Só amor, só carinho pelo centro do nosso mundo... CENTRAL DO BRASIL é um verdadeiro manifesto brasileiro: da nossa gente, da nossa cultura, do nosso país. Do centro do Rio a uma cidadezinha no interior do Nordeste, Walter Salles conduziu talvez o seu melhor longa com grande maestria, bonita de se ver e sentir. O filme, que conta com a soberba Fernanda Montenegro (e uma atuação nada mal do estreante Vinícius de Oliveira), parte de uma história aparentemente simples para um olhar importantíssimo sobre o nosso povo, seja pela abordagem ao analfabetismo e à pobreza, ou até à riqueza cultural que o nosso povo tem – e nunca vai perder. Este filme é tão bom que torna quase insuportável o vira-latismo de alguns ao desmerecê-lo: trata-se do longa que o Brasil levou pro Oscar daquele ano, como Melhor Filme Estrangeiro, e com Montenegro sendo indicada a Melhor Atriz. Não é pouca coisa para uma produção brasileira conquistar, ainda mais contando a nossa história e os nossos lugares no chamado ‘terceiro mundo’. CENTRAL DO BRASIL é um dos grandes filmes que o nosso cinema fez desembocar – de fazer rir e chorar com a mesma eficácia, retendo-nos por todo o seu percurso e sedimentando-se em nossas memórias sem fazer esforço. Walter Salles foi um artista muito feliz nesta produção; e as histórias-testemunhos dessas pessoas ficarão para sempre guardadas em nosso cinema – e naqueles que o encontraram verdadeiramente também. Perfeito. Assista o quanto antes!
“Dora: Nunca deixe de roubar mortadela. Josué: Eu DETESTO mortadela.”
O robustíssimo cinema de Pedro Almodóvar originou outra pérola cinematográfica que, para hoje, apresenta problemas muito sérios. ÁTAME! é a oitava instalação em longa-metragem do diretor espanhol Pedro Almodóvar, que aqui já era notável pelo seu cinema cheio de cores vivas e roteiros (cada vez mais) complexos. Antes de chegar a argumentos do calibre de “Má Educação” ou “Volver”, Pedro produziu em 1990 um dos filmes que viraria sua marca registrada – justamente por suas cores e decisões não-convencionais, sobretudo para com o protagonista Ricky. Apesar de possuir atuações e design de produção excelentes, ÁTAME nos deixa ao final com um gosto ruim na boca...
O grande problema está na sua ética/política: um homem que sequestra uma mulher e diz querer que ela se apaixone por ele já seria questionável por si só, mas o que resulta desta estranha relação é algo que simplesmente soa errado, questionável, machista até. Segue a linha de raciocínio de que, se qualquer homem insistir e ameaçar por tempo suficiente, ele terá a mulher que quiser, não importando como ela se sente sobre ele; é assim que ocorre com Marina Osorio, a personagem central mas pouco-explorada deste ‘romance’. Parece que o filme é como que uma desculpa para prender e amordaçar a atriz – como num fetiche mesmo – a começar pelo pôster. Não se deve questionar o fenômeno que ficou conhecido como Síndrome de Estocolmo, mas é evidente que “Ata-me!” não oferta muito para construir o seu efeito, uma vez que, quase que de uma cena para outra, toda a situação muda na cabeça de Marina e a partir de agora seu ela se sujeita conscientemente a ter uma relação com o seu abusador (bem no estilo daquele filme “Elle”, de Paul Verhoeven).
De um modo geral, é um longa que entretém, mas que causa muito desconforto por essa decisão. Como uma produção independente, não vai tão longe, e como um filme do Almodóvar, não está entre os melhores. Em seu lugar, pegaria facilmente “Má Educação” ou “Volver” mesmo para assistir. Este aqui não funciona tão bem assim.
“Ricky: Tentei falar com você, mas não me deixou. Por isso tive de raptá-la, para que me conheça melhor. Tenho certeza que se apaixonará por mim, como estou apaixonado por você.”
Aquela história do falso-anarquismo, né? SUCKER PUNCH, longa de Zack Snyder (“300”, “Batman vs. Superman”) é pomposo e explosivo, mas entrega pouco de sua própria mitologia, e resulta num fiasco tanto narrativo como de investimento (já que o filme basicamente só se pagou e olhe lá). É difícil um diretor dizer que seu filme é uma “crítica à cultura grega de sexualização de mulheres” quando as protagonistas da história usam roupas curtas e fetichizantes quase todo o tempo – mais ou menos o problema da Arlequina, em “Esquadrão Suicida”, só que quatro vezes maior. A trama, que se propõe “feminista” e “libertadora”, conta uma história simplória, repetitiva e previsível, com atuações fraquíssimas e ainda com a pinta de um “grande épico”. A trilha e o design de produção realmente ajudam na estética do longa, mas isso não o faz ir muito longe: há elementos demais contra o filme, em especial a edição, a direção das atrizes e a fetichização exacerbada pela qual todas passam. Parece que, para agradar seu público de adolescentes, Snyder investiu num filme quase steampunk, pseudo-feminista e anarquista, buscando representar o “girl power” através de minisaias, lingerie e mulheres lindas empunhando armas letais, ou, como Snyder mesmo definiu, “Alice no País das Maravilhas com metralhadoras”. A versão estendida ainda consegue piorar (por justamente estender) este fiasco. Os pontos positivos não funcionam a ponto de salvá-lo porque os negativos gritam demais, a todo o tempo, o quanto que este filme é só moldura bonita. Um bom roteiro, com uma direção menos focada na bunda dessas meninas e com uma verdadeira revolução ao final teria sido mil vezes mais efetivo (como mensagem e como cinema) do que SUCKER PUNCH realmente foi. Péssimo. Péssimo mesmo. Fuja deste aqui!
“Blue Jones: Perdeu a vontade de brigar, foi? Baby Doll: Não, acabei de achá-la.”
Um filme para muito além da tal da “especulação imobiliária”... Kleber Mendonça Filho volta ao cinema depois do estarrecedor “O Som ao Redor”, com um filme robusto, intenso e dolorosamente cru – e por isso mesmo, profundamente real e perturbador. Sônia Braga trabalha com a maestria que só uma atriz muito experiente conseguiria ter, e os personagens antagonistas (porque são vários, nunca apenas um) são retratados fielmente, com o deboche e a cara “guapa” que na realidade todos eles têm mesmo... Aqui Kleber sintetizou antagonismos fundamentais para a compreensão de um Brasil contemporâneo e em constante mudança: o avanço da tecnologia contra a resistência analógica, "antiga"; os baby-boomers contra a geração Y; a privatização contra o espaço privado, a pessoa jurídica contra a pessoa civil, e por aí vai... O filme inteiro é recheado de contrastes, e elementos que evidenciam como é a vida neste “aquário”, seja por meio do uso constante do azul (em quase toda cena), aos simbolismos mais pesados lá pro final; uma vida em desequilíbrio externo, por um agente da violência que advoga sempre em vontade própria, no sentido da destruição da história, da memória afetiva e do lugar onde nasceu, cresceu, viveu (e morrerá!) uma família do Brasil. É uma produção que gera debates extensos, mas que para o fim desta resenha sintetiza-se num único imperativo: assista! Você tá é perdendo tempo se dedicando a outro cinema! Kleber Mendonça Filho é um dos grandes nomes de sua geração – e que ecoará para muito depois do tempo de hoje; pode escrever aí! Filmaço.
“Clara: Então quando você gosta, é vintage; quando não gosta, é velho.”
Pesado, denso e profundamente depressivo... BIUTIFUL é um dos grandes longas do mexicano Alejandro Iñárritu, o mais conhecido de sua primeira fase (antes de mudar sua pegada) e talvez o mais depressivo deles. O enredo conta a história de Uxbal, um criminoso decadente que vê tudo ao seu redor desmoronar gradualmente, junto de sua saúde e crescente solidão. Javier Bardem mostra, mais uma vez, por quê é considerado um dos maiores atores de sua geração, num trabalho absolutamente impecável, que Iñárritu dirige com grande destreza. É um filme plural porque trata de muitos assuntos complexos ao mesmo tempo – a situação dos imigrantes, o tráfico e o vício em drogas, a traição num casamento, a ética de um homem fora da lei e a espiritualidade de um altruísta para com pessoas enlutadas. Tudo isso é abordado largamente ao longo dessas quase duas horas e meia de ação interna, hermética, fechada-em-si. Quase todo o filme é no silêncio dessa tristeza, dessa depressão dolorosamente humana pela qual passa Uxbal – e é na força dessa tristeza que o filme estabelece suas firmes bases e nos leva até o seu final derradeiro... Pessoalmente, prefiro seus longas mais recentes, o que não invalida a força desta instalação. A história de Uxbal é a de muitas pessoas, o que não deve ser esquecido. A realidade é inconsolável, mas no cinema ela é poesia. E a poesia resiste aqui.
“Ana: Pai! Como se escreve 'beautiful'? Uxbal: Desse jeito, como a palavra soa. B-I-U-T-I-F-U-L.”
Um filme divertido e super proveitoso sobre a política feminina nos anos 60. THE HELP é o premiado longa de Tate Taylor, uma adaptação do livro de mesmo nome de Kathryn Stockett. Trata-se de uma análise social da situação da mulher num momento muito específico da história estadunidense; ambientado no Mississipi dos anos 60, “Histórias Cruzadas” analisa os recortes sociais de mulheres brancas e negras pelas estruturas de poder que ordenam suas relações. As “madames” e as “criadas” compõem um espectro riquíssimo de vivências muito diferentes entre si – como que justificando a necessidade de mais de um feminismo, para dar vasão às experiências tão diversas que elas vivem. Enquanto algumas mulheres lutavam por votos e maior participação política, outras, de uma etnia diferente, lutavam para ter o direito de trabalhar para sobreviver. Enquanto umas buscavam status e ascensão social através de bens de consumo, outras consumiam só o necessário para viver, não tendo acesso aos mesmos recursos que elas. Enquanto umas são as “senhoras”, outras são as “empregadas”, hierárquica e historicamente postas de lado na luta por direitos, por muitos e muitos anos. Leituras sobre as heranças para o povo negro sobre este tipo de trabalho são muitas, e este filme consegue fazer desembocar várias reflexões a este respeito. Embora tenha elementos da cultura “white savior” e do protagonismo branco em detrimento do negro (que é, por fim, o tema do filme), THE HELP se sai como uma baita produção, para se rever várias vezes. Consegue ser divertido, informativo e muito bem atuado, em especial pelos fantásticos trabalhos da Viola Davis e da Octavia Spencer. Muito bom! Assistam!
“Aibileen Clark: You is kind. You is smart. You is important.”
Meh. LE TEMPS DU LOUP é outro dos longas de Michael Haneke que parece um pouco fora de forma. Desta vez, o diretor austríaco destrincha a situação de uma família burguesa num contexto sitiado, distópico, quase auto-destrutivo: a miséria coletiva numa área rural da França. Um evento misterioso impede o suprimento de todo o país e as pessoas que sobrevivem passam a viver numa situação nômade, sem valores civilizatórios ou humanitários. Haneke é conhecido por seus filmes longos e tediosos, em que o esvaziamento de sentido pela apropriação capitalista é uma realidade irreprimível, e aqui não é diferente. Embora não se passe totalmente no ambiente privado, “Tempos de Lobo” é o primeiro longa do diretor que aborda a coletividade de forma mais externa e ampla, nas ruas e estradas, e com a maior quantidade de atores. A todo momento, porém, somos desconvidados a empatizar por essas pessoas que, a cada dia que passa, se mostram mais hostis e desesperadas por sobreviver. Sexo em troca de água, escambo de todos os bens materiais (agora inúteis), o alimentar-se de cadáveres na estrada e o assassinato como método absoluto de imposição do poder: o Lobo é esta fome, este caminhar a esmo, esta espera inadiável. Haneke sintetizou, em 2003, a sua versão de “Esperando Godot”, que, aqui, se manifesta no trem com mantimentos, uma esperança indubitável de prosperidade que parece nunca chegar. Mesmo assim, o longa, em si, não vai mais longe. O choque da cena inicial é seguido por um marasmo quase absoluto, em que nem o amor nem a violência encontram grandes expressões. A apatia das duas horas seguintes contrasta muito os minutos iniciais, e torna a experiência repetitiva e até pouco proveitosa. Ao contrário de filmes dele como “O Sétimo Continente” ou “Amour”, em que o amor e a violência coexistem e efetivamente resultam em algo, “Tempos de Lobo” não só não chega perto como também não adiciona tanto à filmografia já consolidada do diretor. Não é um dos que eu indicaria – provavelmente um dos outros dois apresentaria o seu trabalho melhor. Uma experiência mediana, afinal. Infelizmente.
“Eva: Sei que pareço confusa, e na verdade estou; por isso mesmo estou escrevendo: porque tudo é muito confuso e espero poder entender melhor escrevendo. Quero te contar para tentar passar uma ideia de como a vida está sendo agora.”
Surpreendentemente bom. THE INVISIBLE MAN é o novo longa de Leigh Whannell (responsável pelas famosas trilogias “Jogos Mortais” e “Sobrenatural”), que retorna às telonas com uma releitura do conto homônimo de H. G. Wells. Aqui, porém, a trama recebe um novo elemento, muito bem utilizado: a temática da violência doméstica e a dinâmica de um relacionamento abusivo. Elisabeth Moss (a essa altura, uma verdadeira deusa da atuação) carrega o filme nas costas e o elenco secundário a sustenta embora não faça mais que o necessário. Aqui e ali, apesar de algumas cenas mal executadas (em especial aquela quando ela sai da casa para procurar seu assediador), o filme apresenta bons jumpscares, não cai em redundâncias e evita absurdos narrativos, comuns inclusive nas trilogias que fizeram este diretor conhecido. Há pouco exagero, e o longa é, num geral, crível – até porque, esta pesquisa sobre a invisibilidade já é antiga, e tem encontrado na Física alguns avanços impressionantes... Não sendo tão fantasioso assim, “O Homem Invisível” é um bom suspense. Aborda assuntos como a “histeria das mulheres” e o assédio pelo qual elas passam, sobretudo em casos de relacionamentos abusivos e desequilibrados. Moss, embora nunca submissa, encarna verdadeiramente a mulher que toma as rédeas de sua situação e responde à altura todo o abuso pelo qual passou, e ainda em grande estilo. Um bom suspense! Vale a pena conferir.
“Cecilia Kass: Ele disse que em qualquer lugar que eu fosse, ele ia me encontrar, andar até mim, e eu não conseguiria vê-lo.”
Um filme absolutamente péssimo. Em todos os sentidos – na abordagem, nas montagens, nas entrevistas, em tudo... Tudo em VOYEUR funciona de maneira capenga e se arrasta até o seu desfecho insatisfatório sem cativar o público. Era para ser um documentário sobre um caso emblemático coberto pelo celebrado jornalista Gay Talese: Gerald Foos, o dono de um motel que durante anos espiou seus hóspedes pela ventilação do prédio. Entretanto, o filme se perde em si mesmo nos primeiros 20 minutos e muda o foco para 1 – a matéria que Gay escreve sobre ele e 2 – para o lançamento do livro que cobre a sua vida, também escrito pelo jornalista. Nenhum dos assuntos é minimamente interessante, e o tempo em tela é consumido por situações péssimas, em que o jornalista é convidado repetidas vezes a conversar com o voyeur sem efetivamente discutirem, até que ele decide jogar tudo pro alto e acusa os próprios diretores/câmeras de estarem fazendo um trabalho lixoso de informação (ele literalmente aponta o dedo pra eles e fala isso). E para piorar, o documentário nunca adereça a culpa do crime de invasão de privacidade que Foos cometeu repetidas vezes naqueles anos, e da situação em que ele foi cúmplice de um assassinato – tendo observado uma mulher ser morta em seu motel e fingido não ter visto quem o fez. Este doc é quase uma apologia ao cara, e um trabalho dúbio por justamente passar o pano em muitos elementos problemáticos desta história – como se ninguém da produção soubesse sobre que tipo de abuso de poder estão, de fato, falando. Péssimo, absolutamente péssimo. Passem longe.
"Gay Talese: Não dá pra acreditar nessa história, é impossível inventar essa história."
Um filme ok. Outra das comédias românticas dos anos 90/2000 que viralizou na época, e que, vista hoje, apresenta sinais característicos de envelhecimento. HOW TO LOSE A GUY... é sobre uma aposta entre duas pessoas, sem que elas saibam, para que uma namore com ela e a outra queira largá-la – um paradoxo instigante e gostoso de assistir. Kate Hudson e Matthew McConaughey têm boa química e o elenco secundário sustenta bem essas duas horas de um romance bobo e um pouco previsível. Porém, como em casos semelhantes (nas comédias inglesas da época), há, aqui e ali, piadinhas preconceituosas, e alguns temas são só datados mesmo – embora tenhamos que pensar (sempre!) o filme em seu contexto histórico também... Para além disso, é um divertimento simples e direto ao ponto. Não vai mais longe que o raso – e nem se propõe a fazê-lo. Um filme ok; faltou a ele talvez um pouco mais de roteiro e reviravolta, mas num geral desempenha seu entretenimento de maneira razoável. Ok.
“Andie: Você não pode perder algo que nunca teve.”
Um profundo – e gráfico – filme sobre preconceito e auto-aceitação. PIELES é o primeiro longa de Eduardo Casanova, diretor espanhol que tem ganhado espaço nos festivais de cinema da Alemanha e do próprio país. Aqui, Casanova trabalha bem a estética e filosofia por trás das histórias de seus personagens, que nasceram com deformidades físicas e que buscam, resumidamente, por aceitação (de si mesmos e dos outros). Sendo um filme múltiplo, pode ser lido a partir de cada uma de suas histórias, que se chocam e conversam de maneiras diferentes; em PIELES, Eduardo sedimentou o universo que já vinha trabalhando em seus curtas e fixou a forma para dar liga ao mesmo. Embora por vezes possa parecer “simples” ou “evidente” demais, PIELES certamente surpreende em algumas de suas escolhas. Além de efetivamente contar enredos independentes que se unem em pontos específicos, a caracterização das personagens é incrível – de convencer mesmo que algumas daquelas pessoas são assim, como naquele clássico de Tod Browning “Monstros”, e que, como este, discorre sobre quem são, de fato, os “monstros” da história... A narrativa que supera o preconceito, ou que pelo menos faz uma resposta à altura dele, emociona e proporciona até certa catarse em quem assiste pela primeira vez – trata-se de um longa diferente, e durante ele somos o tempo todo convidados a empatizar pelos seus personagens (que tanto sofrem). Valeria a pena só pela mensagem, mas vai além disso: é bom cinema e tem bom gosto para os tons de rosa. Um profundo e gráfico filme sobre preconceito e auto-aceitação. Assista!
“Ana: Você não gosta de mim, mas sim da minha deformidade.”
Clássico absoluto do expressionismo alemão, “Metrópolis”, que em breve fará 100 anos de estreia, continua impressionando pela qualidade do cinema que fez desembocar e pelos efeitos especiais, que, para a década de 1920, simplesmente não existiam/não tinham paralelos concorrentes. Um dos maiores sucessos de Fritz Lang conta a história de Freder, o filho de um magnata da metrópole, e o seu envolvimento com o movimento operário, que sustenta esta mesma metrópole. Tomando consciência de seus privilégios e empatizando com o “povo das profundezas”, Freder travará uma luta para fazer justiça a este povo, que sustentou até então o seu estilo de vida desregrado. METROPOLIS tem os seus momentos, mesmo que, para hoje, seja um pouco difícil acompanhar o pacing de um filme lento de 2 horas e meia, preto-e-branco e mudo. O formato pode ser distante do que hoje se consome como cinema, mas um dia chegou a ser o ápice da produção europeia – estima-se que este tenha sido o longa mais caro da história até então. A simbologia do Messias, o envolvimento de Maria em seu anúncio e as referências bíblicas clássicas (Babel, o Apocalipse de São João e os pecados capitais) são elementos muito fortes aqui. Dá para entender de onde surgiram, por exemplo, sagas geopolíticas inteiras como Star Wars e Duna, referências da ficção científica. O visual do C-3PO, aliás, em nada perde para a lendária Ginoide deste filme. Embora tenha por vezes cenas longas demais (esta inclusive não é a versão estendida, e sim a “original”), METROPOLIS é um filme incrível. Exige do espectador certo desprendimento de regras de continuidade, e paciência para as conduções mais vagarosas; mas mesmo assim, é um show de cinema, que definitivamente merece ser visto, para que se conheça um visual futurista que, hoje, nem é tão futurista assim... É quase como se nos tornássemos, no fim das contas, na própria Metrópole. Nós somos a Metrópole.
“Maria: O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração.”
Uma análise minuciosa, embora partidária, da atual política brasileira, feita por uma exímia documentarista. DEMOCRACIA EM VERTIGEM é o segundo filme a que assisto da Petra, tendo visto primeiro “Elena” no ano passado. Os seus documentários, em caráter narrativo-pessoal, se põem muito em primeira pessoa diante dos fatos – e ela é alguém que teve acesso a muitos fatos importantes em primeira mão. Sensível e cuidadoso, o novo da Petra pode ser muitas coisas, menos “injusto” ou “mentiroso”, como se tem dito por aí. Este longa traz imagens arrebatadoras do momento da prisão de Lula, e do impeachment de Dilma Rousseff, segundo eles próprios. Para além disso, entrevistas com os deputados que votaram em favor do impeachment e depoimentos dos protagonistas dos escândalos dos últimos quatro anos: Sérgio Moro, Nestor Cerveró, Aécio Neves e Janaína Paschoal, por exemplo. Cobrindo a história da política desde o lento processo de redemocratização do Brasil, Petra destrincha de que maneiras o patriotismo e o anti-petismo se ligaram na intenção de demover qualquer “esquerdista” do seu direito de manifestação/resposta, para a promoção de um único candidato, capaz de unificar a direita e firmar de vez a polarização no país. As passeatas de 2013, a operação lava-jato, os panelaços, as prisões dos presidentes: como um diário recontado por sua autora, “Democracia em Vertigem” é o tipo de filme que nos arrebata pela força de sua análise, mesmo que, para uma pessoa não-brasileira, talvez não seja o melhor longa para se compreender a nossa estrutura. Em se tratando de Brasil, para os próprios brasileiros, este aqui é O filme sobre os nossos últimos tempos. Junte-se a ele “O Processo”, da Maria Augusta Ramos, e temos um panorama de como foi, para a esquerda num geral, a gravidade da situação do que aconteceu antes do governo atual. Trata-se de um documento do nosso tempo. É importante que seja visto pelo menos uma vez. Pelo menos uma.
“Petra Costa: Um escritor grego disse que a democracia só funciona quando os ricos se sentem ameaçados. De outra forma, a oligarquia toma posse. De pai para filho, de filho para neto, de neto para bisneto, e assim sucessivamente.”
Cinematograficamente, é um filme excelente. Agora, eticamente... PARIS, TEXAS é um dos longas mais conhecidos de Wim Wenders. Numa condução sensível, porém firme, a história segue o misterioso reaparecimento de Travis, um homem que surge num deserto do Texas depois de desaparecer por anos – mudo e sem lembranças. A premissa do filme (excelente, por sinal) acompanha a trajetória de seu irmão, Walt, na tentativa de compreender e abrir espaço para o homem de volta na família (na sua e na dele). Rapidamente Wenders dispõe informações que nos fazem compreender que há algo a mais por trás desta história, e que culminará na icônica sequência da cabine, tanto referenciada pelo cinema internacional mais tarde... Os enquadramentos e a trilha sonora de um simples violão de aço formam uma dupla fantástica na estética “desértica” que Wenders procura aqui. A estrada leva ao autoconhecimento, e esta é a jornada de um homem em busca do que ele foi – e do que ele será a partir de agora. A polarização azul-vermelho é incrível, e o uso do amarelo/bege, em determinadas cenas, é simplesmente ideal – como que dando uma terceira alternativa à história aqui contada, se o protagonista fosse uma pessoa diferente... No entanto, esta é a parte mais frágil do roteiro: o seu desfecho.
Travis passa por uma espécie de “iluminação” interior e busca resolver os conflitos que o levaram àquele mesmo êxodo inicial. O filme não parece saber como resolver a questão parental que ocorre ali sem envolver, inexoravelmente, a covardia de um homem que decide (de novo) não ser pai. Tendo passado a conhecer seu filho Hunter, e retomado o contato com a ex-mulher Jane, era pelo menos ético que Travis resolvesse cuidar do filho também – mesmo que separado dela. Por que outro motivo o filme haveria de existir, senão para modificar o arco de seu protagonista perdido e sem memória? De qualquer forma, é assim que ocorre: Travis decide absolutamente do nada que “lugar de filho é do lado da mãe” e devolve a criança a Jane sem querer lidar com a situação que ele mesmo criou. Foge no mesmo carro, poeticamente, com o sol banhando suas costas e a trilha encerrando o longa com um acorde consonante...
Trata-se de um desfecho, no mínimo, questionável. E o destaque que tanto se dá à personagem de Jane, no pôster e no próprio filme, parece mais um chamariz por sua beleza que pela relevância que ela de fato tem na história – uma vez que aparece, mais ou menos, só na meia-hora final do longa, e ainda secundariamente. É palpável como a personagem da mãe é subdesenvolvida para priorizar o embate masculino entre assumir ou não assumir a responsabilidade por seus atos. Infelizmente, escolher a segunda opção não é o melhor. Talvez se tivéssemos mais de Jane, e menos protagonismo “exclusivo”, o filme seria outro – e mais justo, também. E, por isso mesmo, melhor. No mais, é uma referência – mas para ser assistida com as devidas ressalvas.
“Travis: Por quanto tempo estive fora, você sabe? Walt: Quatro anos. Travis: Quatro anos é muito tempo? Walt: Bom, é muito para um pequeno menino. É metade da vida dele. Travis: Metade da vida dele.”
É um filme ok, mas não justifica a própria existência – caça-níquel dos clássicos. TOY STORY 4 é a sequência da famosa trilogia da Disney-Pixar, que se pretende um final “mais justo” à amizade dos carismáticos protagonistas Woody e Buzz Lightyear. Dando continuidade à história dos brinquedos, o filme se passa logo após Andy doá-los a Bonnie, no talvez mais belo gesto de maturidade e altruísmo que a trilogia foi capaz de fazer desembocar. Tendo como premissa inicial o desconforto de Woody em não ser mais o brinquedo favorito, o longa vai acompanhar todo o seu processo de auto-aceitação – e tudo o que isso envolve em relação a seus outros amigos brinquedos. O filme, porém, apresenta personagens novos rápido demais; há muita informação o tempo todo, e vamos sendo introduzidos quase a cada instalação a uma nova gama de brinquedos. Tentando ser talvez mais dinâmico que seus antecessores, este filme lembra aquela quarta produção da trilogia “ALIEN” – depois que tudo acabou no terceiro filme, inventaram de fazer um quarto para “dar uma finalização melhor” e que, no fim das contas, só ficou para trás no tempo (e no espaço, no caso). É assim que se vê um filme que teima em continuar uma história que já tinha sido encerrada na trilogia principal – “X-Men: Apocalipse” e “Jogos Mortais 4” são outros bons exemplos disso. Este volume sobra na prateleira como um brinquedo sem a sua caixinha de voz. Vai ter marcado só por ter recebido o Oscar de melhor animação e levar o nome da franquia – embora já fosse suficiente que os volumes 1 e 3 já tivessem levado a estatueta. No mais, é um filme descartável no sentido narrativo – como finalização, é difícil alguém considerar este um longa mais completo que o volume três. E entre eles, fico com o outro sem o menor receio. Não indico.
"Garfinho: Eu não sou um brinquedo, eu fui feito para sopas, saladas, talvez chili, e depois pro lixo. Liberdade!"
Talvez o mais impressionante filme produzido no ano passado. “1917”, o novo longa de Sam Mendes (que dirigiu “Beleza Americana” e alguns filmes da trilogia “007”) é um filme simples mas absolutamente desafiador; seguindo a trajetória de dois cabos anônimos num front da primeira guerra mundial, o longa, que se pretende um plano-sequência gigantesco, impressiona mesmo aqueles que já esperam dele um filme impactante. O recurso do plano-sequência (mesmo que cortado aqui e ali) é poderosíssimo: quase nunca há um respiro, um momento de paz em meio ao caos. As atuações de todos são ótimas (em especial a de Benedict Cumberbatch, uma grata surpresa aos que já conhecem o seu trabalho); o filme ainda mostra, em vários momentos, por quê mereceu o Oscar de Melhor Fotografia de seu ano. Para além da questão do horror da guerra, o desalento de uma nação e seu povo (que sofre) ecoa poderoso aqui. “1917” é um longa que marca justamente porque nos convida a conviver, mesmo que por duas horas somente, com o medo de uma morte iminente e não-anunciada – o medo, no fim das contas, puro, que reside em qualquer guerra de qualquer época. Sendo sobre a primeira mundial, ainda tem isso: foi uma guerra terrestre, em que aviões não eram tão comuns e todo avanço era praticamente a pé ou a cavalo. Que uma câmera siga os dois cabos insistentemente já é ambos um desafio e uma agonia só – agora imagine-o com os melhores efeitos especiais à disposição de hollywood... É um filme muito bem feito. Super vale a pena! Assistam.
“Coronel MacKenzie: Eu esperava que hoje fosse ser um dia bom. Esperança é uma coisa perigosa.”
Uma gracinha, apesar de um pouco perigoso... Taika Waititi, diretor do recente blockbuster “Thor: Ragnarok”, retorna à grande tela em 2019 com o indicado ao Oscar “Jo Jo Rabbit”. O filme, estrelado pelo estreante Roman Griffin Davis, é uma comédia fantasiosa no contexto da segunda guerra mundial, com a ascensão e o declínio de Hitler na Alemanha, como vistos por um simpatizante da Juventude Hitlerista da época. Embora seja um longa muito descontraído e engraçado, há de se ter uma preocupação em não naturalizar o desrespeito ao povo judeu – encarnado aqui pela excelente Thomasin McKenzie. Trata-se de uma comédia, é claro, mas é sempre bom lembrar que há limites saudáveis para os temas e maneiras de abordá-los numa piada, sobretudo se for no contexto do Holocausto, ou qualquer outro tipo de extermínio em massa. Mesmo assim, “Jo Jo Rabbit” é um grande filme: leve, divertido e com uma ‘lição de moral’ super apropriada contra a xenofobia. Em dias como os de hoje, por vezes, este longa nem parece uma comédia – e sim a realidade na cabeça de algumas pessoas, como o próprio Jo Jo pensa o povo judeu no começo do filme. Em terras e tempos em que o preconceito étnico e a discriminação reinam soberanos, é de muito bom tom que haja, no cinema, respostas boas como esta, no sentido de revisões e alternativas para pensar o outro em seu contexto, sem com isso desrespeitá-lo ou tolhê-lo de seus direitos básicos e humanitários. Uma gracinha!
“Jojo Betzler: O que eles fizeram? Rosie: Eles fizeram o que puderam.”
Caramba... “Coringa”, o novo longa de Todd Phillips, diretor da trilogia de comédia “Se Beber Não Case”, passa longe (ainda bem!) de seus trabalhos anteriores. Com uma ambiência crua e dolorosamente cruel, JOKER aborda o pano de fundo para o surgimento do mais conhecido vilão das HQs, contextualizando seu crescimento em Gotham City e ainda trazendo, aqui e ali, aparições de seu histórico rival, ainda que sem uniforme... JOKER tem uma das mais poderosas performances de Joaquim Phoenix, merecedor do Oscar de Melhor Ator – além de inúmeros prêmios na categoria. Tratando-se de um filme biográfico do vilão, era de se esperar que houvesse muita luta e maldade em geral, mas o que se recebe não é exatamente isso... JOKER é um longa quase humanista sobre o arqui-inimigo do Batman, que busca compreender como ele vivia e o quê o fez ficar assim. Mesmo que seja bastante violento, o maior recado do filme não é a “revolução dos palhaços” ou algo do tipo – mas o que pode ocorrer a alguém marginalizado e sem a oportunidade de ser numa metrópole do futuro. Não sendo um filme comum de super-vilão, “Coringa” é uma leitura humanizadora do personagem e de seu arqui-inimigo, como fez “Malévola” alguns anos antes. Longe de ser o melhor longa da DC Comics, de qualquer forma é muito bem feito, bem produzido e chega num lugar absolutamente inesperado, mesmo que para todos seja evidente desde o primeiro minuto. É sobre a evolução do mal no ser humano, em suas variadas formas, e quão fundo este mal pode ir. Trata-se de um filme denso, mas que deve ser conferido pelo menos uma vez. Vale a pena!
“Arthur Fleck: A pior parte sobre ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse uma.”
Um filme... Mediano. O precursor do indie argentino “Medianeras” é muitas coisas; um longa que retrata a decadência/sobrevida do amor líquido na era pós-moderna, um manifesto pela realidade quente em contraponto à frieza das telas, e até uma das raízes da qual surgiu, entre outros filmes, “Ela”, de 2013. O afã porno-romântico no qual se encontram Martín e Mariana é uma ferramenta para ilustrar o esvaziamento de sentido que resulta da apropriação capitalista desenfreada, numa metrópole onde pessoas não encontram amor umas nas outras, mas se contentam com comportamentos masturbatórios-sentimentais que os ajudam a sentir-se menos sozinhos, mas não menos solitários. Outros longas abordaram o tema, de maneira inclusive melhor e mais profunda, mas esta é a sua forma na Argentina, com seus elementos regionais e suas questões culturais próprias. Mesmo assim, à altura de 2020, com tanto que já se falou sobre o que é aqui abordado, “Medianeras” se sai um filme um pouco “fora”: provavelmente inovador à época, e merecedor dos prêmios de recebeu, hoje soa mais como um filme repetitivo e que não foi tão longe quanto antes talvez tenha sido tomado. Por vezes raso, por outras só entediante mesmo, “Medianeras” imprime uma crítica desalentadora embora esperançosa sobre os relacionamentos na contemporaneidade – e quem hoje curte a estética “mumblecore” e filmes quase niilistas e depressivos, com certeza vai gostar muito deste aqui. Pessoalmente, não é o tipo de produção que mexe comigo. Mediano.
“Martín: A internet me aproxima do mundo, mas me distancia da vida.”
Bem interessante... O grande trunfo de “Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal” é certamente o ponto de vista do famoso serial killer americano pelos olhos de sua namorada, Liz Kloepfer. Até então, nunca havia surgido uma produção que abordasse especificamente a relação conflituosa entre ela e Ted – embora, neste instante, tenha acabado de sair uma série documental com a própria Liz Kloepfer falando sobre o assunto (“Ted Bundy: Falling for a Killer”). EXTREMELY WICKED... é um longa bem conduzido pelo Joe Berlinger, que dirigiu também a excelente série documental sobre o assassino, “Conversando com um Serial Killer: Ted Bundy”. Embora este seja muito mais ficcional/especulativo que a série, o longa se sustenta bem e ainda traz Zac Efron com uma ótima abordagem ao personagem – talvez o primeiro papel realmente desafiador que Efron encarou na carreira. Com boas performances do restante do elenco e uma robusta produção, este é um bom entretenimento (embora descompromissado com a realidade dos fatos entre os dois). Espero a oportunidade de conferir a série documental com a própria Liz, para ter uma melhor noção do que foi este relacionamento na vida dela. No mais, é um longa válido apesar de fictício, mas não deve ser considerado uma leitura absolutamente fiel do caso Bundy – sobretudo no que tange a sua esposa, Carole Ann Boone, aqui retratada meramente como uma fiel incurável e sem noção. Um bom filme – mas só.
“Ted Bundy: Pessoas não entendem que assassinos não saem na escuridão com grandes dentes e saliva descendo por seu queixo. Pessoas não entendem que há assassinos perto delas: pessoas que elas gostavam, amavam, viviam com elas, trabalhavam com elas e admiravam podem ser no dia seguinte a pessoa mais demoníaca possível.”
Um dos filmes mais pesados que já vi. LEAVING NEVERLAND é um longa muito necessário. Apresentando evidências quase irrefutáveis, seja na arquitetura daquele sítio ou mesmo nas mensagens gravadas pelo próprio cantor, o documentário discorre longamente sobre dois dos mais conhecidos casos de acusação de pedofilia pelos quais passou Michael Jackson nos anos 90: Wade Robson e James Safechuck. A natureza das alegações de ambos, a defesa que Wade fez a Michael quando pequeno e o envolvimento das famílias das crianças (e sua inexcusável irresponsabilidade para com elas) são elementos gravíssimos que o doc de Dan Reed fazem desembocar com ótima condução. Embora por vezes apresentem incongruências, os depoimentos de Robson e Safechuck casam com muitos dos relatos de pessoas que sofreram abuso sexual na infância; a sua inocência pelo assunto, o seu deslumbramento por ele e, por último, o sentimento conflitante de amor e desprezo por uma pessoa que – em vários casos – era muito próxima e admirada pela criança. Para além da discussão sobre o que de fato ocorreu entre Michael Jackson e eles, o documentário esclarece por fotos e vídeos, áudios e textos do próprio cantor que pelo menos uma relação muito questionável se dava entre ele e os meninos com quem dormia. Há quem defenda o Rei do Pop com unhas e dentes, acusando esta produção de ser uma série de mentiras oportunistas, mas é importante lembrar que Michael Jackson era o homem mais poderoso na cultura pop dos anos 80/90, no auge de sua carreira, e estava num lugar em que nenhuma outra estrela hoje consegue atingir. Tanto poder nas mãos de um homem já seria perigoso por natureza – imagine nas de um pedófilo. É preciso sempre abandonar o sentimento idólatra e saber avaliar sem predileções o depoimento de uma pessoa que sofre, e que diz ter sofrido tanto num momento tão importante da vida como a infância. A Oprah fez uma entrevista incrível com eles na época do lançamento deste filme; vale a conferida também. LEAVING NEVERLAND é um filme muito pesado, apesar de relevante e muito necessário. É para ver com preparo: não é fácil passar por ele, mas vale a pena. Vale a pena.
“Wade Robson: Ele era uma das pessoas mais doces, gentis, amáveis e carinhosas que eu já conheci. Ele me ajudou... Tremendamente. Me ajudou com minha carreira. Me ajudou com minha criatividade, com todas essas coisas. E ele também abusou sexualmente de mim... Por sete anos.”
A primeira vez com Kurosawa a gente não esquece. Abordando mais que apenas a estética do sonho, Akira Kurosawa dirigiu, em 1990, um dos filmes mais impressionantes de sua carreira. “Sonhos”, um verdadeiro clássico do cinema contemplativo/experimental, apresentava tomadas inusitadas e certa continuidade entre curtas “não-contínuos” – algo como detalhes que passam despercebidos de uma história a outra, e a sutil passagem do tempo (da infância à idade adulta) do protagonista sem nome. São oito instalações com os mais diversos efeitos especiais (alguns, hoje, até considerados ‘ultrapassados’) mas que têm, em essência, a mesma pegada – o onirismo, o mistério, o deslumbramento de um sonho. Há, sim, o terror, a miséria e a destruição absoluta, mas Kurosawa não discorre sobre tais males sem a responsabilidade que um cineasta de seu calibre deve ter: adereçando principalmente o problema da bomba atômica, e fazendo discretas citações ao que ocorreu em Nagasaki, Akira expõe a estupidez da guerra, visita os destroços da corrida armamentista e faz um apelo pela paz. Lembrando da importância de cuidar da Natureza, o cineasta apresenta, aqui, algumas de suas melhores tomadas ‘naturais’. É notável como, quando o protagonista ainda é uma criança, os sonhos são surreais demais – e como, à medida em que cresce, vão gradativamente perdendo o surrealismo, assemelhando-se à realidade impassível, intransponível, impossivelmente real e perturbadora que assola aqueles que já não têm mais inocência para perder... “Sonhos” é um dos grandes filmes deste diretor, que vale a pena ser visto pelo menos uma vez – e mesmo que seja com algum sono. Quem sabe algumas dessas imagens fantásticas não adentram o teu inconsciente também? Incrível.
“Vincent Van Gogh: Uma paisagem que parece uma pintura não constitui uma pintura. Se você olhar de perto, tudo na Natureza tem sua beleza.”
O nono do Tarantino é uma frustração só... “Era uma Vez...” é uma produção polêmica. Dirigido por Quentin Tarantino, cineasta estadunidense que dispensa apresentações, o filme conta a história de Rick Dalton e seu dublê, Cliff Booth, no momento em que suas carreiras parecem ameaçadas por um crescente (porém aparentemente imaginário) ostracismo. Ambientado no fim dos anos 60, a produção retrata aquela Los Angeles com pitadas de humor e (enormes) liberdades narrativas/criativas. Despido de seu cinema anterior, Tarantino difere na condução deste longa: sem violências graves, sem exageros, frases de efeito ou outros recursos característicos. Banhos de sangue e cabeças arrancadas, nem perto disso – “Era uma Vez...” tem uma pegada completamente diferente, o que não quer dizer que ela seja efetiva de fato... Talvez funcionasse se houvesse mais que apenas a primeira camada da cebola; ONCE UPON A TIME... não sabe aonde ir e sequer como chegar lá. Perdido no próprio roteiro, Tarantino esquece o personagem de Brad Pitt por meia hora no filme, e explora pouco núcleos que são muito importantes (leiam-se os da seita, do casal Polanski e mesmo o de Marvin Shwarz, por exemplo). A sensação que fica é que parece um filme subaproveitado. Dramaticamente reduzido a andanças e diálogos a esmo, Tarantino aqui lembra aquela bomba dos irmãos Coen, “Ave, César!”, de 2016. Não é como se diretores com grandes sucessos ultraviolentos fossem impedidos de produzir comédias ou filmes “menos violentos”, mas é notável como, quando se descaracteriza um estilo próprio, pouco sobra a se aproveitar – falando de forma, conteúdo e mensagem, exclusivamente. “Era uma Vez em... Hollywood” é um filme que deve passar batido (a não ser que leve alguma estatueta no Oscar, talvez figurino e/ou direção de arte). No mais, dos indicados a melhor filme, é o que parece ter menos estofo para concorrer. Uma pena – sobretudo em se tratando de seu diretor. Uma frustração só. Eu não assistiria de novo...
“Rick Dalton: Tá bem, isto aqui é muito quente. Podemos fazer algo sobre o calor? Treinador: Rick, é um lança-chamas.”
Não foi tudo isso... A tão esperada sequência do sucesso FROZEN, da Disney, dirigida pelos mesmos responsáveis pelo primeiro (Chris Buck e Jennifer Lee), soa como um filme “mais do mesmo”... Talvez seja a ausência de um grande single (como foi o viral “Let it Go” em 2013) um dos motivos. O roteiro formulaico e a pouca variedade de ideias novas (notavelmente a canção de Olaf e o solo de Kristoff) também podem ter contribuído para uma experiência “meia-bomba” para este aqui. O fato é que FROZEN 2 não adiciona tanto à espinha do primeiro e, musicalmente, nem se compara ao que estourou em 2013/2014. Entretanto, é necessário reconhecer como o avanço na computação permitiu uma sequência tecnicamente superior; é bem verdade que no quesito animação, “Frozen 2” é um filme muito mais completo, embora no argumento, deixe a desejar como ideia isolada – é uma produção que depende demais da primeira instalação para se fazer entender, e se vale disso o tempo inteiro para lembrar a plateia de que sim, este é o filme que veio daquele outro, com aqueles personagens super carismáticos e aquelas aventuras todas. Como filme separado, não funciona bem, e como sequência, também deixa a desejar. Nem mesmo o single “Into The Unkown”, cantado pelo Panic! At The Disco, conseguiu salvar este projeto. É melhor deixar este aqui passar despercebido – você pode fazer mais pelo seu tempo procurando outra animação, ou até revendo o original mesmo. Não foi tudo isso.
“Olaf: E ainda assim, a mudança ri de nós com sua beleza.”
Central do Brasil
4.1 1,8K Assista AgoraSó amor, só carinho pelo centro do nosso mundo...
CENTRAL DO BRASIL é um verdadeiro manifesto brasileiro: da nossa gente, da nossa cultura, do nosso país. Do centro do Rio a uma cidadezinha no interior do Nordeste, Walter Salles conduziu talvez o seu melhor longa com grande maestria, bonita de se ver e sentir. O filme, que conta com a soberba Fernanda Montenegro (e uma atuação nada mal do estreante Vinícius de Oliveira), parte de uma história aparentemente simples para um olhar importantíssimo sobre o nosso povo, seja pela abordagem ao analfabetismo e à pobreza, ou até à riqueza cultural que o nosso povo tem – e nunca vai perder.
Este filme é tão bom que torna quase insuportável o vira-latismo de alguns ao desmerecê-lo: trata-se do longa que o Brasil levou pro Oscar daquele ano, como Melhor Filme Estrangeiro, e com Montenegro sendo indicada a Melhor Atriz. Não é pouca coisa para uma produção brasileira conquistar, ainda mais contando a nossa história e os nossos lugares no chamado ‘terceiro mundo’. CENTRAL DO BRASIL é um dos grandes filmes que o nosso cinema fez desembocar – de fazer rir e chorar com a mesma eficácia, retendo-nos por todo o seu percurso e sedimentando-se em nossas memórias sem fazer esforço.
Walter Salles foi um artista muito feliz nesta produção; e as histórias-testemunhos dessas pessoas ficarão para sempre guardadas em nosso cinema – e naqueles que o encontraram verdadeiramente também.
Perfeito. Assista o quanto antes!
“Dora: Nunca deixe de roubar mortadela.
Josué: Eu DETESTO mortadela.”
Ata-me!
3.7 550O robustíssimo cinema de Pedro Almodóvar originou outra pérola cinematográfica que, para hoje, apresenta problemas muito sérios.
ÁTAME! é a oitava instalação em longa-metragem do diretor espanhol Pedro Almodóvar, que aqui já era notável pelo seu cinema cheio de cores vivas e roteiros (cada vez mais) complexos. Antes de chegar a argumentos do calibre de “Má Educação” ou “Volver”, Pedro produziu em 1990 um dos filmes que viraria sua marca registrada – justamente por suas cores e decisões não-convencionais, sobretudo para com o protagonista Ricky. Apesar de possuir atuações e design de produção excelentes, ÁTAME nos deixa ao final com um gosto ruim na boca...
O grande problema está na sua ética/política: um homem que sequestra uma mulher e diz querer que ela se apaixone por ele já seria questionável por si só, mas o que resulta desta estranha relação é algo que simplesmente soa errado, questionável, machista até. Segue a linha de raciocínio de que, se qualquer homem insistir e ameaçar por tempo suficiente, ele terá a mulher que quiser, não importando como ela se sente sobre ele; é assim que ocorre com Marina Osorio, a personagem central mas pouco-explorada deste ‘romance’.
Parece que o filme é como que uma desculpa para prender e amordaçar a atriz – como num fetiche mesmo – a começar pelo pôster. Não se deve questionar o fenômeno que ficou conhecido como Síndrome de Estocolmo, mas é evidente que “Ata-me!” não oferta muito para construir o seu efeito, uma vez que, quase que de uma cena para outra, toda a situação muda na cabeça de Marina e a partir de agora seu ela se sujeita conscientemente a ter uma relação com o seu abusador (bem no estilo daquele filme “Elle”, de Paul Verhoeven).
De um modo geral, é um longa que entretém, mas que causa muito desconforto por essa decisão. Como uma produção independente, não vai tão longe, e como um filme do Almodóvar, não está entre os melhores. Em seu lugar, pegaria facilmente “Má Educação” ou “Volver” mesmo para assistir.
Este aqui não funciona tão bem assim.
“Ricky: Tentei falar com você, mas não me deixou. Por isso tive de raptá-la, para que me conheça melhor. Tenho certeza que se apaixonará por mim, como estou apaixonado por você.”
Sucker Punch: Mundo Surreal
3.4 3,1K Assista AgoraAquela história do falso-anarquismo, né?
SUCKER PUNCH, longa de Zack Snyder (“300”, “Batman vs. Superman”) é pomposo e explosivo, mas entrega pouco de sua própria mitologia, e resulta num fiasco tanto narrativo como de investimento (já que o filme basicamente só se pagou e olhe lá).
É difícil um diretor dizer que seu filme é uma “crítica à cultura grega de sexualização de mulheres” quando as protagonistas da história usam roupas curtas e fetichizantes quase todo o tempo – mais ou menos o problema da Arlequina, em “Esquadrão Suicida”, só que quatro vezes maior. A trama, que se propõe “feminista” e “libertadora”, conta uma história simplória, repetitiva e previsível, com atuações fraquíssimas e ainda com a pinta de um “grande épico”. A trilha e o design de produção realmente ajudam na estética do longa, mas isso não o faz ir muito longe: há elementos demais contra o filme, em especial a edição, a direção das atrizes e a fetichização exacerbada pela qual todas passam. Parece que, para agradar seu público de adolescentes, Snyder investiu num filme quase steampunk, pseudo-feminista e anarquista, buscando representar o “girl power” através de minisaias, lingerie e mulheres lindas empunhando armas letais, ou, como Snyder mesmo definiu, “Alice no País das Maravilhas com metralhadoras”.
A versão estendida ainda consegue piorar (por justamente estender) este fiasco. Os pontos positivos não funcionam a ponto de salvá-lo porque os negativos gritam demais, a todo o tempo, o quanto que este filme é só moldura bonita. Um bom roteiro, com uma direção menos focada na bunda dessas meninas e com uma verdadeira revolução ao final teria sido mil vezes mais efetivo (como mensagem e como cinema) do que SUCKER PUNCH realmente foi.
Péssimo. Péssimo mesmo.
Fuja deste aqui!
“Blue Jones: Perdeu a vontade de brigar, foi?
Baby Doll: Não, acabei de achá-la.”
Aquarius
4.2 1,9K Assista AgoraUm filme para muito além da tal da “especulação imobiliária”...
Kleber Mendonça Filho volta ao cinema depois do estarrecedor “O Som ao Redor”, com um filme robusto, intenso e dolorosamente cru – e por isso mesmo, profundamente real e perturbador. Sônia Braga trabalha com a maestria que só uma atriz muito experiente conseguiria ter, e os personagens antagonistas (porque são vários, nunca apenas um) são retratados fielmente, com o deboche e a cara “guapa” que na realidade todos eles têm mesmo...
Aqui Kleber sintetizou antagonismos fundamentais para a compreensão de um Brasil contemporâneo e em constante mudança: o avanço da tecnologia contra a resistência analógica, "antiga"; os baby-boomers contra a geração Y; a privatização contra o espaço privado, a pessoa jurídica contra a pessoa civil, e por aí vai... O filme inteiro é recheado de contrastes, e elementos que evidenciam como é a vida neste “aquário”, seja por meio do uso constante do azul (em quase toda cena), aos simbolismos mais pesados lá pro final; uma vida em desequilíbrio externo, por um agente da violência que advoga sempre em vontade própria, no sentido da destruição da história, da memória afetiva e do lugar onde nasceu, cresceu, viveu (e morrerá!) uma família do Brasil.
É uma produção que gera debates extensos, mas que para o fim desta resenha sintetiza-se num único imperativo: assista! Você tá é perdendo tempo se dedicando a outro cinema! Kleber Mendonça Filho é um dos grandes nomes de sua geração – e que ecoará para muito depois do tempo de hoje; pode escrever aí!
Filmaço.
“Clara: Então quando você gosta, é vintage; quando não gosta, é velho.”
Biutiful
4.0 1,1KPesado, denso e profundamente depressivo...
BIUTIFUL é um dos grandes longas do mexicano Alejandro Iñárritu, o mais conhecido de sua primeira fase (antes de mudar sua pegada) e talvez o mais depressivo deles. O enredo conta a história de Uxbal, um criminoso decadente que vê tudo ao seu redor desmoronar gradualmente, junto de sua saúde e crescente solidão. Javier Bardem mostra, mais uma vez, por quê é considerado um dos maiores atores de sua geração, num trabalho absolutamente impecável, que Iñárritu dirige com grande destreza.
É um filme plural porque trata de muitos assuntos complexos ao mesmo tempo – a situação dos imigrantes, o tráfico e o vício em drogas, a traição num casamento, a ética de um homem fora da lei e a espiritualidade de um altruísta para com pessoas enlutadas. Tudo isso é abordado largamente ao longo dessas quase duas horas e meia de ação interna, hermética, fechada-em-si. Quase todo o filme é no silêncio dessa tristeza, dessa depressão dolorosamente humana pela qual passa Uxbal – e é na força dessa tristeza que o filme estabelece suas firmes bases e nos leva até o seu final derradeiro...
Pessoalmente, prefiro seus longas mais recentes, o que não invalida a força desta instalação. A história de Uxbal é a de muitas pessoas, o que não deve ser esquecido. A realidade é inconsolável, mas no cinema ela é poesia.
E a poesia resiste aqui.
“Ana: Pai! Como se escreve 'beautiful'?
Uxbal: Desse jeito, como a palavra soa. B-I-U-T-I-F-U-L.”
Histórias Cruzadas
4.4 3,8K Assista AgoraUm filme divertido e super proveitoso sobre a política feminina nos anos 60.
THE HELP é o premiado longa de Tate Taylor, uma adaptação do livro de mesmo nome de Kathryn Stockett. Trata-se de uma análise social da situação da mulher num momento muito específico da história estadunidense; ambientado no Mississipi dos anos 60, “Histórias Cruzadas” analisa os recortes sociais de mulheres brancas e negras pelas estruturas de poder que ordenam suas relações. As “madames” e as “criadas” compõem um espectro riquíssimo de vivências muito diferentes entre si – como que justificando a necessidade de mais de um feminismo, para dar vasão às experiências tão diversas que elas vivem.
Enquanto algumas mulheres lutavam por votos e maior participação política, outras, de uma etnia diferente, lutavam para ter o direito de trabalhar para sobreviver. Enquanto umas buscavam status e ascensão social através de bens de consumo, outras consumiam só o necessário para viver, não tendo acesso aos mesmos recursos que elas. Enquanto umas são as “senhoras”, outras são as “empregadas”, hierárquica e historicamente postas de lado na luta por direitos, por muitos e muitos anos.
Leituras sobre as heranças para o povo negro sobre este tipo de trabalho são muitas, e este filme consegue fazer desembocar várias reflexões a este respeito. Embora tenha elementos da cultura “white savior” e do protagonismo branco em detrimento do negro (que é, por fim, o tema do filme), THE HELP se sai como uma baita produção, para se rever várias vezes. Consegue ser divertido, informativo e muito bem atuado, em especial pelos fantásticos trabalhos da Viola Davis e da Octavia Spencer.
Muito bom! Assistam!
“Aibileen Clark: You is kind. You is smart. You is important.”
O Tempo do Lobo
3.6 71Meh.
LE TEMPS DU LOUP é outro dos longas de Michael Haneke que parece um pouco fora de forma. Desta vez, o diretor austríaco destrincha a situação de uma família burguesa num contexto sitiado, distópico, quase auto-destrutivo: a miséria coletiva numa área rural da França. Um evento misterioso impede o suprimento de todo o país e as pessoas que sobrevivem passam a viver numa situação nômade, sem valores civilizatórios ou humanitários.
Haneke é conhecido por seus filmes longos e tediosos, em que o esvaziamento de sentido pela apropriação capitalista é uma realidade irreprimível, e aqui não é diferente. Embora não se passe totalmente no ambiente privado, “Tempos de Lobo” é o primeiro longa do diretor que aborda a coletividade de forma mais externa e ampla, nas ruas e estradas, e com a maior quantidade de atores. A todo momento, porém, somos desconvidados a empatizar por essas pessoas que, a cada dia que passa, se mostram mais hostis e desesperadas por sobreviver. Sexo em troca de água, escambo de todos os bens materiais (agora inúteis), o alimentar-se de cadáveres na estrada e o assassinato como método absoluto de imposição do poder: o Lobo é esta fome, este caminhar a esmo, esta espera inadiável. Haneke sintetizou, em 2003, a sua versão de “Esperando Godot”, que, aqui, se manifesta no trem com mantimentos, uma esperança indubitável de prosperidade que parece nunca chegar.
Mesmo assim, o longa, em si, não vai mais longe. O choque da cena inicial é seguido por um marasmo quase absoluto, em que nem o amor nem a violência encontram grandes expressões. A apatia das duas horas seguintes contrasta muito os minutos iniciais, e torna a experiência repetitiva e até pouco proveitosa. Ao contrário de filmes dele como “O Sétimo Continente” ou “Amour”, em que o amor e a violência coexistem e efetivamente resultam em algo, “Tempos de Lobo” não só não chega perto como também não adiciona tanto à filmografia já consolidada do diretor. Não é um dos que eu indicaria – provavelmente um dos outros dois apresentaria o seu trabalho melhor.
Uma experiência mediana, afinal. Infelizmente.
“Eva: Sei que pareço confusa, e na verdade estou; por isso mesmo estou escrevendo: porque tudo é muito confuso e espero poder entender melhor escrevendo. Quero te contar para tentar passar uma ideia de como a vida está sendo agora.”
O Homem Invisível
3.8 2,0K Assista AgoraSurpreendentemente bom.
THE INVISIBLE MAN é o novo longa de Leigh Whannell (responsável pelas famosas trilogias “Jogos Mortais” e “Sobrenatural”), que retorna às telonas com uma releitura do conto homônimo de H. G. Wells. Aqui, porém, a trama recebe um novo elemento, muito bem utilizado: a temática da violência doméstica e a dinâmica de um relacionamento abusivo.
Elisabeth Moss (a essa altura, uma verdadeira deusa da atuação) carrega o filme nas costas e o elenco secundário a sustenta embora não faça mais que o necessário. Aqui e ali, apesar de algumas cenas mal executadas (em especial aquela quando ela sai da casa para procurar seu assediador), o filme apresenta bons jumpscares, não cai em redundâncias e evita absurdos narrativos, comuns inclusive nas trilogias que fizeram este diretor conhecido. Há pouco exagero, e o longa é, num geral, crível – até porque, esta pesquisa sobre a invisibilidade já é antiga, e tem encontrado na Física alguns avanços impressionantes...
Não sendo tão fantasioso assim, “O Homem Invisível” é um bom suspense. Aborda assuntos como a “histeria das mulheres” e o assédio pelo qual elas passam, sobretudo em casos de relacionamentos abusivos e desequilibrados. Moss, embora nunca submissa, encarna verdadeiramente a mulher que toma as rédeas de sua situação e responde à altura todo o abuso pelo qual passou, e ainda em grande estilo.
Um bom suspense! Vale a pena conferir.
“Cecilia Kass: Ele disse que em qualquer lugar que eu fosse, ele ia me encontrar, andar até mim, e eu não conseguiria vê-lo.”
Voyeur
3.0 57Um filme absolutamente péssimo.
Em todos os sentidos – na abordagem, nas montagens, nas entrevistas, em tudo... Tudo em VOYEUR funciona de maneira capenga e se arrasta até o seu desfecho insatisfatório sem cativar o público. Era para ser um documentário sobre um caso emblemático coberto pelo celebrado jornalista Gay Talese: Gerald Foos, o dono de um motel que durante anos espiou seus hóspedes pela ventilação do prédio.
Entretanto, o filme se perde em si mesmo nos primeiros 20 minutos e muda o foco para 1 – a matéria que Gay escreve sobre ele e 2 – para o lançamento do livro que cobre a sua vida, também escrito pelo jornalista. Nenhum dos assuntos é minimamente interessante, e o tempo em tela é consumido por situações péssimas, em que o jornalista é convidado repetidas vezes a conversar com o voyeur sem efetivamente discutirem, até que ele decide jogar tudo pro alto e acusa os próprios diretores/câmeras de estarem fazendo um trabalho lixoso de informação (ele literalmente aponta o dedo pra eles e fala isso).
E para piorar, o documentário nunca adereça a culpa do crime de invasão de privacidade que Foos cometeu repetidas vezes naqueles anos, e da situação em que ele foi cúmplice de um assassinato – tendo observado uma mulher ser morta em seu motel e fingido não ter visto quem o fez. Este doc é quase uma apologia ao cara, e um trabalho dúbio por justamente passar o pano em muitos elementos problemáticos desta história – como se ninguém da produção soubesse sobre que tipo de abuso de poder estão, de fato, falando.
Péssimo, absolutamente péssimo.
Passem longe.
"Gay Talese: Não dá pra acreditar nessa história, é impossível inventar essa história."
Como Perder um Homem em 10 Dias
3.4 904 Assista AgoraUm filme ok.
Outra das comédias românticas dos anos 90/2000 que viralizou na época, e que, vista hoje, apresenta sinais característicos de envelhecimento. HOW TO LOSE A GUY... é sobre uma aposta entre duas pessoas, sem que elas saibam, para que uma namore com ela e a outra queira largá-la – um paradoxo instigante e gostoso de assistir.
Kate Hudson e Matthew McConaughey têm boa química e o elenco secundário sustenta bem essas duas horas de um romance bobo e um pouco previsível. Porém, como em casos semelhantes (nas comédias inglesas da época), há, aqui e ali, piadinhas preconceituosas, e alguns temas são só datados mesmo – embora tenhamos que pensar (sempre!) o filme em seu contexto histórico também...
Para além disso, é um divertimento simples e direto ao ponto. Não vai mais longe que o raso – e nem se propõe a fazê-lo. Um filme ok; faltou a ele talvez um pouco mais de roteiro e reviravolta, mas num geral desempenha seu entretenimento de maneira razoável.
Ok.
“Andie: Você não pode perder algo que nunca teve.”
Peles
3.4 590 Assista AgoraUm profundo – e gráfico – filme sobre preconceito e auto-aceitação.
PIELES é o primeiro longa de Eduardo Casanova, diretor espanhol que tem ganhado espaço nos festivais de cinema da Alemanha e do próprio país. Aqui, Casanova trabalha bem a estética e filosofia por trás das histórias de seus personagens, que nasceram com deformidades físicas e que buscam, resumidamente, por aceitação (de si mesmos e dos outros). Sendo um filme múltiplo, pode ser lido a partir de cada uma de suas histórias, que se chocam e conversam de maneiras diferentes; em PIELES, Eduardo sedimentou o universo que já vinha trabalhando em seus curtas e fixou a forma para dar liga ao mesmo.
Embora por vezes possa parecer “simples” ou “evidente” demais, PIELES certamente surpreende em algumas de suas escolhas. Além de efetivamente contar enredos independentes que se unem em pontos específicos, a caracterização das personagens é incrível – de convencer mesmo que algumas daquelas pessoas são assim, como naquele clássico de Tod Browning “Monstros”, e que, como este, discorre sobre quem são, de fato, os “monstros” da história... A narrativa que supera o preconceito, ou que pelo menos faz uma resposta à altura dele, emociona e proporciona até certa catarse em quem assiste pela primeira vez – trata-se de um longa diferente, e durante ele somos o tempo todo convidados a empatizar pelos seus personagens (que tanto sofrem).
Valeria a pena só pela mensagem, mas vai além disso: é bom cinema e tem bom gosto para os tons de rosa.
Um profundo e gráfico filme sobre preconceito e auto-aceitação.
Assista!
“Ana: Você não gosta de mim, mas sim da minha deformidade.”
Metrópolis
4.4 631 Assista AgoraClássico absoluto do expressionismo alemão, “Metrópolis”, que em breve fará 100 anos de estreia, continua impressionando pela qualidade do cinema que fez desembocar e pelos efeitos especiais, que, para a década de 1920, simplesmente não existiam/não tinham paralelos concorrentes.
Um dos maiores sucessos de Fritz Lang conta a história de Freder, o filho de um magnata da metrópole, e o seu envolvimento com o movimento operário, que sustenta esta mesma metrópole. Tomando consciência de seus privilégios e empatizando com o “povo das profundezas”, Freder travará uma luta para fazer justiça a este povo, que sustentou até então o seu estilo de vida desregrado.
METROPOLIS tem os seus momentos, mesmo que, para hoje, seja um pouco difícil acompanhar o pacing de um filme lento de 2 horas e meia, preto-e-branco e mudo. O formato pode ser distante do que hoje se consome como cinema, mas um dia chegou a ser o ápice da produção europeia – estima-se que este tenha sido o longa mais caro da história até então.
A simbologia do Messias, o envolvimento de Maria em seu anúncio e as referências bíblicas clássicas (Babel, o Apocalipse de São João e os pecados capitais) são elementos muito fortes aqui. Dá para entender de onde surgiram, por exemplo, sagas geopolíticas inteiras como Star Wars e Duna, referências da ficção científica. O visual do C-3PO, aliás, em nada perde para a lendária Ginoide deste filme.
Embora tenha por vezes cenas longas demais (esta inclusive não é a versão estendida, e sim a “original”), METROPOLIS é um filme incrível. Exige do espectador certo desprendimento de regras de continuidade, e paciência para as conduções mais vagarosas; mas mesmo assim, é um show de cinema, que definitivamente merece ser visto, para que se conheça um visual futurista que, hoje, nem é tão futurista assim...
É quase como se nos tornássemos, no fim das contas, na própria Metrópole.
Nós somos a Metrópole.
“Maria: O mediador entre a cabeça e as mãos deve ser o coração.”
Democracia em Vertigem
4.1 1,3KUma análise minuciosa, embora partidária, da atual política brasileira, feita por uma exímia documentarista.
DEMOCRACIA EM VERTIGEM é o segundo filme a que assisto da Petra, tendo visto primeiro “Elena” no ano passado. Os seus documentários, em caráter narrativo-pessoal, se põem muito em primeira pessoa diante dos fatos – e ela é alguém que teve acesso a muitos fatos importantes em primeira mão. Sensível e cuidadoso, o novo da Petra pode ser muitas coisas, menos “injusto” ou “mentiroso”, como se tem dito por aí.
Este longa traz imagens arrebatadoras do momento da prisão de Lula, e do impeachment de Dilma Rousseff, segundo eles próprios. Para além disso, entrevistas com os deputados que votaram em favor do impeachment e depoimentos dos protagonistas dos escândalos dos últimos quatro anos: Sérgio Moro, Nestor Cerveró, Aécio Neves e Janaína Paschoal, por exemplo. Cobrindo a história da política desde o lento processo de redemocratização do Brasil, Petra destrincha de que maneiras o patriotismo e o anti-petismo se ligaram na intenção de demover qualquer “esquerdista” do seu direito de manifestação/resposta, para a promoção de um único candidato, capaz de unificar a direita e firmar de vez a polarização no país.
As passeatas de 2013, a operação lava-jato, os panelaços, as prisões dos presidentes: como um diário recontado por sua autora, “Democracia em Vertigem” é o tipo de filme que nos arrebata pela força de sua análise, mesmo que, para uma pessoa não-brasileira, talvez não seja o melhor longa para se compreender a nossa estrutura. Em se tratando de Brasil, para os próprios brasileiros, este aqui é O filme sobre os nossos últimos tempos. Junte-se a ele “O Processo”, da Maria Augusta Ramos, e temos um panorama de como foi, para a esquerda num geral, a gravidade da situação do que aconteceu antes do governo atual.
Trata-se de um documento do nosso tempo.
É importante que seja visto pelo menos uma vez. Pelo menos uma.
“Petra Costa: Um escritor grego disse que a democracia só funciona quando os ricos se sentem ameaçados. De outra forma, a oligarquia toma posse. De pai para filho, de filho para neto, de neto para bisneto, e assim sucessivamente.”
Paris, Texas
4.3 697 Assista AgoraCinematograficamente, é um filme excelente. Agora, eticamente...
PARIS, TEXAS é um dos longas mais conhecidos de Wim Wenders. Numa condução sensível, porém firme, a história segue o misterioso reaparecimento de Travis, um homem que surge num deserto do Texas depois de desaparecer por anos – mudo e sem lembranças.
A premissa do filme (excelente, por sinal) acompanha a trajetória de seu irmão, Walt, na tentativa de compreender e abrir espaço para o homem de volta na família (na sua e na dele). Rapidamente Wenders dispõe informações que nos fazem compreender que há algo a mais por trás desta história, e que culminará na icônica sequência da cabine, tanto referenciada pelo cinema internacional mais tarde...
Os enquadramentos e a trilha sonora de um simples violão de aço formam uma dupla fantástica na estética “desértica” que Wenders procura aqui. A estrada leva ao autoconhecimento, e esta é a jornada de um homem em busca do que ele foi – e do que ele será a partir de agora. A polarização azul-vermelho é incrível, e o uso do amarelo/bege, em determinadas cenas, é simplesmente ideal – como que dando uma terceira alternativa à história aqui contada, se o protagonista fosse uma pessoa diferente...
No entanto, esta é a parte mais frágil do roteiro: o seu desfecho.
Travis passa por uma espécie de “iluminação” interior e busca resolver os conflitos que o levaram àquele mesmo êxodo inicial. O filme não parece saber como resolver a questão parental que ocorre ali sem envolver, inexoravelmente, a covardia de um homem que decide (de novo) não ser pai. Tendo passado a conhecer seu filho Hunter, e retomado o contato com a ex-mulher Jane, era pelo menos ético que Travis resolvesse cuidar do filho também – mesmo que separado dela. Por que outro motivo o filme haveria de existir, senão para modificar o arco de seu protagonista perdido e sem memória? De qualquer forma, é assim que ocorre: Travis decide absolutamente do nada que “lugar de filho é do lado da mãe” e devolve a criança a Jane sem querer lidar com a situação que ele mesmo criou. Foge no mesmo carro, poeticamente, com o sol banhando suas costas e a trilha encerrando o longa com um acorde consonante...
Trata-se de um desfecho, no mínimo, questionável. E o destaque que tanto se dá à personagem de Jane, no pôster e no próprio filme, parece mais um chamariz por sua beleza que pela relevância que ela de fato tem na história – uma vez que aparece, mais ou menos, só na meia-hora final do longa, e ainda secundariamente. É palpável como a personagem da mãe é subdesenvolvida para priorizar o embate masculino entre assumir ou não assumir a responsabilidade por seus atos.
Infelizmente, escolher a segunda opção não é o melhor. Talvez se tivéssemos mais de Jane, e menos protagonismo “exclusivo”, o filme seria outro – e mais justo, também. E, por isso mesmo, melhor.
No mais, é uma referência – mas para ser assistida com as devidas ressalvas.
“Travis: Por quanto tempo estive fora, você sabe?
Walt: Quatro anos.
Travis: Quatro anos é muito tempo?
Walt: Bom, é muito para um pequeno menino. É metade da vida dele.
Travis: Metade da vida dele.”
Toy Story 4
4.1 1,4K Assista AgoraÉ um filme ok, mas não justifica a própria existência – caça-níquel dos clássicos.
TOY STORY 4 é a sequência da famosa trilogia da Disney-Pixar, que se pretende um final “mais justo” à amizade dos carismáticos protagonistas Woody e Buzz Lightyear. Dando continuidade à história dos brinquedos, o filme se passa logo após Andy doá-los a Bonnie, no talvez mais belo gesto de maturidade e altruísmo que a trilogia foi capaz de fazer desembocar. Tendo como premissa inicial o desconforto de Woody em não ser mais o brinquedo favorito, o longa vai acompanhar todo o seu processo de auto-aceitação – e tudo o que isso envolve em relação a seus outros amigos brinquedos.
O filme, porém, apresenta personagens novos rápido demais; há muita informação o tempo todo, e vamos sendo introduzidos quase a cada instalação a uma nova gama de brinquedos. Tentando ser talvez mais dinâmico que seus antecessores, este filme lembra aquela quarta produção da trilogia “ALIEN” – depois que tudo acabou no terceiro filme, inventaram de fazer um quarto para “dar uma finalização melhor” e que, no fim das contas, só ficou para trás no tempo (e no espaço, no caso). É assim que se vê um filme que teima em continuar uma história que já tinha sido encerrada na trilogia principal – “X-Men: Apocalipse” e “Jogos Mortais 4” são outros bons exemplos disso.
Este volume sobra na prateleira como um brinquedo sem a sua caixinha de voz. Vai ter marcado só por ter recebido o Oscar de melhor animação e levar o nome da franquia – embora já fosse suficiente que os volumes 1 e 3 já tivessem levado a estatueta. No mais, é um filme descartável no sentido narrativo – como finalização, é difícil alguém considerar este um longa mais completo que o volume três.
E entre eles, fico com o outro sem o menor receio.
Não indico.
"Garfinho: Eu não sou um brinquedo, eu fui feito para sopas, saladas, talvez chili, e depois pro lixo. Liberdade!"
1917
4.2 1,8K Assista AgoraTalvez o mais impressionante filme produzido no ano passado.
“1917”, o novo longa de Sam Mendes (que dirigiu “Beleza Americana” e alguns filmes da trilogia “007”) é um filme simples mas absolutamente desafiador; seguindo a trajetória de dois cabos anônimos num front da primeira guerra mundial, o longa, que se pretende um plano-sequência gigantesco, impressiona mesmo aqueles que já esperam dele um filme impactante.
O recurso do plano-sequência (mesmo que cortado aqui e ali) é poderosíssimo: quase nunca há um respiro, um momento de paz em meio ao caos. As atuações de todos são ótimas (em especial a de Benedict Cumberbatch, uma grata surpresa aos que já conhecem o seu trabalho); o filme ainda mostra, em vários momentos, por quê mereceu o Oscar de Melhor Fotografia de seu ano.
Para além da questão do horror da guerra, o desalento de uma nação e seu povo (que sofre) ecoa poderoso aqui. “1917” é um longa que marca justamente porque nos convida a conviver, mesmo que por duas horas somente, com o medo de uma morte iminente e não-anunciada – o medo, no fim das contas, puro, que reside em qualquer guerra de qualquer época. Sendo sobre a primeira mundial, ainda tem isso: foi uma guerra terrestre, em que aviões não eram tão comuns e todo avanço era praticamente a pé ou a cavalo. Que uma câmera siga os dois cabos insistentemente já é ambos um desafio e uma agonia só – agora imagine-o com os melhores efeitos especiais à disposição de hollywood...
É um filme muito bem feito. Super vale a pena!
Assistam.
“Coronel MacKenzie: Eu esperava que hoje fosse ser um dia bom. Esperança é uma coisa perigosa.”
Jojo Rabbit
4.2 1,6K Assista AgoraUma gracinha, apesar de um pouco perigoso...
Taika Waititi, diretor do recente blockbuster “Thor: Ragnarok”, retorna à grande tela em 2019 com o indicado ao Oscar “Jo Jo Rabbit”. O filme, estrelado pelo estreante Roman Griffin Davis, é uma comédia fantasiosa no contexto da segunda guerra mundial, com a ascensão e o declínio de Hitler na Alemanha, como vistos por um simpatizante da Juventude Hitlerista da época.
Embora seja um longa muito descontraído e engraçado, há de se ter uma preocupação em não naturalizar o desrespeito ao povo judeu – encarnado aqui pela excelente Thomasin McKenzie. Trata-se de uma comédia, é claro, mas é sempre bom lembrar que há limites saudáveis para os temas e maneiras de abordá-los numa piada, sobretudo se for no contexto do Holocausto, ou qualquer outro tipo de extermínio em massa.
Mesmo assim, “Jo Jo Rabbit” é um grande filme: leve, divertido e com uma ‘lição de moral’ super apropriada contra a xenofobia. Em dias como os de hoje, por vezes, este longa nem parece uma comédia – e sim a realidade na cabeça de algumas pessoas, como o próprio Jo Jo pensa o povo judeu no começo do filme. Em terras e tempos em que o preconceito étnico e a discriminação reinam soberanos, é de muito bom tom que haja, no cinema, respostas boas como esta, no sentido de revisões e alternativas para pensar o outro em seu contexto, sem com isso desrespeitá-lo ou tolhê-lo de seus direitos básicos e humanitários.
Uma gracinha!
“Jojo Betzler: O que eles fizeram?
Rosie: Eles fizeram o que puderam.”
Coringa
4.4 4,1K Assista AgoraCaramba...
“Coringa”, o novo longa de Todd Phillips, diretor da trilogia de comédia “Se Beber Não Case”, passa longe (ainda bem!) de seus trabalhos anteriores. Com uma ambiência crua e dolorosamente cruel, JOKER aborda o pano de fundo para o surgimento do mais conhecido vilão das HQs, contextualizando seu crescimento em Gotham City e ainda trazendo, aqui e ali, aparições de seu histórico rival, ainda que sem uniforme...
JOKER tem uma das mais poderosas performances de Joaquim Phoenix, merecedor do Oscar de Melhor Ator – além de inúmeros prêmios na categoria. Tratando-se de um filme biográfico do vilão, era de se esperar que houvesse muita luta e maldade em geral, mas o que se recebe não é exatamente isso... JOKER é um longa quase humanista sobre o arqui-inimigo do Batman, que busca compreender como ele vivia e o quê o fez ficar assim. Mesmo que seja bastante violento, o maior recado do filme não é a “revolução dos palhaços” ou algo do tipo – mas o que pode ocorrer a alguém marginalizado e sem a oportunidade de ser numa metrópole do futuro.
Não sendo um filme comum de super-vilão, “Coringa” é uma leitura humanizadora do personagem e de seu arqui-inimigo, como fez “Malévola” alguns anos antes. Longe de ser o melhor longa da DC Comics, de qualquer forma é muito bem feito, bem produzido e chega num lugar absolutamente inesperado, mesmo que para todos seja evidente desde o primeiro minuto.
É sobre a evolução do mal no ser humano, em suas variadas formas, e quão fundo este mal pode ir. Trata-se de um filme denso, mas que deve ser conferido pelo menos uma vez.
Vale a pena!
“Arthur Fleck: A pior parte sobre ter uma doença mental é que as pessoas esperam que você se comporte como se não tivesse uma.”
Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual
4.3 2,3K Assista AgoraUm filme... Mediano.
O precursor do indie argentino “Medianeras” é muitas coisas; um longa que retrata a decadência/sobrevida do amor líquido na era pós-moderna, um manifesto pela realidade quente em contraponto à frieza das telas, e até uma das raízes da qual surgiu, entre outros filmes, “Ela”, de 2013.
O afã porno-romântico no qual se encontram Martín e Mariana é uma ferramenta para ilustrar o esvaziamento de sentido que resulta da apropriação capitalista desenfreada, numa metrópole onde pessoas não encontram amor umas nas outras, mas se contentam com comportamentos masturbatórios-sentimentais que os ajudam a sentir-se menos sozinhos, mas não menos solitários. Outros longas abordaram o tema, de maneira inclusive melhor e mais profunda, mas esta é a sua forma na Argentina, com seus elementos regionais e suas questões culturais próprias.
Mesmo assim, à altura de 2020, com tanto que já se falou sobre o que é aqui abordado, “Medianeras” se sai um filme um pouco “fora”: provavelmente inovador à época, e merecedor dos prêmios de recebeu, hoje soa mais como um filme repetitivo e que não foi tão longe quanto antes talvez tenha sido tomado. Por vezes raso, por outras só entediante mesmo, “Medianeras” imprime uma crítica desalentadora embora esperançosa sobre os relacionamentos na contemporaneidade – e quem hoje curte a estética “mumblecore” e filmes quase niilistas e depressivos, com certeza vai gostar muito deste aqui.
Pessoalmente, não é o tipo de produção que mexe comigo.
Mediano.
“Martín: A internet me aproxima do mundo, mas me distancia da vida.”
Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal
3.3 584 Assista AgoraBem interessante...
O grande trunfo de “Ted Bundy: A Irresistível Face do Mal” é certamente o ponto de vista do famoso serial killer americano pelos olhos de sua namorada, Liz Kloepfer. Até então, nunca havia surgido uma produção que abordasse especificamente a relação conflituosa entre ela e Ted – embora, neste instante, tenha acabado de sair uma série documental com a própria Liz Kloepfer falando sobre o assunto (“Ted Bundy: Falling for a Killer”).
EXTREMELY WICKED... é um longa bem conduzido pelo Joe Berlinger, que dirigiu também a excelente série documental sobre o assassino, “Conversando com um Serial Killer: Ted Bundy”. Embora este seja muito mais ficcional/especulativo que a série, o longa se sustenta bem e ainda traz Zac Efron com uma ótima abordagem ao personagem – talvez o primeiro papel realmente desafiador que Efron encarou na carreira. Com boas performances do restante do elenco e uma robusta produção, este é um bom entretenimento (embora descompromissado com a realidade dos fatos entre os dois).
Espero a oportunidade de conferir a série documental com a própria Liz, para ter uma melhor noção do que foi este relacionamento na vida dela. No mais, é um longa válido apesar de fictício, mas não deve ser considerado uma leitura absolutamente fiel do caso Bundy – sobretudo no que tange a sua esposa, Carole Ann Boone, aqui retratada meramente como uma fiel incurável e sem noção.
Um bom filme – mas só.
“Ted Bundy: Pessoas não entendem que assassinos não saem na escuridão com grandes dentes e saliva descendo por seu queixo. Pessoas não entendem que há assassinos perto delas: pessoas que elas gostavam, amavam, viviam com elas, trabalhavam com elas e admiravam podem ser no dia seguinte a pessoa mais demoníaca possível.”
Deixando Neverland
3.4 245Um dos filmes mais pesados que já vi.
LEAVING NEVERLAND é um longa muito necessário. Apresentando evidências quase irrefutáveis, seja na arquitetura daquele sítio ou mesmo nas mensagens gravadas pelo próprio cantor, o documentário discorre longamente sobre dois dos mais conhecidos casos de acusação de pedofilia pelos quais passou Michael Jackson nos anos 90: Wade Robson e James Safechuck.
A natureza das alegações de ambos, a defesa que Wade fez a Michael quando pequeno e o envolvimento das famílias das crianças (e sua inexcusável irresponsabilidade para com elas) são elementos gravíssimos que o doc de Dan Reed fazem desembocar com ótima condução. Embora por vezes apresentem incongruências, os depoimentos de Robson e Safechuck casam com muitos dos relatos de pessoas que sofreram abuso sexual na infância; a sua inocência pelo assunto, o seu deslumbramento por ele e, por último, o sentimento conflitante de amor e desprezo por uma pessoa que – em vários casos – era muito próxima e admirada pela criança.
Para além da discussão sobre o que de fato ocorreu entre Michael Jackson e eles, o documentário esclarece por fotos e vídeos, áudios e textos do próprio cantor que pelo menos uma relação muito questionável se dava entre ele e os meninos com quem dormia. Há quem defenda o Rei do Pop com unhas e dentes, acusando esta produção de ser uma série de mentiras oportunistas, mas é importante lembrar que Michael Jackson era o homem mais poderoso na cultura pop dos anos 80/90, no auge de sua carreira, e estava num lugar em que nenhuma outra estrela hoje consegue atingir. Tanto poder nas mãos de um homem já seria perigoso por natureza – imagine nas de um pedófilo. É preciso sempre abandonar o sentimento idólatra e saber avaliar sem predileções o depoimento de uma pessoa que sofre, e que diz ter sofrido tanto num momento tão importante da vida como a infância.
A Oprah fez uma entrevista incrível com eles na época do lançamento deste filme; vale a conferida também. LEAVING NEVERLAND é um filme muito pesado, apesar de relevante e muito necessário.
É para ver com preparo: não é fácil passar por ele, mas vale a pena.
Vale a pena.
“Wade Robson: Ele era uma das pessoas mais doces, gentis, amáveis e carinhosas que eu já conheci. Ele me ajudou... Tremendamente. Me ajudou com minha carreira. Me ajudou com minha criatividade, com todas essas coisas. E ele também abusou sexualmente de mim... Por sete anos.”
Sonhos
4.4 381 Assista AgoraA primeira vez com Kurosawa a gente não esquece.
Abordando mais que apenas a estética do sonho, Akira Kurosawa dirigiu, em 1990, um dos filmes mais impressionantes de sua carreira. “Sonhos”, um verdadeiro clássico do cinema contemplativo/experimental, apresentava tomadas inusitadas e certa continuidade entre curtas “não-contínuos” – algo como detalhes que passam despercebidos de uma história a outra, e a sutil passagem do tempo (da infância à idade adulta) do protagonista sem nome.
São oito instalações com os mais diversos efeitos especiais (alguns, hoje, até considerados ‘ultrapassados’) mas que têm, em essência, a mesma pegada – o onirismo, o mistério, o deslumbramento de um sonho. Há, sim, o terror, a miséria e a destruição absoluta, mas Kurosawa não discorre sobre tais males sem a responsabilidade que um cineasta de seu calibre deve ter: adereçando principalmente o problema da bomba atômica, e fazendo discretas citações ao que ocorreu em Nagasaki, Akira expõe a estupidez da guerra, visita os destroços da corrida armamentista e faz um apelo pela paz. Lembrando da importância de cuidar da Natureza, o cineasta apresenta, aqui, algumas de suas melhores tomadas ‘naturais’.
É notável como, quando o protagonista ainda é uma criança, os sonhos são surreais demais – e como, à medida em que cresce, vão gradativamente perdendo o surrealismo, assemelhando-se à realidade impassível, intransponível, impossivelmente real e perturbadora que assola aqueles que já não têm mais inocência para perder...
“Sonhos” é um dos grandes filmes deste diretor, que vale a pena ser visto pelo menos uma vez – e mesmo que seja com algum sono. Quem sabe algumas dessas imagens fantásticas não adentram o teu inconsciente também?
Incrível.
“Vincent Van Gogh: Uma paisagem que parece uma pintura não constitui uma pintura. Se você olhar de perto, tudo na Natureza tem sua beleza.”
Era Uma Vez em... Hollywood
3.8 2,3K Assista AgoraO nono do Tarantino é uma frustração só...
“Era uma Vez...” é uma produção polêmica. Dirigido por Quentin Tarantino, cineasta estadunidense que dispensa apresentações, o filme conta a história de Rick Dalton e seu dublê, Cliff Booth, no momento em que suas carreiras parecem ameaçadas por um crescente (porém aparentemente imaginário) ostracismo. Ambientado no fim dos anos 60, a produção retrata aquela Los Angeles com pitadas de humor e (enormes) liberdades narrativas/criativas. Despido de seu cinema anterior, Tarantino difere na condução deste longa: sem violências graves, sem exageros, frases de efeito ou outros recursos característicos. Banhos de sangue e cabeças arrancadas, nem perto disso – “Era uma Vez...” tem uma pegada completamente diferente, o que não quer dizer que ela seja efetiva de fato...
Talvez funcionasse se houvesse mais que apenas a primeira camada da cebola; ONCE UPON A TIME... não sabe aonde ir e sequer como chegar lá. Perdido no próprio roteiro, Tarantino esquece o personagem de Brad Pitt por meia hora no filme, e explora pouco núcleos que são muito importantes (leiam-se os da seita, do casal Polanski e mesmo o de Marvin Shwarz, por exemplo).
A sensação que fica é que parece um filme subaproveitado. Dramaticamente reduzido a andanças e diálogos a esmo, Tarantino aqui lembra aquela bomba dos irmãos Coen, “Ave, César!”, de 2016. Não é como se diretores com grandes sucessos ultraviolentos fossem impedidos de produzir comédias ou filmes “menos violentos”, mas é notável como, quando se descaracteriza um estilo próprio, pouco sobra a se aproveitar – falando de forma, conteúdo e mensagem, exclusivamente.
“Era uma Vez em... Hollywood” é um filme que deve passar batido (a não ser que leve alguma estatueta no Oscar, talvez figurino e/ou direção de arte). No mais, dos indicados a melhor filme, é o que parece ter menos estofo para concorrer.
Uma pena – sobretudo em se tratando de seu diretor.
Uma frustração só. Eu não assistiria de novo...
“Rick Dalton: Tá bem, isto aqui é muito quente. Podemos fazer algo sobre o calor?
Treinador: Rick, é um lança-chamas.”
Frozen II
3.6 785Não foi tudo isso...
A tão esperada sequência do sucesso FROZEN, da Disney, dirigida pelos mesmos responsáveis pelo primeiro (Chris Buck e Jennifer Lee), soa como um filme “mais do mesmo”...
Talvez seja a ausência de um grande single (como foi o viral “Let it Go” em 2013) um dos motivos. O roteiro formulaico e a pouca variedade de ideias novas (notavelmente a canção de Olaf e o solo de Kristoff) também podem ter contribuído para uma experiência “meia-bomba” para este aqui. O fato é que FROZEN 2 não adiciona tanto à espinha do primeiro e, musicalmente, nem se compara ao que estourou em 2013/2014.
Entretanto, é necessário reconhecer como o avanço na computação permitiu uma sequência tecnicamente superior; é bem verdade que no quesito animação, “Frozen 2” é um filme muito mais completo, embora no argumento, deixe a desejar como ideia isolada – é uma produção que depende demais da primeira instalação para se fazer entender, e se vale disso o tempo inteiro para lembrar a plateia de que sim, este é o filme que veio daquele outro, com aqueles personagens super carismáticos e aquelas aventuras todas.
Como filme separado, não funciona bem, e como sequência, também deixa a desejar. Nem mesmo o single “Into The Unkown”, cantado pelo Panic! At The Disco, conseguiu salvar este projeto. É melhor deixar este aqui passar despercebido – você pode fazer mais pelo seu tempo procurando outra animação, ou até revendo o original mesmo.
Não foi tudo isso.
“Olaf: E ainda assim, a mudança ri de nós com sua beleza.”