision”, em parceria com o Reserva Cultural, louvável cinema de rua de São Paulo que ainda resiste e é mantido pelo grupo da Imovision. Explico tudo isso por dois motivos: o filme que comentarei, “Lola Pater” (2017), está tanto no Reserva Imovision para quem quiser assisti-lo (é necessário assinar um plano) quanto disponível em DVD – há milhares de colecionadores de DVDs e Blurays no Brasil (eu sou um deles), e a Imovision não desistiu da mídia física, o que é extremamente positivo!
Não vi “Lola Pater” no cinema, pude conferir o filme somente agora, em DVD. E é uma das grandes produções franco-belgas dos últimos anos. Que história bonita, delicada e humana, com sabor de Almodóvar!
Escrito e dirigido pelo francês descendente de marroquinos Nadir Moknèche, de “Goodbye Morocco” (2012), conta com uma das mais belas interpretações de Fanny Ardant, estrela do cinema francês nos anos de 1980 e 1990, de “A mulher do lado” (1981) e “De repente num domingo” (1983). Com 68 anos à época, ela se desafia num personagem original, cheio de camadas, entregando um papel emocionante e sensível como uma mulher trans (o filme causou falatório na França por não terem convidado uma atriz trans, e hoje o cinema é mais criterioso nas escolhas do elenco pensando na diversidade sexual e na inclusão). No passado, Lola era Farid, um homem de origem argelina, que teve um filho e o abandonou, retornando à terra natal. Nunca mais teve contato com a família e mudou de sexo e identidade, chamando-se Lola, que atualmente trabalha como professora de dança. O filho, Zino, de 27 anos, marca então um encontro com ela para discutirem uma herança e resolverem pontos que ficaram abertos.
Exibido no Festival de Locarno, o filme é bem simples na forma, trata de reconciliação, e o ator Tewfik Jallab, de “A marcha” (2013), que interpreta Zino, tem um bom desempenho como um jovem dividido entre momentos de dor, frustração, alegria e alívio. Jallab e Fanny complementam um ao outro, tornando o resultado do filme eficiente e ao mesmo tempo surpreendente.
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O Congresso Futurista
3.9 295 Assista AgoraUma das animações para adultos mais complexas do cinema, uma fita pessoal do diretor Ari Folman recheada de cifras e enigmas, que discorre sobre temas que vão da área da saúde ao mundo das artes, como clonagem, farmacologia, indústria cultural, crise de identidade, bloqueio criativo e direito de imagem. Folman, natural de Israel, surpreendeu com o documentário em animação sobre a Guerra do Líbano “Valsa com Bashir” (2008), que recebeu indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro e acabou vencendo o Globo de Ouro na categoria, além de ter sido indicado à Palma de Ouro em Cannes. Passados cinco anos, inovou, mais uma vez, o universo das animações com esse filme diferentaço, que faz referências ao mundo pop e recorre à linguagem da ficção científica para contar uma história – é inspirado no livro do escritor ucraniano Stanislaw Lem, de “Solaris”, intitulado “O incrível congresso de futurologia”, lançado em 1971. Parecem as discussões existenciais de Charlie Kaufman, misturando formatos usados no psicodelismo dos anos de 1970. Há também junção de variadas modalidades de desenho, como as animações clássicas à mão, computação gráfica, e ainda uso de cores fortes intercalado com quadros em preto-e-branco. Lembrou-me também não só a forma como o conteúdo dos filmes de animação de Richard Linklater, especialmente “O homem duplo” (2006).
Robin Wright se desafia num papel autocrítico, que fala da própria atriz em crise. Na época, ela, que fez sucessos como “A princesa prometida” (1987), “Forrest Gump: O contador de histórias” (1994) e “Corpo fechado” (2000), enfrentava sérios problemas pessoais, aparecia em poucos papeis importantes no cinema e reclamava de ter vivido por 15 anos à sombra do ex-marido, o premiado ator Sean Penn. Por isso seu papel de protagonista é real e ao mesmo tempo irônico.
Ao falar do scanner/clonagem para a vida eterna na tela, o filme toca num ponto crucial, motivo de discussões intermináveis: de como o cinema vem utilizando as tecnologias que tornam tudo superficial, efêmero e rápido.
Além de Robin Wright, há participações de Harvey Keitel, Danny Huston e Paul Giamatti, bem como Jon Hamm como o narrador.
Veja, mas vá preparado: é um filme de arte para poucos, que intriga, desafia a nossa mente e propõe discussões fundamentais sobre a indústria do cinema na atualidade.
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Hotel Transilvânia
3.6 1,5K Assista AgoraCrianças, jovens e adultos curtiram à beça o resultado do primeiro filme “Hotel Transilvânia” (sites de críticas com participação popular indicaram isso), tanto que a produtora (Sony Pictures Animation) realizou mais três continuações. A bilheteria foi quatro vezes maior que o orçamento (U$ 85 milhões contra U$ 358 milhões), indicando que o bom marketing para a promoção do filme na época reverteu-se em público.
A animação em computação gráfica é repleta de gags e referências a filmes clássicos de terror com monstros famosos do cinema, como o Conde Drácula, protagonista aqui, a Múmia, Frankenstein e Lobisomem, sem contar bruxas, caveiras e mortos-vivos que desfilam com graça e um estranho charme.
Emprestaram suas vozes para a dublagem original nomes de peso, como Adam Sandler, Andy Samberg e Selena Gomez, somando-se a eles Kevin James, Fran Drescher, Steve Buscemi, David Spade e Jon Lovitz. A história é bacaninha, nada de especial, arrancando bons risos de quem assiste – os mais ligados ao mundo do cinema verão homenagens a “Nosferatu”, “A Família Addams” etc
Indicado ao Globo de Ouro de animação, o filme tem como diretor o russo radicado nos Estados Unidos Genndy Tartakovsky. Ele dirigiu os três primeiros, um pouco inferiores ao original e com mais maluquices (as continuações são “Hotel Transilvânia 2”, de 2015, e “Hotel Transilvânia 3: Férias monstruosas”, de 2018), e produziu a parte quatro, que depois de passar nos cinemas, entrou diretamente na Amazon Prime, “Hotel Transilvânia 4: Transformonstrão” (2022).
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Meu Passado me Condena
4.1 37Na época do lançamento, em 1961, esse filme independente britânico dividiu a opinião por tocar em um tema tabu, pois fala de uma rede (que realmente existiu) que perseguia gays nos anos de 1950 e 1960, cuja prática passou a ser considerada crime no país tempos depois. O filme veio no auge da Nouvelle Vague Britânica, conta com uma história complexa, cheia de detalhes e grandes atores em cena, com destaque para Dirk Bogarde, de “O criado” (1963) e “Morte em Veneza” (1971).
Desafiador, faz uma incisiva crítica social em tom de “filme de denúncia” – a tal rede de chantagistas enxergava os gays como delinquentes e criminosos, portanto poderiam puni-los com as próprias mãos (a “chantagem” aqui seriam ameaças, com grupos organizados que pichavam xingamentos e humilhações contra os homossexuais nas paredes das casas onde moravam, bem como em carros e enviando cartas secretas).
O filme rompeu barreiras, influenciando o comportamento e a mentalidade do público da época. Foi escrito por John McCormick, de “7 mulheres” (1965), e por uma roteirista visionária, que tocava em feridas abertas da sociedade, Janet Green, que antes fez um filme apontando o racismo, “Safira, a mulher sem alma” (1959).
Recebeu indicação ao Bafta de melhor ator (Dirk Bogarde) e roteiro, e ainda ao Leão de Ouro no Festival de Veneza.
O diretor, Basil Dearden, de “Na solidão da noite” (1945), drama de terror sobrenatural codirigido pelo brasileiro Alberto Cavalcanti, morreu prematuramente em 1971 aos 60 anos, vítima de acidente de carro em Londres. Ele é pai do diretor e roteirista James Dearden, de “Um beijo antes de morrer” (1991), e indicado ao Oscar de melhor roteiro por “Atração fatal” (1988).
O filme ganhou uma ótima versão em DVD pela Obras-primas do Cinema, com 1h30 de extras, que incluem entrevista com Dirk Bogarde e um documentário especial.
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Hop - Rebelde Sem Páscoa
2.7 282 Assista AgoraUm filme-família descompromissado e bem divertido para assistir hoje, dia de Páscoa. Um dos criadores da série infantil “Bob Esponja”, Tim Hill dirigiu várias fitinhas corriqueiras para a criançada, ressuscitando clássicos com nova roupagem, como fez em “Muppets no espaço” (1999), “Garfield 2” (2006) e “Alvin e os esquilos” (2007). Em “Hop”, Hill dirige uma história da dupla Cinco Paul e Ken Daurio, roteiristas de “Meu malvado favorito” (2010), que reinventa o coelho da Páscoa com um perfil mais adolescente. Aqui o coelho E.B. Junior - voz de Russell Brand, de “O pior trabalho do mundo” (2010), nascido na Ilha de Páscoa (Rapa Nui), na Polinésia, não quer seguir os negócios do pai, E.B. (voz de Hugh Laurie, da série “House”). Ele é o verdadeiro coelho da Páscoa, que possui uma empresa de produção de ovos de chocolate e em breve irá se aposentar. Junior quer entrar no mundo do rock, gosta de bateria, e para conquistar o sonho, foge para Hollywood numa espécie de fenda mágica. Na cidade dos astros e estrelas, é atropelado por Fred, um rapaz desempregado (James Marsden, da franquia “X-Men: O filme”). Machucado, fica sob cuidado de Fred. Enquanto isso, na Ilha de Páscoa, o pintinho francês Carlos - voz de Hank Azaria, de “A gaiola das loucas” (1996), organiza um golpe para assumir a fábrica de chocolates de E.B, o que faz Junior retornar para salvar o lugar. A aventura então começa, com perseguições, sequestros e maluquices que uma fita desse naipe exige.
O filme mistura animação em computação gráfica com atores de verdade. Aparecem, além de James Marsden, Kaley Cuoco, Elizabeth Perkins, Gary Cole e David Hasselhoff (como ele mesmo), e tem vozes de Russell Brand, Hugh Laurie e até de Hugh Hefner, o fundador da Playboy, que faz uma piadinha infame com as coelhinhas da revista erótica.
Um passatempo para todos, fita rápida e engraçadinha, produzida pela Universal com a Illumination, estúdios que lançaram franquias de animações campeãs de bilheteria, como “Meu malvado favorito”, “Minions”, “A vida secreta dos bichos” e “Sing”, e hoje é forte concorrente da Disney.
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A História de Alexander Graham Bell
4.0 7Na década de 1930, o cinema americano produziu uma infinidade de cinebiografias de cientistas que revolucionaram o mundo com suas pesquisas. Dois deles são obras notáveis, que não perderam o encanto: “A história de Louis Pasteur” (1936), que deu o Oscar a Paul Muni, no papel do inventor francês que desenvolveu os primeiros medicamentos para tratamento de infecções, e “A vida de Alexander Graham Bell” (1939), com Don Ameche no papel central do homem que ajudou a criar o telefone (no filme temos também Henry Fonda como Thomas Watson, assistente de Bell). Como muitos filmes daquele período, a biografia é romanceada, com apelo romântico – além de Bell inventor, temos o Bell em busca de um amor, quando conhece sua futura esposa, Mabel (interpretada por Loretta Young).
Nascido de uma família de estudiosos do som e das palavras, de Edimburgo (avô e pai eram professores de linguagem e elocução, pioneiros com trabalhos com pessoas surdas), Alexander seguiu a carreira de professor nas mesmas áreas, e de música também, na Escócia e na Inglaterra. A mãe ficou surda, e isso o motivou nas pesquisas de surdez. Morou no Canadá, onde se debruçou, em 1870, no campo da transmissão de som por meios eletrônicos. Três anos depois foi para os EUA (com residência em Boston) continuar os estudos na área e fundou sua companhia de telefone, a Bell Telephone Company, obtendo mais de 10 patentes de aparatos de som e de telefonia que revolucionariam o mundo. Nessa época também era professor de crianças surdas.
Porém virou uma discussão quem inventou o telefone: parte da sociedade atribuía a ideia a Bell, outros ao italiano Antonio Meucci (Meucci fez um protótipo e o vendeu a Bell em 1870, e Bell expandiu o negócio). Na metade do filme há a passagem histórica que ficou conhecida como “Guerra das Patentes”, uma disputa judicial travada entre cientistas que de um jeito ou de outro tinham criado sistemas de transmissão de som (dentre eles Meucci e o americano Elisha Gray) e, portanto, reivindicavam a patente – a batalha perdurou por mais de um século, só encerrando em 2002, quando o Congresso, por meio de uma resolução, reconheceu Meucci como o verdadeiro inventor do telefone.
Há duas passagens reais e importantes no filme de 1939: quando Bell faz a primeira demonstração pública do telefone, que deu errado e por isso foi humilhado; e quando apresentou o telefone à rainha Vitória – ela foi a primeira a comprar os equipamentos para a corte e daí a notícia correu o mundo, consolidando o trabalho de Bell.
Assim como todos os cientistas da época, Bell não se fixou em apenas um projeto; estudou com afinco o telégrafo, a locução, a acústica e a fonologia, além de desenvolver inventos ligados à aeronáutica (infelizmente flertou com movimentos de eugenia no final do século XX).
Dirigido por Irving Cummings, realizador de 80 filmes, muitos deles mudos e da era de Ouro de Hollywood – destaque na sua filmografia o premiado faroeste musical “No velho Arizona” (1928) e vários infantis com Shirley Temple, como “A pequena órfã” (1935).
Saiu em DVD pela Classicline anos atrás, com o título modificado para “A história de Alexander Graham Bell”, e depois pela Versátil Home Video na coleção da Folha “Grandes biografias no cinema”.
POR FELIPE BRIDA - Blog Cinema na Web
Comportamento Suspeito
2.7 100 Assista AgoraProduzido pela MGM, o filme de terror e ficção científica, uma coprodução Austrália, EUA e Canadá, totalmente rodada no Canadá, fez certa carreira no extinto VHS depois de fracassar nos cinemas - independente, custou barato, U$ 15 milhões, rendendo apenas U$ 17 milhões ao redor do mundo. Parece um episódio saído das histórias sobrenaturais da premiadíssima série “Arquivo X” – o diretor David Nutter dirigiu e produziu episódios do famoso seriado e de outro de estilo semelhante muito assistido no fim dos anos de 1990, “Millennium”. “Comportamento suspeito” foi o primeiro e único filme para cinema de Nutter, e foi escrito por Scott Rosenberg, roteirista de “Con Air: A rota da fuga” (1997). Rosenberg botou um tom sobrenatural, com visível pegada scifi vinda de fitas B dos anos 60 e 70, para criar esse filme teen que não investe em violência e aos poucos vai se tornando uma fita de investigação, mistério e fantasia. Ao trazer garotos e garotas tomados por uma estranha força sinistra, cujo comportamento é alterado, o filme toca em outro ponto, mesmo não sendo a tônica da obra: a discussão sobre tribos nas escolas, com grupos próprios e isolados que representavam a cara dos anos 1990: os nerds, os riquinhos, os skatistas, os rebeldes, aqueles que afrontam professores, outros que não se enquadram em nenhum estilo, as vítimas de bullying etc.
Não é um filme tão bem realizado, falta gás nas cenas de suspense, a conclusão é rápida e há momentos irregulares, porém tem uma história curiosa (adoro filmes sobrenaturais de scifi) que prende o público até o fim para saber do segredo que ronda o comportamento dos adolescentes.
Marcou a estreia de James Marsden (que depois viveria o Cyclope na franquia de cinema “X-Men”) e Katie Holmes, da série “Dawson’s creek” - depois se casaria com Tom Cruise. E no elenco também vemos Nick Stahl, coadjuvante de filmes premiados como “Além da linha vermelha” (1998) e “Entre quatro paredes” (2001), e os veteranos Steve Railsback, William Sadler e Bruce Greenwood.
A Classicline acaba de lançar o filme em DVD, com extras e card colecionável.
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Vingança
3.2 582 Assista AgoraNos anos de 1970 o cinema dos EUA, da França e de outros países inauguraram um subgênero do terror chamado “rape and revenge”, dentro da linha dos filmes exploitation, aqueles que exploravam a violência e a tortura. “A vingança de Jennifer” (1978) é o mais conhecido deles, refilmado em 2010 como “Doce vingança”. Wes Craven também realizou “Quadrilha de sádicos” (1977), outro bom exemplo, e até Ingmar Bergman fez um filme que anteciparia a ideia, em “A fonte da donzela” (1960). Nos anos de 1990 e 2000, o “rape and revenge” (na tradução, “estupro e vingança”), voltaria com tudo, foram feitos filmes fortes e violentos como “Viagem maldita” (2006) e “A última casa” (2009). “Vingança”, de 2017, retoma agora esse aclamado subgênero do cinema independente atrelando uma história sobre empoderamento feminino, mesmo que levado às últimas consequências. A trama é de um tom só, e nela se inserem reviravoltas e muita, mas muita violência, com banhos de sangue. Três amigos, casados e ricos, organizam anualmente uma caçada no deserto. Dessa vez, um deles leva a amante, uma jovem de beleza estonteante, que acaba estuprada enquanto o namorado está fora. Há uma discussão, a garota tenta fugir, mas é jogada num desfiladeiro. Eles acham que ela morreu, mas não... Abandonada à própria sorte, machucada (fica presa num galho que vara seu corpo), com formigas picando-a debaixo de um sol de lascar, miraculosamente renasce como uma fênix para se vingar dos criminosos. E daí é uma caçada infernal, com armadilhas, mortes brutais etc
Foi vendido como terror, com uma capa sanguinária da personagem ensanguentada segurando um rifle, no entanto é ação e um drama pesadíssimo – mas entendo que o que a personagem vive é um terror real, que dói na alma.
São apenas quatro atores em cena – a jovem e os três homens (destaque para a italiana Matilda Lutz, que tem forte presença em cena, é bonita e chama a atenção, e assume a figura de uma ‘final girl’). O filme é econômico nos diálogos, investe-se em cenas tensas que deixam o coração na mão. A diretora e roteirista francesa Coralie Fargeat, estreante em longa-metragem aqui, usa uma boa direção de arte e fotografia que incomodam: no meio do deserto acalorado, vidros rosas, brincos da protagonista que reluzem, em formato de estrela, sem falar do sangue que explode na tela. Há cenas criativas, com destaque para a da fênix, citada acima, que estampa o rótulo de uma lata de cerveja e é usada pela personagem para cicatrizar a ferida provocada pelo galho – a fênix acaba como um decalque na barriga dela. E o desfecho do filme é terrivelmente violento.
Polêmico e simbólico, com sequências chocantes que podem incomodar (como a do vidro no pé, que se assemelha a uma vagina), o filme teve exibições altas horas da noite nos festivais de Sundance e Toronto devido à violência, para selecionar o público.
Lançado em bluray pela Versátil numa edição especial em parceria com a Fênix Filmes – em disco único, com uma hora e meia de extras, acompanhado de um pôster, um livreto e dois cards colecionáveis.
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O Reencontro
3.7 25 Assista AgoraNo Dia da Mulher, data internacional marcada para relembrar (e reforçar) a luta das mulheres pelos seus direitos, nada melhor que assistir a um emocionante filme com duas atrizes excepcionais que brilham na tela, duas Catherines, Frot e Deneuve. São hoje as maiores estrelas da França, de presença deleitosa mesmo em uma obra com temática batida. Com elas em cena, o drama atinge outro nível de delicadeza e intensidade: Frot interpreta uma gentil parteira, de personalidade forte, que ama seu ofício, porém vive agora um conflito com a idade (ela tem 50 e poucos anos e mais da metade dedicado ao trabalho). Um dia recebe um telefonema que a assusta e irá mudar sua rotina: a amante de seu falecido pai quer estabelecer contato para contar-lhe algo urgente (é Catherine Deneuve no papel). As duas vão tomar café, a parteira vê aquela senhora bonita e extravagante que abandonou o pai dela há 30 anos e sumiu do mapa, e tenta entender o porquê daquele reencontro. Ela diz enfrentar um câncer cerebral, e não sabe quanto tempo tem de vida. Aqueles mulheres, de temperamentos diferentes, passarão um breve tempo juntas, trocando confidências, relembrando momentos importantes do passado a partir do elo com a figura do pai/amante, e quem sabe recuperar os anos perdidos.
Voltado ao público feminino, o filme, uma produção França/Bélgica, centra-se nas duas atrizes de forma quase que integral, e é muito bonito acompanhar o trabalho dessas grandes damas do cinema francês – Frot fez dezenas de trabalhos, como “Odeio te amar” (1986) e “Marguerite” (2015), e na época do lançamento de “O reencontro”, em 2016, estava com 60 anos, enquanto Deneuve, que foi um dos maiores nomes do cinema mundial nos anos 60 e 70, de clássicos como “A bela da tarde” (1967), “Pele de asno” (1970) e tantos outros, nunca parou de filmar - a atriz circulou por vários períodos e produções do mundo inteiro, tem mais de 150 longas no currículo e permanece atuante; em outubro completa 80 anos!
Do roteirista e diretor Martin Provost, de dois filmes cultuados sobre mulheres fortes, empoderadas e que enfrentam duros preconceitos, “Séraphine” (2008) e “Violette” (2013), ambos baseados em fatos reais.
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Dégradé
3.5 11 Assista AgoraUm filme de arte independente de alta qualidade que mais uma vez comprova a força do cinema palestino – é uma coprodução entre Território Palestino Ocupado, França e Qatar, assinada por dois irmãos gêmeos, Arab e Tarzan Nasser, e rodado na conflituosa Faixa de Gaza. Os diretores dedicaram o filme à mãe.
Nesse drama feminino, com elenco composto exclusivamente por mulheres (são 13 ao todo), elas discutem o papel da mulher na autoritária e patriarcal sociedade do mundo árabe. São mulheres diferentes, de idades diversas: uma grávida, uma noiva, uma religiosa, uma divorciada, uma viciada em remédios etc (que compõem um quadro real daquela sociedade). Elas cuidam de suas aparências, trocam conversas íntimas, até que tudo é interrompido quando o Hamas procura por um bandido que roubou o leão do zoológico da cidade. Com o tiroteio, ficam presas no salão, enquanto a tensão cresce: bombas estouram, a água acaba, cortam a energia elétrica (o título “Degradê” pode se referir à variação de tonalidades dos problemas que se agravam, também dos tons dos cabelos delas quando modificados no salão e até mesmo à degradação, dia a dia, das mulheres nessa sociedade regida por obrigações, proibições e castigos).
Lembra um “teatro filmado”, pois tudo ocorre no salão de beleza, com uma câmera que pouco se movimenta, e com uma fotografia peculiar, alternando cenas escuras daquele espaço confinado com a claridade da luz que vem de fora e atravessa as janelas (fotografia assinada por Eric Devin).
No elenco, destaque para Hiam Abbass, atriz palestina que fez filmes em sua terra, como “A noiva síria” (2004) e “Paradise now” (2005), e nos Estados Unidos, como “Blade runner 2049” (2017) – uma atriz de forte presença e que tem o papel mais chamativo da trama.
Importante conhecer esse filme por vezes duro, mas muito sincero e humano. Em DVD pela Imovision.
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