A Ascensão Skywalker é um filme ruim. Considerando-o isoladamente, vacila em elementos básicos da narrativa cinematográfica. O trio protagonista (Rey, Finn e Poe) não possui nenhum carisma. O indeciso vilão Kylo Ren é uma cópia flagrante de algo que já vimos anteriormente e executado melhor. A volta de Palpatine é a coisa mais gratuita da história da franquia. O roteiro confuso e previsível de Chris Terrio (o mesmo cara que escreveu o bom Argo, mas que também co-escreveu os infames Batman vs Superman e Liga da Justiça) traz uma megalomania vazia de espetáculo, lembrando a atmosfera dos tão massacrados prequels. Não há nenhum momento deslumbrante, foda no filme (que já não tínhamos visto nos trailers), uma cena que nos deixe emocionados com a interação dos personagens ou que nos espante com o impacto visual. Por isso, continuo a afirmar que The Last Jedi é um puta filme, que tem todos esses elementos citados acima, executados de maneira soberba, em seus melhores momentos. Aquele era o caminho para o futuro de Star Wars, ou, pelo menos, um dos caminhos. Depois de assisti A Ameaça Fantasma, vinte anos atrás, senti raiva pelo o que tinha acabado de ver. Ao sair do cinema, em A Ascensão Skywalker, senti a mais pura indiferença.
É um suspense perturbador justamente porque nos colocar para pensar, para preencher as lacunas deixadas pelo caminho. É um filme lento, mas com uma tensão crescente, que nos desestabiliza ao acrescentar mais e mais mistérios ao invés de solucioná-los. Nas entrelinhas, Em Chamas diz muito sobre o estado das coisas do capitalismo. De um lado, há as incertezas do jovem pobre e sem emprego, alguém praticamente descartável. Do outro, a total falta de empatia das classes mais abastadas. A produção é primorosa em sua simplicidade. A montagem é precisa, a fotografia eleva o cotidiano, e os personagens falam o estritamente necessário.
Em cartaz nos cinemas, Parasita é o verdadeiro filme do ano. E não Coringa. Bacurau chega perto, mas não apresenta o apuro técnico da produção sul-coreana. Politicamente, Bacurau propõe uma solução mais radical, no sentido de não fazer concessões, para o problema das injustiças do capitalismo. Coringa tenta fazer algo semelhante por via tortas. Em Parasita, a questão é escancarada, mas nunca é resolvida.
Bong Joon-ho é um cineasta que gosta de desafiar o espectador. Seus filmes são obras de arte, de reflexão numa roupagem de entretenimento. Ele quebra as barreiras do cinema de autor e do cinema comercial. Para ele, se divertir e pensar são dois lados da mesma moeda. Diretor versátil, ele realizou um dos melhores filmes de serial-killer já feitos, Memórias de um assassino (2003), a comédia familiar cheia de ação com monstros O hospedeiro (2006), o drama de suspense com uma protagonista idosa Mother (2009), a violentíssima e afiada distopia em ritmo de videogame Expresso do Amanhã (2013) e a melancólica aventura juvenil Okja (2017).
Parasita é uma vigorosa aula sobre luta de classes feita para o grande público. Bong Joon-ho faz seu filme mais maduro por ser o mais paciente em nos envolver em suas ideias. Na maior parte do tempo, prevalece o quase silêncio, a quase imobilidade. A tensão é pontual. Mas quando surge nos desarma por completo.
Na verdade, a grande sacada de Parasita é a quebra de nossas expectativas. Há vários filmes em um só. Comédia, suspense, drama, terror. O diretor alterna a condução da trama entre esses gêneros com extrema habilidade e nunca de forma gratuita, sempre com um propósito claro e eficiente. Fotografia, montagem, trilha sonora, edição de som, design de produção. Tudo funciona com o propósito de acompanharmos, atentos, o cotidiano das duas famílias protagonistas: os Park, ricos, ingênuos e esnobes, e os Kim, pobres, trambiqueiros e afetuosos. A força do roteiro está na maneira ora sutil, ora bem direta como cada situação, cada sequência leva os personagens a momentos cômicos, dramáticos ou violentos. Além dos diálogos exporem muito bem a personalidade e a origem de cada um, com direito a comentários sociais e reflexões filosóficas.
Destaque especial para o elenco. Os atores encarnam personagens cativantes, justamente por serem muito humanos. Não há vilões e mocinhos, e sim gente que tenta manter sua posição social ou superá-la. Song Kang-ho, astro sul-coreano e ator-assinatura do diretor, tem uma performance discreta, contida, mas de grande expressão. Outra “personagem” marcante é a mansão dos Park, onde se passa a maior parte do filme. É um lugar belo, espaçoso com uma arquitetura arrojada e um jardim harmônico, mas que possui suas zonas sombrias. A mansão se torna palco de todo tipo de emoções, cenário de uma tragicomédia com ares shakespearianos.
Parasita é superior a Coringa, primeiramente, pelo maior domínio técnico do diretor Bong Joon-ho. Ele sabe para onde quer levar o filme. A fotografia de Parasita é um exemplo disso, cheia de significados relacionados aos temas em questão, em seus enquadramentos de espaços, objetos e pessoas. O diretor sul-coreano também arrisca-se mais ao co-escrever um roteiro com uma estrutura mais complexa e que poderia resultar numa realização desconjuntada. Já Coringa tem um roteiro problemático e indeciso. Acerta ao mostrar os poderosos como insensíveis, inclusive os Wayne, mas manipula o espectador sem saber exatamente o porquê, numa espécie de piada de mau gosto. Joaquin Phoenix é a força motriz do filme, dominando sozinho a cena. As personagens femininas são praticamente irrelevantes. Ao contrário de Parasita, que conta com um fascinante grupo de personagens, com mulheres muito ativas e determinantes para os rumos da trama. Por fim, Coringa levanta dois questionamentos. O perigo de alçar um psicopata como um símbolo de revolta social, um herói, mesmo que involuntário. E a contradição de arrecadar algo próximo de um bilhão de dólares em bilheterias para a elite da vida real que é tão criticada no filme. Parasita também é um sucesso, inclusive financeiro. Mas sua consagração é bem mais modesta e conquistada na unha.
Parasita ganhou a Palma de Ouro em Cannes deste ano com todo o mérito. É um filme que engaja o espectador pela maneira visceral como mostra as contradições do capitalismo, que rebaixa o ser humano. O rico suga a força de trabalho e a dignidade do pobre. E o pobre procura as brechas do sistema para sugar as migalhas do rico. Parasita mostra que há algo muito errado nisso tudo, nessa mentalidade de ascensão social, nesse círculo vicioso, que leva a cobra a morder o próprio rabo.
Bacurau é um filmaço. Irregular, mas feito com muito tesão. Cheio de consciência estética e política. Porém, para surpresa geral, os diretores afirmam que a violenta trama de resistência não foi pensada como uma metáfora para os atuais tempos sombrios. De fato, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles tiveram a ideia de fazer Bacurau há dez anos, com o roteiro sendo trabalhado nos últimos três.
Os diretores reconhecem e enaltecem a influência do cinema de gênero (terror, western, thriller, ficção científica). Citam mestres como John Carpenter, George Romero, Sergio Leoni, Sergio Corbucci e Sam Peckinpah. Uma intenção evidente de Mendonça e Dornelles é fazer um filme de gênero como metáfora política, mesmo que não que seja colada à indigência vigente, pensando na crise da sociedade brasileira como um processo histórico em andamento. (Mas, no fim das contas, os significados e interpretações fogem do controle de seus autores, como em qualquer obra artística, e, sim, Bacurau é uma manifesto de resistência do povo nordestino contra os fascistas locais, do sul maravilha e estrangeiros.)
Carpenter refletiu sobre a crise capitalista nos EUA dos anos 70 e 80, em Assalto ao 13º Distrito e Eles Vivem. Romero refletiu sobre a tensão social gerada pelo movimento dos direitos civis nos anos 60, em A Noite dos Mortos Vivos. Peckinpah fez algo semelhante com as consequências da guerra do Vietnã, em seu western tardio Meu Ódio Será Sua Herança. E Corbucci, membro do partido comunista italiano, pensou nos movimentos revolucionários espalhados pelo mundo dos anos 60 e 70 ao criar seus Zapata westerns.
Mendonça e Dornelles bebem de todas essas fontes para apresentar um filme vibrante em seus melhores momentos. Bacurau está em cartaz em várias salas pelo Brasil, ganhando espaço no circuito comercial, não se restringindo ao circuito de arte. Pode ser visto por qualquer pessoa. É divertido, tenso, movimentado e reflexivo. O que pode afastar muitos espectadores é a opção, totalmente válida dos diretores, de quebrar expectativas. Bacurau é ação, mas não é. É suspense, mas não é. É gore, mas não é. Há uma constante mudança de propostas. O que para uns pode ser irritante, para outros pode ser desafiador.
É uma obra aberta que estimula diversas interpretações. Contudo, certas inconsistências no roteiro e os rumos tomados no ato final criam um sentimento conflitante na gente. Adoramos o clímax por sua potência, mas, em paralelo, o odiamos pelo ritmo canhestro, pela cinematografia mais pobre. Mesmo que o embate final seja um jogo metalinguístico, carece de mais esmero, algo que foi melhor executado em filmes de John Woo, por exemplo.
A população de Bacurau é marcante (Lunga, Domingas, Pacote, Teresa, Plínio, Damiano, Maciel, Flávio, Sandra, o violeiro gaiato...), só que não espere muito desenvolvimento de nenhum personagem. Isso fica pelo caminho. Mas o que é mostrado se torna suficiente para nos conquistar. Torcer por eles. Sofrer com eles. A verdadeira protagonista é a cidade de Bacurau, com seu povo, sua história, seu senso de comunidade, escassa de recursos (onde falta água, mas há internet), politicamente madura, em prol da diversidade. Uma utopia possível encravada no sertão pernambucano, ameaçada por um poder vil que recusa a dizer seu nome.
A Criada (2016) é puro Park Chan-wook, o diretor de Old Boy. Melhor dizendo, é um Park mais maduro, mais sutil e mais perverso. O filme é uma adaptação do romance Na ponta dos Dedos, da britânica Sarah Waters. Mesmo tendo lido o romance há alguns anos, famoso por suas reviravoltas de fato surpreendentes, para mim o filme manteve o frescor. Park foi fiel ao romance em sua estrutura narrativa e no desenvolvimento de personagens. Mas infiel ao levar a tensão sexual subversiva do livro para outro patamar. Sim, estamos falando de BDSM. Na Ponta dos Dedos é um “romanção” vitoriano, mas com uma pegada pós-moderna, plenamente consciente das implicações de classe e de gênero daquele período, que refletem no mundo contemporâneo. É um romance delicioso de ler, como um Dickens. A produção de A Criada provoca um prazer visual e sonoro no espectador. Não sentimos o tempo passar nesse filme de quase duas horas e meia. A imersão é total. Acompanhamos com um sorriso nos lábios a vilania, ironia, sensualidade e perspicácia em jogos de traições e alianças.
Nem sempre um remake é uma perda de tempo, um crime contra a obra original. Suspiria, de 1977, é um clássico do terror italiano, do giallo, o filme mais celebrado do mestre Dario Argento. Em 2018, o também italiano Luca Guadagnino, diretor do aclamado Me chame pelo seu nome, lançou uma nova versão de Suspiria. No final das contas, Guadagnino se saiu muito bem da enrascada em que se meteu. Justamente por ter sido infiel à obra original. A premissa é a mesma. Uma estudante de balé americana vai para uma prestigiada academia na Alemanha e coisas bizarras começam a acontecer. O filme de Argento é famoso por sua atmosfera arrepiante e estilosa. Pelo uso de cores primárias, principalmente o vermelho, na direção de arte e fotografia e pela trilha sonora com um rock progressivo, ao mesmo tempo, feérico e macabro. O roteiro é bastante básico e as atuações apenas satisfatórias. A maior crítica que se pode fazer ao filme (e ao giallo em geral) é o seu sadismo contra as mulheres, pela maneira como morrem, assassinadas violentamente por mãos masculinas, além de mostrá-las como frágeis ou megeras, de maneira bidimensional. E tudo isso mesmo tendo uma protagonista feminina. Já no remake, há um feminismo muito presente, inclusive, sem a preocupação de mostrar as mulheres como simpáticas. As personagens do novo filme metem medo porque elas têm plena consciência de seu poder. Aqui os homens são os inimigos, os fracos. Guadagnino foi ambicioso ao ampliar o contexto desse remake. Assim como no original, ele se passa na Alemanha Ocidental da década 1970. Mas Guadagnino procura discutir traumas políticos do passado, relacionados à Segunda Guerra Mundial, e daquele presente, por meio da tensão social causada pelas ações da organização Fração do Exército Vermelho (RAF), mais conhecida como Grupo Baader-Meinhof. Ao invés de tirar o espectador da trama, essas preocupações extras aprofundam a experiência, porque o passado das mulheres da academia de balé tem a ver com repressão e perseguição ao longo da História, contra a plena liberdade delas. Esteticamente, o remake envolve e assusta. Não se parece em nada com a ambientação estilizada do Suspiria de Argento, “artificial”, criada em estúdio. E sim com os filmes alemães do período, de cineastas como Fassbinder, Wenders, Herzog, von Trotta e outros. As cores são lavadas e os cenários, sóbrios, realistas. O Suspiria de Argento fascina pelo clima de delírio, pelo simbólico sobre o subterrâneo da condição humana. E o remake seduz pelo grotesco mais visceral, uma metáfora da condição da mulher contemporânea. Mostra uma crueldade feminina implacável. Porque, mesmo no grotesco, há sabedoria, beleza e libertação. Como bônus, Tilda Swinton arrasa em dois papeis completamente diferentes, pelo menos.
Como já disseram, Capitão Fantástico (2016) é uma versão mais doce de A Costa do Mosquito (1986), dirigido por Peter Weir e estrelado por um Harrison Ford messiânico contra o mundo capitalista. Em Capitão Fantástico, o personagem de Viggo Mortensen cria seis filhos numa região selvagem dos EUA, condenando o consumismo desenfreado e as convenções sociais. Ele educa sua prole para ser ninjas de esquerda, peritos em artes marciais, sobrevivência e ávidos leitores. Essa família é uma utopia em desenvolvimento, mas que não deixa de ter seus problemas de convívio. Afinal, a reflexão e o debate sobre qualquer assunto são estimulados. A ideia do filme é ótima e sua realização tem seus momentos de destaque, tanto no drama quanto na comédia, principalmente, como críticas ao pensamento convencional a respeito de conceitos como família, estado, propriedade e liberdade individual. Mas acontece que o diretor e roteirista Matt Ross puxa o freio de mão para não assustar demais um público potencial para a obra. Ele acaba utilizando recursos narrativos meio batidos para contar uma história de subversão. Então, no fim das contas, Capitão Fantástico não é muito diferente de dramédias indies americanas fofas, como Pequena Miss Sunshine. O filme vale pelas atuações, pelos diálogos, fotografia e trilha sonora.
Mesmo que você não saiba nada sobre o filme, logo nos primeiros minutos de Cam, dá para notar que algo muito ruim vai acontecer com a protagonista. Mas para satisfação do espectador: 1) sim, algo muito ruim acontece; e 2) mas não é o que você esperava. O ritmo do filme é impressionante, desenvolvendo uma tensão crescente até seu clímax, quando a protagonista está no seu limite emocional. E mesmo assim consegue pensar claramente. Os maiores trunfos dessa produção de baixo orçamento da Blumhouse são a montagem, o roteiro e a atriz principal. O diretor estreante Daniel Goldhaber foi inteligente em fazer um filme curto, de 94 minutos, deixando de fora cenas que poderiam entregar a falta de grana do filme, focando em lugares fechados, como casas e quartos. Por outro lado, seu ritmo acelerado impende uma reflexão mais aprofundada do seu tema principal: nossas identidades no mundo contemporâneo, entre o real e o virtual. A roteirista Isa Mazzei foi uma cam girl e mostra o lado sombrio desse universo, mas também certas nuances, fugindo de moralismos baratos. E, por fim, a atriz Madeline Brewer carrega o filme nas costas, numa performance que alterna a todo momento entre o vulnerável e o macabro. O resto do elenco só está ali para constar. Cam é um filme que tenta fugir dos clichês e das respostas fáceis sobre o comportamento humano, quando estamos sozinhos ou em sociedade.
Shazam! é um filme divertido, mas bastante previsível. Vale pelo carisma de alguns personagens, por certas piadas e gags que não vimos nos trailers e pela novidade de vermos, na tela grande, um Superman da comédia. Tem mais apelo para crianças e adolescentes, como pude constatar na sessão onde eu estava. Mas há momentos sombrios, nos quais o silêncio foi absoluto. O maior charme do filme é o Shazam de Zachary Levi, um herói falho e imaturo. Bacana ver algumas cenas parecendo páginas duplas de quadrinhos, mostrando o lado épico da DC.
O Animal Cordial é um slasher ainda mais impactante por sua ambição de fundo, pelas reflexões que gera a respeito da realidade brasileira. A diretora de curtas e roteirista Gabriela Amaral Almeida, estreia no comando de um longa pesado, violento, visceral. Sua grande sacada foi subverter as regras do filme de invasão, algo raro até mesmo no cinema americano. Uma noite, um restaurante prestes a fechar, com poucos clientes, é invadido por dois assaltantes. A partir daí, começa uma madrugada de horror. Mas não pensem que esse filme é previsível. Os assaltantes, oriundos da periferia, não serão os responsáveis pela violência de fato. E sim gente de uma classe média racista, machista, homofóbica, decadente. O assalto se torna o gatilho para que uma série de frustrações acumuladas exploda, sendo tudo colocado para fora, sem máscaras. O filme consegue geralmente manter a tensão. Trilha sonora, montagem, fotografia e efeitos sonoros estão afiados, com o timing certo para uma obra de gênero. Os atores principais estão muito bem e conquistam o público, como carrascos ou vítimas. Mas não dá para dizer o mesmo do elenco de apoio, o que compromete a sensação de claustrofobia do filme, fazendo o espectador se desconectar da narrativa. E também em certos confrontos dos personagens, cara a cara, os diálogos soam redundantes ou artificiais. Mas, sem dúvida, O Animal Cordial é um marco do cinema brasileiro e do cinema de terror. Uma metáfora poderosa sobre papéis sociais e os limites do ser humano.
Jordan Peele conseguiu de novo. Entregou ao espectador mais um filme de impacto, tanto do ponto de vista estético quanto reflexivo. Em Corra! ele apresentou uma arriscada combinação de filme tenso, mas muito divertido. E se saiu bem desse desafio, criando algo único, a partir de referências inconfundíveis de mestres do cinema do passado.
Em Nós, Peele se arrisca mais, em nome de um objetivo claro: assustar, deixar o espectador em choque. O humor está presente, porém de maneira mais pontual. Nos seus melhores momentos de sátira, as piadas são ótimas. Há uma cena hilária que usa a música Fuck the Police, do N.W.A. Mas, no fim das contas, o que prevalece é o gore e o slash. O desespero, os gritos, as mutilações, o sangue.
Como diretor, Peele amadureceu. O primeiro terço do filme tem um ritmo impressionante. Praticamente nada acontece, mas o que vemos tem uma fotografia tão elaborada, uma montagem tão cadenciada e diálogos e atuações tão marcantes, que não importa. Acompanhamos o cotidiano da família protagonista com um sorriso besta na cara, sem desejar que nada se apresse. A influência de Hitchcock é evidente, o diretor que construía seus suspenses sofisticados para o público médio como um reflexo apavorante desse mesmo público. E quando a violência começa, nos deparamos com um dos filmes de terror mais criativos e perturbadores dos últimos tempos. Uma mistura de homenagem e subversão ao cinema de horror dos anos 70 e 80.
É realmente revolucionário ver uma família de negros com tamanha personalidade e desenvoltura como protagonistas de um filme importante, que gerou tanta expectativa. Todos os quatro membros da família Wilson tem uma individualidade bem desenvolvida, provocando afetos e tensões entre si . Eles conquistam a empatia da plateia por suas qualidades e falhas. Ao mesmo tempo, os atores também impressionam quando representam seus duplos assassinos, invertendo a experiência do espectador de forma fascinante. Agora a dona do filme é Lupita Nyong´o. Ela arrasa como a mãe que defende sua família a qualquer custo e como seu duplo, uma personagem nada caricata, carregando uma complexidade surpreendente. No gênero do terror, é uma perfomance histórica para uma mulher negra.
Peele revelou em entrevistas que Nós tem uma reflexão bastante específica, como fica evidente no duplo sentido do título em inglês. Mas ele também admitiu que fez um filme com várias camadas, permitindo outros tipos de interpretações. De fato, Nós é bem mais ambíguo, mesmo havendo algumas revelações no final. O filme já está gerando muita discussão sobre seus significados, pelo o que ficamos sabendo e pelo o que é deixado em aberto.
Nós não é perfeito. O filme sofre uma falta de coesão em suas ideias e estrutura narrativa. Mostra certo cansaço no terço final, quando tudo já pareceu resolvido. Peele criou a atmosfera de uma tensa e afiada alegoria sobre o ser humano, olhando para si mesmo e para a sociedade que ajudou a construir. Portanto, seria bem mais desafiador se essa grande metáfora não fosse explicada. Porque muita coisa relacionada à origem dos duplos não faz o menor sentido.
De qualquer maneira, Nós é um filmaço. É algo inédito no cinema em geral, por trazer uma nova perspectiva, uma nova voz para Hollywood, confirmando o talento de Jordan Peele como um mestre do terror.
Capitã Marvel é um filme divertido e inspirador. Num mundo onde existe o primeiro Thor, Hulk 2, Homem de Ferro 2 e Era de Ultron, este está longe de ser um dos piores do MCU. Brie Larson convence como Capitã Marvel/Carol Denvers. Ela tem uma atitude inédita para uma personagem feminina da Marvel no cinema. A confiança dela desestabiliza quem está ao redor. E é isso o que faz os haters a odiarem. Ela está se divertindo fazendo o papel e consegue transmitir essa vibração para a plateia. Tecnicamente, está tudo impecável, com efeitos especiais muito convincentes. O rejuvenescimento de Samuel L. Jackson e de Clark Gregg está incrível. E a recriação dos anos 90 é outro charme do filme. Há ótimas piadas sobre os perrengues tecnológicos da época. Infelizmente, os skrulls e krees são mal aproveitados. E a Marvel mais uma vez não entrega vilões realmente marcantes. Há um problema de ritmo lá pelo meio. O roteiro tem aqueles furos já esperados de grandes produções. E as cenas de ação não são o melhor do filme, e sim a interação entre os personagens, na comédia (Brie Larson, Samuel L. Jackson, o gato Goose e Ben Mendelsohn são hilários quando as piadas funcionam) e no drama, com destaque para Lashana Lynch, como Maria Rambeau, a piloto melhor amiga de Carol. O fato é que o filme da Capitã Marvel se tornou a Batalha de Yavin do MCU. Com direito a plot twist gigante, que vai mudar tudo o que pensávamos sobre o futuro desse universo e cena pós-crédito de cair o queixo. O grande desafio agora é saber como vamos continuar conectados a um super-herói tão poderoso.
Estou chocado com Spider-Man: Into the Spider-Verse. Mesmo no calor do momento, afirmo sem medo de errar: é o melhor filme de super-herói de todos os tempos. A técnica de animação é incrível, praticamente uma HQ em movimento. O arco de Miles Morales é emocionante. Peter B. Parker é uma maravilhosa desconstrução do Homem-Aranha. E ainda de quebra tivemos um dos grandes super-vilões da telona: Prowler. Que tema é aquele! E a cena pós-crédito é hilária, abrindo possibilidade para uma baita continuação. Oscar merecidíssimo.
O documentário mostra um outro lado da pornochanchada. Gênero do cinema nacional considerado menor, as comédias eróticas produzidas principalmente nos anos 1970 ganham uma releitura a partir da pesquisa da diretora e roteirista Fernanda Pessoa. Ela foi em busca dos trechos desses filmes censurados pela ditadura militar. O resultado é surpreendente. O filme é uma montagem dessas cenas cortadas, divididas por temas. Vemos muitas críticas aos governos militares, ao milagre econômico e aos interesses dos EUA. A diretora ressalta que a pornochanchada (termo rejeitado pelos próprios diretores dos filmes) tem uma maior variação de discursos do que poderíamos supor. Geralmente, o machismo, o racismo e o arrivismo são mostrados sem qualquer reflexão, reforçando esteriótipos. Mas houve obras que discutiram esses temas de forma mais consciente, subversiva até. Justamente por isso também é revisto o mito de que a pornochanchada tinha aprovação da ditadura, sendo um cinema essencialmente de direita. É chocante ver como a mentalidade da época tem uma conexão tão próxima com os tempos atuais. Isso mostra que o discurso do ódio é uma construção histórica. A herança maldita da ditadura é um assunto mal resolvido do passado que veio cobrar a conta agora.
Spike Lee. Godard. Michel Gondry. Jonathan Swift. Foram esses nomes que me vieram à cabeça assim que terminei de ver Sorry to bother you (2018), do roteirista e diretor estreante Boots Riley. Vocalista da banda The Coup, Riley mete os dois pés na porta do mainstream com sua sátira anti-capitalista. E o filme realmente não mostra uma versão de boutique de crítica social. O roteiro é inteligente ao escolher uma narrativa linear para criar conexão com um público maior e assim dar força às ideias e reflexões sobre conformidade e revolta. Na superfície, o filme parece uma ótima comédia e só, mas trata-se de uma produção de guerrilha. O diretor levou anos para tirá-lo do papel. Há um problema de ritmo, deixando o filme arrastado em certos momentos; o que poderia ter sido resolvido cortando algumas cenas. Mas isso é totalmente compensado pelos diálogos e as atuações. O interessante aqui é acompanhar a visão de um homem negro de como funciona a sociedade atual e do que seria uma revolução para ele. O que é ser uma pessoa negra que tenta sobreviver ao sistema? O que é ser uma pessoa negra que se beneficia do sistema? O que é ser ´uma pessoa negra que quer destruir o sistema? Em todas essas três possibilidades, a pessoa negra que tem que se esforçar mais, sofrer mais, pensar mais, trabalhar mais. Sorry to bother you mistura ficção científica e o fantástico para escancarar as brutalidades do capitalismo.
Roma é tecnicamente perfeito. Eu não esperaria menos de Alfonso Cuarón, um diretor de filmes instigantes e, principalmente, generosos, cheios de empatia. Mas é triste ver que seu carinho pela protagonista de Roma é um embuste. Tudo bem que a crítica à elite mexicana apática aos problemas sociais do país é muito pertinente. Só que é revoltante acompanhar a devoção canina da empregada Cleo àquela família mimada que a ama por conveniência, por ela servi-los praticamente 24 horas por dia e cuidar deles tão bem.
Wolf Children é um slice of life com um discreto toque de fantasia. Conta a história de uma mãe humana que tem de criar dois filhos lobisomens no Japão contemporâneo. Longe de ser um filme de terror, o anime dá medo por ser muito humano. Na verdade, assim como a vida, há de tudo um pouco: drama, comédia, tensão, tragédia e esperança. O diretor e co-roteirista Mamoru Hosoda é um dos grandes mestres da animação japonesa. Sem dúvida, muito influenciado por Hayao Miyazaki, tanto na fluidez da animação quanto no desenvolvimento dos personagens. A luta de Hana, a mãe, para criar os dois filhos é cativante e bastante realista. Ela tenta cuidar da saúde, da alimentação e da educação deles, ao mesmo tempo em que precisa protegê-los de um mundo que pode machucá-los, física e psicologicamente. Acompanhamos o crescimento da mais velha Yuki e do caçula Ame com curiosidade, encanto e apreensão. Afinal, os dois passam pelos mesmos problemas de outras crianças e adolescentes em sociedade, mas com um elemento a mais que torna suas vidas mais difíceis. Não por culpa deles, mas dos outros que não os compreendem. Há também momentos de extrema beleza e emoção, quando as crianças aproveitam todo o potencial de liberdade por serem lobisomens, num inspirador contato com a natureza. Wolf Children é para todas as idades, mas, com certeza, são os adultos que vão melhor captar seus significados. Fala-se principalmente sobre identidade, pertencimento, sobre encontrar um lugar no mundo.
Eu adoro Corpo Fechado. Pra mim, é um dos melhores filmes de super-heróis já feitos. Achei Fragmentado bom, mas nada demais. E Vidro é constrangedor. Em Corpo Fechado, a referência aos quadrinhos dá um tom metalinguístico muito interessante, uma reflexão sobre a figura do herói e o poder do indivíduo. Em Vidro, o mundo dos quadrinhos retorna de maneira rasa, apenas servindo para diálogos grandiloquentes e piegas e reviravoltas sem sentido. Ou seja, Shyamalan fazendo shyamalanzices.
Infiltrado na Klan é a volta por cima do mestre Spike Lee. Já fazia um bom tempo que ele não lançava um filme de impacto. Alguns temiam que ele nunca mais conseguisse retomar a velha forma. Com Infiltrado na Klan, Spike Lee dá mais um soco certeiro na cara da América racista. O filme é tecnicamente perfeito. A trilha sonora, arrasadora. As atuações estão acima da média. O roteiro mistura o humor safo já conhecido do diretor com a urgência da denúncia, ligando passado e presente, mostrando a construção histórica de um câncer social. O final do filme é um dos mais viscerais dos últimos anos.
Adorei o filme da Mulher-Maravilha. E gostei de Aquaman. Se você odiou ou achou regular, não vou tirar sua razão. Comparado a outras superproduções, o filme de James Wan é uma bagunça, tem problemas de ritmo, personagens são subaproveitados e é um pouco longo. Mas é uma bagunça divertida e bonita de ver. O roteiro é geralmente sofrível, a maioria dos diálogos é constrangedora e as atuações são quase todas canastronas. Mas o grande mérito aqui é que todos os envolvidos abraçaram a cafonice da proposta sem medo. E essa cafonice dá certo porque não rimos dela, mas com ela. Vem embalada numa produção de primeira, com clima de anos 80. Os efeitos especiais e sonoros são impressionantes, mostrando um universo subaquático rico. As cenas de ação são brutais, muito bem coreografadas. A trilha sonora, usando sintetizadores, à maneira synthwave, e orquestra, é envolvente, ora ameaçadora, ora cheia de fantasia. O terceiro ato é o melhor dos filmes da DC desde O Cavaleiro das Trevas. É muito bacana ver um filme desse porte com um protagonista que não é branco. O Aquaman/Arthur Curry de Jason Momoa é carismático, charmoso, mas também um herói falho. Agora Jamens Wan ficou devendo nas personagens femininas. Elas são badass e mais espertas do que os homens, mas são colocadas em segundo plano em momentos decisivos. Aquaman é um filme B de luxo, o Flash Gordon do séc.21.
Too Late é um filme policial pequeno e imperfeito, mas realizado com paixão. Um tanto artificial na ambição do diretor estreante Dennis Hauck em reinventar a roda. O filme é dividido em cinco atos, e cada ato foi rodado em um take de vinte e poucos minutos. Isso mesmo! O que nem sempre dá certo, fica forçado, a técnica pela técnica. Mas Too Late tem qualidades. John Hawkes arrasa com sua versão neo noir de Philip Marlowe. Seu Mel Sampson é um detetive particular incorruptível (mas cheio de falhas) numa Los Angeles suja. A estrutura não cronológica garante boas surpresas, mesmo que torne os furos de roteiro mais evidentes. Os diálogos são muito tarantinescos, mas o elenco competente consegue torná-los mais interessantes.
A Ganha-Pão é uma joia escondida no catálogo da Netflix. Uma animação de 2017, ao mesmo tempo, brutal e encantadora. No Afeganistão dominado pelo Talibã, Pavana é uma garota de 12 anos que precisa sobreviver num regime que oprime as mulheres e censura a liberdade de expressão. As mulheres devem ficar em casa e apenas sair na companhia dos maridos, irmãos e filhos. As punições para as desobedientes são severas. Quando seu pai, um ex-professor e atualmente vendedor de rua, é preso por esconder livros proibidos, Pavana, a mãe e a irmã mais velha se encontram numa situação dramática. Até comprar comida sozinhas se torna um risco. Então Pavana decide cortar os cabelos e se vestir de garoto. E um novo mundo se abre para ela. Com muitas possibilidades e perigos maiores. Esta é uma animação belíssima, com um senso de fábula criativo e profundo. Um conto de afirmação contra a crueldade e as injustiças do mundo real.
Se você vai assistir a You Were Never Really Here pensando em se divertir com mais um filme de ação, pode dar meia volta. A diretora e roteirista escocesa Lynne Ramsay pega todos os clichês dos filmes policiais e joga pela janela. Ela evita glamourizar o derramamento de sangue e mostra que outros tipos de violência podem ser mais cruéis.
Mais do que qualquer outra coisa, esse filme curto e tenso é um estudo da personalidade perturbada de seu protagonista, o ex-soldado, ex-agente do FBI e agora matador de aluguel Joe, numa interpretação soberba de Joaquin Phoenix. Contudo, You Were Never Really Here não é uma daquelas produções independentes preguiçosas que se concentram apenas na performance de um grande ator ou atriz. O filme é tecnicamente perfeito e as soluções narrativas, visuais e sonoras orquestradas por Ramsay são a outra força dessa espécie de conto de fadas, ao mesmo tempo, tocante e brutal.
A todo momento há uma variação entre cenas delicadas, de interações humanas afetuosas, com a mais pura violência, seja física, psicológica ou simbólica. A narrativa é um quebra-cabeça, um jogo proposto pela diretora para fazer o espectador pensar. Há peças faltando e cabe a nós preenchê-las.
Montagem e fotografia são elusivas, sugerem mais do que mostram. O som é outro personagem. A trilha sonora do guitarrista do Radiohead Jonny Greewood soube captar muito bem a atmosfera oscilante com cordas, percussão e batidas eletrônicas, compondo uma música ora suave, onírica, ora nervosa, em clima de pesadelo. A edição de som é incrível ao transformar cada som captado (programas de televisão, pessoas falando, veículos passando, a natureza, barulhos da cidade, tiros) em mais um elemento dramático.
Para quem se apaixonar pelo filme, recomendo a leitura da novela de mesmo nome, escrita por Jonathan Ames. É um interessante complemento para conhecer melhor o passado e as motivações dos personagens. O filme não é adaptação tão fiel. Inclusive, considero este mais um raro caso em que o filme é melhor do que o livro. O final elaborado por Ramsay é o último tampa na cara dessa obra-prima.
Star Wars, Episódio IX: A Ascensão Skywalker
3.2 1,3K Assista AgoraA Ascensão Skywalker é um filme ruim. Considerando-o isoladamente, vacila em elementos básicos da narrativa cinematográfica. O trio protagonista (Rey, Finn e Poe) não possui nenhum carisma. O indeciso vilão Kylo Ren é uma cópia flagrante de algo que já vimos anteriormente e executado melhor. A volta de Palpatine é a coisa mais gratuita da história da franquia. O roteiro confuso e previsível de Chris Terrio (o mesmo cara que escreveu o bom Argo, mas que também co-escreveu os infames Batman vs Superman e Liga da Justiça) traz uma megalomania vazia de espetáculo, lembrando a atmosfera dos tão massacrados prequels. Não há nenhum momento deslumbrante, foda no filme (que já não tínhamos visto nos trailers), uma cena que nos deixe emocionados com a interação dos personagens ou que nos espante com o impacto visual. Por isso, continuo a afirmar que The Last Jedi é um puta filme, que tem todos esses elementos citados acima, executados de maneira soberba, em seus melhores momentos. Aquele era o caminho para o futuro de Star Wars, ou, pelo menos, um dos caminhos. Depois de assisti A Ameaça Fantasma, vinte anos atrás, senti raiva pelo o que tinha acabado de ver. Ao sair do cinema, em A Ascensão Skywalker, senti a mais pura indiferença.
Em Chamas
3.9 379 Assista AgoraÉ um suspense perturbador justamente porque nos colocar para pensar, para preencher as lacunas deixadas pelo caminho. É um filme lento, mas com uma tensão crescente, que nos desestabiliza ao acrescentar mais e mais mistérios ao invés de solucioná-los. Nas entrelinhas, Em Chamas diz muito sobre o estado das coisas do capitalismo. De um lado, há as incertezas do jovem pobre e sem emprego, alguém praticamente descartável. Do outro, a total falta de empatia das classes mais abastadas. A produção é primorosa em sua simplicidade. A montagem é precisa, a fotografia eleva o cotidiano, e os personagens falam o estritamente necessário.
Parasita
4.5 3,6K Assista AgoraEm cartaz nos cinemas, Parasita é o verdadeiro filme do ano. E não Coringa. Bacurau chega perto, mas não apresenta o apuro técnico da produção sul-coreana. Politicamente, Bacurau propõe uma solução mais radical, no sentido de não fazer concessões, para o problema das injustiças do capitalismo. Coringa tenta fazer algo semelhante por via tortas. Em Parasita, a questão é escancarada, mas nunca é resolvida.
Bong Joon-ho é um cineasta que gosta de desafiar o espectador. Seus filmes são obras de arte, de reflexão numa roupagem de entretenimento. Ele quebra as barreiras do cinema de autor e do cinema comercial. Para ele, se divertir e pensar são dois lados da mesma moeda. Diretor versátil, ele realizou um dos melhores filmes de serial-killer já feitos, Memórias de um assassino (2003), a comédia familiar cheia de ação com monstros O hospedeiro (2006), o drama de suspense com uma protagonista idosa Mother (2009), a violentíssima e afiada distopia em ritmo de videogame Expresso do Amanhã (2013) e a melancólica aventura juvenil Okja (2017).
Parasita é uma vigorosa aula sobre luta de classes feita para o grande público. Bong Joon-ho faz seu filme mais maduro por ser o mais paciente em nos envolver em suas ideias. Na maior parte do tempo, prevalece o quase silêncio, a quase imobilidade. A tensão é pontual. Mas quando surge nos desarma por completo.
Na verdade, a grande sacada de Parasita é a quebra de nossas expectativas. Há vários filmes em um só. Comédia, suspense, drama, terror. O diretor alterna a condução da trama entre esses gêneros com extrema habilidade e nunca de forma gratuita, sempre com um propósito claro e eficiente. Fotografia, montagem, trilha sonora, edição de som, design de produção. Tudo funciona com o propósito de acompanharmos, atentos, o cotidiano das duas famílias protagonistas: os Park, ricos, ingênuos e esnobes, e os Kim, pobres, trambiqueiros e afetuosos. A força do roteiro está na maneira ora sutil, ora bem direta como cada situação, cada sequência leva os personagens a momentos cômicos, dramáticos ou violentos. Além dos diálogos exporem muito bem a personalidade e a
origem de cada um, com direito a comentários sociais e reflexões filosóficas.
Destaque especial para o elenco. Os atores encarnam personagens cativantes, justamente por serem muito humanos. Não há vilões e mocinhos, e sim gente que tenta manter sua posição social ou superá-la. Song Kang-ho, astro sul-coreano e ator-assinatura do diretor, tem uma performance discreta, contida, mas de grande expressão. Outra “personagem” marcante é a mansão dos Park, onde se passa a maior parte do filme. É um lugar belo, espaçoso com uma arquitetura arrojada e um jardim harmônico, mas que possui suas zonas sombrias. A mansão se torna palco de todo tipo de emoções, cenário de uma tragicomédia com ares shakespearianos.
Parasita é superior a Coringa, primeiramente, pelo maior domínio técnico do diretor Bong Joon-ho. Ele sabe para onde quer levar o filme. A fotografia de Parasita é um exemplo disso, cheia de significados relacionados aos temas em questão, em seus enquadramentos de espaços, objetos e pessoas. O diretor sul-coreano também arrisca-se mais ao co-escrever um roteiro com uma estrutura mais complexa e que poderia resultar numa realização desconjuntada. Já Coringa tem um roteiro problemático e indeciso. Acerta ao mostrar os poderosos como insensíveis, inclusive os Wayne, mas manipula o espectador sem saber exatamente o porquê, numa espécie de piada de mau gosto. Joaquin Phoenix é a força motriz do filme, dominando sozinho a cena. As personagens femininas são praticamente irrelevantes. Ao contrário de Parasita, que conta com um fascinante grupo de personagens, com mulheres muito ativas e determinantes para os rumos da trama. Por fim, Coringa levanta dois questionamentos. O perigo de alçar um psicopata como um símbolo de revolta social, um herói, mesmo que involuntário. E a contradição de arrecadar algo próximo de um bilhão de dólares em bilheterias para a elite da vida real que é tão criticada no filme. Parasita também é um sucesso, inclusive financeiro. Mas sua consagração é bem mais modesta e conquistada na unha.
Parasita ganhou a Palma de Ouro em Cannes deste ano com todo o mérito. É um filme que engaja o espectador pela maneira visceral como mostra as contradições do capitalismo, que rebaixa o ser humano. O rico suga a força de trabalho e a dignidade do pobre. E o pobre procura as brechas do sistema para sugar as migalhas do rico. Parasita mostra que há algo muito errado nisso tudo, nessa mentalidade de ascensão social, nesse círculo vicioso, que leva a cobra a morder o próprio rabo.
Bacurau
4.3 2,8K Assista AgoraBacurau é um filmaço. Irregular, mas feito com muito tesão. Cheio de consciência estética e política. Porém, para surpresa geral, os diretores afirmam que a violenta trama de resistência não foi pensada como uma metáfora para os atuais tempos sombrios. De fato, Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles tiveram a ideia de fazer Bacurau há dez anos, com o roteiro sendo trabalhado nos últimos três.
Os diretores reconhecem e enaltecem a influência do cinema de gênero (terror, western, thriller, ficção científica). Citam mestres como John Carpenter, George Romero, Sergio Leoni, Sergio Corbucci e Sam Peckinpah. Uma intenção evidente de Mendonça e Dornelles é fazer um filme de gênero como metáfora política, mesmo que não que seja colada à indigência vigente, pensando na crise da sociedade brasileira como um processo histórico em andamento. (Mas, no fim das contas, os significados e interpretações fogem do controle de seus autores, como em qualquer obra artística, e, sim, Bacurau é uma manifesto de resistência do povo nordestino contra os fascistas locais, do sul maravilha e estrangeiros.)
Carpenter refletiu sobre a crise capitalista nos EUA dos anos 70 e 80, em Assalto ao 13º Distrito e Eles Vivem. Romero refletiu sobre a tensão social gerada pelo movimento dos direitos civis nos anos 60, em A Noite dos Mortos Vivos. Peckinpah fez algo semelhante com as consequências da guerra do Vietnã, em seu western tardio Meu Ódio Será Sua Herança. E Corbucci, membro do partido comunista italiano, pensou nos movimentos revolucionários espalhados pelo mundo dos anos 60 e 70 ao criar seus Zapata westerns.
Mendonça e Dornelles bebem de todas essas fontes para apresentar um filme vibrante em seus melhores momentos. Bacurau está em cartaz em várias salas pelo Brasil, ganhando espaço no circuito comercial, não se restringindo ao circuito de arte. Pode ser visto por qualquer pessoa. É divertido, tenso, movimentado e reflexivo. O que pode afastar muitos espectadores é a opção, totalmente válida dos diretores, de quebrar expectativas. Bacurau é ação, mas não é. É suspense, mas não é. É gore, mas não é. Há uma constante mudança de propostas. O que para uns pode ser irritante, para outros pode ser desafiador.
É uma obra aberta que estimula diversas interpretações. Contudo, certas inconsistências no roteiro e os rumos tomados no ato final criam um sentimento conflitante na gente. Adoramos o clímax por sua potência, mas, em paralelo, o odiamos pelo ritmo canhestro, pela cinematografia mais pobre. Mesmo que o embate final seja um jogo metalinguístico, carece de mais esmero, algo que foi melhor executado em filmes de John Woo, por exemplo.
A população de Bacurau é marcante (Lunga, Domingas, Pacote, Teresa, Plínio, Damiano, Maciel, Flávio, Sandra, o violeiro gaiato...), só que não espere muito desenvolvimento de nenhum personagem. Isso fica pelo caminho. Mas o que é mostrado se torna suficiente para nos conquistar. Torcer por eles. Sofrer com eles. A verdadeira protagonista é a cidade de Bacurau, com seu povo, sua história, seu senso de comunidade, escassa de recursos (onde falta água, mas há internet), politicamente madura, em prol da diversidade. Uma utopia possível encravada no sertão pernambucano, ameaçada por um poder vil que recusa a dizer seu nome.
A Criada
4.4 1,3K Assista AgoraA Criada (2016) é puro Park Chan-wook, o diretor de Old Boy. Melhor dizendo, é um Park mais maduro, mais sutil e mais perverso. O filme é uma adaptação do romance Na ponta dos Dedos, da britânica Sarah Waters. Mesmo tendo lido o romance há alguns anos, famoso por suas reviravoltas de fato surpreendentes, para mim o filme manteve o frescor. Park foi fiel ao romance em sua estrutura narrativa e no desenvolvimento de personagens. Mas infiel ao levar a tensão sexual subversiva do livro para outro patamar. Sim, estamos falando de BDSM. Na Ponta dos Dedos é um “romanção” vitoriano, mas com uma pegada pós-moderna, plenamente consciente das implicações de classe e de gênero daquele período, que refletem no mundo contemporâneo. É um romance delicioso de ler, como um Dickens. A produção de A Criada provoca um prazer visual e sonoro no espectador. Não sentimos o tempo passar nesse filme de quase duas horas e meia. A imersão é total. Acompanhamos com um sorriso nos lábios a vilania, ironia, sensualidade e perspicácia em jogos de traições e alianças.
Suspíria: A Dança do Medo
3.7 1,2K Assista AgoraNem sempre um remake é uma perda de tempo, um crime contra a obra original. Suspiria, de 1977, é um clássico do terror italiano, do giallo, o filme mais celebrado do mestre Dario Argento. Em 2018, o também italiano Luca Guadagnino, diretor do aclamado Me chame pelo seu nome, lançou uma nova versão de Suspiria. No final das contas, Guadagnino se saiu muito bem da enrascada em que se meteu. Justamente por ter sido infiel à obra original. A premissa é a mesma. Uma estudante de balé americana vai para uma prestigiada academia na Alemanha e coisas bizarras começam a acontecer. O filme de Argento é famoso por sua atmosfera arrepiante e estilosa. Pelo uso de cores primárias, principalmente o vermelho, na direção de arte e fotografia e pela trilha sonora com um rock progressivo, ao mesmo tempo, feérico e macabro. O roteiro é bastante básico e as atuações apenas satisfatórias. A maior crítica que se pode fazer ao filme (e ao giallo em geral) é o seu sadismo contra as mulheres, pela maneira como morrem, assassinadas violentamente por mãos masculinas, além de mostrá-las como frágeis ou megeras, de maneira bidimensional. E tudo isso mesmo tendo uma protagonista feminina. Já no remake, há um feminismo muito presente, inclusive, sem a preocupação de mostrar as mulheres como simpáticas. As personagens do novo filme metem medo porque elas têm plena consciência de seu poder. Aqui os homens são os inimigos, os fracos. Guadagnino foi ambicioso ao ampliar o contexto desse remake. Assim como no original, ele se passa na Alemanha Ocidental da década 1970. Mas Guadagnino procura discutir traumas políticos do passado, relacionados à Segunda Guerra Mundial, e daquele presente, por meio da tensão social causada pelas ações da organização Fração do Exército Vermelho (RAF), mais conhecida como Grupo Baader-Meinhof. Ao invés de tirar o espectador da trama, essas preocupações extras aprofundam a experiência, porque o passado das mulheres da academia de balé tem a ver com repressão e perseguição ao longo da História, contra a plena liberdade delas. Esteticamente, o remake envolve e assusta. Não se parece em nada com a ambientação estilizada do Suspiria de Argento, “artificial”, criada em estúdio. E sim com os filmes alemães do período, de cineastas como Fassbinder, Wenders, Herzog, von Trotta e outros. As cores são lavadas e os cenários, sóbrios, realistas. O Suspiria de Argento fascina pelo clima de delírio, pelo simbólico sobre o subterrâneo da condição humana. E o remake seduz pelo grotesco mais visceral, uma metáfora da condição da mulher contemporânea. Mostra uma crueldade feminina implacável. Porque, mesmo no grotesco, há sabedoria, beleza e libertação. Como bônus, Tilda Swinton arrasa em dois papeis completamente diferentes, pelo menos.
Capitão Fantástico
4.4 2,7K Assista AgoraComo já disseram, Capitão Fantástico (2016) é uma versão mais doce de A Costa do Mosquito (1986), dirigido por Peter Weir e estrelado por um Harrison Ford messiânico contra o mundo capitalista. Em Capitão Fantástico, o personagem de Viggo Mortensen cria seis filhos numa região selvagem dos EUA, condenando o consumismo desenfreado e as convenções sociais. Ele educa sua prole para ser ninjas de esquerda, peritos em artes marciais, sobrevivência e ávidos leitores. Essa família é uma utopia em desenvolvimento, mas que não deixa de ter seus problemas de convívio. Afinal, a reflexão e o debate sobre qualquer assunto são estimulados. A ideia do filme é ótima e sua realização tem seus momentos de destaque, tanto no drama quanto na comédia, principalmente, como críticas ao pensamento convencional a respeito de conceitos como família, estado, propriedade e liberdade individual. Mas acontece que o diretor e roteirista Matt Ross puxa o freio de mão para não assustar demais um público potencial para a obra. Ele acaba utilizando recursos narrativos meio batidos para contar uma história de subversão. Então, no fim das contas, Capitão Fantástico não é muito diferente de dramédias indies americanas fofas, como Pequena Miss Sunshine. O filme vale pelas atuações, pelos diálogos, fotografia e trilha sonora.
Cam
3.1 549 Assista AgoraMesmo que você não saiba nada sobre o filme, logo nos primeiros minutos de Cam, dá para notar que algo muito ruim vai acontecer com a protagonista. Mas para satisfação do espectador: 1) sim, algo muito ruim acontece; e 2) mas não é o que você esperava. O ritmo do filme é impressionante, desenvolvendo uma tensão crescente até seu clímax, quando a protagonista está no seu limite emocional. E mesmo assim consegue pensar claramente. Os maiores trunfos dessa produção de baixo orçamento da Blumhouse são a montagem, o roteiro e a atriz principal. O diretor estreante Daniel Goldhaber foi inteligente em fazer um filme curto, de 94 minutos, deixando de fora cenas que poderiam entregar a falta de grana do filme, focando em lugares fechados, como casas e quartos. Por outro lado, seu ritmo acelerado impende uma reflexão mais aprofundada do seu tema principal: nossas identidades no mundo contemporâneo, entre o real e o virtual. A roteirista Isa Mazzei foi uma cam girl e mostra o lado sombrio desse universo, mas também certas nuances, fugindo de moralismos baratos. E, por fim, a atriz Madeline Brewer carrega o filme nas costas, numa performance que alterna a todo momento entre o vulnerável e o macabro. O resto do elenco só está ali para constar. Cam é um filme que tenta fugir dos clichês e das respostas fáceis sobre o comportamento humano, quando estamos sozinhos ou em sociedade.
Shazam!
3.5 1,2K Assista AgoraShazam! é um filme divertido, mas bastante previsível. Vale pelo carisma de alguns personagens, por certas piadas e gags que não vimos nos trailers e pela novidade de vermos, na tela grande, um Superman da comédia. Tem mais apelo para crianças e adolescentes, como pude constatar na sessão onde eu estava. Mas há momentos sombrios, nos quais o silêncio foi absoluto. O maior charme do filme é o Shazam de Zachary Levi, um herói falho e imaturo. Bacana ver algumas cenas parecendo páginas duplas de quadrinhos, mostrando o lado épico da DC.
O Animal Cordial
3.4 618 Assista AgoraO Animal Cordial é um slasher ainda mais impactante por sua ambição de fundo, pelas reflexões que gera a respeito da realidade brasileira. A diretora de curtas e roteirista Gabriela Amaral Almeida, estreia no comando de um longa pesado, violento, visceral. Sua grande sacada foi subverter as regras do filme de invasão, algo raro até mesmo no cinema americano. Uma noite, um restaurante prestes a fechar, com poucos clientes, é invadido por dois assaltantes. A partir daí, começa uma madrugada de horror. Mas não pensem que esse filme é previsível. Os assaltantes, oriundos da periferia, não serão os responsáveis pela violência de fato. E sim gente de uma classe média racista, machista, homofóbica, decadente. O assalto se torna o gatilho para que uma série de frustrações acumuladas exploda, sendo tudo colocado para fora, sem máscaras. O filme consegue geralmente manter a tensão. Trilha sonora, montagem, fotografia e efeitos sonoros estão afiados, com o timing certo para uma obra de gênero. Os atores principais estão muito bem e conquistam o público, como carrascos ou vítimas. Mas não dá para dizer o mesmo do elenco de apoio, o que compromete a sensação de claustrofobia do filme, fazendo o espectador se desconectar da narrativa. E também em certos confrontos dos personagens, cara a cara, os diálogos soam redundantes ou artificiais. Mas, sem dúvida, O Animal Cordial é um marco do cinema brasileiro e do cinema de terror. Uma metáfora poderosa sobre papéis sociais e os limites do ser humano.
Um Contratempo
4.2 2,0KEsse filme não é mais inteligente do que eu. Logo no início eu tinha matado a grande revelação então perdeu totalmente a graça.
Nós
3.8 2,3K Assista AgoraJordan Peele conseguiu de novo. Entregou ao espectador mais um filme de impacto, tanto do ponto de vista estético quanto reflexivo. Em Corra! ele apresentou uma arriscada combinação de filme tenso, mas muito divertido. E se saiu bem desse desafio, criando algo único, a partir de referências inconfundíveis de mestres do cinema do passado.
Em Nós, Peele se arrisca mais, em nome de um objetivo claro: assustar, deixar o espectador em choque. O humor está presente, porém de maneira mais pontual. Nos seus melhores momentos de sátira, as piadas são ótimas. Há uma cena hilária que usa a música Fuck the Police, do N.W.A. Mas, no fim das contas, o que prevalece é o gore e o slash. O desespero, os gritos, as mutilações, o sangue.
Como diretor, Peele amadureceu. O primeiro terço do filme tem um ritmo impressionante. Praticamente nada acontece, mas o que vemos tem uma fotografia tão elaborada, uma montagem tão cadenciada e diálogos e atuações tão marcantes, que não importa. Acompanhamos o cotidiano da família protagonista com um sorriso besta na cara, sem desejar que nada se apresse. A influência de Hitchcock é evidente, o diretor que construía seus suspenses sofisticados para o público médio como um reflexo apavorante desse mesmo público. E quando a violência começa, nos deparamos com um dos filmes de terror mais criativos e perturbadores dos últimos tempos. Uma mistura de homenagem e subversão ao cinema de horror dos anos 70 e 80.
É realmente revolucionário ver uma família de negros com tamanha personalidade e desenvoltura como protagonistas de um filme importante, que gerou tanta expectativa. Todos os quatro membros da família Wilson tem uma individualidade bem desenvolvida, provocando afetos e tensões entre si . Eles conquistam a empatia da plateia por suas qualidades e falhas. Ao mesmo tempo, os atores também impressionam quando representam seus duplos assassinos, invertendo a experiência do espectador de forma fascinante. Agora a dona do filme é Lupita Nyong´o. Ela arrasa como a mãe que defende sua família a qualquer custo e como seu duplo, uma personagem nada caricata, carregando uma complexidade surpreendente. No gênero do terror, é uma perfomance histórica para uma mulher negra.
Peele revelou em entrevistas que Nós tem uma reflexão bastante específica, como fica evidente no duplo sentido do título em inglês. Mas ele também admitiu que fez um filme com várias camadas, permitindo outros tipos de interpretações. De fato, Nós é bem mais ambíguo, mesmo havendo algumas revelações no final. O filme já está gerando muita discussão sobre seus significados, pelo o que ficamos sabendo e pelo o que é deixado em aberto.
Nós não é perfeito. O filme sofre uma falta de coesão em suas ideias e estrutura narrativa. Mostra certo cansaço no terço final, quando tudo já pareceu resolvido. Peele criou a atmosfera de uma tensa e afiada alegoria sobre o ser humano, olhando para si mesmo e para a sociedade que ajudou a construir. Portanto, seria bem mais desafiador se essa grande metáfora não fosse explicada. Porque muita coisa relacionada à origem dos duplos não faz o menor sentido.
De qualquer maneira, Nós é um filmaço. É algo inédito no cinema em geral, por trazer uma nova perspectiva, uma nova voz para Hollywood, confirmando o talento de Jordan Peele como um mestre do terror.
Capitã Marvel
3.7 1,9K Assista AgoraCapitã Marvel é um filme divertido e inspirador. Num mundo onde existe o primeiro Thor, Hulk 2, Homem de Ferro 2 e Era de Ultron, este está longe de ser um dos piores do MCU. Brie Larson convence como Capitã Marvel/Carol Denvers. Ela tem uma atitude inédita para uma personagem feminina da Marvel no cinema. A confiança dela desestabiliza quem está ao redor. E é isso o que faz os haters a odiarem. Ela está se divertindo fazendo o papel e consegue transmitir essa vibração para a plateia. Tecnicamente, está tudo impecável, com efeitos especiais muito convincentes. O rejuvenescimento de Samuel L. Jackson e de Clark Gregg está incrível. E a recriação dos anos 90 é outro charme do filme. Há ótimas piadas sobre os perrengues tecnológicos da época. Infelizmente, os skrulls e krees são mal aproveitados. E a Marvel mais uma vez não entrega vilões realmente marcantes. Há um problema de ritmo lá pelo meio. O roteiro tem aqueles furos já esperados de grandes produções. E as cenas de ação não são o melhor do filme, e sim a interação entre os personagens, na comédia (Brie Larson, Samuel L. Jackson, o gato Goose e Ben Mendelsohn são hilários quando as piadas funcionam) e no drama, com destaque para Lashana Lynch, como Maria Rambeau, a piloto melhor amiga de Carol. O fato é que o filme da Capitã Marvel se tornou a Batalha de Yavin do MCU. Com direito a plot twist gigante, que vai mudar tudo o que pensávamos sobre o futuro desse universo e cena pós-crédito de cair o queixo. O grande desafio agora é saber como vamos continuar conectados a um super-herói tão poderoso.
Homem-Aranha: No Aranhaverso
4.4 1,5K Assista AgoraEstou chocado com Spider-Man: Into the Spider-Verse. Mesmo no calor do momento, afirmo sem medo de errar: é o melhor filme de super-herói de todos os tempos. A técnica de animação é incrível, praticamente uma HQ em movimento. O arco de Miles Morales é emocionante. Peter B. Parker é uma maravilhosa desconstrução do Homem-Aranha. E ainda de quebra tivemos um dos grandes super-vilões da telona: Prowler. Que tema é aquele! E a cena pós-crédito é hilária, abrindo possibilidade para uma baita continuação. Oscar merecidíssimo.
Histórias Que Nosso Cinema (Não) Contava
3.7 71O documentário mostra um outro lado da pornochanchada. Gênero do cinema nacional considerado menor, as comédias eróticas produzidas principalmente nos anos 1970 ganham uma releitura a partir da pesquisa da diretora e roteirista Fernanda Pessoa. Ela foi em busca dos trechos desses filmes censurados pela ditadura militar. O resultado é surpreendente. O filme é uma montagem dessas cenas cortadas, divididas por temas. Vemos muitas críticas aos governos militares, ao milagre econômico e aos interesses dos EUA. A diretora ressalta que a pornochanchada (termo rejeitado pelos próprios diretores dos filmes) tem uma maior variação de discursos do que poderíamos supor. Geralmente, o machismo, o racismo e o arrivismo são mostrados sem qualquer reflexão, reforçando esteriótipos. Mas houve obras que discutiram esses temas de forma mais consciente, subversiva até. Justamente por isso também é revisto o mito de que a pornochanchada tinha aprovação da ditadura, sendo um cinema essencialmente de direita. É chocante ver como a mentalidade da época tem uma conexão tão próxima com os tempos atuais. Isso mostra que o discurso do ódio é uma construção histórica. A herança maldita da ditadura é um assunto mal resolvido do passado que veio cobrar a conta agora.
Desculpe Te Incomodar
3.8 275Spike Lee. Godard. Michel Gondry. Jonathan Swift. Foram esses nomes que me vieram à cabeça assim que terminei de ver Sorry to bother you (2018), do roteirista e diretor estreante Boots Riley. Vocalista da banda The Coup, Riley mete os dois pés na porta do mainstream com sua sátira anti-capitalista. E o filme realmente não mostra uma versão de boutique de crítica social. O roteiro é inteligente ao escolher uma narrativa linear para criar conexão com um público maior e assim dar força às ideias e reflexões sobre conformidade e revolta. Na superfície, o filme parece uma ótima comédia e só, mas trata-se de uma produção de guerrilha. O diretor levou anos para tirá-lo do papel. Há um problema de ritmo, deixando o filme arrastado em certos momentos; o que poderia ter sido resolvido cortando algumas cenas. Mas isso é totalmente compensado pelos diálogos e as atuações. O interessante aqui é acompanhar a visão de um homem negro de como funciona a sociedade atual e do que seria uma revolução para ele. O que é ser uma pessoa negra que tenta sobreviver ao sistema? O que é ser uma pessoa negra que se beneficia do sistema? O que é ser ´uma pessoa negra que quer destruir o sistema? Em todas essas três possibilidades, a pessoa negra que tem que se esforçar mais, sofrer mais, pensar mais, trabalhar mais. Sorry to bother you mistura ficção científica e o fantástico para escancarar as brutalidades do capitalismo.
Roma
4.1 1,4K Assista AgoraRoma é tecnicamente perfeito. Eu não esperaria menos de Alfonso Cuarón, um diretor de filmes instigantes e, principalmente, generosos, cheios de empatia. Mas é triste ver que seu carinho pela protagonista de Roma é um embuste. Tudo bem que a crítica à elite mexicana apática aos problemas sociais do país é muito pertinente. Só que é revoltante acompanhar a devoção canina da empregada Cleo àquela família mimada que a ama por conveniência, por ela servi-los praticamente 24 horas por dia e cuidar deles tão bem.
Crianças Lobo
4.4 339Wolf Children é um slice of life com um discreto toque de fantasia. Conta a história de uma mãe humana que tem de criar dois filhos lobisomens no Japão contemporâneo. Longe de ser um filme de terror, o anime dá medo por ser muito humano. Na verdade, assim como a vida, há de tudo um pouco: drama, comédia, tensão, tragédia e esperança. O diretor e co-roteirista Mamoru Hosoda é um dos grandes mestres da animação japonesa. Sem dúvida, muito influenciado por Hayao Miyazaki, tanto na fluidez da animação quanto no desenvolvimento dos personagens. A luta de Hana, a mãe, para criar os dois filhos é cativante e bastante realista. Ela tenta cuidar da saúde, da alimentação e da educação deles, ao mesmo tempo em que precisa protegê-los de um mundo que pode machucá-los, física e psicologicamente. Acompanhamos o crescimento da mais velha Yuki e do caçula Ame com curiosidade, encanto e apreensão. Afinal, os dois passam pelos mesmos problemas de outras crianças e adolescentes em sociedade, mas com um elemento a mais que torna suas vidas mais difíceis. Não por culpa deles, mas dos outros que não os compreendem. Há também momentos de extrema beleza e emoção, quando as crianças aproveitam todo o potencial de liberdade por serem lobisomens, num inspirador contato com a natureza. Wolf Children é para todas as idades, mas, com certeza, são os adultos que vão melhor captar seus significados. Fala-se principalmente sobre identidade, pertencimento, sobre encontrar um lugar no mundo.
Vidro
3.5 1,3K Assista AgoraEu adoro Corpo Fechado. Pra mim, é um dos melhores filmes de super-heróis já feitos. Achei Fragmentado bom, mas nada demais. E Vidro é constrangedor. Em Corpo Fechado, a referência aos quadrinhos dá um tom metalinguístico muito interessante, uma reflexão sobre a figura do herói e o poder do indivíduo. Em Vidro, o mundo dos quadrinhos retorna de maneira rasa, apenas servindo para diálogos grandiloquentes e piegas e reviravoltas sem sentido. Ou seja, Shyamalan fazendo shyamalanzices.
Infiltrado na Klan
4.3 1,9K Assista AgoraInfiltrado na Klan é a volta por cima do mestre Spike Lee. Já fazia um bom tempo que ele não lançava um filme de impacto. Alguns temiam que ele nunca mais conseguisse retomar a velha forma. Com Infiltrado na Klan, Spike Lee dá mais um soco certeiro na cara da América racista. O filme é tecnicamente perfeito. A trilha sonora, arrasadora. As atuações estão acima da média. O roteiro mistura o humor safo já conhecido do diretor com a urgência da denúncia, ligando passado e presente, mostrando a construção histórica de um câncer social. O final do filme é um dos mais viscerais dos últimos anos.
Aquaman
3.7 1,7K Assista AgoraAdorei o filme da Mulher-Maravilha. E gostei de Aquaman. Se você odiou ou achou regular, não vou tirar sua razão. Comparado a outras superproduções, o filme de James Wan é uma bagunça, tem problemas de ritmo, personagens são subaproveitados e é um pouco longo. Mas é uma bagunça divertida e bonita de ver. O roteiro é geralmente sofrível, a maioria dos diálogos é constrangedora e as atuações são quase todas canastronas. Mas o grande mérito aqui é que todos os envolvidos abraçaram a cafonice da proposta sem medo. E essa cafonice dá certo porque não rimos dela, mas com ela. Vem embalada numa produção de primeira, com clima de anos 80. Os efeitos especiais e sonoros são impressionantes, mostrando um universo subaquático rico. As cenas de ação são brutais, muito bem coreografadas. A trilha sonora, usando sintetizadores, à maneira synthwave, e orquestra, é envolvente, ora ameaçadora, ora cheia de fantasia. O terceiro ato é o melhor dos filmes da DC desde O Cavaleiro das Trevas. É muito bacana ver um filme desse porte com um protagonista que não é branco. O Aquaman/Arthur Curry de Jason Momoa é carismático, charmoso, mas também um herói falho. Agora Jamens Wan ficou devendo nas personagens femininas. Elas são badass e mais espertas do que os homens, mas são colocadas em segundo plano em momentos decisivos. Aquaman é um filme B de luxo, o Flash Gordon do séc.21.
Too Late
3.8 29Too Late é um filme policial pequeno e imperfeito, mas realizado com paixão. Um tanto artificial na ambição do diretor estreante Dennis Hauck em reinventar a roda. O filme é dividido em cinco atos, e cada ato foi rodado em um take de vinte e poucos minutos. Isso mesmo! O que nem sempre dá certo, fica forçado, a técnica pela técnica. Mas Too Late tem qualidades. John Hawkes arrasa com sua versão neo noir de Philip Marlowe. Seu Mel Sampson é um detetive particular incorruptível (mas cheio de falhas) numa Los Angeles suja. A estrutura não cronológica garante boas surpresas, mesmo que torne os furos de roteiro mais evidentes. Os diálogos são muito tarantinescos, mas o elenco competente consegue torná-los mais interessantes.
A Ganha-Pão
4.4 272A Ganha-Pão é uma joia escondida no catálogo da Netflix. Uma animação de 2017, ao mesmo tempo, brutal e encantadora. No Afeganistão dominado pelo Talibã, Pavana é uma garota de 12 anos que precisa sobreviver num regime que oprime as mulheres e censura a liberdade de expressão. As mulheres devem ficar em casa e apenas sair na companhia dos maridos, irmãos e filhos. As punições para as desobedientes são severas. Quando seu pai, um ex-professor e atualmente vendedor de rua, é preso por esconder livros proibidos, Pavana, a mãe e a irmã mais velha se encontram numa situação dramática. Até comprar comida sozinhas se torna um risco. Então Pavana decide cortar os cabelos e se vestir de garoto. E um novo mundo se abre para ela. Com muitas possibilidades e perigos maiores. Esta é uma animação belíssima, com um senso de fábula criativo e profundo. Um conto de afirmação contra a crueldade e as injustiças do mundo real.
Você Nunca Esteve Realmente Aqui
3.6 521 Assista AgoraSe você vai assistir a You Were Never Really Here pensando em se divertir com mais um filme de ação, pode dar meia volta. A diretora e roteirista escocesa Lynne Ramsay pega todos os clichês dos filmes policiais e joga pela janela. Ela evita glamourizar o derramamento de sangue e mostra que outros tipos de violência podem ser mais cruéis.
Mais do que qualquer outra coisa, esse filme curto e tenso é um estudo da personalidade perturbada de seu protagonista, o ex-soldado, ex-agente do FBI e agora matador de aluguel Joe, numa interpretação soberba de Joaquin Phoenix. Contudo, You Were Never Really Here não é uma daquelas produções independentes preguiçosas que se concentram apenas na performance de um grande ator ou atriz. O filme é tecnicamente perfeito e as soluções narrativas, visuais e sonoras orquestradas por Ramsay são a outra força dessa espécie de conto de fadas, ao mesmo tempo, tocante e brutal.
A todo momento há uma variação entre cenas delicadas, de interações humanas afetuosas, com a mais pura violência, seja física, psicológica ou simbólica. A narrativa é um quebra-cabeça, um jogo proposto pela diretora para fazer o espectador pensar. Há peças faltando e cabe a nós preenchê-las.
Montagem e fotografia são elusivas, sugerem mais do que mostram. O som é outro personagem. A trilha sonora do guitarrista do Radiohead Jonny Greewood soube captar muito bem a atmosfera oscilante com cordas, percussão e batidas eletrônicas, compondo uma música ora suave, onírica, ora nervosa, em clima de pesadelo. A edição de som é incrível ao transformar cada som captado (programas de televisão, pessoas falando, veículos passando, a natureza, barulhos da cidade, tiros) em mais um elemento dramático.
Para quem se apaixonar pelo filme, recomendo a leitura da novela de mesmo nome, escrita por Jonathan Ames. É um interessante complemento para conhecer melhor o passado e as motivações dos personagens. O filme não é adaptação tão fiel. Inclusive, considero este mais um raro caso em que o filme é melhor do que o livro. O final elaborado por Ramsay é o último tampa na cara dessa obra-prima.