Não teve título traduzido no Brasil esse bonito e melancólico documentário da Netflix indicado ao Oscar em 2016 sobre a cantora Eunice Kathleen Waymon, a lendária Nina Simone (1933-2003), exímia pianista, compositora, cantora de jazz e blues e ativista pelos direitos civis dos negros. Tudo no documentário é intenso e trágico. Dona de uma voz potente e inesquecível, Nina nasceu de uma família pobre de sete irmãos na Carolina do Norte. Começou a tocar piano na igreja ainda criança, aos quatro anos, quando acompanhava a mãe pregadora, e 15 anos depois, tomada pela timidez, subiu aos palcos de bares para cantar, por acaso. O mundo se voltou para aquele vozeirão, e daí veio o apelido: Nina, colocado pelo namorado que a chamava de “Niña”, e “Simone”, em homenagem à atriz francesa Simone Signoret, da qual era fã. Ao longo da carreira enfrentou atropelos: apanhava do marido (um detetive que virou empresário dela), tinha problemas com sua única filha (a atriz e cantora Lisa Simone Kelly), brigava com as gravadoras, rompia contratos, até ser diagnosticada, tardiamente, com transtornos psiquiátricos (ela tinha uma bipolaridade mal cuidada, que a fazia cair em crises nervosas, brigar e se isolar). Nos anos de 1960, entrou nos movimentos em prol aos direitos dos negros, tornando-se uma figura poderosa na causa, ao lado de Angela Davis, Maya Angelou, Harry Belafonte e Martin Luther King. O doc mostra isso tudo, da infância da cantora à carreira de altos e baixos, do seu lado ativista e das crises familiares, tudo contado a partir de seus diários pessoais, além de entrevistas de familiares e amigos. Exibem-se imagens raras dela no palco e gravações inéditas, e em determinado momento reabre feridas, de um lado menos conhecido de Nina, no caso os transtornos maníaco-depressivos e a agressividade. Nina morreu solitária, triste, vítima de câncer, numa província no sul da França, aos 70 anos, deixando uma marca inigualável na cena musical norte-americana. A trilha do filme reúne cerca de 30 canções importantes dela, as de protesto e ativismo como “To be young, gifted and black”, “Ain't got no/I got life” e “Why? (The King of love is dead”) e reinterpretações, como “Don’t let me be misunderstood”, “Sinnerman” e “My baby just cares for me”. Produzido e lançado pela Netflix, recebeu indicação também ao Grammy de melhor filme musical e venceu o Emmy de documentário. A diretora, Liz Garbus, tinha sido indicada ao Oscar pelo doc “The farm: Angola, USA” (1998) e dirigiu, produziu e escreveu diversos filmes e minisséries para a Netflix. Um dos grandes documentários do catálogo da plataforma, que revi com muito prazer ontem.
Curioso drama biográfico com uma ou outra cena de ação, baseado em incríveis fatos verídicos. Conta uma história pouco conhecida do público, a trajetória de Ashraf Marwan (1944-2007), milionário egípcio que foi espião para o Mossad, o temido serviço secreto de Israel, fundado em 1949. Genro de Gamal Abdel Nasser, ex-presidente do Egito de 1958 até 1970, usava o codinome “O Anjo” e tornou-se chefe de operações do governo Sadat, após a morte do presidente Nasser. O desenrolar da trama é complexo, foca na vida de Marwan nos primeiros anos de 1970, quando começou sua atuação no Mossad. O narrador do filme faz entradas esporádicas para explicar fatos históricos, como a Guerra dos Seis Dias, a disputa de território entre árabes e judeus e a formação do Estado de Israel, até chegar ao personagem central e o Mossad (prestem atenção nos pormenores e diálogos). É uma adaptação do livro “The Angel: The egyptian spy who saved Israel”, de Uri Bar-Joseph, com roteiro de David Arata, indicado ao Oscar por “Filhos da esperança” (que, neste, escreveu o roteiro ao lado de outros quatro roteiristas, incluindo Alfonso Cuarón). Há um bom ator que interpreta Marwan, o holandês de origem tunisiana Marwan Kenzari, de “Ben-Hur” (2016), “A promessa” (2016), e depois de “O Anjo do Mossad” interpretou Jafar, o vilão no live-action da Disney “Aladdin” (2019), além de bons coadjuvantes, como Sasson Gabay, ator iraquiano de “Rambo III” (1988) e “A banda” (2007), na pele de Anwar Sadat (presidente do Egito após a morte de Nasser), e o inglês Toby Kebbell, de “Quarteto fantástico” (2015), como um agente canadense da Mossad que se torna próximo do Anjo. Direção coesa do israelense Ariel Vromen, que rodou o terror independente com Marisa Tomei “Danika” (2005), o filme de serial killer também verídico (e excelente), com Michael Shannon, “O homem de gelo” (2012), e fez um bom thriller scifi com Kevin Costner e Gal Gadot, “Mente perigosa” (2016). Produzido e distribuído pela Netflix, está na plataforma aos assinantes.
Assustador filme para cinema feito a partir da série homônima “Tales from the darkside” (1983-1988), que no Brasil recebeu o título de “Galeria do terror”, que compilava dezenas de contos de terror com histórias sobrenaturais, fantasia, suspense, ficção científica e humor negro, produzida por George A. Romero (de “A noite dos mortos-vivos”). Com o fim da série, muito popular nos EUA, parte dos produtores partiram para adaptá-la para a telona, fechando com os estúdios da Paramount Pictures, com distribuição mundial nas salas. São três histórias criativas de terror com muitos sustos e criaturas horrendas, criadas pelas maiores mentes do horror moderno: George A. Romero, de filmes de zumbis como “Despertar dos mortos” (1978) e “Dia dos mortos” (1985), Stephen King, de “O iluminado” (1980), “It: A coisa” (a série de 1990 e os filmes de 2017 e 2019) e tantas outras fitas de terror, e Michael McDowell, roteirista de “Os fantasmas se divertem” (1988) – este adaptou um conto antigo de Arthur Conan Doyle, célebre escritor escocês de literatura de investigação, criador de “Sherlock Holmes”. O filme funciona assim: começa com um garotinho (Matthew Lawrence, de “Uma babá quase perfeita”) raptado por uma bruxa moderna (a elegante Debbie Harry, vocalista do Blondie e atriz de filmes como “Videodrome: A síndrome do vídeo”). Ela pretende cozinhá-lo num forno para o jantar. Mas antes o garoto faz uma proposta na tentativa de distraí-la: ler histórias de terror. E as histórias começam... A primeira chama-se “Lote 249” (conto de Conan Doyle, adaptado por McDowell), sobre um estudante aficionado por arqueologia que recebe uma enorme caixa pelos correios e convida um amigo para abri-la, com consequências horripilantes (nessa sequência tem Christian Slater, Julianne Moore e Steve Buscemi, todos em início de carreira). Na segunda história, “Um gato do inferno” (conto original de King, adaptado por Romero), um milionário debilitado numa cadeira de rodas contrata um matador para eliminar um gato amaldiçoado que o persegue e já matou integrantes de sua família (aqui temos dois veteranos em cena, o já indicado ao Oscar William Hickey, e David Johansen). Por último, “O voto dos amantes” (escrito por McDowell, inspirado em um folclore japonês) traz um artista decadente que recebe a visita de uma gárgula que faz a ele uma proposta irrecusável (James Remar faz o papel principal). E quando essas historietas terminam, o filme volta para o garoto e a bruxa para o encerramento, com muitas reviravoltas! As histórias são um barato, todas curtinhas, em média com 25 minutos cada; algumas assustam, como as duas primeiras, e há monstros feiosos, como o a da gárgula, com bons efeitos e maquiagens do mestre Dick Smith, de “O exorcista” (1973) e “Scanners: Sua mente pode destruir” (1981), ganhador do Oscar pela make por “Amadeus” (1984). A direção é de John Harrison, que dirigiu oito episódios da antiga série, “Galeria do terror”, e depois só se dedicou a séries e a telefilmes. Sai em DVD pela Obras-primas do Cinema numa boa edição. POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Derivado de “Seven: Os sete crimes capitais” (1995), com forte semelhança na trama (incluindo a complexidade do caso envolvendo assassinatos brutais), na fotografia escura e na investigação da identidade do assassino, “Ressurreição” (1999) fez carreira no circuito de home video, numa distante época na qual o VHS reinava. O roteiro se apropriava de ideias de “Seven” trazendo com mais ênfase mortes horrendas, exibidas sem restrições na tela, reforçando a crueldade do assassino. Foi escrito por Brad Mirman, de fitas policiais com assassinos como “Corpo em evidência” (1992) e “Face a face com o inimigo” (1992), este com Christopher Lambert, onde conheceu o ator e voltaria a trabalhar com ele em pelo menos três outros longas-metragens. Na realidade, o argumento original do filme é de Lambert, que auxiliou Mirman não script (é o único trabalho de roteiro creditado de Lambert, que foi um dos produtores aqui). Ou seja, um filme dele, para ele, bem pessoal. Convidou para dirigir Russell Mulcahy, australiano, velho conhecido de Lambert, que o tornou famoso quando o dirigiu no cultuado “Highlander: O guerreiro imortal” (1986) – e depois fariam a continuação, “Highlander 2: A ressurreição” (1991). O filme foca integralmente na investigação, um caso complicado de assassinatos cometidos por alguém insano, possivelmente um abitolado religioso, que inscreve no corpo das vítimas versículos da Bíblia e arranca os membros delas, levando-os consigo - a ideia do serial killer é recriar o corpo de Cristo. Traz imagens fortes e até desagradáveis, por exemplo, dos corpos em decomposição). Para provocar medo e gerar o clima de estranhamento da história, há uma fotografia estilizada, amarronzada, com enquadramentos que deformam a tela nos momentos de sufoco dos personagens (foto de Jonathan Freeman, de séries como “Game of thrones” e “Boardwalk empire”). Não acho Lambert bom ator (às vezes é canastrão), mas neste filme faz um esforço e não desagrada. Atenção para personagens secundários que auxiliam o tom firme e sinistro da trama: Leland Orser (de “O colecionador de ossos” e que fez ponta em “Seven”), como o detetive auxiliar de Lambert, e Robert Joy (de “Atlantic city”), como um cidadão que ajuda os detetives fornecendo pistas para desvendarem o caso. Há também uma rápida aparição, no papel de um padre, do diretor David Cronenberg (que fez “A mosca” e “Crash: Estranhos prazeres”). Lançado em DVD numa boa cópia pela Obras-primas do Cinema. No disco há extras, além de capa dupla face e junto com um card com a capa original do filme.
Cultuado pelos jovens nos anos de 1980 e 1990, “A aparição” é uma fita scifi com terror e ação que mais parece um faroeste sobrenatural, uma mistura de “O estranho sem nome” (1973, de Clint Eastwood) com “O carro – A máquina do diabo” (1977, de Elliot Silverstein). Isso porque na trama um homem misterioso surge numa pequena cidade do Arizona para se vingar da morte de um rapaz, crime cometido por uma perigosa gangue de rua. Não se sabe a identidade desse cara, nem se ele é deste mundo; veste roupas pretas de couro com acessórios de metal, semelhante a um robô, usa um capacete que tapa inteiramente o rosto e os olhos, e porta uma arma destruidora. Paralelamente à vinda dele, chega à cidade um jovem em busca de um lar (Charlie Sheen, filho do astro Martin Sheen e irmão de Emilio Estevez, em início de carreira, meses antes de protagonizar “Platoon”, o clássico de guerra de Oliver Stone). A trama fica célere com as brigas entre as gangues de rua e os rachas no meio da poeira e do deserto (com boas cenas de corridas de carro). A trilha é embalada em alta frequência por clássicos do rock’n roll, em que ouvimos Ozzy Osbourne e Lion, por exemplo. No elenco, além de Sheen, tem Nick Cassavetes (filho do cineasta John Cassavetes e da atriz Gena Rowlands, que viraria diretor depois), Sherilyn Fenn (atriz da série “Twin Peaks”), Randy Quaid (irmão mais velho de Dennis Quaid, de “A última missão”) e Clint Howard (de “Um sonho distante”). Um dos pouquíssimos filmes dirigidos por Mike Marvin, que realizou mais séries televisivas e no mesmo ano de “A aparição” estreou com o popular besteirol “Hamburguer: O filme”. Quem devorava filmes nas antigas sessões da tarde na TV nos anos 90 vai se lembrar de “A aparição”, agora lançado em DVD numa boa cópia pela Obras-primas do Cinema. No disco há 30 minutos de extras, além de capa dupla face e junto com um card com a capa original do filme.
Quarto trabalho de uma série de nove filmes de ação entre o ator Charles Bronson e o diretor J. Lee Thompson, parceria que começou com “Cinco dias de conspiração” (1976) e terminaria com “Kinjite: Desejos proibidos” (1989). Em quase todos, Bronson encarna policiais solucionando casos de assassinatos e tráfico de drogas; usa o bigode fino costumeiro, veste terno, de fala mansa e quando é provocado, defende-se de forma violenta. Dos nove longas-metragens juntos há fitas boas, outras irregulares e corriqueiras e algumas ruins de doer, muitas com trama semelhante. “10 minutos para morrer” (1983) é um dos mais eficientes filmes da dupla. Bronson faz um detetive aborrecido de Los Angeles que investiga crimes brutais tendo jovens mulheres como as vítimas de um serial killer perturbado, que tem o hábito de ficar nu durante os ataques. O assassino é evidenciado nos primeiros minutos (interpretado pelo ator Gene Davis, de “A morte pede carona”,a versão original de 1986), um rapaz de olhar penetrante, que usa luva cirúrgica e faca na hora da matar. Ao lado do detetive está um novato investigador (Andrew Stevens, de “A fúria”), que sai também no encalço do criminoso. Não há surpresas no roteiro, legalzinho, que parece ter saído do universo dos slasher movies, já que tem um psicopata que mata jovens (tem cenas com sangue, porém não há a fórmula tradicional do “whodunit”, o “quem matou”, pois já sabemos da identidade dele desde o começo). Completam o elenco secundário Geoffrey Lewis (como um advogado de defesa do assassino), Wilford Brimley (o chefe de polícia) e Lisa Eilbacher (a filha do detetive protagonista). A produção é da popular (e extinta) Cannon, da dupla de produtores israelenses Menahem Golan e Yoram Globus, que fez uma centena de filmes policiais B nos anos de 1980 lançando fitas comerciais de Chuck Norris, Arnold Schwarzenegger, Sylvester Stallone, Dolph Lundgren e Jean-Claude Van Damme. Exibido na TV aberta diversas vezes, pode ser assistido agora em DVD, numa boa edição com extras lançado pela Obras-primas do Cinema. O DVD vem com capa dupla face e acompanha card com a capinha original do filme.
Fantasia, romance e um grau de mistério e sobrenatural temperam esse filme para TV de 1979, dirigido por Frank De Felitta, que fez um telefilme muito bom com espantalho assassino, “A vingança do espantalho” (1981 – que também tinha traços de fantasia). Ele escreveu o roteiro de “Os dois mundos de Jennie Logan” adaptando-o de um romance de David L. Williams chamado “Second sight”, que tratava de viagem no tempo, amor proibido e livre arbítrio. Na história, uma mulher, no tempo presente (bem interpretada por Lindsay Wagner, a “Mulher Biônica” da série dos anos 70) muda-se com o marido (papel de Alan Feinstein, da série ‘Berrenger’s”) para uma nova casa. Ao revirar o sótão, encontra um velho vestido branco, e ao vesti-lo, retorna no tempo, um século antes. Ela estranha os lugares, as pessoas, até que se envolve com um homem perfeito, um artista (Marc Singer, de “O príncipe guerreiro”), porém ele carrega uma maldição. Ao retirar o vestido, volta ao tempo presente – quando enfrenta crises no casamento com o marido mulherengo. Então Jennie terá de escolher se fica ou se volta. Foi um dos primeiros filmes de romance sobre viagem no tempo, lançado um ano antes de uma fita emocionante de mesmo tema que ganhou o público na época, “Em algum lugar do passado” (1980), com Cristopher Reeve e Jane Seymour (baseado no livro de Richard Matheson). Deverá agradar quem gosta do tema - e indico também àquele público feminino que gosta de romances sensíveis e sobre escolhas. Saiu recentemente em DVD pela Obras-Primas do Cinema, em uma boa cópia (mas sem extras no disco). O DVD vem com capa dupla face e acompanha card com a capinha original do filme.
Fita de ação das mais empolgantes do cinema dos anos 70, produzida no auge da Nova Hollywood e que marcou a estreia de Michael Cimino na direção – poucos anos mais tarde ganharia o Oscar de melhor direção e também de melhor filme pela obra-prima do cinema de guerra “O franco atirador” (1978), e, paralelamente, quebraria a United Artists com a exaustiva superprodução “O portal do paraíso” (1980), fiasco de público e crítica na época. Cimino escreveu e dirigiu “O último golpe” (1974) reunindo os melhores elementos do cinema de ação, road movie e o western: anti-heróis perspicazes (no caso foras-da-lei simpáticos), perseguições a todo vapor, fugas mirabolantes bem orquestradas, assaltos com tiros sem fim, traições e final trágico. Clint Eastwood e Jeff Bridges (que recebeu nesse filme sua segunda indicação ao Oscar, de melhor ator coadjuvante) performam como a dupla de criminosos Thunderbolt e Lightfoot (título original do filme, cuja tradução seria “Relâmpago” e “Ligeiro”), que se arriscam num assalto complexo, única alternativa de suas vidas; o primeiro é um veterano que quer deixar a vida de crime pra trás, enquanto o segundo, novato e atrapalhado, prospecta que o plano será a maior jogada do mundo. Só que no encalço deles estará dois velhos comparsas de Thunderbolt, Red (George Kennedy, ganhador do Oscar de coadjuvante por “Rebeldia indomável”) e Eddie (Geoffrey Lewis, pai da atriz Juliette Lewis e ator de vários filmes de Clint Eastwood, como “O estanho sem nome”). Produzido pela Malpaso, companhia de Clint Eastwood, que produziu os principais filmes do ator, no total 50 longas, com destaque para os de ação e faroeste nos anos de 1960, 70 e 80, como “Meu nome é Coogan” (1968), “Perseguidor implacável” (1971) e “Um agente na corda bamba” (1984). Saiu em DVD pela Classicline dois anos atrás, numa cópia com enquadramento errado, que deforma a tela, infelizmente. E agora está disponível numa cópia excelente pela Versátil, dentro do box “O cinema da Nova Hollywood - volume 4”, com outros cinco bons filmes, incluindo “Uma mulher descasada” e “O caçador de dotes” (são três DVDs na caixa, com 1h15 de extras e cards).
Adorável, leve e espirituoso, foi um dos primeiros filmes de vidas passadas com cachorro. Fácil de ver, entramos com naturalidade na história, devido a seus personagens simpáticos, com destaque ao cãozinho principal, Fluke, que é uma graça. Comoveu muita gente na época do lançamento, em 1995, fez certo sucesso em VHS depois do fracasso nos cinemas e foi exibido inúmeras vezes na TV aberta. Nancy Travis, que interpreta a mulher sempre presente nas visões do cãozinho Fluke, estava no auge da carreira, vindo de filmes como “Três solteirões e uma pequena dama” (1990) e “O silêncio do lago” (1993). Matthew Modine, de “Nascido para matar” (1987), atua como um empresário que morre num acidente de carro, e depois empresta a voz para Fluke (ao longo do filme fica mais claro a relação do empresário com a família que Fluke procura). Outros nomes conhecidos pintam em participações rápidas, como o veterano Bill Cobbs, Eric Stoltz e Ron Perlman, e tem até Samuel L. Jackson cedendo a voz para o melhor amigo de Fluke, o cachorro Rumbo. Nessa fábula simpática sobre reencarnação, tudo pode acontecer. Os mais emotivos poderão se emocionar com o desfecho. É uma adaptação do romance “Fluke”, do escritor britânico especializado em livros de terror James Herbert, publicado em 1977. O roteiro foi adaptado pelo próprio diretor do filme, o italiano Carlo Carlei, de “O voo do inocente” (1992). Saiu recentemente em DVD, numa boa cópia, pela Obras-primas do Cinema (disco simples, apenas com trailer como extras no DVD, mais um card com a capa original do filme).
Sequência do clássico filme de terror “A aldeia dos amaldiçoados” (1960), com mais cenas de ação e mortes, porém seguindo o mesmo tom do original. É outro diretor (aqui Anton Leader, de séries de TV) e novo elenco, inteiramente britânico, como Ian Hendry, de “Carter, o vingador” (1971), Barbara Ferris, de “Inocente... mas não muito” (1969), e Alan Badel, de “O dia do chacal” (1973). A trama traz crianças de outros países (Índia, Nigéria, China e outros), o que dá a entender que a contaminação do filme anterior (que nunca foi justificada) se espalhou pelo mundo. E nesse capítulo elas serão confinadas numa igreja e passarão por testes militares – para se vingar, elas controlarão a mente das pessoas levando-as a cometer assassinatos e suicídios. A violência é mais acentuada, ainda que nada chocante, pois estamos falando de anos de 1960. É sim uma boa continuação, mas nada de especialmente marcante, que procura investir no mesmo clima do anterior. Sai em DVD pela Classicline na coleção “Malditos” (em disco duplo, sem extras). POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Imperdível para os fãs do cinema de terror clássico, a coleção “Malditos” está disponível em DVD pela Classicline (em disco duplo, sem extras). No box há este primeiro filme, “A aldeia dos amaldiçoados” (1960), e a continuação, “A estirpe dos malditos” (1964) – ambos tratam de um grupo de crianças contaminadas por uma radiação, que desenvolvem inteligência fora do comum e poderes telepáticos. Original, com cenas antológicas, o filme britânico causou estranheza no lançamento, por trazer crianças maldosas e assassinas (elas não matam ninguém com as próprias mãos, mas induzem as pessoas ao crime, já que as vítimas são controladas pela mente delas). Os olhos das crianças ficam cintilantes, e elas causam o terror no vilarejo onde vivem. Foi baseado no livro “The Midwich cuckoos”, de John Wyndham, escritor britânico de ficção científica, e seu livro inspirou outras versões, como o filme de terror de John Carpenter “A cidade dos amaldiçoados” (1995) e a série britânica da Sky, “The Midwich cuckoos” (2022). No elenco está o ator premiado com o Oscar George Sanders, de “A malvada” (1950), e Barbara Shelley, de “Uma sepultura para a eternidade” (1967 - falecida em 2021 de Covid, aos 89 anos). É um terror clássico com pitadas de filmes de mistério e ficção científica e muito suspense, escrito e dirigido pelo alemão Wolf Rilla, de “Marilyn” (1953). Quatro anos depois, a MGM produziu também a continuação, “A estirpe dos malditos” (1964), que segue a mesma linha, só que com mais ação e novos rumos para a história. POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
“Shazam!” (2019) veio como uma tentativa (bem-sucedida, acho eu) de a DC Comics concorrer diretamente com um personagem que tem certas semelhanças, da Marvel, “Deadpool” (2016). Seja no estilo do super-herói gozador e abobalhado, seja na narrativa anárquica, cheia de piadas, algumas delas de humor negro e outras infames. “Deadpool” é um arraso, uma das grandes fitas de super-herói de ar contemporâneo, mas “Shazam!”, que recebeu muitas críticas negativas, é um bom competidor, graças ao ator principal, Zachary Levi, que vinha da premiada série de ação e comédia “Chuck” (2007-2012) e aqui alcançou a fama. Ele é debochado sem ser insistente, divertido (com certa contenção) e carismático. Vestiu bem o papel nessa fita de entretenimento que custou U$ 100 milhões e rendeu mais que o triplo nos cinemas, U$ 367 mi. Com “Shazam!”, a DC Comics recuperou o fôlego com outro tipo de aventura, injetando mais humor e menos ação que o habitual, principalmente nessa nova fase – antes de “Shazam!” a DC teve dois sucessivos sucessos na telona, “Mulher Maravilha” (2017) e “Aquaman” (2018). Shazam, conhecido como Capitão Marvel, tem como alterego a criança Billy Batson – ela se transforma no herói ao gritar “Shazam!”. O personagem surgiu em 1939 na revista de quadrinhos Whiz Comics, da editora Fawcett Comics, e quase quatro décadas depois, em 1972, o personagem teve os direitos adquiridos pelo universo DC. Lá ganhou contornos diferenciados e novos vilões. Shazam tem superpoderes após ser atingido por um raio mágico, oriundos de personagens da mitologia, como Hércules (que lhe dá a força), Atlas (a resistência), Zeus (magia e domínio de tudo), Aquiles (coragem) e Mercúrio (velocidade e voo). No filme ele se lança a um duro embate com o principal vilão das HQs, Dr. Silvana (bem caracterizado por Mark Strong, ator britânico de “A hora mais escura” e “Kingsman: Serviço secreto”), um cientista maluco, que no lugar de um dos olhos existe um globo de energia azul, que lhe permite reconhecer as forças mágicas ao redor. Ligado ao ocultismo, quer a todo custo acabar com Shazam e sua turma. Com boas cenas de ação, o filme resulta em um entretenimento jovial, maneiro, com efeitos visuais originais. Disponível em DVD, bluray e plataformas digitais. PS: Nesse ano a mesma equipe lançou a parte 2, “Shazam! Fúria dos deuses” (2023), inferior ao anterior, que foca na pura ação e traz heróis e monstros da mitologia para a tela - ambos os filmes são dirigidos por David F. Sandberg, que fez duas assustadoras fitas de terror que gosto bastante, “Quando as luzes se apagam” (2016) e “Annabelle 2: A criação do mal” (2017). Também retornam na parte dois Zachary Levi, Asher Angel (o Billy Batson), Djimon Hounsou (como o mago), Adam Brody, a menininha Faithe Herman e outros.
Um assalto (quase) perfeito: uma análise de O homem que burlou a máfia
O plano de Charley Varrick (Walter Matthau) e seus comparsas parecia estar no rumo certo. Assaltar o único banco de Três Cruces, uma cidadezinha pacata, no meio do nada, no estado do Novo México. Para não ser identificado, o grupo utiliza disfarces: Varrick com bigode postiço, óculos, uma pinta na bochecha e peruca, enquanto os colegas escondem o rosto debaixo de máscaras. Há um entrave com clientes do banco e com funcionários, terminando em um tiroteio com gente ferida. A polícia é avisada, no entanto o bando consegue capturar a dinheirama e fugir de carro em alta velocidade. Eles se assustam com a quantia: U$ 765 mil em notas verdinhas, perfeitas. Varrick, expert em assalto, sente algo estranho, e a pergunta não cala: por que tanto dinheiro assim num banco tão pequeno? O que eles não desconfiavam era de que a grana era “marcada”, e os donos nada mais nada menos que mafiosos. Em questão de minutos, eles se transformam no alvo da vez - e alvo duplo ainda por cima: são perseguidos pela polícia e pelos engravatados da máfia! Varrick, apelidado de “O último dos Independentes” (que seria o nome original do filme, The last of Independents, depois alterado para o singular Charley Varrick), representa a audácia dos “criminosos perfeitos”, que farejam o alvo e esboçam com facilidade planos mirabolantes para obter o que almejam. Ele é um mestre do disfarce, lidera com mão firme um pequeno grupo de bandidos, atira sem pestanejar caso haja interferências na execução do crime e sabe muito bem se esconder. Ele não segue as leis. Faz sua própria lei, um típico personagem outlaw do subúrbio, que mata policiais e inocentes para salvar sua pele. Varrick, o ardiloso protagonista desse filmaço neo-noir de Don Siegel, segue os traços do antiherói, dentro de uma trama que reúne gente pior que ele, como mafiosos que lavam dinheiro, matadores de aluguel, banqueiros inescrupulosos e agentes da polícia corruptos. Varrick é um homem de meia-idade e solitário, que não tem mais nada a perder. Abandonou faz tempo o conformismo. Por ser o “último dos Independentes”, é páreo nesse jogo de gato e rato envolvendo dinheiro alto. A eletrizante obra de Don Siegel, lançada em 1973 e que premiou Walter Matthau com o Bafta de melhor ator, não faz concessões. É uma fita policial dura, com cenas violentas de confrontos, pouco humor e por ele desfilam indivíduos truculentos, mesquinhos e perigosos, um retrato de quem povoava a sociedade da época (essas figuras permanecem por aí, hoje!). Do astuto assaltante Varrick ao presidente do banco envolvido diretamente com a máfia Maynard Boyle (John Vernon) passando pelo matador contratado para acabar com a gangue de Varrick, Molly (Joe Don Baker), todos tem na alma graus de vilania e não abrem mão de seus ideais. São sujeitos do submundo do crime, dispostos a vencer a qualquer preço. Por isso nunca se rendem. A direção potente de Don Siegel não deixa passar uma vírgula, elevando essa obra cinematográfica a um patamar único do cinema policial setentista. Os atores estão bem guiados, entregam performances espetaculares, com especial atenção para Matthau, Vernon, Baker (num papel assustador) e de dois outros em participações menores, Andrew Robinson (integrante da trupe de bandidos de Varrick) e uma das poucas mulheres em cena, Felicia Farr (affair de Varrick). Seguem a cartilha explosiva de Siegel perseguições em alta voltagem, com carros trombando, tiros pra lá e pra cá, e um desfecho grandioso no ferro-velho, com o protagonista num avião de pequeno porte numa caçada infernal. A parceria de Siegel com a dupla de roteiristas Howard Rodman e Dean Riesner brotou anos antes - com Rodman, Siegel fez “Os impiedosos” (1968), e no mesmo ano, 1968, juntou Rodman e Riesner em “Meu nome é Coogan” - o filme marcaria um extenso trabalho de Siegel com Clint Eastwood, que ascendia no cinema americano. A história de “O homem que burlou a máfia” foi adaptada do romance “The looters”, de John Reese, publicado em 1968, recebendo contornos especiais do diretor.
Do noir ao policial moderno: uma breve história de Don Siegel
Nascido em Chicago, Illinois, em 1912, Don Siegel marcou o cinema americano com seus filmes policiais. Por quase quarenta anos (o diretor realizou longas de 1946 a 1982, e faleceu em 1991, aos 78 anos), atravessou contextos diversos da cultura cinematográfica dos Estados Unidos: fez poucos, mas bons filmes noir, experimentou comédia romântica e aventuras épicas, inovou o faroeste e deu uma repaginada no policial dos anos de 1960 e 1970, sendo inspiração de diretores como Sam Peckinpah e Clint Eastwood. O diretor foi casado três vezes, em uma delas com a atriz Doe Avedon e depois com outra atriz famosa, Viveca Lindfors. Teve cinco filhos. Morou na Inglaterra, onde estudou na Universidade de Cambridge, e, de volta aos Estados Unidos, aos 20 anos, deu os primeiros passos no cinema, no início da década de 1930, com a ajuda do tio, o montador/editor Jack Sharper, que também produzia filmes da Warner Bros. Primeiramente foi assistente de direção e montador de filmes - editou, por exemplo, “O intrépido general Custer” (1941) e “A estranha passageira” (1942). Três anos depois, dirigiu dois curtas-metragens ganhadores do Oscar de melhor curta documentário – “Hitler lives” (1945) e “Star in the night” (1945). Estreou como diretor de longa-metragem com o noir “Justiça tardia” (1946, com Sydney Greenstreet e Peter orre), depois faria mais dois no mesmo subgênero, “Cais da maldição” (1949, com Robert Mitchum e Jane Greer) e “Medo que condena” (1953, com Teresa Wright). Nessa primeira fase, passou por faroeste, como “Onde impera a traição” (1952, com Audie Murphy) e comédia romântica, no caso “Adorável tentação” (1952, com Viveca Lindfors - atriz com quem estava casado). A notoriedade do diretor explodiu com um dos filmes mais icônicos de terror dos anos 1950, que misturava scifi, o B-movie “Vampiros de almas” (1956, com Kevin McCarthy), que ganharia remake e continuações no futuro. Ainda no memo período, introduziu o policial no cinema B, em fitas a perder de vista – “Rua do crime” (1956, com John Cassavetes e Sal Mineo), “Assassino público número 1” (1957, com Mickey Rooney e Carolyn Jones), “O sádico selvagem” (1958, com Eli Wallach), “Contrabando de armas” (1958, com Audie Murphy) e “Covil da morte” (1959, com Cornel Wilde). Dirigiu Elvis Presley e Barbara Eden no faroeste romântico “Estrela de fogo” (1960) e Steve McQueen no drama de guerra “O inferno é para os heróis” (1962). A guinada da carreira de Siegel foi reinventar o cinema policial com o frescor de ideias que a Nova Hollywood propunha a partir dos anos de 1960. “Os assassinos” (1963, com Lee Marvin e Angie Dickinson) e “Os impiedosos” (1968, com Richard Widmark e Henry Fonda”) vieram nessa onda de novos filmes de investigação e assassinato, impactantes e controversos. Dirigiu Clint Eastwood no policial “Meu nome é Coogan” (1968), firmando parceria com o ator que se projetava nos Estados Unidos após a “Trilogia do Dólar”, os westerns italianos de Sergio Leone que ganharam o mundo. Com Eastwood fez trabalhos memoráveis, como o faroeste com muito humor “Os abutres têm fome (1970), ao lado de Shirley MacLaine, o drama de época com pitadas de suspense “O estranho que nós amamos” (1971) e o fumegante filme de ação “Perseguidor implacável” (1971), em que Clint formalizaria a franquia de Dirty Harry (com quatro filmes em sequência, dirigidos por outras pessoas). Quase no fim da carreira, Siegel traria de volta Estwood num dos filmes mais emblemáticos e lembrados do ator, exibido milhares de vezes na TV aberta, “Alcatraz: Fuga impossível” (1979), uma fita de ação baseada em fatos verídicos. Grande parte dos filmes de ação de Don Siegel inserem-se no chamado neo-noir, ou noir moderno, com tramas de assalto e crime lotadas de personagens ardilosos e enganadores, reservando um destino trágico a eles, sem contar plot twist criativos e violência gráfica e estilizada (para a época). “O homem que burlou a máfia” (1973) encontra-se nessa fase final do diretor, e é apontado por críticos e pelo público como um dos melhores feitos de Siegel. O diretor faria apenas seis filmes depois: “O moinho negro” (1974, policial com Michael Caine), “O último pistoleiro” (1976, faroeste que seria o último trabalho de John Wayne), “O telefone” (1977, thriller com Charles Bronson, e confesso ser um de meus filmes de policial com suspense preferidos) e duas fitinhas esquecidas, “Ladrão por excelência” (1980, policial com comédia com Burt Reynolds e Lesley-Anne Down) e “Jogando com a vida” (1982, uma amalucada comédia com crime com Bette Midler e Rip Torn). Siegel desenvolveu ainda trabalhos para a TV: nos anos de 1960 dirigiu episódios para várias séries, como “Além da imaginação” e “Convoy”, e fez telefilmes como o suspense/faroeste “A caçada” (1967, com Henry Fonda e Anne Baxter). Foi ainda roteirista (de séries e curtas do início da carreira), produtor (onde assinou alguns filmes como Donald Siegel, dentre eles “Os assassinos”, “Meu nome é Coogan” e “O estranho que nós amamos”) e até, vejam só, aparecia como figurante em seus filmes (em “O homem que burlou a máfia”, por exemplo, faz um jogador de tênis de mesa, numa participação de segundos).
Resenha escrita especialmente para o livro "Cinema Policial - Filmes essenciais do gênero", lançado pela Versátil Home Video em junho de 2023. Livro disponível para venda no site da Versátil. POR FELIPE BRIDA - Blog Cinema na Web
Nas décadas de 1970 e 1980, a cineasta francesa Diane Kurys foi bastante prestigiada na Europa, com seus filmes autobiográficos, de estética diferente, coloridos e contagiantes. O seu maior sucesso foi “Refrigerante de menta” (1977, também conhecido pelo título original, “Diabolo menthe”), sobre duas irmãs adolescentes vivendo aventuras na escola durante os movimentos estudantis e políticos de maio de 68. “Por uma mulher” (2013) é uma obra mais visceral e madura da diretora, na época com 65 anos, outro filme autobiográfico em que traz fatos marcantes relacionados à família. Diane conta aqui histórias dos pais, com foco na figura paterna, um judeu que fugiu do campo de concentração e trabalhou como alfaiate – papel de Benoît Magimel, um ator que tenho especial apreço, de filmes como “Os ladrões” (1996) e “A professora de piano” (2001). Envolveu-se nos grupos de esquerda, tornou-se comunista, casou-se e teve filhos, que foram cuidados pela bela esposa – interpretação muito bonita de Mélanie Thierry, de “O teorema zero” (2013) e “O reino da beleza” (2014). Esta, tinha o sonho de trabalhar fora de casa, mas foi proibida pelo marido conservador. A vida do casal e das crianças acaba virando do avesso quando aparece na porta de casa o irmão do marido, dado como morto na guerra – quem o interpreta é Nicolas Duvauchelle, de “Polissia” (2011) e “A filha do pai” (2011). Ele é adotado pela família, passa a morar com eles e está envolvido numa missão secreta (é uma espécie de espião), sem contar que acaba tendo um relacionamento proibido com a cunhada. Com seus momentos-chave e pontos altos, o filme tem um lado terno e ao mesmo tempo melancólico e dramático, como um dramalhão típico de novelas antigas. Outra questão: o filme é narrado em dois momentos de tempo, o atual, nos anos de 1990, de uma mulher no auge dos seus 40 anos (papel de Sylvie Testud, de “Piaf, um hino ao amor”, de 2007), que investiga o passado da mãe por meio de uma foto (seria ela Diane Kurys, aparentemente), e o passado, de 50 anos antes, período do pós-guerra (tratado acima), com as idas e vindas do casal e o rebuliço na família com a chegada do irmão do marido. A junção de épocas dá muito certo devido à fotografia luminosa, ao trabalho pontual do elenco e à maquiagem dos atores envelhecendo. É um drama feminino, com ar de crônica e memória, com lindas passagens na real região de Lyon, feito por uma diretora mestre em dirigir filmes familiares emotivos. Gostei e indico a todos.
Rodado nas ruas de Paris, “Dois amigos” (2015) é um autêntico filme independente francês de comédia dramática que ora cativa ora nos faz rir. O bom andamento do filme está, principalmente, no trabalho do trio central, que dá o seu melhor em cena: Golshifteh Farahani, atriz iraniana que começou a carreira em seu país, depois nos EUA fez diversas produções, como “Paterson” (2016), “Piratas do Caribe: A vingança de Salazar” (2017) e as duas partes de “Resgate” (2020 e 2023, da Netflix); o francês Vincent Macaigne, ator versátil, mas presença marcante em fitas de comédia, com trabalhos de destaque em “Agnus dei” (2016) e “Assim é a vida” (2017); e Louis Garrel, que trabalha com frequência com o pai, Philippe Garrel, veterano diretor francês que começou a carreira no fim da Nouvelle Vague, e que sempre realizou filmes pessoais (muitos dramas em preto-e-branco, sobre casais em crise) - Louis foi lançado por Philippe em “Beijos de emergência” (1989), depois atuou em uma dezena de filmes dele, como “Amantes constantes” (2005) e “O ciúme” (2013), e fez um papel notável que o tornou mundialmente famoso, em “Os sonhadores” (2003), de Bernardo Bertolucci. E “Dois amigos” marca a estreia na direção de Louis Garrel. Ele teve formação em casa, apresenta muito a mão do pai, e esse filme lembra os filmes de Philippe dos anos 2005 para cá, um drama sobre amigos em crise após uma disputa de amores – a diferença é que Louis utiliza um humor leve para equilibrar a história. Garrel havia dirigido apenas três curtas até então, em seguida fez “Um homem fiel” (2018), “Um pequeno grande plano” (2021) e “L'innocent” (2022), todos com ele no elenco e escritos também por ele. “Dois amigos” teve o roteiro assinado por Louis junto de Christophe Honoré, outro importante diretor francês com quem já havia trabalhado em “Minha mãe” (2004), “Canções de amor” (2007), “A bela Junie” (2008) e outros. Gosto especialmente do desenrolar da trama (há um passado a ser investigado da personagem feminina, aos poucos descortinado ao público), da fotografia escurecida e do elenco, enxuto, que dá um show. Recebeu indicação aos prêmios Golden Camera e Queer Palm no Festival de Cannes. Disponível em DVD pela Imovision, pode também ser assistido na plataforma online da distribuidora, o Reserva Imovision.
O alemão Christian Petzold é um dos diretores europeus que cria um dos cinemas mais diferentes da atualidade, trazendo uma nova estética para histórias velhas e que em tese poderiam ser recheadas de clichês. Seus filmes, cultuados, têm profundidade e recorrem a boas metáforas. Tratou da desintegração da família (no caso uma família de terroristas) em “A segurança interna” (2000), da violência de gênero em “Yella” (2007), sobre uma mulher abusada pelo marido, e em “Phoenix” (2014), um de seus grandes trabalhos, discute identidade e moral, durante o Holocausto, só que por outro prisma, de uma mulher desfigurada em busca de respostas e procurando o marido. Mas nada é óbvio, e a cada momento há novidades na trama dessa pequena obra-prima. Curioso que anos mais tarde Petzold fez uma espécie de versão masculina do filme, intitulado “Em trânsito” (2018), sobre um cidadão que foge da invasão nazista da França e assume a identidade de um homem morto (o diretor, também roteirista, insere tons de ficção científica e romance numa trama com reviravoltas intensas). Em “Phoenix”, uma cantora de renome, de descendência judia, sai do campo de concentração toda enfaixada. Ela teve o rosto desfigurado. Uma amiga a leva para um médico cirurgião e, por ter um dinheiro guardado, paga para a reconstrução facial. Ela quer voltar a ser quem era, uma mulher elegante, bonita e bem colocada no mercado (papel da sensata atriz alemã Nina Hoss, que atua com frequência nos filmes de Petzold; fizeram juntos “Yella”, “Jericó”, “Barbara” e outros). Hesita em volta para a Palestina, onde seria enviada, para localizar o marido, que sumiu. Indícios apontam que esteja trabalhando como garçom num bar em Berlim. Quando vai até o local e o encontra, ambos conversam, e parte dele uma trama diabólica, envolvendo enganação e uma herança (deixo de contar para não estragar a surpresa). O título tem a ver com o nome do bar, que é uma das ambientações centrais, mas claro, funciona como o mito do renascimento (Fênix) para a protagonista, “recriada” após a cirurgia facial. Assista e preste atenção nos detalhes! Recebeu prêmios em mais de trinta festivais, como San Sebastian, Toronto Film Critics e Indiewire. Em DVD pela Imovision e disponível no Reserva Imovision, streaming da distribuidora Imovision.
O diretor francês Robert Guédiguian, natural de Marselha, costuma filmar seus trabalhos em sua terra natal, aproveitando as inúmeras e belas locações da cidade, como praias, canais de água, castelos, lagoas e a arquitetura rústica. Veterano, dirigiu essencialmente dramas familiares, como “Armênia” (2005), “As neves do Kilimandjaro” (2011) e “Uma casa à beira-mar” (2017), e em muitos de seus filmes (ele também é roteirista e produtor) escala a esposa, a atriz Ariane Ascaride, com quem é casado desde 1975. “O fio de Ariane” (2014) é um deles, mas aqui uma comedinha leve, quase um romance água com açúcar, longe dos tradicionais filmes sobre crise e reencontros entre familiares distantes. Tudo começa com uma mulher solitária que se decepciona quando nenhum dos convidados aparece em sua casa para seu aniversário. Troca a festinha por uma viagem de carro, sozinha, sem destino, para explorar Marselha, e a cada parada encontra-se com pessoas diferentes adotando um novo estilo de vida. Será uma jornada para revisão de sua vida, assim como de lembranças e perspectivas futuras. Daí o significado do título do filme, “O fio de Ariane”, uma metáfora sobre revelações interiores, relacionada ao “fio de Ariadne” da mitologia, da princesa Ariadne, filha do rei de Creta, Minos, que entrega um novelo de linha mágico ao seu amor, Teseu, para que ele não se perca no labirinto do Minotauro. A ideia do fio é o do despertar da consciência, para o enfrentamento das dificuldades. Há momentos deliciosos no filme, como um amigo cágado que conversa com Ariane, sem contar as lindas locações por Marselha. E Ariane é uma atriz boa e carismática – ela pode ser vista em outros filmes do marido, “Marius e Jeannette” (1997), “A cidade está tranquila” (2000) e “O mundo de Gloria” (2019). Em DVD pela Imovision e disponível no Reserva Imovision, streaming da distribuidora Imovision.
Filme de suspense com reviravoltas que marcou a estreia na direção do britânico Barnaby Southcombe, filho da atriz principal aqui, a veterana e premiada Charlotte Rampling, um dos nomes mais importantes do cinema europeu, ainda em plena atividade. Até então Southcombe havia dirigido episódios de séries na Inglaterra, depois escreveu o roteiro desse filme, baseado no livro de Elsa Lewin. Há toda uma trama engenhosa, com presente e passado se misturando, onde um crime precisa ser resolvido. Um homem é encontrado morto num apartamento, o assassinato é investigado por um detetive veterano (participação discreta de Gabriel Byrne, de “Os suspeitos” e “Fim dos dias”) e um colega da polícia, o bom Eddie Marsan (de “Uma vida comum” e “Atômica”), até que surge uma mulher solitária que vive perambulando por aí, que desperta a atenção do detetive principal (Rampling, indicada ao Oscar por “45 anos”, atriz de filmes como “O porteiro da noite” e “Melancolia”, e aqui muito bem fotografada, sempre em planos fechados, com closes e primeiro plano que realçam sua beleza - na época estava com 66 anos). Os dois se apaixonam, o detetive vive cercado de incertezas, e o romance pode atrapalhar as investigações, já que ela é suspeita pelo crime. Enquanto o filme transcorre, imagens embaçadas do assassinato pairam na cabeça da personagem, em que ela parece dopada no apartamento do homem que foi morto. O que ocorreu naquele dia? Aos poucos as peças se encaixam. É um thriller com certo estilo, boa fotografia com muitos lances de claridade (do diretor de fotografia Ben Smithard, de “Sete dias com Marilyn”) e embalado por uma trilha sonora com blues. Poderia ter mais momentos de suspense e um final mais “tchan”, exigido pela trama, mas nada que comprometa as qualidades dessa fita de arte. Há ainda participações rápidas das atrizes Honor Blackman (de “007 contra Goldfinger” e “Jasão e o velo de ouro”), Jodhi May (de “O último dos moicanos”) e Hayley Atwell (de “A duquesa” e “Capitão América: O primeiro vingador”). Veja! Em DVD pela Imovision. POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
A distribuidora Obras-primas do Cinema atendeu a um antigo pedido dos fãs de terror e lançou recentemente a coleção “Demons” em bluray, numa edição caprichada com os dois primeiros filmes. A caixa traz todas as versões disponíveis no Brasil das duas sangrentas fitas italianas de terror de Lamberto Bava, “Demons - Filhos das trevas” (1985) e “Demons II - Eles voltaram” (1986). Acompanham no box um livreto de 32 páginas, dois pôsteres e quatro cards, embalados numa luva em alto relevo. E tem como extra nos discos duas horas de entrevistas, making of e especiais, sem contar as capas dupla-face. Os filmes vêm nas versões italiana e internacional em inglês (o que muda, além do áudio dublado em inglês, são os letreiros na abertura e no encerramento). Com certeza “Demons – Filhos das trevas” é um dos filmes mais horripilantes do cinema, com cenas de puro terror e delírio, mortes macabras e um show de efeitos especiais à moda italiana (inspirados logicamente nos efeitos especiais em stop-motion dos americanos). As criaturas medonhas com dentes e olhos saltados são grotescas e dão medo nesse filme impactante e muito popular na Itália, conhecido pelas cores fortes e violência interminável. Lamberto Bava, o diretor, era neto do técnico em efeitos especiais e diretor de fotografia entre os anos 10 e 60 Eugenio Bava, e filho do maior nome do cinema de horror italiano, o diretor e também técnico em efeitos especiais e diretor de fotografia Mario Bava – de “A maldição do demônio” (1960), “As três máscaras do terror” (1963), “O planeta dos vampiros” (1965) e tantos mais. Adolescente, frequentava sets de filmagem do pai, foi assistente de direção de Mario, como em “Alerta vermelho da loucura” (1970) e “Lisa e o diabo” (1975), depois auxiliando-o nos roteiros. Isso fez todo sentido para sua formação – em 1977, assumiu parte da direção do último filme do pai, que estava doente e morreria três anos depois, “Schock” (Lamberto não tem créditos no filme). Iniciou oficialmente na direção em dois gialli, as fitas com psicopatas que inspirariam o slasher nos Estados Unidos, “Macabro” (1980) e “Uma lâmina no escuro” (1983). Fez em seguida assistência de direção de Dario Argento em “Tenebre” (1982) e lá ficou próximo do diretor, que escreveria, em sequência, os roteiros das duas partes de “Demons”. Bava trouxe para o primeiro filme a trilha sonora de Claudio Simonetti (do grupo Goblin), tornando o filme de terror até hoje lembrado e cultuado. Aqui, Lamberto homenageia o pai com a máscara que provoca o caos demoníaco, uma referência direta a um dos maiores filmes de terror da Itália, feito por Mario, “A maldição do demônio”. Ousado para a época, “Demons” nos provoca sensações de pavor e angústia. Continua original, com momentos divertidos e outros bem nojentos - sem falar que é metalinguístico (o cinema dentro do cinema). Aprecie nessa grande cópia em bluray pela OP.
Com a repercussão estrondosa do filme anterior na Itália, o diretor Lamberto Bava (1944-) fez logo em sequência a continuação, “Demons II - Eles voltaram” (1986), com outra ambientação, porém mantendo a premissa básica: mortes brutais, monstros horripilantes, histeria, insanidade e momentos escatológicos. O segundo capítulo de “Demons” é tão bom quanto o primeiro, e sem sombra de dúvida um marco no cinema de terror italiano contemporâneo. A contaminação das pessoas num cinema de rua com a máscara de metal do filme anterior continua, só que agora o caos se espalha por toda a cidade. Pessoas se transformam em zumbis demoníacos pelas ruas e saem em busca de carne humana. Um grupo de moradores de um prédio residencial de 10 andares se isola para fugir dos demônios. No entanto, as criaturas encontram seus alvos lá. O show de horrores continua, com mortes macabras, delírios, um visual intenso e muito frenesi. O banho de sangue é maior, assim como as escatologias que nunca terminam. Há sequências memoráveis, como o retorno à vida de dois demônios mumificados na rua, quando o sangue de uma vítima pinga em sua boca; a de um cachorro que se transforma num monstro asqueroso (efeitos com bonecos, robôs e resina que lembram os de “Um lobisomem americano em Londres”); o do sangue escorrendo pelos apartamentos, furando o chão e contaminando os moradores; a do demônio esverdeado que sai da TV; a de um demônio com nanismo que dele nasce um monstrengo; e o ataque dos zumbis a uma academia de ginástica. São só alguns para relembrar e assim atiçar a curiosidade de quem nunca viu! O filme está numa cópia primorosa em bluray no box “Demons”, da Obras-primas do Cinema. Há a versão original de cinema, com a máxima metragem disponível, 92 minutos, vendida como “sem cortes” – isso porque na Alemanha e nos Estados Unidos o filme saiu com metragem reduzida devido ao alto grau de violência. Assistam!
Retumbante fita de aventura clássica, marcou gerações pelos efeitos visuais que chacoalhavam o público nas poltronas do cinema (o filme é de 1963, exibido centenas de vezes na TV aberta). Filmado em estúdios no Reino Unido e em belíssimas locações em Salerno, na região da Campania, no sul da Itália, o filme, originalmente da Columbia Pictures, revisita o épico poema do grego Apolônio de Rodes “As argonáuticas”, escrito no século III a.C., em que conta a viagem de Jasão, herói da Tessália, por terras desconhecidas para reivindicar seu trono roubado. Para tal, Jasão lidera um bando de intrépidos aventureiros numa nau, chamada Argo (por isso eles são “os argonautas”), explorando desafios para obter o velocino de ouro, uma lã de carneiro que tem o poder de curar doentes. No estilo de Hércules, Jasão realiza tarefas para conseguir o objeto sagrado, lutando com o titã Talos (uma enorme estátua de bronze), harpias (aves de rapina com rosto e corpo de mulher), uma hidra gigante (monstro mitológico com corpo de lagarto e várias cabeças de cobra) até um confronto estrambólico com caveiras protegidas por escudos (cena memorável na História do Cinema). Juntam-se a Jasão e os argonautas o deus dos mares, Netuno, e até a sacerdotisa Medeia! Novamente os efeitos visuais são primorosos, chamariz para o filme, todos em stop-motion, assinados pelo mago Ray Harryhausen, que criou criaturas famosas do cinema, de filmes como “A vinte milhões de léguas da Terra” (1960), “A ilha misteriosa” (1961) e “O vale de Gwangi” (1969). Com roteiro de Beverley Cross, criador de ótimas histórias de aventura para o cinema, como “Os legendários vikings” (1964), “Gengis Khan” (1965) e “Simbad e o olho do tigre” (1977), tem direção charmosa de Don Chaffey, de “Mil séculos antes de cristo” (1966). Pontos altos também: a trilha de Bernard Herrmann, de Taxi driver” (1976), e a fotografia de Wilkie Cooper, de “Pavor nos bastidores” (1950). - Por Felipe Brida - Blog Cinema na Web
No cinema, três filmes de Simbad ficaram famosos nos cinemas e mais tarde em sessões da tarde na TV aberta, principalmente nos EUA e no Brasil: “Simbad e a princesa” (1958), “A nova viagem de Simbad” (1973) e “Simbad e o olho do tigre” (1977), os três com efeitos especiais feitos pelo mago Ray Harryhausen (1920-2013), de “Fúria de titãs” (1981). O personagem Simbad nasceu de contos populares no mundo árabe, era um marujo intrépido que partia em viagens grandiosas pelo mundo afora. No cinema Simbad apareceu em fitas clássicas, como “Simbad, o marujo” (1947, interpretado pelo astro da década de 1930 Douglas Fairbanks Jr.), em animação (como “Sinbad – A lenda dos sete mares”, de 2003, da Dreamworks) e até em paródia brasileira, no caso “Simbad, o marujo trapalhão” (1976, com Renato Aragão e Dedé Santana). “Simbad e o olho do tigre” (1977) é um entretenimento esperto e divertido, com muitas cenas de luta com monstros. Aqui, como se fosse Hércules, Simbad terá um monte de desafios a cumprir para alcançar o amor de sua vida; em todos eles, precisa derrotar ferozes inimigos, como um temível colosso de bronze em forma de touro, um gigante de chifre na testa, um ágil babuíno, demônios com espadas e um enorme tigre com dentes-de-sabre. Dessa vez Simbad é interpretado por Patrick Wayne, de “Jake Grandão” (1971), um papel marcante na carreira do ator. Há participação de Jane Seymour, atriz de “Em algum ligar do passado” (1980) e da série “Dra. Quinn” (1993-1998), e o filme foi rodado em locações na Espanha, Jordânia e Malta, além de estúdios no Reino Unido. Conta ainda com boa direção de Sam Wanamaker, que dirigiu séries de TV e foi um ator muito versátil entre os anos de 1950 e 1990.
A distribuidora Classicline relançou esse mês em DVD duas fitas de aventura dos anos de 1970 com Simbad, lendário marujo e aventureiro de Bagdá cujas origens estão nos contos populares do antigo Oriente Médio. Nos dois filmes presenciamos Simbad viajar pelos sete mares e entrar de cabeça em aventuras fantásticas com princesas encantadas, enfrentando monstros perigosos e até o sobrenatural. Simbad apareceu pela primeira vez em “As mil e uma noites”, coleção de contos árabes compilados e traduzidos a partir do século XVIII, e depois ganhou livros próprios e muitos filmes. Em “A nova viagem de Simbad” (1973), o marujo segue com um mapa do tesouro à ilha de Lemuria. No caminho enfrenta uma estátua vingativa com vários braços, um centauro de um olho só e um grifo, criatura mítica com cabeça de água e garras de leão. O filme tem efeitos visuais primorosos, um chamariz para a aventura se tornar empolgante, assinados por Ray Harryhausen (1920-2013), especializado em stop-motion (criou nos anos de 1950 diversas criaturas memoráveis, como “O monstro do mar” e “O monstro do mar revolto”, além das de “Fúria de titãs”). Astro nos anos de 1960 e 1970, John Phillip Law (1937-2008) é o Simbad astuto e um dos melhores intérpretes do personagem no cinema – ele esteve em filmes cultuados como “Barbarella” (1968) e “Perigo: Diabolik” (1968). Rodado na Espanha, tem direção do alemão radicado no Reino Unido Gordon Hessler, que dirigiu muitas fitas de terror, como “O ataúde do morto-vivo” (1969), “Grite, grite outra vez” (1970) e “O uivo da bruxa” (1970). POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Resenha do filme "Amargo regresso" (1978), escrita especialmente para o livro "Nova Hollywood - Filmes essenciais do movimento", lançado pela Versátil Home Video em abril de 2023.
Você voltaria ao Vietnã?
Na ala de um hospital onde estão feridos de guerra, um grupo de ex-combatentes do Vietnã joga bilhar. Dois ou três estão em cadeira de rodas, outros na maca. Até que um deles lança a pergunta que abre um duro debate: “Você voltaria ao Vietnã?”. A discussão é acalorada, nunca se chega a um consenso. O sargento Luke Martin (Jon Voight) apenas escuta os pontos de vista dos colegas e paulatinamente fica imóvel, com olhar vago, para baixo, para o nada. A descrição acima é a abertura de um dos filmes mais notórios da Nova Hollywood, talvez o mais comentado da carreira de Hal Ashby e que bem retrata os soldados americanos que voltaram com sequelas da infame guerra do Vietnã. Muitos filmes, principalmente os realizados nos Estados Unidos, trataram dos fuzileiros no campo de guerra em solo vietnamita, com enfoque nos homens com nervos de aço atirando para matar, como “Os rapazes da Companhia C” (1978), “Rambo II – A missão” (1985), “Platoon” (1986), “Nascido para matar” (1987) e “Comando de heróis” (1989). Já as produções que falam do retorno dos soldados dessa guerra injusta, cruel e complexa são escassas. Três obras são fundamentais nesse segundo tema: “Amargo regresso” (1978), “O franco atirador” (1978) e “Nascido em 4 de julho” (1989) – o primeiro foi lançado em fevereiro de 1978, enquanto o segundo saiu em dezembro do mesmo ano, e entre “Amargo regresso” e “Nascido em 4 de julho” há uma série de convergências e semelhanças, que vou detalhar em outro tópico. “Amargo regresso” se passa em 1968, ano crucial da guerra, pois se evidenciavam avanços de paz para o fim do conflito – a Guerra do Vietnã começou em 1955 e se estendeu até 1975, considerada uma guerra desproporcional e insana, que matou 58 mil americanos e 1,1 milhão de vietnamitas e vietcongues (há historiadores que defendem que o número de vietnamitas mortos pode chegar a 3,5 milhões). Foi a guerra do temível napalm, do destruidor fósforo branco e do ardiloso agente laranja, no meio das selvas e áreas alagadas. Só que “Amargo regresso” não trata de nada disso. Os personagens que combateram na guerra já estão de volta. A perspectiva é outra. É o retorno dos chamados “sequelados”, sejam os que tiveram pernas amputadas ou que apresentavam problemas motores, ou mesmo os que voltavam traumatizados, com processos de alucinação e depressão graves, que enlouqueciam nos corredores dos antigos manicômios. Na história, conhecemos o sargento citado anteriormente, Luke Martin (Jon Voight), que ficou paraplégico na guerra. Ele está no hospital, aos cuidados de uma enfermeira, Sally (Jane Fonda), cujo marido, o oficial da Marinha Bob Hyde (Bruce Dern), ainda não regressou do Vietnã. Sally e Luke se apaixonam, iniciam um relacionamento às escondidas, até que Bob retorna, o que irá revirar a vida dos três. O trio trava uma guerra particular, dentro de uma bolha de complexidades. Todos são impactados por uma mudança drástica de vida e trajetória. Bob está atormentado, queria que a guerra fosse de outro jeito, não aceita a derrota e aos poucos descobre a traição da esposa; Sally está emocionalmente entregue ao amante, tem de se dividir entre dois homens de comportamentos distintos; e Luke, que sem poder mexer-se da cintura para baixo, precisa se adequar a uma nova realidade em sua cadeira de rodas. O personagem de Luke, assim com o de Sally e Bob, têm muitas camadas. Luke, que é um símbolo da sobrevivência de uma guerra, representa também as barreiras e os preconceitos que os deficientes físicos encontravam. Há cenas espaçadas ao longo do longa-metragem em que Luke se vê em dificuldades para se locomover em espaços públicos, e na sequência do supermercado, por exemplo, é alvo de pessoas sem empatia, com olhares “tortos” sobre ele. Ainda no mercado o personagem não consegue empurrar o carrinho de compras e nem passar pelos corredores estreitos, até que três crianças o ajudam. O filme menciona de forma rápida, mas esperta e até crítica, a questão da acessibilidade. Há outras cenas belíssimas: ainda nessa do mercado, Luke põe uma das crianças no colo, na cadeira de rodas, e anda pelos corredores; o suicídio de um ex-combatente atormentado, que injeta ar na veia do braço com uma seringa, enquanto os colegas cadeirantes não conseguem abrir a porta para salvá-lo; a de Sally no colo de Luke, dando voltas na cadeira de rodas pelo hospital (sequência que se transformou na capa do filme no Brasil e nos Estados Unidos); a transa de Luke e Sally, com closes íntimos iluminados pela fotografia estonteante e naturalista de Haskell Wexler, e com direito a uma sutil cena de sexo oral, que encabulou a Motion Picture Association a ponto de a associação classificar o filme como R-rating (abaixo falo mais nas “curiosidades”); e a do encontro derradeiro entre Sally e Luke com Bob, que carrega consigo um fuzil com baioneta. A trilha sonora é de uma delicadeza ímpar. Ela ajuda a compor o drama que aos poucos assume ares românticos e discute temas como readaptação, as consequências da guerra, o amor, os novos encontros da vida. Músicas notórias da metade dos anos de 1960 (já que o filme se passa em 1968) embalam os personagens em suas andanças, como “Out of time” (de Rolling Stones), “Bookends” (de Simon & Garfunkel), “Follow” (de Richie Havens) e “Born to be wild” (de Steppenwolf), “For what it's worth” (de Buffalo Springfield) e “Once I was” (de Tim Buckley). “Amargo regresso” fez muito sentido para a época e ainda hoje continua humanista, com mensagem antiguerra/antibélica.
O roteiro e a construção de Luke Martin
O personagem Luke Martin foi inspirado em Ron Kovic (1946-), fuzileiro norte-americano que serviu o Vietnã. Aos 22 anos, em 1968, quando liderava um ataque a uma aldeia no norte do Vietnã, levou um tiro que ocasionou em uma lesão medular, que o paralisou do peito às pernas. Um de seus colegas tentou salvá-lo, mas morreu baleado. Ficou por uma semana em uma enfermaria, recuperou-se e depois virou escritor, além de se engajar em movimentos ativistas pela paz mundial (até hoje participa de encontros e manifestações dessa natureza), por isso já foi preso uma dezena de vezes em protestos políticos. Em 1976 publicou seu livro de memórias sobre o Vietnã que se tornaria emblemático a ponto de ganhar versão para cinema: “Nascido em 4 de julho”, exímio retrato das consequências dessa guerra infernal para os que foram lá lutar – Oliver Stone, que lutou no Vietnã, escreveu o roteiro baseado no livro e fez um punhado de longas-metragens sobre o tema, como “Platoon” (1986) e “Entre o céu a e terra” (1993). Quem dá vida a Ron Kovic em “Nascido em 4 de julho” é Tom Cruise, num papel magistral que lhe rendeu a primeira indicação ao Oscar. Jane Fonda conheceu Ron Kovic em protestos e se tornaram amigos (a atriz há mais de 50 anos é ativista e luta por diversas causas, de movimentos feministas àqueles contra a guerra e também àqueles que tratam da crise climática). Daí surgiu a ideia do filme (Jane era influente na indústria do cinema, já tinha um Oscar e era filha do imponente ator Henry Fonda). Jane pediu à roteirista Nancy Dowd, de “Vale tudo” (1977), uma história romântica no contexto da Guerra do Vietnã. Então Nancy bolou o argumento e esboçou um roteiro de 250 páginas, apresentando-o a Jane. O elenco foi selecionado, havia tudo preparado para as gravações, e o diretor seria John Schlesinger (de “Perdidos na noite”). Porém o projeto não seguiu, porque o roteiro era considerado polêmico demais, com forte comentário político (a guerra havia terminado há menos de três anos, e ainda dividia a opinião pública). O produtor Jerome Hellman e o roteirista Waldo Salt, que trabalharam juntos em “Perdidos na noite” (1969), chamaram Jon Voight, também de “Perdidos”, para uma reunião. O filme sairia, no entanto o roteiro de Nancy Dowd sofreria mudanças. Waldo Salt reescreveu o texto com Robert C. Jones, montador indicado a três Oscars, de filmes como “Adivinhe quem vem para jantar” (1967) e “Love story: Uma história de amor” (1970) – Jones iria supervisionar também, pois serviu no Vietnã e conheceu a guerra de perto. E por fim, chegaria Hal Ashby, o novo diretor em vista para o projeto, que vinha de fitas premiadas e elogiadas por público e pela crítica, como “Ensina-me a viver” (1971), “A última missão” (1973) e “Shampoo” (1975). A ideia central da história permaneceu, retiraram os aspectos políticos, e fixaram a trama nas dificuldades dos veteranos que voltavam da guerra.
Curiosidades da produção
• Três atores foram cotados para o papel de Luke Martin antes de Jon Voight: Sylvester Stallone, Jack Nicholson e Al Pacino. • O filme custou U$ 3 milhões e rendeu U$ 32,6 milhões de bilheteria, um bom número para um drama naquela época. • Jon Voight conta no making of que acompanha o filme “Amargo regresso” em DVD, lançado pela Versátil, que o longa presta um tributo aos jovens que estiveram no Vietnã, e assim o cinema serviria para uma espécie de cura aos sobreviventes. • A cena de abertura, dos veteranos conversando enquanto jogam bilhar, não estava no script original. São seis veteranos reais do Vietnã que ficaram paraplégicos, e nessa sequência eles trazem seus pontos de vista sobre a guerra – Jon Voight é o único ator em cena, e apenas ouve enquanto eles conversam, sem opinar. • Jon Voight conta no making of que para representar bem o papel do sargento paraplégico, treinou em cadeira de rodas atlética com um time de basquete de cadeirantes em Long Beach. Diz que passou a fazer tudo por meses com a cadeira de rodas, para se acostumar e absorver o máximo de realidade de um deficiente. Conta que aprendeu a ver a dor, as dificuldades e a rotina dos cadeirantes. • O filme recebeu censura R-rating na época, por conter uma cena de sexo oral entre Jon Voight e Jane Fonda - mesmo sem ser explícita ou aparecer algum personagem nu total, a Motion Picture Association apontava “conteúdo sexual”, ou seja, o filme era para maiores de 17 anos. • Originalmente da MGM, “Amargo regresso” venceu três Oscars, de melhor atriz para Jane Fonda, melhor ator para Jon Voight e melhor roteiro original - e indicado ainda a cinco outros no Oscar de 1979: melhor filme, ator coadjuvante para Bruce Dern, atriz coadjuvante para Penelope Milford, diretor e edição; Voight ganhou o de ator no Festival de Cannes (o filme concorreu à Palma de Ouro), e tanto ele quanto Jane levaram os prêmios de ator e atriz de drama no Globo de Ouro. (POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB)
What Happened, Miss Simone?
4.4 401 Assista AgoraNão teve título traduzido no Brasil esse bonito e melancólico documentário da Netflix indicado ao Oscar em 2016 sobre a cantora Eunice Kathleen Waymon, a lendária Nina Simone (1933-2003), exímia pianista, compositora, cantora de jazz e blues e ativista pelos direitos civis dos negros. Tudo no documentário é intenso e trágico. Dona de uma voz potente e inesquecível, Nina nasceu de uma família pobre de sete irmãos na Carolina do Norte. Começou a tocar piano na igreja ainda criança, aos quatro anos, quando acompanhava a mãe pregadora, e 15 anos depois, tomada pela timidez, subiu aos palcos de bares para cantar, por acaso. O mundo se voltou para aquele vozeirão, e daí veio o apelido: Nina, colocado pelo namorado que a chamava de “Niña”, e “Simone”, em homenagem à atriz francesa Simone Signoret, da qual era fã. Ao longo da carreira enfrentou atropelos: apanhava do marido (um detetive que virou empresário dela), tinha problemas com sua única filha (a atriz e cantora Lisa Simone Kelly), brigava com as gravadoras, rompia contratos, até ser diagnosticada, tardiamente, com transtornos psiquiátricos (ela tinha uma bipolaridade mal cuidada, que a fazia cair em crises nervosas, brigar e se isolar). Nos anos de 1960, entrou nos movimentos em prol aos direitos dos negros, tornando-se uma figura poderosa na causa, ao lado de Angela Davis, Maya Angelou, Harry Belafonte e Martin Luther King. O doc mostra isso tudo, da infância da cantora à carreira de altos e baixos, do seu lado ativista e das crises familiares, tudo contado a partir de seus diários pessoais, além de entrevistas de familiares e amigos. Exibem-se imagens raras dela no palco e gravações inéditas, e em determinado momento reabre feridas, de um lado menos conhecido de Nina, no caso os transtornos maníaco-depressivos e a agressividade. Nina morreu solitária, triste, vítima de câncer, numa província no sul da França, aos 70 anos, deixando uma marca inigualável na cena musical norte-americana.
A trilha do filme reúne cerca de 30 canções importantes dela, as de protesto e ativismo como “To be young, gifted and black”, “Ain't got no/I got life” e “Why? (The King of love is dead”) e reinterpretações, como “Don’t let me be misunderstood”, “Sinnerman” e “My baby just cares for me”.
Produzido e lançado pela Netflix, recebeu indicação também ao Grammy de melhor filme musical e venceu o Emmy de documentário. A diretora, Liz Garbus, tinha sido indicada ao Oscar pelo doc “The farm: Angola, USA” (1998) e dirigiu, produziu e escreveu diversos filmes e minisséries para a Netflix. Um dos grandes documentários do catálogo da plataforma, que revi com muito prazer ontem.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
O Anjo do Mossad
3.6 47 Assista AgoraCurioso drama biográfico com uma ou outra cena de ação, baseado em incríveis fatos verídicos. Conta uma história pouco conhecida do público, a trajetória de Ashraf Marwan (1944-2007), milionário egípcio que foi espião para o Mossad, o temido serviço secreto de Israel, fundado em 1949. Genro de Gamal Abdel Nasser, ex-presidente do Egito de 1958 até 1970, usava o codinome “O Anjo” e tornou-se chefe de operações do governo Sadat, após a morte do presidente Nasser.
O desenrolar da trama é complexo, foca na vida de Marwan nos primeiros anos de 1970, quando começou sua atuação no Mossad. O narrador do filme faz entradas esporádicas para explicar fatos históricos, como a Guerra dos Seis Dias, a disputa de território entre árabes e judeus e a formação do Estado de Israel, até chegar ao personagem central e o Mossad (prestem atenção nos pormenores e diálogos).
É uma adaptação do livro “The Angel: The egyptian spy who saved Israel”, de Uri Bar-Joseph, com roteiro de David Arata, indicado ao Oscar por “Filhos da esperança” (que, neste, escreveu o roteiro ao lado de outros quatro roteiristas, incluindo Alfonso Cuarón).
Há um bom ator que interpreta Marwan, o holandês de origem tunisiana Marwan Kenzari, de “Ben-Hur” (2016), “A promessa” (2016), e depois de “O Anjo do Mossad” interpretou Jafar, o vilão no live-action da Disney “Aladdin” (2019), além de bons coadjuvantes, como Sasson Gabay, ator iraquiano de “Rambo III” (1988) e “A banda” (2007), na pele de Anwar Sadat (presidente do Egito após a morte de Nasser), e o inglês Toby Kebbell, de “Quarteto fantástico” (2015), como um agente canadense da Mossad que se torna próximo do Anjo.
Direção coesa do israelense Ariel Vromen, que rodou o terror independente com Marisa Tomei “Danika” (2005), o filme de serial killer também verídico (e excelente), com Michael Shannon, “O homem de gelo” (2012), e fez um bom thriller scifi com Kevin Costner e Gal Gadot, “Mente perigosa” (2016). Produzido e distribuído pela Netflix, está na plataforma aos assinantes.
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Contos da Escuridão
3.4 133Assustador filme para cinema feito a partir da série homônima “Tales from the darkside” (1983-1988), que no Brasil recebeu o título de “Galeria do terror”, que compilava dezenas de contos de terror com histórias sobrenaturais, fantasia, suspense, ficção científica e humor negro, produzida por George A. Romero (de “A noite dos mortos-vivos”). Com o fim da série, muito popular nos EUA, parte dos produtores partiram para adaptá-la para a telona, fechando com os estúdios da Paramount Pictures, com distribuição mundial nas salas. São três histórias criativas de terror com muitos sustos e criaturas horrendas, criadas pelas maiores mentes do horror moderno: George A. Romero, de filmes de zumbis como “Despertar dos mortos” (1978) e “Dia dos mortos” (1985), Stephen King, de “O iluminado” (1980), “It: A coisa” (a série de 1990 e os filmes de 2017 e 2019) e tantas outras fitas de terror, e Michael McDowell, roteirista de “Os fantasmas se divertem” (1988) – este adaptou um conto antigo de Arthur Conan Doyle, célebre escritor escocês de literatura de investigação, criador de “Sherlock Holmes”. O filme funciona assim: começa com um garotinho (Matthew Lawrence, de “Uma babá quase perfeita”) raptado por uma bruxa moderna (a elegante Debbie Harry, vocalista do Blondie e atriz de filmes como “Videodrome: A síndrome do vídeo”). Ela pretende cozinhá-lo num forno para o jantar. Mas antes o garoto faz uma proposta na tentativa de distraí-la: ler histórias de terror. E as histórias começam... A primeira chama-se “Lote 249” (conto de Conan Doyle, adaptado por McDowell), sobre um estudante aficionado por arqueologia que recebe uma enorme caixa pelos correios e convida um amigo para abri-la, com consequências horripilantes (nessa sequência tem Christian Slater, Julianne Moore e Steve Buscemi, todos em início de carreira). Na segunda história, “Um gato do inferno” (conto original de King, adaptado por Romero), um milionário debilitado numa cadeira de rodas contrata um matador para eliminar um gato amaldiçoado que o persegue e já matou integrantes de sua família (aqui temos dois veteranos em cena, o já indicado ao Oscar William Hickey, e David Johansen). Por último, “O voto dos amantes” (escrito por McDowell, inspirado em um folclore japonês) traz um artista decadente que recebe a visita de uma gárgula que faz a ele uma proposta irrecusável (James Remar faz o papel principal). E quando essas historietas terminam, o filme volta para o garoto e a bruxa para o encerramento, com muitas reviravoltas!
As histórias são um barato, todas curtinhas, em média com 25 minutos cada; algumas assustam, como as duas primeiras, e há monstros feiosos, como o a da gárgula, com bons efeitos e maquiagens do mestre Dick Smith, de “O exorcista” (1973) e “Scanners: Sua mente pode destruir” (1981), ganhador do Oscar pela make por “Amadeus” (1984).
A direção é de John Harrison, que dirigiu oito episódios da antiga série, “Galeria do terror”, e depois só se dedicou a séries e a telefilmes. Sai em DVD pela Obras-primas do Cinema numa boa edição.
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Ressurreição: Retalhos de um Crime
3.6 151 Assista AgoraDerivado de “Seven: Os sete crimes capitais” (1995), com forte semelhança na trama (incluindo a complexidade do caso envolvendo assassinatos brutais), na fotografia escura e na investigação da identidade do assassino, “Ressurreição” (1999) fez carreira no circuito de home video, numa distante época na qual o VHS reinava. O roteiro se apropriava de ideias de “Seven” trazendo com mais ênfase mortes horrendas, exibidas sem restrições na tela, reforçando a crueldade do assassino. Foi escrito por Brad Mirman, de fitas policiais com assassinos como “Corpo em evidência” (1992) e “Face a face com o inimigo” (1992), este com Christopher Lambert, onde conheceu o ator e voltaria a trabalhar com ele em pelo menos três outros longas-metragens. Na realidade, o argumento original do filme é de Lambert, que auxiliou Mirman não script (é o único trabalho de roteiro creditado de Lambert, que foi um dos produtores aqui). Ou seja, um filme dele, para ele, bem pessoal. Convidou para dirigir Russell Mulcahy, australiano, velho conhecido de Lambert, que o tornou famoso quando o dirigiu no cultuado “Highlander: O guerreiro imortal” (1986) – e depois fariam a continuação, “Highlander 2: A ressurreição” (1991).
O filme foca integralmente na investigação, um caso complicado de assassinatos cometidos por alguém insano, possivelmente um abitolado religioso, que inscreve no corpo das vítimas versículos da Bíblia e arranca os membros delas, levando-os consigo - a ideia do serial killer é recriar o corpo de Cristo. Traz imagens fortes e até desagradáveis, por exemplo, dos corpos em decomposição).
Para provocar medo e gerar o clima de estranhamento da história, há uma fotografia estilizada, amarronzada, com enquadramentos que deformam a tela nos momentos de sufoco dos personagens (foto de Jonathan Freeman, de séries como “Game of thrones” e “Boardwalk empire”).
Não acho Lambert bom ator (às vezes é canastrão), mas neste filme faz um esforço e não desagrada. Atenção para personagens secundários que auxiliam o tom firme e sinistro da trama: Leland Orser (de “O colecionador de ossos” e que fez ponta em “Seven”), como o detetive auxiliar de Lambert, e Robert Joy (de “Atlantic city”), como um cidadão que ajuda os detetives fornecendo pistas para desvendarem o caso. Há também uma rápida aparição, no papel de um padre, do diretor David Cronenberg (que fez “A mosca” e “Crash: Estranhos prazeres”).
Lançado em DVD numa boa cópia pela Obras-primas do Cinema. No disco há extras, além de capa dupla face e junto com um card com a capa original do filme.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
A Aparição
3.4 155 Assista AgoraCultuado pelos jovens nos anos de 1980 e 1990, “A aparição” é uma fita scifi com terror e ação que mais parece um faroeste sobrenatural, uma mistura de “O estranho sem nome” (1973, de Clint Eastwood) com “O carro – A máquina do diabo” (1977, de Elliot Silverstein). Isso porque na trama um homem misterioso surge numa pequena cidade do Arizona para se vingar da morte de um rapaz, crime cometido por uma perigosa gangue de rua. Não se sabe a identidade desse cara, nem se ele é deste mundo; veste roupas pretas de couro com acessórios de metal, semelhante a um robô, usa um capacete que tapa inteiramente o rosto e os olhos, e porta uma arma destruidora. Paralelamente à vinda dele, chega à cidade um jovem em busca de um lar (Charlie Sheen, filho do astro Martin Sheen e irmão de Emilio Estevez, em início de carreira, meses antes de protagonizar “Platoon”, o clássico de guerra de Oliver Stone).
A trama fica célere com as brigas entre as gangues de rua e os rachas no meio da poeira e do deserto (com boas cenas de corridas de carro). A trilha é embalada em alta frequência por clássicos do rock’n roll, em que ouvimos Ozzy Osbourne e Lion, por exemplo. No elenco, além de Sheen, tem Nick Cassavetes (filho do cineasta John Cassavetes e da atriz Gena Rowlands, que viraria diretor depois), Sherilyn Fenn (atriz da série “Twin Peaks”), Randy Quaid (irmão mais velho de Dennis Quaid, de “A última missão”) e Clint Howard (de “Um sonho distante”).
Um dos pouquíssimos filmes dirigidos por Mike Marvin, que realizou mais séries televisivas e no mesmo ano de “A aparição” estreou com o popular besteirol “Hamburguer: O filme”.
Quem devorava filmes nas antigas sessões da tarde na TV nos anos 90 vai se lembrar de “A aparição”, agora lançado em DVD numa boa cópia pela Obras-primas do Cinema. No disco há 30 minutos de extras, além de capa dupla face e junto com um card com a capa original do filme.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Dez Minutos para Morrer
3.5 58Quarto trabalho de uma série de nove filmes de ação entre o ator Charles Bronson e o diretor J. Lee Thompson, parceria que começou com “Cinco dias de conspiração” (1976) e terminaria com “Kinjite: Desejos proibidos” (1989). Em quase todos, Bronson encarna policiais solucionando casos de assassinatos e tráfico de drogas; usa o bigode fino costumeiro, veste terno, de fala mansa e quando é provocado, defende-se de forma violenta. Dos nove longas-metragens juntos há fitas boas, outras irregulares e corriqueiras e algumas ruins de doer, muitas com trama semelhante. “10 minutos para morrer” (1983) é um dos mais eficientes filmes da dupla. Bronson faz um detetive aborrecido de Los Angeles que investiga crimes brutais tendo jovens mulheres como as vítimas de um serial killer perturbado, que tem o hábito de ficar nu durante os ataques. O assassino é evidenciado nos primeiros minutos (interpretado pelo ator Gene Davis, de “A morte pede carona”,a versão original de 1986), um rapaz de olhar penetrante, que usa luva cirúrgica e faca na hora da matar. Ao lado do detetive está um novato investigador (Andrew Stevens, de “A fúria”), que sai também no encalço do criminoso.
Não há surpresas no roteiro, legalzinho, que parece ter saído do universo dos slasher movies, já que tem um psicopata que mata jovens (tem cenas com sangue, porém não há a fórmula tradicional do “whodunit”, o “quem matou”, pois já sabemos da identidade dele desde o começo). Completam o elenco secundário Geoffrey Lewis (como um advogado de defesa do assassino), Wilford Brimley (o chefe de polícia) e Lisa Eilbacher (a filha do detetive protagonista).
A produção é da popular (e extinta) Cannon, da dupla de produtores israelenses Menahem Golan e Yoram Globus, que fez uma centena de filmes policiais B nos anos de 1980 lançando fitas comerciais de Chuck Norris, Arnold Schwarzenegger, Sylvester Stallone, Dolph Lundgren e Jean-Claude Van Damme.
Exibido na TV aberta diversas vezes, pode ser assistido agora em DVD, numa boa edição com extras lançado pela Obras-primas do Cinema. O DVD vem com capa dupla face e acompanha card com a capinha original do filme.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Os Dois Mundos de Jennie Logan
3.6 28Fantasia, romance e um grau de mistério e sobrenatural temperam esse filme para TV de 1979, dirigido por Frank De Felitta, que fez um telefilme muito bom com espantalho assassino, “A vingança do espantalho” (1981 – que também tinha traços de fantasia). Ele escreveu o roteiro de “Os dois mundos de Jennie Logan” adaptando-o de um romance de David L. Williams chamado “Second sight”, que tratava de viagem no tempo, amor proibido e livre arbítrio.
Na história, uma mulher, no tempo presente (bem interpretada por Lindsay Wagner, a “Mulher Biônica” da série dos anos 70) muda-se com o marido (papel de Alan Feinstein, da série ‘Berrenger’s”) para uma nova casa. Ao revirar o sótão, encontra um velho vestido branco, e ao vesti-lo, retorna no tempo, um século antes. Ela estranha os lugares, as pessoas, até que se envolve com um homem perfeito, um artista (Marc Singer, de “O príncipe guerreiro”), porém ele carrega uma maldição. Ao retirar o vestido, volta ao tempo presente – quando enfrenta crises no casamento com o marido mulherengo. Então Jennie terá de escolher se fica ou se volta.
Foi um dos primeiros filmes de romance sobre viagem no tempo, lançado um ano antes de uma fita emocionante de mesmo tema que ganhou o público na época, “Em algum lugar do passado” (1980), com Cristopher Reeve e Jane Seymour (baseado no livro de Richard Matheson).
Deverá agradar quem gosta do tema - e indico também àquele público feminino que gosta de romances sensíveis e sobre escolhas.
Saiu recentemente em DVD pela Obras-Primas do Cinema, em uma boa cópia (mas sem extras no disco). O DVD vem com capa dupla face e acompanha card com a capinha original do filme.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
O Último Golpe
3.5 39 Assista AgoraFita de ação das mais empolgantes do cinema dos anos 70, produzida no auge da Nova Hollywood e que marcou a estreia de Michael Cimino na direção – poucos anos mais tarde ganharia o Oscar de melhor direção e também de melhor filme pela obra-prima do cinema de guerra “O franco atirador” (1978), e, paralelamente, quebraria a United Artists com a exaustiva superprodução “O portal do paraíso” (1980), fiasco de público e crítica na época.
Cimino escreveu e dirigiu “O último golpe” (1974) reunindo os melhores elementos do cinema de ação, road movie e o western: anti-heróis perspicazes (no caso foras-da-lei simpáticos), perseguições a todo vapor, fugas mirabolantes bem orquestradas, assaltos com tiros sem fim, traições e final trágico. Clint Eastwood e Jeff Bridges (que recebeu nesse filme sua segunda indicação ao Oscar, de melhor ator coadjuvante) performam como a dupla de criminosos Thunderbolt e Lightfoot (título original do filme, cuja tradução seria “Relâmpago” e “Ligeiro”), que se arriscam num assalto complexo, única alternativa de suas vidas; o primeiro é um veterano que quer deixar a vida de crime pra trás, enquanto o segundo, novato e atrapalhado, prospecta que o plano será a maior jogada do mundo. Só que no encalço deles estará dois velhos comparsas de Thunderbolt, Red (George Kennedy, ganhador do Oscar de coadjuvante por “Rebeldia indomável”) e Eddie (Geoffrey Lewis, pai da atriz Juliette Lewis e ator de vários filmes de Clint Eastwood, como “O estanho sem nome”).
Produzido pela Malpaso, companhia de Clint Eastwood, que produziu os principais filmes do ator, no total 50 longas, com destaque para os de ação e faroeste nos anos de 1960, 70 e 80, como “Meu nome é Coogan” (1968), “Perseguidor implacável” (1971) e “Um agente na corda bamba” (1984).
Saiu em DVD pela Classicline dois anos atrás, numa cópia com enquadramento errado, que deforma a tela, infelizmente. E agora está disponível numa cópia excelente pela Versátil, dentro do box “O cinema da Nova Hollywood - volume 4”, com outros cinco bons filmes, incluindo “Uma mulher descasada” e “O caçador de dotes” (são três DVDs na caixa, com 1h15 de extras e cards).
POR FELIPE BRIDA - Blog Cinema na Web
Lembranças de Outra Vida
3.6 337 Assista AgoraAdorável, leve e espirituoso, foi um dos primeiros filmes de vidas passadas com cachorro. Fácil de ver, entramos com naturalidade na história, devido a seus personagens simpáticos, com destaque ao cãozinho principal, Fluke, que é uma graça. Comoveu muita gente na época do lançamento, em 1995, fez certo sucesso em VHS depois do fracasso nos cinemas e foi exibido inúmeras vezes na TV aberta.
Nancy Travis, que interpreta a mulher sempre presente nas visões do cãozinho Fluke, estava no auge da carreira, vindo de filmes como “Três solteirões e uma pequena dama” (1990) e “O silêncio do lago” (1993). Matthew Modine, de “Nascido para matar” (1987), atua como um empresário que morre num acidente de carro, e depois empresta a voz para Fluke (ao longo do filme fica mais claro a relação do empresário com a família que Fluke procura). Outros nomes conhecidos pintam em participações rápidas, como o veterano Bill Cobbs, Eric Stoltz e Ron Perlman, e tem até Samuel L. Jackson cedendo a voz para o melhor amigo de Fluke, o cachorro Rumbo.
Nessa fábula simpática sobre reencarnação, tudo pode acontecer. Os mais emotivos poderão se emocionar com o desfecho.
É uma adaptação do romance “Fluke”, do escritor britânico especializado em livros de terror James Herbert, publicado em 1977. O roteiro foi adaptado pelo próprio diretor do filme, o italiano Carlo Carlei, de “O voo do inocente” (1992).
Saiu recentemente em DVD, numa boa cópia, pela Obras-primas do Cinema (disco simples, apenas com trailer como extras no DVD, mais um card com a capa original do filme).
POR FELIPE BRIDA - Blog Cinema na Web
A Estirpe dos Malditos
3.4 18Sequência do clássico filme de terror “A aldeia dos amaldiçoados” (1960), com mais cenas de ação e mortes, porém seguindo o mesmo tom do original. É outro diretor (aqui Anton Leader, de séries de TV) e novo elenco, inteiramente britânico, como Ian Hendry, de “Carter, o vingador” (1971), Barbara Ferris, de “Inocente... mas não muito” (1969), e Alan Badel, de “O dia do chacal” (1973). A trama traz crianças de outros países (Índia, Nigéria, China e outros), o que dá a entender que a contaminação do filme anterior (que nunca foi justificada) se espalhou pelo mundo. E nesse capítulo elas serão confinadas numa igreja e passarão por testes militares – para se vingar, elas controlarão a mente das pessoas levando-as a cometer assassinatos e suicídios. A violência é mais acentuada, ainda que nada chocante, pois estamos falando de anos de 1960.
É sim uma boa continuação, mas nada de especialmente marcante, que procura investir no mesmo clima do anterior. Sai em DVD pela Classicline na coleção “Malditos” (em disco duplo, sem extras).
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
A Aldeia dos Amaldiçoados
3.8 121 Assista AgoraImperdível para os fãs do cinema de terror clássico, a coleção “Malditos” está disponível em DVD pela Classicline (em disco duplo, sem extras). No box há este primeiro filme, “A aldeia dos amaldiçoados” (1960), e a continuação, “A estirpe dos malditos” (1964) – ambos tratam de um grupo de crianças contaminadas por uma radiação, que desenvolvem inteligência fora do comum e poderes telepáticos.
Original, com cenas antológicas, o filme britânico causou estranheza no lançamento, por trazer crianças maldosas e assassinas (elas não matam ninguém com as próprias mãos, mas induzem as pessoas ao crime, já que as vítimas são controladas pela mente delas). Os olhos das crianças ficam cintilantes, e elas causam o terror no vilarejo onde vivem.
Foi baseado no livro “The Midwich cuckoos”, de John Wyndham, escritor britânico de ficção científica, e seu livro inspirou outras versões, como o filme de terror de John Carpenter “A cidade dos amaldiçoados” (1995) e a série britânica da Sky, “The Midwich cuckoos” (2022).
No elenco está o ator premiado com o Oscar George Sanders, de “A malvada” (1950), e Barbara Shelley, de “Uma sepultura para a eternidade” (1967 - falecida em 2021 de Covid, aos 89 anos).
É um terror clássico com pitadas de filmes de mistério e ficção científica e muito suspense, escrito e dirigido pelo alemão Wolf Rilla, de “Marilyn” (1953).
Quatro anos depois, a MGM produziu também a continuação, “A estirpe dos malditos” (1964), que segue a mesma linha, só que com mais ação e novos rumos para a história.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Shazam!
3.5 1,2K Assista Agora“Shazam!” (2019) veio como uma tentativa (bem-sucedida, acho eu) de a DC Comics concorrer diretamente com um personagem que tem certas semelhanças, da Marvel, “Deadpool” (2016). Seja no estilo do super-herói gozador e abobalhado, seja na narrativa anárquica, cheia de piadas, algumas delas de humor negro e outras infames. “Deadpool” é um arraso, uma das grandes fitas de super-herói de ar contemporâneo, mas “Shazam!”, que recebeu muitas críticas negativas, é um bom competidor, graças ao ator principal, Zachary Levi, que vinha da premiada série de ação e comédia “Chuck” (2007-2012) e aqui alcançou a fama. Ele é debochado sem ser insistente, divertido (com certa contenção) e carismático. Vestiu bem o papel nessa fita de entretenimento que custou U$ 100 milhões e rendeu mais que o triplo nos cinemas, U$ 367 mi. Com “Shazam!”, a DC Comics recuperou o fôlego com outro tipo de aventura, injetando mais humor e menos ação que o habitual, principalmente nessa nova fase – antes de “Shazam!” a DC teve dois sucessivos sucessos na telona, “Mulher Maravilha” (2017) e “Aquaman” (2018).
Shazam, conhecido como Capitão Marvel, tem como alterego a criança Billy Batson – ela se transforma no herói ao gritar “Shazam!”. O personagem surgiu em 1939 na revista de quadrinhos Whiz Comics, da editora Fawcett Comics, e quase quatro décadas depois, em 1972, o personagem teve os direitos adquiridos pelo universo DC. Lá ganhou contornos diferenciados e novos vilões. Shazam tem superpoderes após ser atingido por um raio mágico, oriundos de personagens da mitologia, como Hércules (que lhe dá a força), Atlas (a resistência), Zeus (magia e domínio de tudo), Aquiles (coragem) e Mercúrio (velocidade e voo). No filme ele se lança a um duro embate com o principal vilão das HQs, Dr. Silvana (bem caracterizado por Mark Strong, ator britânico de “A hora mais escura” e “Kingsman: Serviço secreto”), um cientista maluco, que no lugar de um dos olhos existe um globo de energia azul, que lhe permite reconhecer as forças mágicas ao redor. Ligado ao ocultismo, quer a todo custo acabar com Shazam e sua turma.
Com boas cenas de ação, o filme resulta em um entretenimento jovial, maneiro, com efeitos visuais originais. Disponível em DVD, bluray e plataformas digitais.
PS: Nesse ano a mesma equipe lançou a parte 2, “Shazam! Fúria dos deuses” (2023), inferior ao anterior, que foca na pura ação e traz heróis e monstros da mitologia para a tela - ambos os filmes são dirigidos por David F. Sandberg, que fez duas assustadoras fitas de terror que gosto bastante, “Quando as luzes se apagam” (2016) e “Annabelle 2: A criação do mal” (2017). Também retornam na parte dois Zachary Levi, Asher Angel (o Billy Batson), Djimon Hounsou (como o mago), Adam Brody, a menininha Faithe Herman e outros.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
O Homem que Burlou a Máfia
3.9 31 Assista AgoraUm assalto (quase) perfeito: uma análise de O homem que burlou a máfia
O plano de Charley Varrick (Walter Matthau) e seus comparsas parecia estar no rumo certo. Assaltar o único banco de Três Cruces, uma cidadezinha pacata, no meio do nada, no estado do Novo México. Para não ser identificado, o grupo utiliza disfarces: Varrick com bigode postiço, óculos, uma pinta na bochecha e peruca, enquanto os colegas escondem o rosto debaixo de máscaras. Há um entrave com clientes do banco e com funcionários, terminando em um tiroteio com gente ferida. A polícia é avisada, no entanto o bando consegue capturar a dinheirama e fugir de carro em alta velocidade. Eles se assustam com a quantia: U$ 765 mil em notas verdinhas, perfeitas. Varrick, expert em assalto, sente algo estranho, e a pergunta não cala: por que tanto dinheiro assim num banco tão pequeno? O que eles não desconfiavam era de que a grana era “marcada”, e os donos nada mais nada menos que mafiosos. Em questão de minutos, eles se transformam no alvo da vez - e alvo duplo ainda por cima: são perseguidos pela polícia e pelos engravatados da máfia!
Varrick, apelidado de “O último dos Independentes” (que seria o nome original do filme, The last of Independents, depois alterado para o singular Charley Varrick), representa a audácia dos “criminosos perfeitos”, que farejam o alvo e esboçam com facilidade planos mirabolantes para obter o que almejam. Ele é um mestre do disfarce, lidera com mão firme um pequeno grupo de bandidos, atira sem pestanejar caso haja interferências na execução do crime e sabe muito bem se esconder. Ele não segue as leis. Faz sua própria lei, um típico personagem outlaw do subúrbio, que mata policiais e inocentes para salvar sua pele. Varrick, o ardiloso protagonista desse filmaço neo-noir de Don Siegel, segue os traços do antiherói, dentro de uma trama que reúne gente pior que ele, como mafiosos que lavam dinheiro, matadores de aluguel, banqueiros inescrupulosos e agentes da polícia corruptos. Varrick é um homem de meia-idade e solitário, que não tem mais nada a perder. Abandonou faz tempo o conformismo. Por ser o “último dos Independentes”, é páreo nesse jogo de gato e rato envolvendo dinheiro alto.
A eletrizante obra de Don Siegel, lançada em 1973 e que premiou Walter Matthau com o Bafta de melhor ator, não faz concessões. É uma fita policial dura, com cenas violentas de confrontos, pouco humor e por ele desfilam indivíduos truculentos, mesquinhos e perigosos, um retrato de quem povoava a sociedade da época (essas figuras permanecem por aí, hoje!). Do astuto assaltante Varrick ao presidente do banco envolvido diretamente com a máfia Maynard Boyle (John Vernon) passando pelo matador contratado para acabar com a gangue de Varrick, Molly (Joe Don Baker), todos tem na alma graus de vilania e não abrem mão de seus ideais. São sujeitos do submundo do crime, dispostos a vencer a qualquer preço. Por isso nunca se rendem.
A direção potente de Don Siegel não deixa passar uma vírgula, elevando essa obra cinematográfica a um patamar único do cinema policial setentista. Os atores estão bem guiados, entregam performances espetaculares, com especial atenção para Matthau, Vernon, Baker (num papel assustador) e de dois outros em participações menores, Andrew Robinson (integrante da trupe de bandidos de Varrick) e uma das poucas mulheres em cena, Felicia Farr (affair de Varrick). Seguem a cartilha explosiva de Siegel perseguições em alta voltagem, com carros trombando, tiros pra lá e pra cá, e um desfecho grandioso no ferro-velho, com o protagonista num avião de pequeno porte numa caçada infernal.
A parceria de Siegel com a dupla de roteiristas Howard Rodman e Dean Riesner brotou anos antes - com Rodman, Siegel fez “Os impiedosos” (1968), e no mesmo ano, 1968, juntou Rodman e Riesner em “Meu nome é Coogan” - o filme marcaria um extenso trabalho de Siegel com Clint Eastwood, que ascendia no cinema americano. A história de “O homem que burlou a máfia” foi adaptada do romance “The looters”, de John Reese, publicado em 1968, recebendo contornos especiais do diretor.
Do noir ao policial moderno: uma breve história de Don Siegel
Nascido em Chicago, Illinois, em 1912, Don Siegel marcou o cinema americano com seus filmes policiais. Por quase quarenta anos (o diretor realizou longas de 1946 a 1982, e faleceu em 1991, aos 78 anos), atravessou contextos diversos da cultura cinematográfica dos Estados Unidos: fez poucos, mas bons filmes noir, experimentou comédia romântica e aventuras épicas, inovou o faroeste e deu uma repaginada no policial dos anos de 1960 e 1970, sendo inspiração de diretores como Sam Peckinpah e Clint Eastwood. O diretor foi casado três vezes, em uma delas com a atriz Doe Avedon e depois com outra atriz famosa, Viveca Lindfors. Teve cinco filhos.
Morou na Inglaterra, onde estudou na Universidade de Cambridge, e, de volta aos Estados Unidos, aos 20 anos, deu os primeiros passos no cinema, no início da década de 1930, com a ajuda do tio, o montador/editor Jack Sharper, que também produzia filmes da Warner Bros. Primeiramente foi assistente de direção e montador de filmes - editou, por exemplo, “O intrépido general Custer” (1941) e “A estranha passageira” (1942). Três anos depois, dirigiu dois curtas-metragens ganhadores do Oscar de melhor curta documentário – “Hitler lives” (1945) e “Star in the night” (1945).
Estreou como diretor de longa-metragem com o noir “Justiça tardia” (1946, com Sydney Greenstreet e Peter orre), depois faria mais dois no mesmo subgênero, “Cais da maldição” (1949, com Robert Mitchum e Jane Greer) e “Medo que condena” (1953, com Teresa Wright). Nessa primeira fase, passou por faroeste, como “Onde impera a traição” (1952, com Audie Murphy) e comédia romântica, no caso “Adorável tentação” (1952, com Viveca Lindfors - atriz com quem estava casado). A notoriedade do diretor explodiu com um dos filmes mais icônicos de terror dos anos 1950, que misturava scifi, o B-movie “Vampiros de almas” (1956, com Kevin McCarthy), que ganharia remake e continuações no futuro. Ainda no memo período, introduziu o policial no cinema B, em fitas a perder de vista – “Rua do crime” (1956, com John Cassavetes e Sal Mineo), “Assassino público número 1” (1957, com Mickey Rooney e Carolyn Jones), “O sádico selvagem” (1958, com Eli Wallach), “Contrabando de armas” (1958, com Audie Murphy) e “Covil da morte” (1959, com Cornel Wilde).
Dirigiu Elvis Presley e Barbara Eden no faroeste romântico “Estrela de fogo” (1960) e Steve McQueen no drama de guerra “O inferno é para os heróis” (1962). A guinada da carreira de Siegel foi reinventar o cinema policial com o frescor de ideias que a Nova Hollywood propunha a partir dos anos de 1960. “Os assassinos” (1963, com Lee Marvin e Angie Dickinson) e “Os impiedosos” (1968, com Richard Widmark e Henry Fonda”) vieram nessa onda de novos filmes de investigação e assassinato, impactantes e controversos. Dirigiu Clint Eastwood no policial “Meu nome é Coogan” (1968), firmando parceria com o ator que se projetava nos Estados Unidos após a “Trilogia do Dólar”, os westerns italianos de Sergio Leone que ganharam o mundo. Com Eastwood fez trabalhos memoráveis, como o faroeste com muito humor “Os abutres têm fome (1970), ao lado de Shirley MacLaine, o drama de época com pitadas de suspense “O estranho que nós amamos” (1971) e o fumegante filme de ação “Perseguidor implacável” (1971), em que Clint formalizaria a franquia de Dirty Harry (com quatro filmes em sequência, dirigidos por outras pessoas). Quase no fim da carreira, Siegel traria de volta Estwood num dos filmes mais emblemáticos e lembrados do ator, exibido milhares de vezes na TV aberta, “Alcatraz: Fuga impossível” (1979), uma fita de ação baseada em fatos verídicos.
Grande parte dos filmes de ação de Don Siegel inserem-se no chamado neo-noir, ou noir moderno, com tramas de assalto e crime lotadas de personagens ardilosos e enganadores, reservando um destino trágico a eles, sem contar plot twist criativos e violência gráfica e estilizada (para a época). “O homem que burlou a máfia” (1973) encontra-se nessa fase final do diretor, e é apontado por críticos e pelo público como um dos melhores feitos de Siegel. O diretor faria apenas seis filmes depois: “O moinho negro” (1974, policial com Michael Caine), “O último pistoleiro” (1976, faroeste que seria o último trabalho de John Wayne), “O telefone” (1977, thriller com Charles Bronson, e confesso ser um de meus filmes de policial com suspense preferidos) e duas fitinhas esquecidas, “Ladrão por excelência” (1980, policial com comédia com Burt Reynolds e Lesley-Anne Down) e “Jogando com a vida” (1982, uma amalucada comédia com crime com Bette Midler e Rip Torn).
Siegel desenvolveu ainda trabalhos para a TV: nos anos de 1960 dirigiu episódios para várias séries, como “Além da imaginação” e “Convoy”, e fez telefilmes como o suspense/faroeste “A caçada” (1967, com Henry Fonda e Anne Baxter). Foi ainda roteirista (de séries e curtas do início da carreira), produtor (onde assinou alguns filmes como Donald Siegel, dentre eles “Os assassinos”, “Meu nome é Coogan” e “O estranho que nós amamos”) e até, vejam só, aparecia como figurante em seus filmes (em “O homem que burlou a máfia”, por exemplo, faz um jogador de tênis de mesa, numa participação de segundos).
Resenha escrita especialmente para o livro "Cinema Policial - Filmes essenciais do gênero", lançado pela Versátil Home Video em junho de 2023. Livro disponível para venda no site da Versátil. POR FELIPE BRIDA - Blog Cinema na Web
Por Uma Mulher
3.4 11Nas décadas de 1970 e 1980, a cineasta francesa Diane Kurys foi bastante prestigiada na Europa, com seus filmes autobiográficos, de estética diferente, coloridos e contagiantes. O seu maior sucesso foi “Refrigerante de menta” (1977, também conhecido pelo título original, “Diabolo menthe”), sobre duas irmãs adolescentes vivendo aventuras na escola durante os movimentos estudantis e políticos de maio de 68. “Por uma mulher” (2013) é uma obra mais visceral e madura da diretora, na época com 65 anos, outro filme autobiográfico em que traz fatos marcantes relacionados à família. Diane conta aqui histórias dos pais, com foco na figura paterna, um judeu que fugiu do campo de concentração e trabalhou como alfaiate – papel de Benoît Magimel, um ator que tenho especial apreço, de filmes como “Os ladrões” (1996) e “A professora de piano” (2001). Envolveu-se nos grupos de esquerda, tornou-se comunista, casou-se e teve filhos, que foram cuidados pela bela esposa – interpretação muito bonita de Mélanie Thierry, de “O teorema zero” (2013) e “O reino da beleza” (2014). Esta, tinha o sonho de trabalhar fora de casa, mas foi proibida pelo marido conservador. A vida do casal e das crianças acaba virando do avesso quando aparece na porta de casa o irmão do marido, dado como morto na guerra – quem o interpreta é Nicolas Duvauchelle, de “Polissia” (2011) e “A filha do pai” (2011). Ele é adotado pela família, passa a morar com eles e está envolvido numa missão secreta (é uma espécie de espião), sem contar que acaba tendo um relacionamento proibido com a cunhada. Com seus momentos-chave e pontos altos, o filme tem um lado terno e ao mesmo tempo melancólico e dramático, como um dramalhão típico de novelas antigas. Outra questão: o filme é narrado em dois momentos de tempo, o atual, nos anos de 1990, de uma mulher no auge dos seus 40 anos (papel de Sylvie Testud, de “Piaf, um hino ao amor”, de 2007), que investiga o passado da mãe por meio de uma foto (seria ela Diane Kurys, aparentemente), e o passado, de 50 anos antes, período do pós-guerra (tratado acima), com as idas e vindas do casal e o rebuliço na família com a chegada do irmão do marido. A junção de épocas dá muito certo devido à fotografia luminosa, ao trabalho pontual do elenco e à maquiagem dos atores envelhecendo.
É um drama feminino, com ar de crônica e memória, com lindas passagens na real região de Lyon, feito por uma diretora mestre em dirigir filmes familiares emotivos. Gostei e indico a todos.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Dois Amigos
3.2 65 Assista AgoraRodado nas ruas de Paris, “Dois amigos” (2015) é um autêntico filme independente francês de comédia dramática que ora cativa ora nos faz rir. O bom andamento do filme está, principalmente, no trabalho do trio central, que dá o seu melhor em cena: Golshifteh Farahani, atriz iraniana que começou a carreira em seu país, depois nos EUA fez diversas produções, como “Paterson” (2016), “Piratas do Caribe: A vingança de Salazar” (2017) e as duas partes de “Resgate” (2020 e 2023, da Netflix); o francês Vincent Macaigne, ator versátil, mas presença marcante em fitas de comédia, com trabalhos de destaque em “Agnus dei” (2016) e “Assim é a vida” (2017); e Louis Garrel, que trabalha com frequência com o pai, Philippe Garrel, veterano diretor francês que começou a carreira no fim da Nouvelle Vague, e que sempre realizou filmes pessoais (muitos dramas em preto-e-branco, sobre casais em crise) - Louis foi lançado por Philippe em “Beijos de emergência” (1989), depois atuou em uma dezena de filmes dele, como “Amantes constantes” (2005) e “O ciúme” (2013), e fez um papel notável que o tornou mundialmente famoso, em “Os sonhadores” (2003), de Bernardo Bertolucci.
E “Dois amigos” marca a estreia na direção de Louis Garrel. Ele teve formação em casa, apresenta muito a mão do pai, e esse filme lembra os filmes de Philippe dos anos 2005 para cá, um drama sobre amigos em crise após uma disputa de amores – a diferença é que Louis utiliza um humor leve para equilibrar a história.
Garrel havia dirigido apenas três curtas até então, em seguida fez “Um homem fiel” (2018), “Um pequeno grande plano” (2021) e “L'innocent” (2022), todos com ele no elenco e escritos também por ele. “Dois amigos” teve o roteiro assinado por Louis junto de Christophe Honoré, outro importante diretor francês com quem já havia trabalhado em “Minha mãe” (2004), “Canções de amor” (2007), “A bela Junie” (2008) e outros.
Gosto especialmente do desenrolar da trama (há um passado a ser investigado da personagem feminina, aos poucos descortinado ao público), da fotografia escurecida e do elenco, enxuto, que dá um show.
Recebeu indicação aos prêmios Golden Camera e Queer Palm no Festival de Cannes. Disponível em DVD pela Imovision, pode também ser assistido na plataforma online da distribuidora, o Reserva Imovision.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Phoenix
3.8 104 Assista AgoraO alemão Christian Petzold é um dos diretores europeus que cria um dos cinemas mais diferentes da atualidade, trazendo uma nova estética para histórias velhas e que em tese poderiam ser recheadas de clichês. Seus filmes, cultuados, têm profundidade e recorrem a boas metáforas. Tratou da desintegração da família (no caso uma família de terroristas) em “A segurança interna” (2000), da violência de gênero em “Yella” (2007), sobre uma mulher abusada pelo marido, e em “Phoenix” (2014), um de seus grandes trabalhos, discute identidade e moral, durante o Holocausto, só que por outro prisma, de uma mulher desfigurada em busca de respostas e procurando o marido. Mas nada é óbvio, e a cada momento há novidades na trama dessa pequena obra-prima. Curioso que anos mais tarde Petzold fez uma espécie de versão masculina do filme, intitulado “Em trânsito” (2018), sobre um cidadão que foge da invasão nazista da França e assume a identidade de um homem morto (o diretor, também roteirista, insere tons de ficção científica e romance numa trama com reviravoltas intensas).
Em “Phoenix”, uma cantora de renome, de descendência judia, sai do campo de concentração toda enfaixada. Ela teve o rosto desfigurado. Uma amiga a leva para um médico cirurgião e, por ter um dinheiro guardado, paga para a reconstrução facial. Ela quer voltar a ser quem era, uma mulher elegante, bonita e bem colocada no mercado (papel da sensata atriz alemã Nina Hoss, que atua com frequência nos filmes de Petzold; fizeram juntos “Yella”, “Jericó”, “Barbara” e outros). Hesita em volta para a Palestina, onde seria enviada, para localizar o marido, que sumiu. Indícios apontam que esteja trabalhando como garçom num bar em Berlim. Quando vai até o local e o encontra, ambos conversam, e parte dele uma trama diabólica, envolvendo enganação e uma herança (deixo de contar para não estragar a surpresa).
O título tem a ver com o nome do bar, que é uma das ambientações centrais, mas claro, funciona como o mito do renascimento (Fênix) para a protagonista, “recriada” após a cirurgia facial. Assista e preste atenção nos detalhes!
Recebeu prêmios em mais de trinta festivais, como San Sebastian, Toronto Film Critics e Indiewire. Em DVD pela Imovision e disponível no Reserva Imovision, streaming da distribuidora Imovision.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
O Fio de Ariane
2.9 11O diretor francês Robert Guédiguian, natural de Marselha, costuma filmar seus trabalhos em sua terra natal, aproveitando as inúmeras e belas locações da cidade, como praias, canais de água, castelos, lagoas e a arquitetura rústica. Veterano, dirigiu essencialmente dramas familiares, como “Armênia” (2005), “As neves do Kilimandjaro” (2011) e “Uma casa à beira-mar” (2017), e em muitos de seus filmes (ele também é roteirista e produtor) escala a esposa, a atriz Ariane Ascaride, com quem é casado desde 1975. “O fio de Ariane” (2014) é um deles, mas aqui uma comedinha leve, quase um romance água com açúcar, longe dos tradicionais filmes sobre crise e reencontros entre familiares distantes. Tudo começa com uma mulher solitária que se decepciona quando nenhum dos convidados aparece em sua casa para seu aniversário. Troca a festinha por uma viagem de carro, sozinha, sem destino, para explorar Marselha, e a cada parada encontra-se com pessoas diferentes adotando um novo estilo de vida. Será uma jornada para revisão de sua vida, assim como de lembranças e perspectivas futuras. Daí o significado do título do filme, “O fio de Ariane”, uma metáfora sobre revelações interiores, relacionada ao “fio de Ariadne” da mitologia, da princesa Ariadne, filha do rei de Creta, Minos, que entrega um novelo de linha mágico ao seu amor, Teseu, para que ele não se perca no labirinto do Minotauro. A ideia do fio é o do despertar da consciência, para o enfrentamento das dificuldades.
Há momentos deliciosos no filme, como um amigo cágado que conversa com Ariane, sem contar as lindas locações por Marselha. E Ariane é uma atriz boa e carismática – ela pode ser vista em outros filmes do marido, “Marius e Jeannette” (1997), “A cidade está tranquila” (2000) e “O mundo de Gloria” (2019). Em DVD pela Imovision e disponível no Reserva Imovision, streaming da distribuidora Imovision.
POR FELIPE BRIDA - Blog Cinema na Web
Eu, Anna
3.1 25Filme de suspense com reviravoltas que marcou a estreia na direção do britânico Barnaby Southcombe, filho da atriz principal aqui, a veterana e premiada Charlotte Rampling, um dos nomes mais importantes do cinema europeu, ainda em plena atividade. Até então Southcombe havia dirigido episódios de séries na Inglaterra, depois escreveu o roteiro desse filme, baseado no livro de Elsa Lewin. Há toda uma trama engenhosa, com presente e passado se misturando, onde um crime precisa ser resolvido. Um homem é encontrado morto num apartamento, o assassinato é investigado por um detetive veterano (participação discreta de Gabriel Byrne, de “Os suspeitos” e “Fim dos dias”) e um colega da polícia, o bom Eddie Marsan (de “Uma vida comum” e “Atômica”), até que surge uma mulher solitária que vive perambulando por aí, que desperta a atenção do detetive principal (Rampling, indicada ao Oscar por “45 anos”, atriz de filmes como “O porteiro da noite” e “Melancolia”, e aqui muito bem fotografada, sempre em planos fechados, com closes e primeiro plano que realçam sua beleza - na época estava com 66 anos). Os dois se apaixonam, o detetive vive cercado de incertezas, e o romance pode atrapalhar as investigações, já que ela é suspeita pelo crime. Enquanto o filme transcorre, imagens embaçadas do assassinato pairam na cabeça da personagem, em que ela parece dopada no apartamento do homem que foi morto. O que ocorreu naquele dia? Aos poucos as peças se encaixam.
É um thriller com certo estilo, boa fotografia com muitos lances de claridade (do diretor de fotografia Ben Smithard, de “Sete dias com Marilyn”) e embalado por uma trilha sonora com blues. Poderia ter mais momentos de suspense e um final mais “tchan”, exigido pela trama, mas nada que comprometa as qualidades dessa fita de arte. Há ainda participações rápidas das atrizes Honor Blackman (de “007 contra Goldfinger” e “Jasão e o velo de ouro”), Jodhi May (de “O último dos moicanos”) e Hayley Atwell (de “A duquesa” e “Capitão América: O primeiro vingador”). Veja! Em DVD pela Imovision.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Demons: Filhos das Trevas
3.7 200A distribuidora Obras-primas do Cinema atendeu a um antigo pedido dos fãs de terror e lançou recentemente a coleção “Demons” em bluray, numa edição caprichada com os dois primeiros filmes. A caixa traz todas as versões disponíveis no Brasil das duas sangrentas fitas italianas de terror de Lamberto Bava, “Demons - Filhos das trevas” (1985) e “Demons II - Eles voltaram” (1986). Acompanham no box um livreto de 32 páginas, dois pôsteres e quatro cards, embalados numa luva em alto relevo. E tem como extra nos discos duas horas de entrevistas, making of e especiais, sem contar as capas dupla-face. Os filmes vêm nas versões italiana e internacional em inglês (o que muda, além do áudio dublado em inglês, são os letreiros na abertura e no encerramento).
Com certeza “Demons – Filhos das trevas” é um dos filmes mais horripilantes do cinema, com cenas de puro terror e delírio, mortes macabras e um show de efeitos especiais à moda italiana (inspirados logicamente nos efeitos especiais em stop-motion dos americanos). As criaturas medonhas com dentes e olhos saltados são grotescas e dão medo nesse filme impactante e muito popular na Itália, conhecido pelas cores fortes e violência interminável. Lamberto Bava, o diretor, era neto do técnico em efeitos especiais e diretor de fotografia entre os anos 10 e 60 Eugenio Bava, e filho do maior nome do cinema de horror italiano, o diretor e também técnico em efeitos especiais e diretor de fotografia Mario Bava – de “A maldição do demônio” (1960), “As três máscaras do terror” (1963), “O planeta dos vampiros” (1965) e tantos mais. Adolescente, frequentava sets de filmagem do pai, foi assistente de direção de Mario, como em “Alerta vermelho da loucura” (1970) e “Lisa e o diabo” (1975), depois auxiliando-o nos roteiros. Isso fez todo sentido para sua formação – em 1977, assumiu parte da direção do último filme do pai, que estava doente e morreria três anos depois, “Schock” (Lamberto não tem créditos no filme). Iniciou oficialmente na direção em dois gialli, as fitas com psicopatas que inspirariam o slasher nos Estados Unidos, “Macabro” (1980) e “Uma lâmina no escuro” (1983). Fez em seguida assistência de direção de Dario Argento em “Tenebre” (1982) e lá ficou próximo do diretor, que escreveria, em sequência, os roteiros das duas partes de “Demons”. Bava trouxe para o primeiro filme a trilha sonora de Claudio Simonetti (do grupo Goblin), tornando o filme de terror até hoje lembrado e cultuado.
Aqui, Lamberto homenageia o pai com a máscara que provoca o caos demoníaco, uma referência direta a um dos maiores filmes de terror da Itália, feito por Mario, “A maldição do demônio”.
Ousado para a época, “Demons” nos provoca sensações de pavor e angústia. Continua original, com momentos divertidos e outros bem nojentos - sem falar que é metalinguístico (o cinema dentro do cinema). Aprecie nessa grande cópia em bluray pela OP.
POR FELIPE BRIDA - Blog Cinema na Web
Demons 2: Eles Voltaram
3.3 80Com a repercussão estrondosa do filme anterior na Itália, o diretor Lamberto Bava (1944-) fez logo em sequência a continuação, “Demons II - Eles voltaram” (1986), com outra ambientação, porém mantendo a premissa básica: mortes brutais, monstros horripilantes, histeria, insanidade e momentos escatológicos. O segundo capítulo de “Demons” é tão bom quanto o primeiro, e sem sombra de dúvida um marco no cinema de terror italiano contemporâneo.
A contaminação das pessoas num cinema de rua com a máscara de metal do filme anterior continua, só que agora o caos se espalha por toda a cidade. Pessoas se transformam em zumbis demoníacos pelas ruas e saem em busca de carne humana. Um grupo de moradores de um prédio residencial de 10 andares se isola para fugir dos demônios. No entanto, as criaturas encontram seus alvos lá. O show de horrores continua, com mortes macabras, delírios, um visual intenso e muito frenesi. O banho de sangue é maior, assim como as escatologias que nunca terminam. Há sequências memoráveis, como o retorno à vida de dois demônios mumificados na rua, quando o sangue de uma vítima pinga em sua boca; a de um cachorro que se transforma num monstro asqueroso (efeitos com bonecos, robôs e resina que lembram os de “Um lobisomem americano em Londres”); o do sangue escorrendo pelos apartamentos, furando o chão e contaminando os moradores; a do demônio esverdeado que sai da TV; a de um demônio com nanismo que dele nasce um monstrengo; e o ataque dos zumbis a uma academia de ginástica. São só alguns para relembrar e assim atiçar a curiosidade de quem nunca viu!
O filme está numa cópia primorosa em bluray no box “Demons”, da Obras-primas do Cinema. Há a versão original de cinema, com a máxima metragem disponível, 92 minutos, vendida como “sem cortes” – isso porque na Alemanha e nos Estados Unidos o filme saiu com metragem reduzida devido ao alto grau de violência. Assistam!
POR FELIPE BRIDA - Blog Cinema na Web
Jasão e o Velo de Ouro
3.6 115Retumbante fita de aventura clássica, marcou gerações pelos efeitos visuais que chacoalhavam o público nas poltronas do cinema (o filme é de 1963, exibido centenas de vezes na TV aberta). Filmado em estúdios no Reino Unido e em belíssimas locações em Salerno, na região da Campania, no sul da Itália, o filme, originalmente da Columbia Pictures, revisita o épico poema do grego Apolônio de Rodes “As argonáuticas”, escrito no século III a.C., em que conta a viagem de Jasão, herói da Tessália, por terras desconhecidas para reivindicar seu trono roubado. Para tal, Jasão lidera um bando de intrépidos aventureiros numa nau, chamada Argo (por isso eles são “os argonautas”), explorando desafios para obter o velocino de ouro, uma lã de carneiro que tem o poder de curar doentes. No estilo de Hércules, Jasão realiza tarefas para conseguir o objeto sagrado, lutando com o titã Talos (uma enorme estátua de bronze), harpias (aves de rapina com rosto e corpo de mulher), uma hidra gigante (monstro mitológico com corpo de lagarto e várias cabeças de cobra) até um confronto estrambólico com caveiras protegidas por escudos (cena memorável na História do Cinema). Juntam-se a Jasão e os argonautas o deus dos mares, Netuno, e até a sacerdotisa Medeia!
Novamente os efeitos visuais são primorosos, chamariz para o filme, todos em stop-motion, assinados pelo mago Ray Harryhausen, que criou criaturas famosas do cinema, de filmes como “A vinte milhões de léguas da Terra” (1960), “A ilha misteriosa” (1961) e “O vale de Gwangi” (1969).
Com roteiro de Beverley Cross, criador de ótimas histórias de aventura para o cinema, como “Os legendários vikings” (1964), “Gengis Khan” (1965) e “Simbad e o olho do tigre” (1977), tem direção charmosa de Don Chaffey, de “Mil séculos antes de cristo” (1966). Pontos altos também: a trilha de Bernard Herrmann, de Taxi driver” (1976), e a fotografia de Wilkie Cooper, de “Pavor nos bastidores” (1950).
- Por Felipe Brida - Blog Cinema na Web
Simbad e o Olho do Tigre
3.7 78 Assista AgoraNo cinema, três filmes de Simbad ficaram famosos nos cinemas e mais tarde em sessões da tarde na TV aberta, principalmente nos EUA e no Brasil: “Simbad e a princesa” (1958), “A nova viagem de Simbad” (1973) e “Simbad e o olho do tigre” (1977), os três com efeitos especiais feitos pelo mago Ray Harryhausen (1920-2013), de “Fúria de titãs” (1981). O personagem Simbad nasceu de contos populares no mundo árabe, era um marujo intrépido que partia em viagens grandiosas pelo mundo afora. No cinema Simbad apareceu em fitas clássicas, como “Simbad, o marujo” (1947, interpretado pelo astro da década de 1930 Douglas Fairbanks Jr.), em animação (como “Sinbad – A lenda dos sete mares”, de 2003, da Dreamworks) e até em paródia brasileira, no caso “Simbad, o marujo trapalhão” (1976, com Renato Aragão e Dedé Santana).
“Simbad e o olho do tigre” (1977) é um entretenimento esperto e divertido, com muitas cenas de luta com monstros. Aqui, como se fosse Hércules, Simbad terá um monte de desafios a cumprir para alcançar o amor de sua vida; em todos eles, precisa derrotar ferozes inimigos, como um temível colosso de bronze em forma de touro, um gigante de chifre na testa, um ágil babuíno, demônios com espadas e um enorme tigre com dentes-de-sabre. Dessa vez Simbad é interpretado por Patrick Wayne, de “Jake Grandão” (1971), um papel marcante na carreira do ator. Há participação de Jane Seymour, atriz de “Em algum ligar do passado” (1980) e da série “Dra. Quinn” (1993-1998), e o filme foi rodado em locações na Espanha, Jordânia e Malta, além de estúdios no Reino Unido. Conta ainda com boa direção de Sam Wanamaker, que dirigiu séries de TV e foi um ator muito versátil entre os anos de 1950 e 1990.
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
A Nova Viagem de Sinbad
3.7 40 Assista AgoraA distribuidora Classicline relançou esse mês em DVD duas fitas de aventura dos anos de 1970 com Simbad, lendário marujo e aventureiro de Bagdá cujas origens estão nos contos populares do antigo Oriente Médio. Nos dois filmes presenciamos Simbad viajar pelos sete mares e entrar de cabeça em aventuras fantásticas com princesas encantadas, enfrentando monstros perigosos e até o sobrenatural. Simbad apareceu pela primeira vez em “As mil e uma noites”, coleção de contos árabes compilados e traduzidos a partir do século XVIII, e depois ganhou livros próprios e muitos filmes. Em “A nova viagem de Simbad” (1973), o marujo segue com um mapa do tesouro à ilha de Lemuria. No caminho enfrenta uma estátua vingativa com vários braços, um centauro de um olho só e um grifo, criatura mítica com cabeça de água e garras de leão. O filme tem efeitos visuais primorosos, um chamariz para a aventura se tornar empolgante, assinados por Ray Harryhausen (1920-2013), especializado em stop-motion (criou nos anos de 1950 diversas criaturas memoráveis, como “O monstro do mar” e “O monstro do mar revolto”, além das de “Fúria de titãs”).
Astro nos anos de 1960 e 1970, John Phillip Law (1937-2008) é o Simbad astuto e um dos melhores intérpretes do personagem no cinema – ele esteve em filmes cultuados como “Barbarella” (1968) e “Perigo: Diabolik” (1968).
Rodado na Espanha, tem direção do alemão radicado no Reino Unido Gordon Hessler, que dirigiu muitas fitas de terror, como “O ataúde do morto-vivo” (1969), “Grite, grite outra vez” (1970) e “O uivo da bruxa” (1970).
POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB
Amargo Regresso
3.8 62 Assista AgoraResenha do filme "Amargo regresso" (1978), escrita especialmente para o livro "Nova Hollywood - Filmes essenciais do movimento", lançado pela Versátil Home Video em abril de 2023.
Você voltaria ao Vietnã?
Na ala de um hospital onde estão feridos de guerra, um grupo de ex-combatentes do Vietnã joga bilhar. Dois ou três estão em cadeira de rodas, outros na maca. Até que um deles lança a pergunta que abre um duro debate: “Você voltaria ao Vietnã?”. A discussão é acalorada, nunca se chega a um consenso. O sargento Luke Martin (Jon Voight) apenas escuta os pontos de vista dos colegas e paulatinamente fica imóvel, com olhar vago, para baixo, para o nada.
A descrição acima é a abertura de um dos filmes mais notórios da Nova Hollywood, talvez o mais comentado da carreira de Hal Ashby e que bem retrata os soldados americanos que voltaram com sequelas da infame guerra do Vietnã.
Muitos filmes, principalmente os realizados nos Estados Unidos, trataram dos fuzileiros no campo de guerra em solo vietnamita, com enfoque nos homens com nervos de aço atirando para matar, como “Os rapazes da Companhia C” (1978), “Rambo II – A missão” (1985), “Platoon” (1986), “Nascido para matar” (1987) e “Comando de heróis” (1989). Já as produções que falam do retorno dos soldados dessa guerra injusta, cruel e complexa são escassas. Três obras são fundamentais nesse segundo tema: “Amargo regresso” (1978), “O franco atirador” (1978) e “Nascido em 4 de julho” (1989) – o primeiro foi lançado em fevereiro de 1978, enquanto o segundo saiu em dezembro do mesmo ano, e entre “Amargo regresso” e “Nascido em 4 de julho” há uma série de convergências e semelhanças, que vou detalhar em outro tópico.
“Amargo regresso” se passa em 1968, ano crucial da guerra, pois se evidenciavam avanços de paz para o fim do conflito – a Guerra do Vietnã começou em 1955 e se estendeu até 1975, considerada uma guerra desproporcional e insana, que matou 58 mil americanos e 1,1 milhão de vietnamitas e vietcongues (há historiadores que defendem que o número de vietnamitas mortos pode chegar a 3,5 milhões). Foi a guerra do temível napalm, do destruidor fósforo branco e do ardiloso agente laranja, no meio das selvas e áreas alagadas.
Só que “Amargo regresso” não trata de nada disso. Os personagens que combateram na guerra já estão de volta. A perspectiva é outra. É o retorno dos chamados “sequelados”, sejam os que tiveram pernas amputadas ou que apresentavam problemas motores, ou mesmo os que voltavam traumatizados, com processos de alucinação e depressão graves, que enlouqueciam nos corredores dos antigos manicômios.
Na história, conhecemos o sargento citado anteriormente, Luke Martin (Jon Voight), que ficou paraplégico na guerra. Ele está no hospital, aos cuidados de uma enfermeira, Sally (Jane Fonda), cujo marido, o oficial da Marinha Bob Hyde (Bruce Dern), ainda não regressou do Vietnã. Sally e Luke se apaixonam, iniciam um relacionamento às escondidas, até que Bob retorna, o que irá revirar a vida dos três.
O trio trava uma guerra particular, dentro de uma bolha de complexidades. Todos são impactados por uma mudança drástica de vida e trajetória. Bob está atormentado, queria que a guerra fosse de outro jeito, não aceita a derrota e aos poucos descobre a traição da esposa; Sally está emocionalmente entregue ao amante, tem de se dividir entre dois homens de comportamentos distintos; e Luke, que sem poder mexer-se da cintura para baixo, precisa se adequar a uma nova realidade em sua cadeira de rodas.
O personagem de Luke, assim com o de Sally e Bob, têm muitas camadas. Luke, que é um símbolo da sobrevivência de uma guerra, representa também as barreiras e os preconceitos que os deficientes físicos encontravam. Há cenas espaçadas ao longo do longa-metragem em que Luke se vê em dificuldades para se locomover em espaços públicos, e na sequência do supermercado, por exemplo, é alvo de pessoas sem empatia, com olhares “tortos” sobre ele. Ainda no mercado o personagem não consegue empurrar o carrinho de compras e nem passar pelos corredores estreitos, até que três crianças o ajudam. O filme menciona de forma rápida, mas esperta e até crítica, a questão da acessibilidade.
Há outras cenas belíssimas: ainda nessa do mercado, Luke põe uma das crianças no colo, na cadeira de rodas, e anda pelos corredores; o suicídio de um ex-combatente atormentado, que injeta ar na veia do braço com uma seringa, enquanto os colegas cadeirantes não conseguem abrir a porta para salvá-lo; a de Sally no colo de Luke, dando voltas na cadeira de rodas pelo hospital (sequência que se transformou na capa do filme no Brasil e nos Estados Unidos); a transa de Luke e Sally, com closes íntimos iluminados pela fotografia estonteante e naturalista de Haskell Wexler, e com direito a uma sutil cena de sexo oral, que encabulou a Motion Picture Association a ponto de a associação classificar o filme como R-rating (abaixo falo mais nas “curiosidades”); e a do encontro derradeiro entre Sally e Luke com Bob, que carrega consigo um fuzil com baioneta.
A trilha sonora é de uma delicadeza ímpar. Ela ajuda a compor o drama que aos poucos assume ares românticos e discute temas como readaptação, as consequências da guerra, o amor, os novos encontros da vida. Músicas notórias da metade dos anos de 1960 (já que o filme se passa em 1968) embalam os personagens em suas andanças, como “Out of time” (de Rolling Stones), “Bookends” (de Simon & Garfunkel), “Follow” (de Richie Havens) e “Born to be wild” (de Steppenwolf), “For what it's worth” (de Buffalo Springfield) e “Once I was” (de Tim Buckley).
“Amargo regresso” fez muito sentido para a época e ainda hoje continua humanista, com mensagem antiguerra/antibélica.
O roteiro e a construção de Luke Martin
O personagem Luke Martin foi inspirado em Ron Kovic (1946-), fuzileiro norte-americano que serviu o Vietnã. Aos 22 anos, em 1968, quando liderava um ataque a uma aldeia no norte do Vietnã, levou um tiro que ocasionou em uma lesão medular, que o paralisou do peito às pernas. Um de seus colegas tentou salvá-lo, mas morreu baleado. Ficou por uma semana em uma enfermaria, recuperou-se e depois virou escritor, além de se engajar em movimentos ativistas pela paz mundial (até hoje participa de encontros e manifestações dessa natureza), por isso já foi preso uma dezena de vezes em protestos políticos. Em 1976 publicou seu livro de memórias sobre o Vietnã que se tornaria emblemático a ponto de ganhar versão para cinema: “Nascido em 4 de julho”, exímio retrato das consequências dessa guerra infernal para os que foram lá lutar – Oliver Stone, que lutou no Vietnã, escreveu o roteiro baseado no livro e fez um punhado de longas-metragens sobre o tema, como “Platoon” (1986) e “Entre o céu a e terra” (1993). Quem dá vida a Ron Kovic em “Nascido em 4 de julho” é Tom Cruise, num papel magistral que lhe rendeu a primeira indicação ao Oscar.
Jane Fonda conheceu Ron Kovic em protestos e se tornaram amigos (a atriz há mais de 50 anos é ativista e luta por diversas causas, de movimentos feministas àqueles contra a guerra e também àqueles que tratam da crise climática). Daí surgiu a ideia do filme (Jane era influente na indústria do cinema, já tinha um Oscar e era filha do imponente ator Henry Fonda). Jane pediu à roteirista Nancy Dowd, de “Vale tudo” (1977), uma história romântica no contexto da Guerra do Vietnã. Então Nancy bolou o argumento e esboçou um roteiro de 250 páginas, apresentando-o a Jane. O elenco foi selecionado, havia tudo preparado para as gravações, e o diretor seria John Schlesinger (de “Perdidos na noite”). Porém o projeto não seguiu, porque o roteiro era considerado polêmico demais, com forte comentário político (a guerra havia terminado há menos de três anos, e ainda dividia a opinião pública). O produtor Jerome Hellman e o roteirista Waldo Salt, que trabalharam juntos em “Perdidos na noite” (1969), chamaram Jon Voight, também de “Perdidos”, para uma reunião. O filme sairia, no entanto o roteiro de Nancy Dowd sofreria mudanças. Waldo Salt reescreveu o texto com Robert C. Jones, montador indicado a três Oscars, de filmes como “Adivinhe quem vem para jantar” (1967) e “Love story: Uma história de amor” (1970) – Jones iria supervisionar também, pois serviu no Vietnã e conheceu a guerra de perto. E por fim, chegaria Hal Ashby, o novo diretor em vista para o projeto, que vinha de fitas premiadas e elogiadas por público e pela crítica, como “Ensina-me a viver” (1971), “A última missão” (1973) e “Shampoo” (1975). A ideia central da história permaneceu, retiraram os aspectos políticos, e fixaram a trama nas dificuldades dos veteranos que voltavam da guerra.
Curiosidades da produção
• Três atores foram cotados para o papel de Luke Martin antes de Jon Voight: Sylvester Stallone, Jack Nicholson e Al Pacino.
• O filme custou U$ 3 milhões e rendeu U$ 32,6 milhões de bilheteria, um bom número para um drama naquela época.
• Jon Voight conta no making of que acompanha o filme “Amargo regresso” em DVD, lançado pela Versátil, que o longa presta um tributo aos jovens que estiveram no Vietnã, e assim o cinema serviria para uma espécie de cura aos sobreviventes.
• A cena de abertura, dos veteranos conversando enquanto jogam bilhar, não estava no script original. São seis veteranos reais do Vietnã que ficaram paraplégicos, e nessa sequência eles trazem seus pontos de vista sobre a guerra – Jon Voight é o único ator em cena, e apenas ouve enquanto eles conversam, sem opinar.
• Jon Voight conta no making of que para representar bem o papel do sargento paraplégico, treinou em cadeira de rodas atlética com um time de basquete de cadeirantes em Long Beach. Diz que passou a fazer tudo por meses com a cadeira de rodas, para se acostumar e absorver o máximo de realidade de um deficiente. Conta que aprendeu a ver a dor, as dificuldades e a rotina dos cadeirantes.
• O filme recebeu censura R-rating na época, por conter uma cena de sexo oral entre Jon Voight e Jane Fonda - mesmo sem ser explícita ou aparecer algum personagem nu total, a Motion Picture Association apontava “conteúdo sexual”, ou seja, o filme era para maiores de 17 anos.
• Originalmente da MGM, “Amargo regresso” venceu três Oscars, de melhor atriz para Jane Fonda, melhor ator para Jon Voight e melhor roteiro original - e indicado ainda a cinco outros no Oscar de 1979: melhor filme, ator coadjuvante para Bruce Dern, atriz coadjuvante para Penelope Milford, diretor e edição; Voight ganhou o de ator no Festival de Cannes (o filme concorreu à Palma de Ouro), e tanto ele quanto Jane levaram os prêmios de ator e atriz de drama no Globo de Ouro. (POR FELIPE BRIDA - BLOG CINEMA NA WEB)