Você sabe que o filme é bom quando quer pegar algo pra comer no meio mas não consegue achar uma brecha pra parar. Hipnótico, surreal, nojento, sublime; POSSESSION é o primeiro longa que vejo do Andrzej Zulawski e, olha, muito prazer, viu? Aqui ele é um diretor com mão firme para construir um suspense/terror psicológico de ponta, no estilo do Polanski n’“O Bebê de Rosemary”, misturado com o David Lynch de “Eraserhead”. É claro que Zulawski tem sua própria pegada, sendo “Possessão” um filme muito mais violento e difícil de assistir que esses, mas ainda assim, os gritos histéricos de Isabelle Adjani, que lhe renderam o César e Cannes de Melhor Atriz, ainda hoje ecoam com a mesma força, o mesmo impacto de décadas atrás. É verdade que filmes como “A Mosca” e seus semelhantes beberam da fonte do grotesco em “Possessão”, e não é pra menos: as cenas da criatura, em que nos são reveladas aos poucos informações sobre o que Anna está realmente fazendo aqui, são aterrorizantes. Gradativamente, ficamos de olhos vidrados no problema do casal e nas questões psicológicas que este roteiro, também escrito por Zulawski, parece tangenciar... A única forma de destruir o caos é, primeiro, aceitá-lo. Permitir que ele seja parte de você, observar sua extensão sobre si e só então estraçalhá-lo por dentro. É neste momento que a ferida pode abrir, o momento em que seus maiores segredos podem ser revelados – então você terá posse sobre si? Será dono dos sentimentos, sentidos e intenções que te atravessarem? E se houver algo em você que não pode ser parado? E se isto for tão urgente que pode destruir você e tudo aquilo que ama e conhece? Ainda assim você o alimentaria? Permitiria-o viver? Permitiria-o... Ser você? A possessão no filme não é demoníaca, ela é no sentido TOTAL; querer ser tanto e tudo que se totaliza a experiência, suprimindo o sujeito, tolhendo-lhe o direito ao corpo, ao pensamento e a si mesmo, submissamente. E nessa ânsia de expor o maligno que reside no feminino e no masculino, o filme destrincha reverberações físicas do livre escoar desta submissão, dos dois pelos seus sentidos mais perversos. Ambos se unem e se separam para fazer viver o Absurdo, na forma em que ele chegar ao mundo, tomando tudo... O que de humano pode sobreviver à aniquilação completa do sentido? À tomada irrevogável de todos os seres, de todas as formas – nada mais é posse de algo, senão do Absurdo? Como pensar o seu domínio absoluto e irrefreável sobre as nossas vidas, e de tudo que for nosso? Afinal, que vida se viveria sendo sua posse? É um filme com várias camadas, que com certeza estudantes de Psicologia enxergam melhor, mas no que me compete é suficiente dizer que achei a experiência riquíssima, e de efeitos absolutamente marcantes. É do tipo de filme que você precisa pegar pelo menos mais umas duas vezes para dar conta, tamanha a complexidade de intenções e abordagens presentes. Imperdível pra quem curte cinema transgressor, violento e experimental.
“Anna : Por isso estou com você. Porque você diz 'Eu', para mim. Porque você diz 'Eu', para mim.”
Que lindeza! O segundo longa da Dreamworks é uma animação-musical fantástica baseada num dos principais livros da Bíblia – o Êxodo. Contando a história do jovem Moisés, o estúdio fundado por Steven Spielberg lançou, em 1998, um trabalho completo, bem executado e cuidadosamente desenhado a mão, tendo no primor técnico suas mais fortes qualidades. O PRÍNCIPE DO EGITO é um dos cinco filmes da produtora no formato de animação tradicional que, além da técnica disruptiva supervisionada pelos diretores de arte Kathy Altieri e Richard Chavezpara, contou com a trilha sonora de Hans Zimmer e a excelente dublagem de Ralph Fiennes, Michelle Pfeiffer, Sandra Bullock e até Steve Martin. Sem whitewashing, sem apropriações, o povo hebreu aqui é da cor que tinha o povo hebreu lá, no texto, na vida e no legado histórico-religioso que este deixou, o que torna este filme uma belíssima homenagem à história dessas pessoas... Até hoje, “The Prince of Egypt” é uma referência para as animações, e impressiona pelo avanço técnico em 2-D que a eterna concorrente Pixar, apesar dos prêmios, nunca conseguiu fazer desembocar... Uma lindeza! Assistam pelo amor de Deus pelo Seu povo!
“Tzipporah: Olha, olha para teu povo, Moisés. Eles são livres.”
Não foi tudo isso. Paweł Pawlikowski, cineasta polonês que já levou o Óscar de filme estrangeiro por “Ida”, retorna às indicações com o longa romântico-histórico GUERRA FRIA, disputando as estatuetas de melhor Direção, Fotografia e Filme Estrangeiro. Sendo muito ovacionado na Europa e sobretudo na Polônia, o diretor tem outro longa indicado que, ao contrário do anterior, não parece ter chances de vencer. GUERRA FRIA é um filme primorosamente ambientado nos anos 40 a 60, na Polônia e na França, e aborda o relacionamento amoroso (inspirado nos pais do diretor) entre Wiktor e Zula, um capitalista e uma comunista, durante o surgimento e manutenção do conflito que se chamou de Guerra Fria. O longa explora de que maneira os conflitos externos (a propaganda comunista, os interesses estatais, o exílio político dos rebeldes) afeta o amor que se dá entre os dois músicos, que passam a buscar reencontros em meio à guerra ideológica que lhes é contemporânea. O filme, porém, não vai mais longe. Tendo sido muito bem ambientado no período histórico, é quase só isso que ele oferta: o romance em si é insosso, a trilha é repetitiva, o final é previsível e o conjunto da obra parece insatisfatório, sobretudo no contexto da Academia – ao que parece, esta é a cerimônia mais fraca dos últimos dez anos em questão de roteiros. Acho difícil que o longa de Pawlikowski leve Direção ou Fotografia numa competição em que estão “Roma” e “A Favorita”; é possível, porém, que com Filme Estrangeiro ele se saia melhor. O fato é que, mesmo depois da história terminar, a produção se apresenta abaixo do que se espera, exceptuando-se sua cinematografia - mas boas molduras não salvam quadros ruins. Veja “Ida”! Pode ser mais proveitoso... Não foi tudo isso.
“Zula: Você está interessado em mim porque tenho talento ou de forma geral?”
À mulher periférica, aos descendentes de indígenas e à negritude trabalhadora não será dado o privilégio do luto, do sentir, do amar. As pessoas orbitantes, de movimento pendular, não têm o direito de ser infeliz, uma vez que a tristeza é privilégio dos que já possuíram... A perda, o luto e a saudade são ausências possíveis apenas aos brancos assalariados, à classe média-alta que “não precisa trabalhar para viver”. Quem tá na labuta não tem tempo para chorar a saudade dos amores, a memória da infância, a perda de um filho: precisa primeiro comer pra depois sentir qualquer coisa. É nítida a semelhança com o brasileiro “Que Horas Ela Volta?”, dirigido pela fantástica Anna Muylaert. A narrativa do encontro entre a realidade da família privilegiada com a da(s) empregada(s) doméstica(s) é um dos temas centrais de ROMA, novo longa de Alfonso Cuarón, que anos atrás recebeu o Óscar de direção por “Gravidade”. Este roteiro tem força quando busca fazer um comentário sobre a situação social de Cleo, a empregada “quase da família”, como Regina Casé no outro filme. A atuação de Yalitza Aparicio, primeira indígena indicada ao Óscar, é de pura entrega, e a cinematografia do filme é absolutamente estonteante – Cuarón faz jus ao prêmio de fotografia que “Gravidade” também levou naquele ano. Entretanto, o diretor peca por excessos. Utiliza o recurso da câmera "traveler" e panorâmica à exaustão, tornando o filme muito mais lento do que precisava ser. A condução tem uma cadência bastante vagarosa, e a ausência de trilha sonora causa até certo estranhamento – um filme polido como esse não tem um tema, uma orquestração, um violão que seja? É no mínimo questionável que ROMA se pretenda carregar apenas pela força de seus enquadramentos, pelo trabalho das sombras no P&B e pela atuação do elenco, que, honestamente, não vai muito longe. Em Cleo e sua patroa, Sra. Sofía, temos as grandes performances do filme, mas para por aí mesmo: o longa não busca ser exatamente emocionante, mas esteticamente perfeito, fazendo de seu percurso um comentário poderoso, mas longo demais. No final, depois de quase 2 horas e vinte, a sensação é de que o filme falou bonito, mas com palavras demais: como se pelo menos meia hora (sobretudo a seção dos exercícios de arte marcial) pudesse ser cortada sem a menor perda. Ele parece se estender para além do necessário, apesar de conseguir causar um bom impacto. É claro que são filmes diferentes, mas entre este e “Que Horas Ela Volta?”, sigo preferindo o brasileiro, até pela proximidade cultural que rola. ROMA não é ruim, longe disso, mas também não é essas coisas...
“Sra. Sofía: Estamos sozinhas. Não importa o que eles digam a você, nós mulheres estamos sempre sozinhas.”
Em seu último filme, Tarkóvski revisita proezas realizadas ao longo da carreira e se despede do cinema com um filme robusto, rico em fotografia e com muito de sua pegada autoral. Num geral, “O Sacrifício” é um passeio pelos elementos que mais caracterizaram o cinema de Andrei Tarkóvski, diretor russo que, no exílio da URSS, produziu seus dois últimos longas na Itália e Suécia, respectivamente. Sem perder a mão e adicionando novas ideias à sua obra, “O Sacrifício” apresenta tomadas um pouco diferentes, tendo sido captado quase inteiramente na mesma localidade, e com uma edição ligeiramente mais dinâmica que o anterior, “Nostalgia”. Os temas que este filme aborda são vários, mas sobretudo a relação de fragilidade entre o homem e a Fé, entre a estabilidade mental e a insanidade, entre a tranquilidade e o caos: uma guerra se aproxima e, ilhados, Alexander e os seus estão desolados numa casa de veraneio. Há, porém, um sacrifício possível para que o caos acabe – mas terá ele coragem para enfrentá-lo? Alguns dos elementos revisitados são as instalações de cenas longas, que se desdobram umas nas outras em encaixes de direção de câmera que lembram muito o capítulo do Sino do filme “Andrei Rublev”. As tomadas do campo, com ênfase na pessoa em primeiro plano, lembram a abertura de “O Espelho”, enquanto que o contraluz das cenas nos interiores é característico do “Nostalgia”. Aliás, ainda sobre “O Espelho”, tem uma cena de sexo que lembra absurdamente a tomada de pesadelo dele… Há de se reconhecer a qualidade poética/estética da cinematografia de Sven Nykvist, com quem Tarkóvski trabalhou uma só vez, mas que entendeu precisamente o que os seus filmes comunicavam, e produziu imagens absolutamente estonteantes, que muitas vezes roubam a atenção da própria cena. Creditado ao início como operador de câmera também está Daniel Bergman, um dos filhos de Ingmar Bergman, que fez alguns dos raros (e lindos) movimentos de lente que o filme faz ecoar. A sensação que se tem ao final é de que o longa, num geral, é bastante poético, charmoso e plácido. Sim, ele aborda o caos, mas de maneira bastante leve (quase insustentável), e com a firmeza de punho que só o russo teve. Há comentários sociais, há trabalhos estilísticos incríveis e um final retumbante (que também conversa com seu primeiro longa, “A Infância de Ivan”, por ser bem parecido com a primeira cena). O diretor revisita sua carreira sempre no desafio do “semi-plano-sequência”, com cenas de até 6 minutos corridos com diálogos, posicionamentos não-convencionais e muitas mudanças no mesmo take. Em todos os seus filmes há conquistas muito raras, mas n’“O Sacrifício” ele se despede em grande forma, o sétimo e último grande suspiro de arte de um homem que ainda tinha muito a dizer, mas que infelizmente viria a falecer pouquíssimo tempo depois de lançá-lo… Mas nada ficará indiferente à sua poesia. O resto é e sempre será silêncio.
“Gossen: ‘No início era o Verbo’. Por quê, papai?”
THE WIFE consegue discursar habilmente sobre o problema da mulher na arte, sendo ao mesmo tempo dinâmico e envolvente. O diretor sueco Björn Runge, que até então não tinha feito trabalhos de grande veiculação, encontrou em “A Esposa” certo prestígio. Concorrendo ao Óscar de Melhor Atriz Principal, o longa discorre sobre a relação (aparentemente tranquila) entre Joan e Joe Castleman, na ocasião da recepção do Nobel de Literatura dele. O casal, que se conheceu através das palavras, tem o casamento fragilizado por um aspirante a biógrafo do escritor, disposto a questionar a natureza da sua relação. Do começo ao fim, somos mastigados pelas perguntas que o filme vai deixando, questionando a estrutura deles, e qual o real envolvimento da esposa com a obra do marido. Para um filme que se propõe somente entreter, este aqui foi até mais longe que isso... É uma corrente nova, essa da qual “A Esposa” se vale. Há estudiosos pesquisando agora justamente essas relações de marido x esposa ao longo da história da arte, das ciências e da sociedade em geral – aparentemente, nem sempre “por trás de um grande homem existe uma grande mulher”; às vezes simplesmente não existe um grande homem, para começo de conversa. E, num resgate desses nomes femininos, desses possíveis trabalhos não-conhecidos, tem uma boa galera caindo dentro da pesquisa para confirmar a autoria de peças clássicas, e mesmo livros imortais de “esposas de homens notáveis”. THE WIFE abre o debate e nos deixa com um gosto amargo na boca, do tipo de soco no estômago que só o cinema engajado é capaz de proporcionar. A bronca é dura, o papo é reto, e se faz eficaz nessa hora e meia sem perder nada no caminho. Por ser um filme quase perfeito (aqui e ali certas trilhas não casam bem, e há clichês de direção que incomodam um pouco), o filme merece destaque dentre os que, neste ano, concorrem ao Óscar. Tomara que Glenn Close leve o seu primeiro prêmio! Fantástico.
Esse cara parece ter conseguido acertar na mão. Desde seu sucesso com “Dente Canino” (que tem parecido mais brutal a cada revisita), Yorgos Lanthimos só tem crescido em entusiastas e patrocinadores. Depois de seu primeiro longa em inglês THE LOBSTER ter ganhado o prêmio do júri de Cannes, o diretor grego se viu diante de um público americano verdadeiramente disposto a comprar suas ideias tortas de roteiro e estética. De 2015 pra cá, Lanthimos presenteou este público com três bons filmes, e que fazem jus à sua safra experimental e poderosa do começo da carreira: THE LOBSTER, SACRED DEER e, agora, THE FAVOURITE. Mantendo sua pegada autoral, Lanthimos constrói uma narrativa absolutamente incômoda, com fortes quebras de expectativa em torno do duelo entre duas mulheres pelo posto mais alto entre as queridas da Rainha da Inglaterra. Da primeira cena à última, THE FAVOURITE é um show de horrores, vingança, egoísmo e vaidade, instigando-nos pra ver até onde pode ir o desespero de uma mulher que quer voltar à classe a que pertencia – à aristocracia, ou pelo menos à burguesia que um dia lhe fora prometida. Não chega a ser um conto marxista ou algo parecido, mas “A Favorita” possui suas críticas à luta de classes e de gênero também – um dos pontos altos do filme, aliás... As mulheres, além de serem protagonistas de todo o embate político, elas dominam tanto a trama que os homens no longa não passam de coadjuvantes inexpressivos. Mesmo os lacaios mais próximos da Rainha não se aproximam dos poderes de Sarah e Abigail, que possuem quase tanta voz quanto a própria Rainha. Chega um ponto nos filmes do Yorgos que a narrativa quase te “mortifica” – um efeito literalmente físico do cinema dele no corpo. Lá pelos 80%, a gente sente uma pressão que fica para bem depois da história acabar. É desolador: cada filme, desde sua gênese, têm o poder de marcar a gente de maneiras diferentes. Aqui, em específico, a produção ainda mais robusta que “O Sacrifício do Cervo Sagrado” permitiu uma cenografia de ponta, para além da direção de fotografia característica e do uso de fortes ostinatos na trilha, revisitando elementos presentes em toda a sua obra em inglês. A montagem, finalmente, é só uma lindeza. Parece que Lanthimos realmente achou a mão para produzir um filme que envolve e não necessariamente cansa o espectador; ele exige a atenção por duas horas mesmo, mas não chega a ser um quebra-cabeças experimental como “Alpes” ou o próprio “Dente Canino”. Agora, muito mais concentrado em acertar uma forma comum para seus trabalhos, Yorgos parece ter encontrado a pegada para se firmar na indústria como um dos expoentes do cinema de seu país. Só se pode ficar é muito feliz com isso! Todo o sucesso pra ele... Brabíssimo.
“Abigail: Você veio pra cá pra me seduzir ou estuprar? Samuel: Eu sou um cavalheiro. Abigail: Certo. Então veio me estuprar.” [leia mais em www.cinestesias.com]
“ARTE REQUER VERDADE, NÃO SINCERIDADE” A instalação visual de Julian Rosefeldt tinha tudo para ser uma grande homenagem aos movimentos artísticos do século XX, mas acaba soando pretensiosa, perdendo-se dos manifestos de que se vale para valer a pena... MANIFESTO é uma instalação de doze cenas com doze protagonistas interpretados pela (fabulosa) Cate Blanchett. Não se trata de um filme, exatamente, mas uma instalação em que as doze cenas ocorrem simultaneamente. Transformada em longa metragem, a obra não é difícil de ver, apesar da quantidade de informações despejada nos monólogos dela, mas se trata de uma experiência mais frustrada do que bem-sucedida... Tendo sido filmado em apenas 12 dias, o longa apresenta sinais de pressa na montagem e edição, com pouca preocupação para a trilha sonora, os respiros entre as cenas e o próprio acabamento do projeto. Mesmo assim, é possível desfrutar de alguns dos trechos sem perder muito; “Fatos criam normas; a verdade, iluminação”, “a verdade nunca ocorre fora de nós mesmos” e a primeira citação desta resenha são algumas das que melhor ressoam aqui. Blanchett entrega trechos de manifestos importantíssimos, como o Comunista, o Dadaísta, o Futurista e mesmo o questionável Dogma 95, de Lars Von Trier. Em alguns momentos, dá até vontade de rir dos monólogos em cenas “inusitadas”: sala de aula, noticiário, um mendigo bêbado e uma mulher drogada num pós-festa são algumas das instalações que melhor funcionam, e com Cate dando tudo de si para entregar (mesmo que às vezes caricatamente) o conteúdo artístico/estético do documentário. Por se valer unicamente do discurso que entrega e rejeitar quaisquer convenções cinematográficas, MANIFESTO é uma experiência difícil de esquecer, mas também um filme arriscado que pode ser, para muitos, até monótono. O problema, talvez, resida mais na forma do filme que no conteúdo em si; por causa disso, o longa não tem o impacto que deveria, o que é uma lástima, sobretudo para quem ama a arte em suas diversas manifestações. Os cinéfilos entusiastas e os fãs de Blanchett provavelmente vão adorar este filme. Eu já acho meio difícil assistir de novo com o mesmo ânimo... Fica aqui outro trecho incrível deste roteiro:
“Cate Blanchett: Não ao espetáculo! Não ao virtuosismo! Não a transformações mágicas e de faz-de-conta. Não ao disparate e transcendência da imagem de estrela. Não ao heroico. Não ao anti-heroico. Não às imagens de mau gosto. Não ao envolvimento do artista ou do espectador. Não ao estilo.” [leia mais em www.cinestesias.com]
Uma palavra só: Disruptivo! BANDERSNATCH, dirigido por David Slade, chega depois da quarta temporada da série inglesa “Black Mirror”, não como episódio, mas como um filme. O longa, que tem duração completa de 5 horas e 12 minutos, é uma grande teia de possibilidades que condicionam a narrativa até determinado ponto, tendo 5 finais definidos, mas com alterações em seu percurso. No fim, chegamos a um dos desfechos em aproximadamente uma hora e meia, podendo voltar e mudar decisões para conhecer os outros desfechos possíveis, até nos cansarmos disso. Aqui e ali, certos aspectos se sobressaem: Stefan, o programador protagonista, começa a perder cognição, num breakdown mental bizarro que nós inclusive podemos piorar, então em muitos momentos a trama pode ficar surrealista, envolvendo brigas, mortes absurdas, mistérios que não se resolvem e subtramas estranhas bem-inseridas no roteiro labiríntico de Charlie Brooker. A experiência da escolha, mesmo que por vezes nos recoloque na posição original para que tentemos a outra resposta, é inédita e ocorre num bom ritmo – a cada dez minutos, mais ou menos, o filme nos dá a oportunidade de mudar o seu curso, o que torna o fenômeno pontual e por isso mesmo bem mais forte. Há, porém, um momento muito interessante, quando
negamos o lisérgico que Colin oferece: o coadjuvante coloca a bala na bebida de Stefan apesar de nossa negativa, que ele toma sem seu consentimento; é este o tipo de intervenção que muitos espectadores acharam absurda, mas que é genial: nós negamos, o menino obedeceu, mas no contexto do filme, não dá para escapar, porque a escolha já é uma ilusão – Colin já “escolheu por ele”. Nunca antes foi possível, durante um filme, decidir o que iria acontecer com o protagonista, ao vivo, a partir das nossas intenções. Isso só rolou porque a Netflix vingou, e deu à marca Black Mirror a oportunidade para concretizar este ambicioso projeto.
Muito se fala sobre como o longa “não permite que escolhamos mudar completamente a narrativa”, mas a intenção aqui não é essa: metalinguisticamente, só podemos alterar a história de Stefan nos moldes do que a Netflix permitir, o que nos torna objeto da própria crítica do filme – tentando alterar a narrativa e se frustrando com as repetições, nós somos como o protagonista, tentando inutilmente fugir do destino que algo "superior" escolheu para ele/nós. É uma trama simples, linear e até “morna”, como um episódio fraco da série da qual surgiu, mas a experiência que o projeto proporciona é interessante demais para passar batida: BLACK MIRROR: BANDERSNATCH é um evento pretensioso que, formalmente, deu muito certo – e foi disruptivo justamente no sentido de ressignificar uma tecnologia existente, criando outra maneira de nos relacionar com ela. Basicamente, é o que a série se propõe a fazer desde a gênese, e recentemente vinha falhando em entregar um repertório decente de intervenções deste tipo. Aqui, Charlie Brooker e David Slade conseguiram dar mais um passo. Kudos. Leia mais resenhas em http://cinestesias.tumblr.com
“Colin: You know what Pac stands for? PAC. Program and Control. He’s Program and Control Man. The whole thing’s a metaphor. All he can do is consume. He’s pursued by demons that are probably just in his own head. And even if he does manage to escape by slipping out one side of the maze, what happens? He comes right back in the other side. People think it’s a happy game. It’s not a happy game. It’s a fucking nightmare world. And the worst thing is? It’s real and we live in it.”
O polêmico realizador Lars von Trier revisita abordagens antigas e entrega, agora, uma história talvez comportada demais para os seus próprios padrões. Quem assistiu ao “Ninfomaníaca”, de 2013, veio ao THE HOUSE THAT JACK BUILT já familiarizado com a estruturação ‘alternativa’ do diretor dinamarquês. Aqui, mais uma vez, temos uma história linear, contada em flashbacks, através do diálogo entre dois protagonistas – de um lado, Jack, um serial killer assumido (muitas vezes exclusivamente feminicida), e do outro, Verge, um misterioso homem que o escolta por um lugar escuro… A boa edição e o uso da “câmera na mão”, aliados aos silêncios repentinos e à trilha sonora mínima, são alguns dos recursos que melhor favorecem “A Casa Que Jack Construiu”. Todo o filme se encaminha para o desfecho mais catártico da obra de von Trier, com uma espécie de “justiça por acerto de contas” que é pouco comum em seu cinema (vide os finais dos excelentes “Anticristo”, “Dançando no Escuro” e “Dogville”, por exemplo). Novamente, o diretor/roteirista apresenta os motivos pelos quais ficou conhecido – com seu cinema pretenso, ele rebate as críticas sobre seu pronunciamento em Cannes, em 2011, e às acusações de misoginia pelas quais passou nos anos seguintes. Jack (Matt Dilon), um serial killer que “prefere matar mulheres porque são mais fáceis”, é o centro da trama, e será através de seus olhos que veremos o mundo, por sua lógica torta e questionável. O diretor, que em Cannes falou que “entendia Hitler, entendia suas motivações”, parece ainda justificar seu pronunciamento em determinado momento, fazendo-o pouco antes de um minuto de takes de seus próprios filmes, numa autorreferência desnecessária, digna de um Gaspar Noé. O contraponto, aqui representado pelo Verge (Bruno Ganz), é o que torna todo o longa assistível, porque ele é o único personagem que de fato questiona a natureza dos atos de Jack, e o coloca em seu devido lugar – ao final, entendemos “para onde” eles estão indo e o que Jack receberá pelo mal que causou… De qualquer forma, a catarse do fim não consegue camuflar o fato de que o filme, como ato isolado, é mediano, e dentro do contexto de sua obra, um dos mais “comportados”; não que matar mulheres, crianças e homens seja sinônimo de “bom-comportamento”, mas em se tratando de Lars von Trier, o longa em si não se apresenta satisfatório mesmo pela abordagem do tema – parece superficial “demais”, apesar das pretensões de profundidade distribuídas nos debates sobre arte, artistas e a ética/filosofia/moral ocidental. Tendo bem menos digressões que “Ninfomaníaca”, THE HOUSE THAT JACK BUILT se apresenta muito mais interessante neste sentido (e bem menos fetichista), mas não parece alçar um voo muito duradouro: não penso que este filme será revisto por muitas pessoas daqui a uns dez, quinze anos. Acho que Trier já produziu um material muito mais original no passado, e que reverberou de maneira muito mais forte do que este aqui. Talvez a decisão de se aposentar seja, de fato, a melhor para ele. Fico com seus longas mais antigos, e é isso.
“Jack: Se você sente que deveria gritar… eu definitivamente acho que deveria.”
Descompromissado com a entrega de uma história embasada, BIRD BOX não vai tão longe assim. O novo longa da diretora Susanne Bier, dinamarquesa responsável pelo vencedor do Óscar de melhor filme estrangeiro “Hævnen” em 2011, recebeu intenso marketing ao final deste ano, sendo estrelado pela (fantástica) Sandra Bullock e tendo entre seus coadjuvantes John Malkovich, Trevante Rhodes (Moonlight) e LilRel Howery (Corra!). Considerado pelo próprio autor uma boa adaptação do livro, o filme apresenta sinais de inconsistência recorrentes nas produções da Netflix; o roteiro parece ter sido feito de uma vez, sendo unidimensional e por vezes raso demais. As cenas bem rodadas parecem artificiais em muitos momentos (principalmente nos mais tensos), e todo o clima lembra uma mistura The Walking Dead com aquele do suspense do Shyamalan, THE HAPPENING: um apocalipse suicida causado por uma toxina que a natureza passa a liberar, em represália aos maus tratos que a Humanidade causou a ela. Inclusive, este filme estreou 6 anos antes desse livro ser lançado... É bem verdade que “Caixa de Pássaros” tem seu primor técnico na fotografia, e na excelente entrega dos atores (sobretudo no núcleo central). Em alguns momentos, há muita tensão bem-feita e, apesar de o filme começar com uma grávida capotando e batendo sem sofrer nenhuma sequela, na maior parte do tempo a “suspensão de descrença” rola sem grandes questões. O problema é que não importa “o que é” a criatura – se uma metáfora pra depressão, pro racismo ou pra depressão pré-parto – mas o fato de que o filme não tem a menor intenção de dar a ela qualquer significado ou substância, bastando-se com “a entidade maligna que é antagonista deste filme”. “Não vê-la” não é um problema, mas a sua não-contextualização nos impede de temê-la e, por isso mesmo, simpatizar com a situação de Malorie e sua família. Uma vez que o problema é invisível e não tem embasamento qualquer na narrativa, mesmo citando diversas mitologias para dar conta dele, todas as mortes parecem gratuitas, descartáveis, sem sentido, acontecendo só para preencher o vazio de um roteiro fadado como cada suicida que morre nele... "Feche seus olhos"? Eu preferiria não ter visto mesmo... Filme fraquinho, sobretudo pelo marketing robusto de que se valeu. Não indico.
“Malorie: Listen to me, we're going on a trip now, it's going to be rough. If you hear something in the woods, you tell me. if you hear something in the water, you tell me. But under no circumstances are you allowed to take off your blindfold.” (leia mais em https://cinestesias.com/)
Depois de acompanhar o desenrolar que veio a partir deste documentário, a gente se pergunta que outros tipos de “negócios” não devem rolar no contexto da deep web e dos “serviços” que por lá se dão... TICKLED, o longa de estreia de David Farrier e Dylan Reeve, disseca os absurdos que circundam os aparentemente inocentes vídeos de “competições de resistência a cócegas”. À medida que o documentário avança, vamos perdendo a vontade de rir da ideia e começamos a ter um vislumbre mais realista do que é, de fato, o submundo das cócegas – como um fetiche, como uma maneira de dominar o outro (sexualmente ou não). O filme não apresenta inconsistências de argumento; cada passo dado é revisado pelos habilidosos jornalistas que assinam o longa, encarando processos milionários durante sua produção e, ainda, tendo que aguentar os próprios donos da Jane O’Brien Media em sessões do filme nos festivais de cinema dos EUA. Todas as acusações foram retiradas mais tarde, mas o fuzuê que este filme gerou não tá no gibi, e só por isso ele já merece uma conferida. O assunto, em si, causa certo estranhamento: como assim competições de cócegas geram milhões de dólares, e incluem carros, casas e outros valores para seus participantes? Farrier e Reeve estão certos de que há algo por trás disso, e que não cheira bem, e tentarão ir até o limite de si mesmos para encontrar essas respostas. TICKLED deve ser assistido seguido de THE TICKLE KING, que resume os eventos que circundaram a estreia do filme (e os confrontos com os mesmos homens que não quiseram ser entrevistados para a sua produção). O que realmente entristece é que a página da Jane O’Brien Media continua de pé, e ao que parece todo o acervo foi transferido para uma nova página, chamada Tickletopia. Apesar de toda a polêmica, a organização (que parece ser um imenso polvo de tentáculos infinitos) se safou da difamação do doc e saiu ilesa, tendo mudado apenas de nome. Muito embora David D’Amato, o antagonista do filme, tenha falecido em 2017, a questão que TICKLED levanta continua ecoando, agora sem um responsável definido para ser respondida: quem está por trás disso e quantas pessoas com este fetiche estariam sendo beneficiadas com a veiculação ilegal dos vídeos desses garotos? São perguntas possíveis, e bastante complicadas de responder. Resta-nos reassistir ao material, na intenção de buscar alguma outra resposta para elas... Assombroso.
“David Farrier: Comecei esta jornada intrigado a respeito de um esporte bizarro chamado 'Competição de Resistência a Cócegas', mas agora acho que isto nunca foi sobre cócegas... Isto é sobre poder, controle e assédio. É sobre a loucura de uma pessoa, e quão longe ela pode ir. Uma pessoa que conseguiu se proteger com dinheiro suficiente para continuar sua obsessão sem problemas. Mas agora, é a vida dele que está exposta. Pelo menos uma vez, é ele na câmera.”
O ódio é sempre filho do medo. O notável realizador Spike Lee volta às telas com o ambicioso “Infiltrado na Klan”, longa que traz ainda mais vitalidade à carreira provocadora do diretor, com filmes como os aclamados “Malcolm X” e “Do The Right Thing”. O protagonismo negro, a crítica social e as reivindicações por representatividade num contexto cada vez mais racista fazem de BLACKKKLANSMAN um dos melhores e mais atuais filmes do ano. Didático e direto-ao-ponto, a produção de Jordan Peele conta a trajetória de Ron Stallworth, o primeiro policial negro do Colorado que nos anos 70 passa a investigar a Ku Klux Klan, que desde 1945 vinha crescendo em número de praticantes no país. Spike Lee, que nos anos 90 já era considerado um dos maiores cineastas sobre a questão afro-americana, disseca a narrativa surpreendentemente cômica tranquilo e ainda nos entrega referências incríveis ao final, com os recentes desfiles dos supremacistas brancos e discursos do presidente dos EUA dizendo que, entre eles, “provavelmente tem muita gente boa também”. Este longa já levou o Grand Prix de Cannes e tenho certeza que vai levar ao menos uma indicação por melhor roteiro adaptado no Óscar! Tirando aqui e ali alguns exageros (certas piadinhas sem graça e a repetição insistente da mesma trilha sonora), “Infiltrado na Klan” é um filme que cai ao gosto do público sem o menor esforço, e consegue fazer um discurso inabalável anti-racismo e contra o anti-semitismo. Sendo Ron e Flip respectivamente negro e judeu, o filme trabalha a questão do preconceito a essas pessoas de diversas maneiras, finalizando com uma bandeira do país ao contrário, e em preto-e-branco. Com isso, o recado foi dado! É um filme muito bom. E para uma produção comercial, dá pra colocá-lo junto à “13ª Emenda”, como uma leitura complementar bastante proveitosa. Bravo!
“Kwame Ture: Se eu não sou por mim, quem será? Se eu sou por mim sozinho, quem sou eu? Se não agora, quando? E se não vocês, quem?"
Steven Spielberg, premiadíssimo diretor que dispensa introdução, fez filmes que marcaram gerações: “Tubarão”, “E.T. – O Extraterrestre” e todos os da saga “Indiana Jones”, por exemplo. Agora, retornando à ficção científica que o consagrou, o cineasta estadunidense apresenta um prognóstico no mínimo alarmante sobre a maneira como podemos nos relacionar daqui a 30 anos, na superprodução futurista READY PLAYER ONE, uma aventura distópica super-engajada com os esportes eletrônicos, os chamados "eSports". O papo já havia sido dado no longa de Mark Neveldine e Brian Taylor, “Gamer” (2009). Neste filme há um retrato do “hiperestímulo” e da realidade virtual como processo inevitável no contexto da pós-modernidade – porque a realidade não dá mais conta de entreter ou encantar qualquer pessoa, todos vivem por e para a vida virtual, no estilo “Nosedive”, só que muito pior... Neste e naquele filme, os “delírios luminosos” chegam a ser frustrantes para os olhos (muito por causa do exagero), e em ambos a megaprodução acaba saturando a narrativa de efeitos especiais e recheios que mais fazem por estética que por narrativa (embora sejam filmes muito bem-feitos, neste sentido). A sensação que dá, no final das contas, é a de que Spielberg não exatamente critica este modelo de consumo anestesiante, mas o reconhece em vários momentos da história da cultura pop (sobretudo quando o filme passa por quase meia-hora de homenagem a “O Iluminado”, de Stanley Kubrick). Por vezes, vemos que a situação social de Wade Watts é tão ruim que ele usa a OASIS para evadir dela, mas é como se o diretor espertamente pusesse no mesmo saco todo o legado histórico de video-games dos anos 80 pra cá, e resumisse tudo numa frase: a evasão é a mesma e, por isso, deve ser igualmente homenageada. Pois é isso que os consoles são, afinal; “consolos”, evasões da realidade. É claro que há benefícios mentais de raciocínio, lógica, reflexo e de outras naturezas no uso que fazemos dos jogos, mas será que uma vida inteira dedicada à tela é uma vida completa, saudável e disposta, como o filme mostra? Porque, no fundo, pessoas que passam mais de 12 horas por dia jogando não necessariamente se sentem dispostas assim, e há estudos recentes a este respeito. Spielberg, aqui, não comenta sobre eles, e eu entendo: trata-se de uma superprodução para o público mais jovem, naturalmente consumidor desses mesmos games, e uma crítica dessas talvez não fizesse sentido no contexto do filme. Porém, o silêncio a respeito da saúde física e mental desses protagonistas (se eles fossem pessoas de verdade) pode não ser de todo benéfico: afinal, Wade vira uma exceção em meio à regra de pessoas miseráveis, de cuja miséria querem escapar criando avatares em espaçonaves. O filme, em si, é um raso (e bom) divertimento. As leituras possíveis, porém, vão bem mais longe que isso. Assistam.
“Halliday: Eu criei a OASIS porque nunca me senti em casa no mundo real. Simplesmente não sabia como me relacionar com pessoas lá. Tive medo por toda a minha vida, até o dia que eu soube que minha vida estava acabando. Então eu percebi que... Por mais assustadora e dolorosa que a realidade pode ser, ela é o único lugar em que você pode pegar uma refeição decente. Porque a realidade... é real.”
Há imagens aqui que não têm preço. PANTANAL é uma produção da 3 Tabela Filmes que ecoa demais. Assisti numa mostra chamada Planeta.doc, um festival de cinema que premia documentários que tratem da sustentabilidade e do ecossistema de maneira socioambiental. A Planeta.doc ainda disponibiliza os filmes participantes em seu site, por vezes fazendo exibições em escolas e universidades; um trampo lindo de se ver, de verdade... É neste contexto que “A Boa Inocência de Nossas Origens” chega com força, tendo sido dirigido pelas firmes mãos de Isabella Faya e Eduardo Nunes. O doc apresenta a vida, cultura e sobretudo a humanidade de populações ribeirinhas do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; os pescadores com suas dificuldades, sua ancestralidade e seu notável equilíbrio com a natureza. Os entrevistados, em sua maioria, dependem da pesca pra viver, pesca esta absolutamente autônoma e sustentável ecologicamente. Como uma das especialistas diz, “não podemos mais falar em meio-ambiente sem uma perspectiva socioambiental”, até porque observar essas localidades por essa ótica remove do contexto os povos que nasceram, cresceram e hoje dependem do meio-ambiente para resistir: “a pesca não é um lazer nosso, é nossa maneira de nos alimentar. É o nosso trabalho”, diz uma pescadora, em outro momento do filme. O mais incrível de PANTANAL (além das imagens lindas, costuradas pelos inesquecíveis poemas de Manoel de Barros) é que ele adereça direitinho o problema ao agronegócio: não poucas vezes ribeirinhos contam de abusos, maus-tratos e de expurgos pelos quais passaram quando os "donos reais das terras” vieram tomar posse delas – a indústria agropecuária com sua ambição por capitalizar tudo que na natureza ainda não tenha sido capitalizado. É o encontro de Lampião com Eike Batista, mas em outra região do país. Novas embalagens para antigos interesses, e quem quiser conferir, é só colar no site do Planeta.doc! Vale muito a pena. Filmaço! Confiram!
“As pessoas sempre pensam no Pantanal como um paraíso selvagem rico em biodiversidade, mas esquecem que há séculos homens e mulheres das comunidades tradicionais resistem a todo tipo de ameaça e conservam esse conjunto de riquezas que foi reconhecido como Reserva da Biosfera Mundial pela Unesco. Exibir o filme no dia do aniversário do Rio Paraguai, esse rio que corta quatro países até desaguar no Atlântico, é um presente que queremos dar para os pescadores de Cáceres.” – Izabella Faya.
Não sei dizer se este filme conseguiu alcançar o que queria. A ÁRVORE DA VIDA é um longa ambicioso de Terrence Malick, que conta a história de um homem através do tempo, focando em seu crescimento em Waco, Texas, e indo filosoficamente do big bang até uma espécie de “fim dos tempos”, pelo menos para a humanidade. Sendo introduzido com uma passagem do livro de Jó, de cara percebemos que há certo viés existencialista/cristão no filme, não somente pelas menções às descobertas científicas sobre a origem do mundo, como também às inúmeras referências à religião cristã – desde as muitas igrejas frequentadas pelos protagonistas até as conversas com Deus. O longa tem uma história central, mas é sensível que o intuito não é contá-la: a ideia, aqui, é criar imagens em experimentos estéticos/estilísticos, capitaneados pelo lendário Douglas Trumbull, o supervisor de efeitos especiais de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, do Stanley Kubrick. Depois que o protagonista Jack O’Brien observa uma árvore, ele começa a fazer uma reminiscência sobre tudo o que viveu e também toda a existência pré-si. A ideia de usar o abstracionismo como recurso linguístico é genial – vemos células, mitocôndrias, plasma, vulcões, dinossauros e todo tipo de animal pré-histórico durante a primeira hora de filme, o que é uma decisão muito perigosa (e que custou as saídas de muitas pessoas dos cinemas no mundo). O filme tem uma pegada autoral muito forte, só que foi vendido como um drama com Brad Pitt (é só ver como o trailer sugere um drama “convencional”, quando o filme passa longe demais dessa experiência para ser vendido assim). Por mais que nos deleitemos com o primor técnico/fotográfico da obra, e mesmo a ambientação nos anos 50, o longa não parece saber exatamente para onde vai, e todo o seu percurso acaba não terminando satisfatoriamente. Lembro de ter tido a mesma sensação com o “Samsara”, um documentário ‘mente aberta’ do mesmo ano sobre a meta-narrativa oriental: você vê inúmeras imagens de pessoas, momentos, atitudes, lugares, e elas só vão passando, uma a uma, e você, num exercício desgastante de contemplação hermética, precisa se esforçar para dar um sentido (ou vários) para o que está sendo visto. Assim ocorre com “The Tree of Life”, na medida que a última hora do filme é como um grande acervo de memórias de um homem que, ambiguamente, parece prestes a morrer e a viver de novo. E é este talvez o ponto mais alto do filme: sua incerteza. Não temos confirmação de qual dos irmãos morreu, ou como, nem por quê, e também não sabemos direito para onde foram os personagens no intermédio entre a infância de Jack e a sua vida adulta como arquiteto. Só o que temos são flashes, bem no estilo "O Espelho" do Tarkóvski, da vida de um homem que passa a revisitá-la para encontrar justificativas, perspectivas ou até verdades diferentes para o que viveu. Inclusive, em vários momentos, pensei que Malick tinha se inspirado diretamente n“O Espelho” para compor algumas dessas imagens da natureza, das algas, com esses enquadramentos tão bonitos... O filme em si é estonteante, mas é quase só isso. Depois de duas horas e meia de sessão, o que a gente sente mais se assemelha a um cansaço irreconciliável do que um real aproveitamento de uma obra densa e profusa. A impressão que passa é que este projeto, como o “Enter The Void”, do Gaspar Noé, demorou tantos anos para ser produzido e finalizado que acabou perdendo sua força de discurso no meio do processo, tanto pelas escolhas de tratamento da (anti-)narrativa, quanto pela própria duração – sendo o filme de Noé ainda menos tolerável, com suas colossais 3 horas de “existencialismo”. Foi o primeiro da filmografia de Malick a que assisti, e acrescento que gostei muito da forma dele. Este tipo de filme contemplativo, quando bem feito e mais sucinto, evoca de nós reflexões das mais profundas; a exemplo do clássico “Koyaanisqatsi”, de 1983, com suas vastas imagens do avanço da urbanização no contexto ocidental. É claro que são abordagens diferentes, mas talvez o filme de Malick ganhasse mais se tivesse tido a mesma fritação experimental, mas quase uma hora a menos. Esperava mais da experiência, mas vou conferir seus outros filmes...
“Jovem Jack: Eu não sabia Seu nome naquela época, mas sei que era Você. Sempre Você me chamando...”
Apesar do marketing americano ter estampado “destemidos vivem para sempre” nos posteres promocionais, BOHEMIAN RHAPSODY não é um filme “sobre o Queen”, mas sobre Freddie Mercury e o Queen. Como mais tarde foi escrito em outro poster, “a única coisa mais extraordinária do que a música deles é a história dele”, e isso resume bem qual é a pegada do longa de Bryan Singer, que tem em sua carreira cinco filmes da franquia X-Men e dois filmes sobre o Super-Homem para contar. Deixando os super-heróis de lado, Singer aqui conduz com boa dinâmica e consciência vários aspectos importantes sobre a banda (de dentro e fora dela). As discussões com a gravadora, a dissolução do casamento de Mercury, o lançamento de seu álbum solo, “Mr. Bad Guy”, e vários outros fatos são aqui narrados de maneira bastante instigante, mesmo para quem não os conhece a fundo. A performance de Rami Malek como Mercury é um show à parte, e os atores chamados para encarnar os demais membros são tão fieis aos originais que parece que voltamos no tempo para assisti-los (e mesmo os próprios disseram que se confundiam se eram eles mesmos ou não no filme). Por tudo isso, o longa pode ser considerado muito bem-feito, e moderadamente fiel à história como se deu – dada a liberdade para modificar alguns contextos, a fim de tornar a narrativa mais coesa e retilínea, e, portanto, mais cinematográfica. Porém, o filme tem uma questão. Hollywood e a Indústria Cultural costumam fazer isso: higienizar personalidades notáveis, içá-las ao patamar de gênios romantizados, e glorificar suas mortes escolhendo por quais motivos serão lembrados para sempre. É claro que Freddie Mercury detinha (provavelmente) o maior talento entre os músicos do Queen, mas o que fica sensível em BOHEMIAN RHAPSODY é como as atitudes dos quatro, como banda e como indivíduos mesmo, beira uma santidade que não parece real. O filme, tendo sido produzido pelo ex-empresário da banda, Jim Beach, faz compreender que nas festonas que Mercury dava, por exemplo, o trio de amigos imaculados simplesmente não tiveram par em sujeira alguma. Com raríssimas exceções, em momentos como Freddie expondo as traições de Roger Taylor para sua esposa, vemos crítica nesse sentido; no mais, todo o tratamento à “parte ruim” que a banda passou soa como um retrato “parcial demais”, mesmo abordando as dificuldades de Freddie com as drogas, por exemplo, entre outros fatores menos conhecidos. Isto, em si, não prejudica o filme, que tem fôlego e dinâmica para entreter e emocionar por quase duas horas e vinte direto, sem pausas. O longa de Bryan Singer, apesar de “para a família” demais em se tratando do estilo de vida de Freddie Mercury, é plenamente capaz de fazer o que é o melhor de seus objetivos: incitar novas pessoas a conhecer e gostar da banda. Tendo sido feito como um retorno aos anos 70/80, mas para a nova geração que chega nos anos 2000, BOHEMIAN RHAPSODY é um filme para ser assistido por todas e todos, sem restrições. E ainda tem “Another One Bites The Dust”! Porra! Que musicão...
"Roger Taylor: [singing in high pitch] Galileo! Freddie Mercury: Do it again. Roger Taylor: [singing in high pitch] Galileo! Freddie Mercury: One more. Roger Taylor: HOW MANY MORE GALILEOS DO YOU WANT?"
Nada surpreendente, em se tratando do diretor que estamos falando... Filme de estreia de Andrei Tarkóvski, A INFÂNCIA DE IVAN tem perfeita consciência de onde quer chegar. Trata-se do primeiro resultado físico de um homem que ainda aos 30 anos já tinha concebido sua abordagem estética/filosófica ao cinema, tendo sido recém-formado pela VGIK, em Moscou, alguns anos antes. Este trampo sucede seu TCC, “O Rolo compressor e o Violinista”, e foi a produção que o catapultou para uma notoriedade ímpar no cinema de seu tempo: Bergman e Kieslowski chegaram a dizer que este filme os impactou diretamente no fazer cinematográfico, e não é à toa: “Ivan’s Childhood” levou até o Leão de Ouro do ano, proporcionando a Tarkóvski a popularidade necessária para que a Mosfilm seguisse em parceria com ele para fazer o cinema soviético progredir em sua direção. É notável o trabalho do diretor de fotografia Vadim Yusov, que mais tarde trabalharia com Tarkóvski nos excelentes “Andrei Rublev” e “Solaris”. O cuidado que ambos colocam na imagem, na condução dos takes, nas cenas ao ar livre, a cena do beijo (!!!), a fuga pelo mangue... O filme é todo filmado de maneira excelente, com a mão firme de condutor experiente que Tarkóvski já tinha, mesmo no seu primeiro trabalho em longa-metragem. Os recursos de misturar sonhos com realidade, a enigmática presença dos cavalos, seus estudos sobre a água e sua maneira ímpar de trabalhar a natureza (sobretudo naquela cena com o Capitão Kholin e Masha) tornam toda a experiência de IVAN muito mais completa e satisfatória. Por vezes, as escolhas de direção sobressaem aos olhos e à própria cena, e somos tomados de assalto por enquadramentos que só nos deixam mesmo embasbacados de tão certeiros, tão bem compostos. Para além de tudo isso, o comentário social que Tarkóvski tece sobre os horrores da guerra (que Ingmar viria a continuar em seu exímio VERGONHA, em 1968), faz todo o sentido e encontra respaldo nos roteiros seguintes em que ele trabalhou: “O Espelho” e “Solaris” são bons exemplos. E é encarnando nesta criança, na “infância” que esta criança não chegou a ter completamente, que Andrei discorre sobre talvez o maior horror de todo o filme: a perspectiva de ter a memória, mas de nunca poder retornar ao tempo da inocência que o corpo pede, por causa do amadurecimento forçado e traumático que reside nos embates físicos de uma guerra como a Segunda Guerra Mundial. O Holocausto foi a infância de vários Ivans reais. Que nunca nos esqueçamos deles... Maravilhoso.
Mãe de Ivan: Se um poço é realmente fundo, você pode ver uma estrela lá embaixo mesmo no meio de um dia ensolarado.
Fofo! ABOUT A BOY é um daqueles filmes na onda de comédias românticas com um “conto moral”, uma lição que é aprendida – no caso, a lição de Will (Hugh Grant), um cara machista e babaca, que aprende a não ser assim. O processo se dá através das conversas que tem com Marcus, um menino nerd de 12 anos com uma história de vida pesadíssima para contar... É sempre perigoso escrever roteiros a respeito de pessoas com transtorno de humor, depressão e que podem até se tornar suicidas (sobretudo na comédia romântica), mas ABOUT A BOY, apesar de alguns tropeços em piadinhas aqui e ali, consegue sair satisfatoriamente bem da zona de conforto, e nos entrega uma história bastante agradável. Este filme, inclusive, foi roteirizado pelos diretores Chris e Paul Weitz para se tornar uma série, lançada em 2014, com o mesmo nome. É a história de superação do ócio, e um conto sobre o movimento que há nas palavras de uma criança, quando são sábias e nos ensinam a ser, sobretudo, melhor.
Uma grande porcaria, isso sim... O GRANDE CIRCO MÍSTICO, nosso candidato ao Óscar do ano que vem, tem falhas terríveis. São atuações fracas, um péssimo encadeamento dos núcleos narrativos e uma edição que parece feita às pressas, para participar de festivais. O longa, de Cacá Diegues, mal estreou e já estava envolvido em polêmicas: pelos maus tratos aos animais que retrata, a produção sofreu vários boicotes em Portugal, onde foi rodada. O filme narra a trajetória da família Knieps, dona de um grande circo, no curso de suas tristezas e felicidades ao longo de um século – mas não consegue ir mais longe que um mero exercício de fotografia, iluminação e cor. As subtramas são superficiais, há misoginia demais no filme (o diretor claramente tem fetiches por suas atrizes peladas), todas as violências e suas questões são gratuitas ou mal-exploradas, e a experiência, em si, se mostra muito aquém do que podia ter sido – ainda mais para uma obra produzida ao longo de três anos. Fica perceptível que uma pesquisa foi feita em cima de “Moulin Rouge”; o diretor de fotografia, Gustavo Habda, admitiu ter se inspirado no filme de Baz Luhrmann para encontrar “um lado mais moderno de encenação, cenário e luz”. Ao longo das quase 2 horas de filme (que se estende de maneira a parecer até mais longo que isso), nos perguntamos a quê exatamente estamos assistindo, e por quê este filme é o nosso representante para a próxima cerimônia do Óscar (e não um “Aquarius”, do Kleber Mendonça Filho, por exemplo). Vai ficando escancarado como O GRANDE CIRCO MÍSTICO não possui substância e nem consegue entregar entretenimento, reflexão, ou ao menos um retrato fidedigno das décadas que apresenta – o filme é uma enorme salada de frutas escolhidas de qualquer maneira, tangenciando temas como abuso de drogas, aborto, infidelidade, estupro, incesto, doenças mentais e celibato, sem conseguir produzir sequer uma linha decente a respeito de qualquer um deles. À parte de Jesuíta Barbosa, que dá um show de atuação, e dos méritos técnicos deste trabalho, O GRANDE CIRCO MÍSTICO é daqueles filmes de se passar longe no cinema. Assistam a qualquer outra coisa, que vai ser melhor. E tenho dito. Que vergonha...
“Celavi: Se a fantasia faz bem, troque então a realidade por ela!”
“Acossado” é um filme bastante acessível, mas parece tropeçar socialmente em seu discurso vanguardista... À BOUT DE SOUFFLE, primeiro longa de Jean-Luc Godard, com roteiro assinado por François Truffaut, impactou o cinema de maneira poderosa e definitiva, sendo até hoje lembrado por seus controversos jump-cuts – os cortes que uma mesma cena tem ao longo de seu curso. O filme todo é baseado na técnica, e Godard quis provocar a radicalização desta experiência, para nos deixar cada vez mais “sem fôlego” ao longo do filme – e como isso funciona, viu? Aspectos que facilitam a digestão de “Acossado” incluem o fato de que ele é bastante acessível, fácil de entender – muito diferente do “Demônio das Onze Horas”, outro longa do diretor, muito mais radical em sua abordagem à Nouvelle Vague que emergia. “Acossado” não tem fôlego porque está sempre com pressa, e a pressa ecoa nele porque é até uma maneira de editá-lo; o longa tem edição fugaz, fortificando a fuga que Michel, o protagonista, protagoniza. Tendo sido totalmente escrito de improviso, e filmado em apenas 4 semanas, À BOUT DE SOUFFLE antecipou a estética “vaga” da Nouvelle Vague, embora não tenha radicalizado a estrutura ou a narrativa em si. Aqui, na estreia de Jean-Luc, o que sentimos é que o enredo está sendo descoberto durante a gravação – primeiro, porque os diálogos não necessariamente se interconectam, depois, porque é bastante tangível o fato de que os atores não têm noção do que está para acontecer nas próximas cenas [Godard disse mais tarde que acordava de manhã e escrevia o roteiro do dia com Truffaut, e ia gravar com os atores à tarde]; toda a abordagem do fazer artístico era radical e, para hoje, nada problemática. Mas o problema deste filme está em outro lugar. Para além dos aspectos técnicos, “Acossado” perpassa questões muito problemáticas – e não sei se consegue fazer um comentário social exatamente crítico a esse respeito. Há machismo demais em quase todas as atitudes de Michel, e a Patricia, uma mulher quase completamente submissa a ele, apoia-o em sua empreitada sem nem questionar. Há muita generalização porca em forma de sexismo aqui, compreendendo de maneira bem preconceituosa como os gêneros se relacionam ou podem vir-a-se-relacionar. Há abuso em suas atitudes perante a 'amada', e não sei dizer se o filme consegue realmente tecer uma crítica sobre esse abuso ou se o incorpora como linguagem de si – porque nem os personagens mais distantes do núcleo principal questionam essas violências. De qualquer forma, é o aspecto sobre o filme que, hoje, mais incomoda. Fora isso (se é que é possível separar tais coisas), À BOUT DE SOUFFLE tem sua relevância estética na história do cinema, e o seu impacto foi sentido ao longo dos anos 60 – e em todo o arcabouço cultural que herdamos desta década. No mais, é silêncio. Enxergar é não ver.
“Parvulesco: Duas coisas são importantes na vida: para homens, mulheres; para mulheres, dinheiro.”
Difícil de digerir, mas vale muito a pena. Design de produção arrojado, figurino excelente, boas atuações e um final chique, muito chique, essas são as palavras para definir o segundo longa de Tom Ford, NOCTURNAL ANIMALS. O estilista da Gucci assina a direção, produção e o roteiro deste filme neo-noir ambicioso, e não erra a mão ao desenvolver suas ideias. Pensei que a obra não fosse passar no teste de Bechdel (os diálogos entre as mulheres envolvem quase sempre o ex-marido de Susan), mas, felizmente, passou! Notei também que, na real, apesar de ser a protagonista, o filme não se trata da personagem de Amy Adams, Susan – mas de um incrível projeto de vingança que é perspicazmente sublinhado ao longo do filme. A palheta de cores e a direção me lembraram os longas do David Fincher, como “Garota Exemplar” e “Os Homens que Não Amavam as Mulheres” – há qualquer semelhança entre esses e “Animais Noturnos”, que não sei discernir, embora sejam substancialmente diferentes em vários aspectos... A culpa, a vergonha, o arrependimento. Susan Morrow escolheu uma vida para si e, hoje, diante do que a vida se mostrou ser, ela não sabe mais o que fazer, não encontrando sentido nem na própria arte. Eis que chega, desavisado, um livro pelo correio, a ser publicado por Edward, seu ex-marido, com quem teve um casamento infeliz, encerrado de forma brutal e traumática para ambos. Ela abre a primeira página e começa a ler... Escolhas, portas-que-abrem, portas-que-fecham; Amy Adams e Jake Gyllenhaal trabalham com talento (ela bem mais que ele) e o filme, como um drama-suspense, funciona satisfatoriamente bem. É mais um daqueles pra lista “filmes de gênero misto”, em que elementos do Terror, Suspense, Drama e até Romance entram numa mesma história, estruturada com acurácia suficiente para se tornar instigante em todo o percurso. “Animais Noturnos” é, finalmente, um longa muito bem editado – com cortes secos, indo direto ao ponto – mesmo que tenha alguns problemas de iluminação (sobretudo na seção de dentro do carro). Apesar das falhas técnicas, o filme realmente se destaca, tendo levado até o prêmio de Júri no Festival de Veneza, em 2016, e não é pra menos: depois daquele final, que ressoa na gente, fica difícil esquecer aquela última cena... Retumbante. Do tipo de suspense que “fica”.
“Anne Sutton: We all eventually turn into our mothers.”
Hoje um clássico entre os slashers, SCREAM não é o primeiro de seu tipo, mas contribuiu fortemente para uma verdadeira homenagem ao gênero Terror. As várias referências aos clássicos (de “Halloween” a “O Iluminado”, de “Psicose” a “O Exorcista”...) enriquecem o longa de Wes Craven, conhecido pelo inesquecível “A Hora do Pesadelo”, de 1984. Pode parecer datado em 2018, pelas limitações técnicas, mas “Pânico”, no contexto do cinema que se fazia em 1996, abriu margem para uma série de outros filmes que envolviam ligações, casas abandonadas e vilões à espreita: praticamente toda a produção dos anos 2000 se baseou nesta fórmula, com algumas variações. A protagonista Casey, encarnada pela Neve Campbell, é uma das raras personagens femininas fortes no Terror, sobretudo no contexto dos slashers. Sua liderança e clareza de raciocínio para desvendar quem é o Ghostface me lembrou demais a Sigourney Weaver, dos filmes da franquia “Alien”. No Terror, ainda é raro encontrar mulheres com mais coragem que todos os homens de um filme, mas em SCREAM, essa é a regra, e não a exceção!
A única questão que realmente incomoda é como o filme, num geral, se dirige demais para tal personagem (como que para nos despistar de quem realmente é o Ghostface) só para mais tarde nos entregar justamente esta pessoa! A impressão que fica é que, depois de saber, as pistas foram quase um erro de cálculo do roteiro, que poderia ter deixado mais dúvidas, para assim entregar um culpado “menos evidente”.
Mesmo assim, a experiência é fortuita demais para ser desperdiçada. Quem será Ghostface, o assassino que está aterrorizando geral em Woodsboro? A pergunta até agora permanece... Filmaço!
Coutinho será sempre lembrado com carinho. EDIFÍCIO MASTER, longa do cineasta brasileiro Eduardo Coutinho, nos convida a visitar os apês de um prédio distinto em Copacabana. Nele vivem pessoas com histórias inacreditáveis, que envolvem traumas, rompimentos, gravidez na adolescência e até abortos... Entre os entrevistados teve ainda o ex-técnico Paulo Mata, que em 1997 ficou nu em campo, em protesto à arbitragem de uma partida. Alguns dos momentos mais emocionantes do filme ocorrem quando presenciamos a intimidade dessas pessoas, como o Henrique, com a música “My Way” do Frank Sinatra, e o depoimento da Alessandra, prostituta que questiona a moralidade implacável de seus apedrejadores. Os depoimentos da Daniela, professora de inglês com neurose e sociofobia, e do Luiz, porteiro do prédio que sente imensa falta do pai, também são demasiadamente humanos... E é nisso que se encontra a riqueza deste documentário, na humanidade que há em cada um de seus entrevistados; “um filme sobre pessoas como você e eu”. O depoimento das senhorinhas do início, que falam sobre como o edifício virou “um prédio de família, graças a Deus”, passa a ser questionado diante da quantidade de histórias antiéticas e mesmo imorais que são contadas, de pessoas que abrem de suas vidas as maiores vergonhas, sem problemas de assumir as decisões que tomaram no passado. EDIFÍCIO MASTER é um filmaço sobre os valores humanos, que são sempre intransferíveis e condicionados pelos nossos próprios contextos sociais. Dá pra simplesmente sair julgando o comentário meritocrata da Maria Pia, doméstica espanhola que acredita que “não existe pobreza”, ou a fala da Renata, que tentou abortar um filho por meios espirituais? Ou ainda a Maria Regina, que teve 22 filhos, dos quais 15 foram abortados? Trata-se de um longa relativamente fácil de fazer – gravado em três semanas, o filme não tem trilha sonora, atores, ensaios nem figurino; é tão somente o poder dessas histórias que o torna tão encantador, instigante, engraçado e até emocionante. É o drama da humana manada, o povo-como-ele-é, nas próprias palavras, sobre si. Como dizem dois entrevistados em momentos diferentes, "é a realidade”. Claro que aqui há decisões de direção e toda a (brilhante) edição que o filme precisou ter – Jordana Berg fez um ótimo trabalho! – mas, num geral, o longa procura ser bastante fiel às situações como ocorreram, e por isso mesmo ele será lembrado na posteridade... Mesmo que em momentos pareça cortado muito secamente (sobretudo da metade pro final), EDIFÍCIO MASTER estava além de seu tempo, evidenciando humanidade num “antro de perdição muito pesado”, como diz Vera, logo ao início do filme. É uma produção iluminada, vinda de uma cabeça muito sã e que sabia direitinho como evidenciar bondade no caos, e a humanidade que reside em todo pecado... Coutinho será sempre lembrado com carinho...
“Daniela: Eu sei que pode ser feio, mas às vezes fico contente quando eu subo e desço no elevador sozinha, não porque eu não vou perder tempo parando em um andar, mas porque eu sei que não vou ter que ver e nem ser vista.”
Possessão
3.9 590Você sabe que o filme é bom quando quer pegar algo pra comer no meio mas não consegue achar uma brecha pra parar.
Hipnótico, surreal, nojento, sublime; POSSESSION é o primeiro longa que vejo do Andrzej Zulawski e, olha, muito prazer, viu? Aqui ele é um diretor com mão firme para construir um suspense/terror psicológico de ponta, no estilo do Polanski n’“O Bebê de Rosemary”, misturado com o David Lynch de “Eraserhead”. É claro que Zulawski tem sua própria pegada, sendo “Possessão” um filme muito mais violento e difícil de assistir que esses, mas ainda assim, os gritos histéricos de Isabelle Adjani, que lhe renderam o César e Cannes de Melhor Atriz, ainda hoje ecoam com a mesma força, o mesmo impacto de décadas atrás.
É verdade que filmes como “A Mosca” e seus semelhantes beberam da fonte do grotesco em “Possessão”, e não é pra menos: as cenas da criatura, em que nos são reveladas aos poucos informações sobre o que Anna está realmente fazendo aqui, são aterrorizantes. Gradativamente, ficamos de olhos vidrados no problema do casal e nas questões psicológicas que este roteiro, também escrito por Zulawski, parece tangenciar...
A única forma de destruir o caos é, primeiro, aceitá-lo. Permitir que ele seja parte de você, observar sua extensão sobre si e só então estraçalhá-lo por dentro. É neste momento que a ferida pode abrir, o momento em que seus maiores segredos podem ser revelados – então você terá posse sobre si? Será dono dos sentimentos, sentidos e intenções que te atravessarem? E se houver algo em você que não pode ser parado? E se isto for tão urgente que pode destruir você e tudo aquilo que ama e conhece?
Ainda assim você o alimentaria? Permitiria-o viver? Permitiria-o... Ser você?
A possessão no filme não é demoníaca, ela é no sentido TOTAL; querer ser tanto e tudo que se totaliza a experiência, suprimindo o sujeito, tolhendo-lhe o direito ao corpo, ao pensamento e a si mesmo, submissamente. E nessa ânsia de expor o maligno que reside no feminino e no masculino, o filme destrincha reverberações físicas do livre escoar desta submissão, dos dois pelos seus sentidos mais perversos. Ambos se unem e se separam para fazer viver o Absurdo, na forma em que ele chegar ao mundo, tomando tudo...
O que de humano pode sobreviver à aniquilação completa do sentido? À tomada irrevogável de todos os seres, de todas as formas – nada mais é posse de algo, senão do Absurdo? Como pensar o seu domínio absoluto e irrefreável sobre as nossas vidas, e de tudo que for nosso? Afinal, que vida se viveria sendo sua posse?
É um filme com várias camadas, que com certeza estudantes de Psicologia enxergam melhor, mas no que me compete é suficiente dizer que achei a experiência riquíssima, e de efeitos absolutamente marcantes. É do tipo de filme que você precisa pegar pelo menos mais umas duas vezes para dar conta, tamanha a complexidade de intenções e abordagens presentes.
Imperdível pra quem curte cinema transgressor, violento e experimental.
“Anna : Por isso estou com você. Porque você diz 'Eu', para mim. Porque você diz 'Eu', para mim.”
O Príncipe do Egito
3.6 434 Assista AgoraQue lindeza!
O segundo longa da Dreamworks é uma animação-musical fantástica baseada num dos principais livros da Bíblia – o Êxodo. Contando a história do jovem Moisés, o estúdio fundado por Steven Spielberg lançou, em 1998, um trabalho completo, bem executado e cuidadosamente desenhado a mão, tendo no primor técnico suas mais fortes qualidades.
O PRÍNCIPE DO EGITO é um dos cinco filmes da produtora no formato de animação tradicional que, além da técnica disruptiva supervisionada pelos diretores de arte Kathy Altieri e Richard Chavezpara, contou com a trilha sonora de Hans Zimmer e a excelente dublagem de Ralph Fiennes, Michelle Pfeiffer, Sandra Bullock e até Steve Martin. Sem whitewashing, sem apropriações, o povo hebreu aqui é da cor que tinha o povo hebreu lá, no texto, na vida e no legado histórico-religioso que este deixou, o que torna este filme uma belíssima homenagem à história dessas pessoas...
Até hoje, “The Prince of Egypt” é uma referência para as animações, e impressiona pelo avanço técnico em 2-D que a eterna concorrente Pixar, apesar dos prêmios, nunca conseguiu fazer desembocar...
Uma lindeza! Assistam pelo amor de Deus pelo Seu povo!
“Tzipporah: Olha, olha para teu povo, Moisés. Eles são livres.”
Guerra Fria
3.8 326 Assista AgoraNão foi tudo isso.
Paweł Pawlikowski, cineasta polonês que já levou o Óscar de filme estrangeiro por “Ida”, retorna às indicações com o longa romântico-histórico GUERRA FRIA, disputando as estatuetas de melhor Direção, Fotografia e Filme Estrangeiro. Sendo muito ovacionado na Europa e sobretudo na Polônia, o diretor tem outro longa indicado que, ao contrário do anterior, não parece ter chances de vencer.
GUERRA FRIA é um filme primorosamente ambientado nos anos 40 a 60, na Polônia e na França, e aborda o relacionamento amoroso (inspirado nos pais do diretor) entre Wiktor e Zula, um capitalista e uma comunista, durante o surgimento e manutenção do conflito que se chamou de Guerra Fria. O longa explora de que maneira os conflitos externos (a propaganda comunista, os interesses estatais, o exílio político dos rebeldes) afeta o amor que se dá entre os dois músicos, que passam a buscar reencontros em meio à guerra ideológica que lhes é contemporânea.
O filme, porém, não vai mais longe. Tendo sido muito bem ambientado no período histórico, é quase só isso que ele oferta: o romance em si é insosso, a trilha é repetitiva, o final é previsível e o conjunto da obra parece insatisfatório, sobretudo no contexto da Academia – ao que parece, esta é a cerimônia mais fraca dos últimos dez anos em questão de roteiros.
Acho difícil que o longa de Pawlikowski leve Direção ou Fotografia numa competição em que estão “Roma” e “A Favorita”; é possível, porém, que com Filme Estrangeiro ele se saia melhor. O fato é que, mesmo depois da história terminar, a produção se apresenta abaixo do que se espera, exceptuando-se sua cinematografia - mas boas molduras não salvam quadros ruins.
Veja “Ida”! Pode ser mais proveitoso...
Não foi tudo isso.
“Zula: Você está interessado em mim porque tenho talento ou de forma geral?”
Roma
4.1 1,4K Assista AgoraÀ mulher periférica, aos descendentes de indígenas e à negritude trabalhadora não será dado o privilégio do luto, do sentir, do amar. As pessoas orbitantes, de movimento pendular, não têm o direito de ser infeliz, uma vez que a tristeza é privilégio dos que já possuíram... A perda, o luto e a saudade são ausências possíveis apenas aos brancos assalariados, à classe média-alta que “não precisa trabalhar para viver”. Quem tá na labuta não tem tempo para chorar a saudade dos amores, a memória da infância, a perda de um filho: precisa primeiro comer pra depois sentir qualquer coisa.
É nítida a semelhança com o brasileiro “Que Horas Ela Volta?”, dirigido pela fantástica Anna Muylaert. A narrativa do encontro entre a realidade da família privilegiada com a da(s) empregada(s) doméstica(s) é um dos temas centrais de ROMA, novo longa de Alfonso Cuarón, que anos atrás recebeu o Óscar de direção por “Gravidade”. Este roteiro tem força quando busca fazer um comentário sobre a situação social de Cleo, a empregada “quase da família”, como Regina Casé no outro filme. A atuação de Yalitza Aparicio, primeira indígena indicada ao Óscar, é de pura entrega, e a cinematografia do filme é absolutamente estonteante – Cuarón faz jus ao prêmio de fotografia que “Gravidade” também levou naquele ano.
Entretanto, o diretor peca por excessos. Utiliza o recurso da câmera "traveler" e panorâmica à exaustão, tornando o filme muito mais lento do que precisava ser. A condução tem uma cadência bastante vagarosa, e a ausência de trilha sonora causa até certo estranhamento – um filme polido como esse não tem um tema, uma orquestração, um violão que seja? É no mínimo questionável que ROMA se pretenda carregar apenas pela força de seus enquadramentos, pelo trabalho das sombras no P&B e pela atuação do elenco, que, honestamente, não vai muito longe. Em Cleo e sua patroa, Sra. Sofía, temos as grandes performances do filme, mas para por aí mesmo: o longa não busca ser exatamente emocionante, mas esteticamente perfeito, fazendo de seu percurso um comentário poderoso, mas longo demais.
No final, depois de quase 2 horas e vinte, a sensação é de que o filme falou bonito, mas com palavras demais: como se pelo menos meia hora (sobretudo a seção dos exercícios de arte marcial) pudesse ser cortada sem a menor perda. Ele parece se estender para além do necessário, apesar de conseguir causar um bom impacto.
É claro que são filmes diferentes, mas entre este e “Que Horas Ela Volta?”, sigo preferindo o brasileiro, até pela proximidade cultural que rola. ROMA não é ruim, longe disso, mas também não é essas coisas...
“Sra. Sofía: Estamos sozinhas. Não importa o que eles digam a você, nós mulheres estamos sempre sozinhas.”
O Sacrifício
4.3 148Em seu último filme, Tarkóvski revisita proezas realizadas ao longo da carreira e se despede do cinema com um filme robusto, rico em fotografia e com muito de sua pegada autoral.
Num geral, “O Sacrifício” é um passeio pelos elementos que mais caracterizaram o cinema de Andrei Tarkóvski, diretor russo que, no exílio da URSS, produziu seus dois últimos longas na Itália e Suécia, respectivamente. Sem perder a mão e adicionando novas ideias à sua obra, “O Sacrifício” apresenta tomadas um pouco diferentes, tendo sido captado quase inteiramente na mesma localidade, e com uma edição ligeiramente mais dinâmica que o anterior, “Nostalgia”.
Os temas que este filme aborda são vários, mas sobretudo a relação de fragilidade entre o homem e a Fé, entre a estabilidade mental e a insanidade, entre a tranquilidade e o caos: uma guerra se aproxima e, ilhados, Alexander e os seus estão desolados numa casa de veraneio. Há, porém, um sacrifício possível para que o caos acabe – mas terá ele coragem para enfrentá-lo?
Alguns dos elementos revisitados são as instalações de cenas longas, que se desdobram umas nas outras em encaixes de direção de câmera que lembram muito o capítulo do Sino do filme “Andrei Rublev”. As tomadas do campo, com ênfase na pessoa em primeiro plano, lembram a abertura de “O Espelho”, enquanto que o contraluz das cenas nos interiores é característico do “Nostalgia”. Aliás, ainda sobre “O Espelho”, tem uma cena de sexo que lembra absurdamente a tomada de pesadelo dele…
Há de se reconhecer a qualidade poética/estética da cinematografia de Sven Nykvist, com quem Tarkóvski trabalhou uma só vez, mas que entendeu precisamente o que os seus filmes comunicavam, e produziu imagens absolutamente estonteantes, que muitas vezes roubam a atenção da própria cena. Creditado ao início como operador de câmera também está Daniel Bergman, um dos filhos de Ingmar Bergman, que fez alguns dos raros (e lindos) movimentos de lente que o filme faz ecoar.
A sensação que se tem ao final é de que o longa, num geral, é bastante poético, charmoso e plácido. Sim, ele aborda o caos, mas de maneira bastante leve (quase insustentável), e com a firmeza de punho que só o russo teve. Há comentários sociais, há trabalhos estilísticos incríveis e um final retumbante (que também conversa com seu primeiro longa, “A Infância de Ivan”, por ser bem parecido com a primeira cena). O diretor revisita sua carreira sempre no desafio do “semi-plano-sequência”, com cenas de até 6 minutos corridos com diálogos, posicionamentos não-convencionais e muitas mudanças no mesmo take.
Em todos os seus filmes há conquistas muito raras, mas n’“O Sacrifício” ele se despede em grande forma, o sétimo e último grande suspiro de arte de um homem que ainda tinha muito a dizer, mas que infelizmente viria a falecer pouquíssimo tempo depois de lançá-lo…
Mas nada ficará indiferente à sua poesia.
O resto é e sempre será silêncio.
“Gossen: ‘No início era o Verbo’. Por quê, papai?”
A Esposa
3.8 557 Assista AgoraTHE WIFE consegue discursar habilmente sobre o problema da mulher na arte, sendo ao mesmo tempo dinâmico e envolvente.
O diretor sueco Björn Runge, que até então não tinha feito trabalhos de grande veiculação, encontrou em “A Esposa” certo prestígio. Concorrendo ao Óscar de Melhor Atriz Principal, o longa discorre sobre a relação (aparentemente tranquila) entre Joan e Joe Castleman, na ocasião da recepção do Nobel de Literatura dele. O casal, que se conheceu através das palavras, tem o casamento fragilizado por um aspirante a biógrafo do escritor, disposto a questionar a natureza da sua relação. Do começo ao fim, somos mastigados pelas perguntas que o filme vai deixando, questionando a estrutura deles, e qual o real envolvimento da esposa com a obra do marido. Para um filme que se propõe somente entreter, este aqui foi até mais longe que isso...
É uma corrente nova, essa da qual “A Esposa” se vale. Há estudiosos pesquisando agora justamente essas relações de marido x esposa ao longo da história da arte, das ciências e da sociedade em geral – aparentemente, nem sempre “por trás de um grande homem existe uma grande mulher”; às vezes simplesmente não existe um grande homem, para começo de conversa. E, num resgate desses nomes femininos, desses possíveis trabalhos não-conhecidos, tem uma boa galera caindo dentro da pesquisa para confirmar a autoria de peças clássicas, e mesmo livros imortais de “esposas de homens notáveis”.
THE WIFE abre o debate e nos deixa com um gosto amargo na boca, do tipo de soco no estômago que só o cinema engajado é capaz de proporcionar. A bronca é dura, o papo é reto, e se faz eficaz nessa hora e meia sem perder nada no caminho. Por ser um filme quase perfeito (aqui e ali certas trilhas não casam bem, e há clichês de direção que incomodam um pouco), o filme merece destaque dentre os que, neste ano, concorrem ao Óscar.
Tomara que Glenn Close leve o seu primeiro prêmio!
Fantástico.
“Joan Castleman: I am a kingmaker.”
A Favorita
3.9 1,2K Assista AgoraEsse cara parece ter conseguido acertar na mão.
Desde seu sucesso com “Dente Canino” (que tem parecido mais brutal a cada revisita), Yorgos Lanthimos só tem crescido em entusiastas e patrocinadores. Depois de seu primeiro longa em inglês THE LOBSTER ter ganhado o prêmio do júri de Cannes, o diretor grego se viu diante de um público americano verdadeiramente disposto a comprar suas ideias tortas de roteiro e estética. De 2015 pra cá, Lanthimos presenteou este público com três bons filmes, e que fazem jus à sua safra experimental e poderosa do começo da carreira: THE LOBSTER, SACRED DEER e, agora, THE FAVOURITE.
Mantendo sua pegada autoral, Lanthimos constrói uma narrativa absolutamente incômoda, com fortes quebras de expectativa em torno do duelo entre duas mulheres pelo posto mais alto entre as queridas da Rainha da Inglaterra. Da primeira cena à última, THE FAVOURITE é um show de horrores, vingança, egoísmo e vaidade, instigando-nos pra ver até onde pode ir o desespero de uma mulher que quer voltar à classe a que pertencia – à aristocracia, ou pelo menos à burguesia que um dia lhe fora prometida.
Não chega a ser um conto marxista ou algo parecido, mas “A Favorita” possui suas críticas à luta de classes e de gênero também – um dos pontos altos do filme, aliás... As mulheres, além de serem protagonistas de todo o embate político, elas dominam tanto a trama que os homens no longa não passam de coadjuvantes inexpressivos. Mesmo os lacaios mais próximos da Rainha não se aproximam dos poderes de Sarah e Abigail, que possuem quase tanta voz quanto a própria Rainha.
Chega um ponto nos filmes do Yorgos que a narrativa quase te “mortifica” – um efeito literalmente físico do cinema dele no corpo. Lá pelos 80%, a gente sente uma pressão que fica para bem depois da história acabar. É desolador: cada filme, desde sua gênese, têm o poder de marcar a gente de maneiras diferentes. Aqui, em específico, a produção ainda mais robusta que “O Sacrifício do Cervo Sagrado” permitiu uma cenografia de ponta, para além da direção de fotografia característica e do uso de fortes ostinatos na trilha, revisitando elementos presentes em toda a sua obra em inglês.
A montagem, finalmente, é só uma lindeza. Parece que Lanthimos realmente achou a mão para produzir um filme que envolve e não necessariamente cansa o espectador; ele exige a atenção por duas horas mesmo, mas não chega a ser um quebra-cabeças experimental como “Alpes” ou o próprio “Dente Canino”. Agora, muito mais concentrado em acertar uma forma comum para seus trabalhos, Yorgos parece ter encontrado a pegada para se firmar na indústria como um dos expoentes do cinema de seu país.
Só se pode ficar é muito feliz com isso! Todo o sucesso pra ele...
Brabíssimo.
“Abigail: Você veio pra cá pra me seduzir ou estuprar?
Samuel: Eu sou um cavalheiro.
Abigail: Certo. Então veio me estuprar.”
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Manifesto
3.7 116 Assista Agora“ARTE REQUER VERDADE, NÃO SINCERIDADE”
A instalação visual de Julian Rosefeldt tinha tudo para ser uma grande homenagem aos movimentos artísticos do século XX, mas acaba soando pretensiosa, perdendo-se dos manifestos de que se vale para valer a pena...
MANIFESTO é uma instalação de doze cenas com doze protagonistas interpretados pela (fabulosa) Cate Blanchett. Não se trata de um filme, exatamente, mas uma instalação em que as doze cenas ocorrem simultaneamente. Transformada em longa metragem, a obra não é difícil de ver, apesar da quantidade de informações despejada nos monólogos dela, mas se trata de uma experiência mais frustrada do que bem-sucedida...
Tendo sido filmado em apenas 12 dias, o longa apresenta sinais de pressa na montagem e edição, com pouca preocupação para a trilha sonora, os respiros entre as cenas e o próprio acabamento do projeto. Mesmo assim, é possível desfrutar de alguns dos trechos sem perder muito; “Fatos criam normas; a verdade, iluminação”, “a verdade nunca ocorre fora de nós mesmos” e a primeira citação desta resenha são algumas das que melhor ressoam aqui. Blanchett entrega trechos de manifestos importantíssimos, como o Comunista, o Dadaísta, o Futurista e mesmo o questionável Dogma 95, de Lars Von Trier. Em alguns momentos, dá até vontade de rir dos monólogos em cenas “inusitadas”: sala de aula, noticiário, um mendigo bêbado e uma mulher drogada num pós-festa são algumas das instalações que melhor funcionam, e com Cate dando tudo de si para entregar (mesmo que às vezes caricatamente) o conteúdo artístico/estético do documentário.
Por se valer unicamente do discurso que entrega e rejeitar quaisquer convenções cinematográficas, MANIFESTO é uma experiência difícil de esquecer, mas também um filme arriscado que pode ser, para muitos, até monótono. O problema, talvez, resida mais na forma do filme que no conteúdo em si; por causa disso, o longa não tem o impacto que deveria, o que é uma lástima, sobretudo para quem ama a arte em suas diversas manifestações.
Os cinéfilos entusiastas e os fãs de Blanchett provavelmente vão adorar este filme.
Eu já acho meio difícil assistir de novo com o mesmo ânimo...
Fica aqui outro trecho incrível deste roteiro:
“Cate Blanchett: Não ao espetáculo! Não ao virtuosismo! Não a transformações mágicas e de faz-de-conta. Não ao disparate e transcendência da imagem de estrela. Não ao heroico. Não ao anti-heroico. Não às imagens de mau gosto. Não ao envolvimento do artista ou do espectador. Não ao estilo.”
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Black Mirror: Bandersnatch
3.5 1,4KUma palavra só: Disruptivo!
BANDERSNATCH, dirigido por David Slade, chega depois da quarta temporada da série inglesa “Black Mirror”, não como episódio, mas como um filme. O longa, que tem duração completa de 5 horas e 12 minutos, é uma grande teia de possibilidades que condicionam a narrativa até determinado ponto, tendo 5 finais definidos, mas com alterações em seu percurso. No fim, chegamos a um dos desfechos em aproximadamente uma hora e meia, podendo voltar e mudar decisões para conhecer os outros desfechos possíveis, até nos cansarmos disso.
Aqui e ali, certos aspectos se sobressaem: Stefan, o programador protagonista, começa a perder cognição, num breakdown mental bizarro que nós inclusive podemos piorar, então em muitos momentos a trama pode ficar surrealista, envolvendo brigas, mortes absurdas, mistérios que não se resolvem e subtramas estranhas bem-inseridas no roteiro labiríntico de Charlie Brooker. A experiência da escolha, mesmo que por vezes nos recoloque na posição original para que tentemos a outra resposta, é inédita e ocorre num bom ritmo – a cada dez minutos, mais ou menos, o filme nos dá a oportunidade de mudar o seu curso, o que torna o fenômeno pontual e por isso mesmo bem mais forte.
Há, porém, um momento muito interessante, quando
negamos o lisérgico que Colin oferece: o coadjuvante coloca a bala na bebida de Stefan apesar de nossa negativa, que ele toma sem seu consentimento; é este o tipo de intervenção que muitos espectadores acharam absurda, mas que é genial: nós negamos, o menino obedeceu, mas no contexto do filme, não dá para escapar, porque a escolha já é uma ilusão – Colin já “escolheu por ele”. Nunca antes foi possível, durante um filme, decidir o que iria acontecer com o protagonista, ao vivo, a partir das nossas intenções. Isso só rolou porque a Netflix vingou, e deu à marca Black Mirror a oportunidade para concretizar este ambicioso projeto.
Muito se fala sobre como o longa “não permite que escolhamos mudar completamente a narrativa”, mas a intenção aqui não é essa: metalinguisticamente, só podemos alterar a história de Stefan nos moldes do que a Netflix permitir, o que nos torna objeto da própria crítica do filme – tentando alterar a narrativa e se frustrando com as repetições, nós somos como o protagonista, tentando inutilmente fugir do destino que algo "superior" escolheu para ele/nós.
É uma trama simples, linear e até “morna”, como um episódio fraco da série da qual surgiu, mas a experiência que o projeto proporciona é interessante demais para passar batida: BLACK MIRROR: BANDERSNATCH é um evento pretensioso que, formalmente, deu muito certo – e foi disruptivo justamente no sentido de ressignificar uma tecnologia existente, criando outra maneira de nos relacionar com ela. Basicamente, é o que a série se propõe a fazer desde a gênese, e recentemente vinha falhando em entregar um repertório decente de intervenções deste tipo.
Aqui, Charlie Brooker e David Slade conseguiram dar mais um passo.
Kudos.
Leia mais resenhas em http://cinestesias.tumblr.com
“Colin: You know what Pac stands for? PAC. Program and Control. He’s Program and Control Man. The whole thing’s a metaphor. All he can do is consume. He’s pursued by demons that are probably just in his own head. And even if he does manage to escape by slipping out one side of the maze, what happens? He comes right back in the other side. People think it’s a happy game. It’s not a happy game. It’s a fucking nightmare world. And the worst thing is? It’s real and we live in it.”
A Casa Que Jack Construiu
3.5 788 Assista AgoraO polêmico realizador Lars von Trier revisita abordagens antigas e entrega, agora, uma história talvez comportada demais para os seus próprios padrões.
Quem assistiu ao “Ninfomaníaca”, de 2013, veio ao THE HOUSE THAT JACK BUILT já familiarizado com a estruturação ‘alternativa’ do diretor dinamarquês. Aqui, mais uma vez, temos uma história linear, contada em flashbacks, através do diálogo entre dois protagonistas – de um lado, Jack, um serial killer assumido (muitas vezes exclusivamente feminicida), e do outro, Verge, um misterioso homem que o escolta por um lugar escuro…
A boa edição e o uso da “câmera na mão”, aliados aos silêncios repentinos e à trilha sonora mínima, são alguns dos recursos que melhor favorecem “A Casa Que Jack Construiu”. Todo o filme se encaminha para o desfecho mais catártico da obra de von Trier, com uma espécie de “justiça por acerto de contas” que é pouco comum em seu cinema (vide os finais dos excelentes “Anticristo”, “Dançando no Escuro” e “Dogville”, por exemplo). Novamente, o diretor/roteirista apresenta os motivos pelos quais ficou conhecido – com seu cinema pretenso, ele rebate as críticas sobre seu pronunciamento em Cannes, em 2011, e às acusações de misoginia pelas quais passou nos anos seguintes.
Jack (Matt Dilon), um serial killer que “prefere matar mulheres porque são mais fáceis”, é o centro da trama, e será através de seus olhos que veremos o mundo, por sua lógica torta e questionável. O diretor, que em Cannes falou que “entendia Hitler, entendia suas motivações”, parece ainda justificar seu pronunciamento em determinado momento, fazendo-o pouco antes de um minuto de takes de seus próprios filmes, numa autorreferência desnecessária, digna de um Gaspar Noé. O contraponto, aqui representado pelo Verge (Bruno Ganz), é o que torna todo o longa assistível, porque ele é o único personagem que de fato questiona a natureza dos atos de Jack, e o coloca em seu devido lugar – ao final, entendemos “para onde” eles estão indo e o que Jack receberá pelo mal que causou…
De qualquer forma, a catarse do fim não consegue camuflar o fato de que o filme, como ato isolado, é mediano, e dentro do contexto de sua obra, um dos mais “comportados”; não que matar mulheres, crianças e homens seja sinônimo de “bom-comportamento”, mas em se tratando de Lars von Trier, o longa em si não se apresenta satisfatório mesmo pela abordagem do tema – parece superficial “demais”, apesar das pretensões de profundidade distribuídas nos debates sobre arte, artistas e a ética/filosofia/moral ocidental. Tendo bem menos digressões que “Ninfomaníaca”, THE HOUSE THAT JACK BUILT se apresenta muito mais interessante neste sentido (e bem menos fetichista), mas não parece alçar um voo muito duradouro: não penso que este filme será revisto por muitas pessoas daqui a uns dez, quinze anos.
Acho que Trier já produziu um material muito mais original no passado, e que reverberou de maneira muito mais forte do que este aqui. Talvez a decisão de se aposentar seja, de fato, a melhor para ele.
Fico com seus longas mais antigos, e é isso.
“Jack: Se você sente que deveria gritar… eu definitivamente acho que deveria.”
Caixa de Pássaros
3.4 2,3K Assista AgoraDescompromissado com a entrega de uma história embasada, BIRD BOX não vai tão longe assim.
O novo longa da diretora Susanne Bier, dinamarquesa responsável pelo vencedor do Óscar de melhor filme estrangeiro “Hævnen” em 2011, recebeu intenso marketing ao final deste ano, sendo estrelado pela (fantástica) Sandra Bullock e tendo entre seus coadjuvantes John Malkovich, Trevante Rhodes (Moonlight) e LilRel Howery (Corra!).
Considerado pelo próprio autor uma boa adaptação do livro, o filme apresenta sinais de inconsistência recorrentes nas produções da Netflix; o roteiro parece ter sido feito de uma vez, sendo unidimensional e por vezes raso demais. As cenas bem rodadas parecem artificiais em muitos momentos (principalmente nos mais tensos), e todo o clima lembra uma mistura The Walking Dead com aquele do suspense do Shyamalan, THE HAPPENING: um apocalipse suicida causado por uma toxina que a natureza passa a liberar, em represália aos maus tratos que a Humanidade causou a ela.
Inclusive, este filme estreou 6 anos antes desse livro ser lançado...
É bem verdade que “Caixa de Pássaros” tem seu primor técnico na fotografia, e na excelente entrega dos atores (sobretudo no núcleo central). Em alguns momentos, há muita tensão bem-feita e, apesar de o filme começar com uma grávida capotando e batendo sem sofrer nenhuma sequela, na maior parte do tempo a “suspensão de descrença” rola sem grandes questões. O problema é que não importa “o que é” a criatura – se uma metáfora pra depressão, pro racismo ou pra depressão pré-parto – mas o fato de que o filme não tem a menor intenção de dar a ela qualquer significado ou substância, bastando-se com “a entidade maligna que é antagonista deste filme”.
“Não vê-la” não é um problema, mas a sua não-contextualização nos impede de temê-la e, por isso mesmo, simpatizar com a situação de Malorie e sua família. Uma vez que o problema é invisível e não tem embasamento qualquer na narrativa, mesmo citando diversas mitologias para dar conta dele, todas as mortes parecem gratuitas, descartáveis, sem sentido, acontecendo só para preencher o vazio de um roteiro fadado como cada suicida que morre nele...
"Feche seus olhos"? Eu preferiria não ter visto mesmo...
Filme fraquinho, sobretudo pelo marketing robusto de que se valeu.
Não indico.
“Malorie: Listen to me, we're going on a trip now, it's going to be rough. If you hear something in the woods, you tell me. if you hear something in the water, you tell me. But under no circumstances are you allowed to take off your blindfold.”
(leia mais em https://cinestesias.com/)
Tickled
3.8 101Depois de acompanhar o desenrolar que veio a partir deste documentário, a gente se pergunta que outros tipos de “negócios” não devem rolar no contexto da deep web e dos “serviços” que por lá se dão...
TICKLED, o longa de estreia de David Farrier e Dylan Reeve, disseca os absurdos que circundam os aparentemente inocentes vídeos de “competições de resistência a cócegas”. À medida que o documentário avança, vamos perdendo a vontade de rir da ideia e começamos a ter um vislumbre mais realista do que é, de fato, o submundo das cócegas – como um fetiche, como uma maneira de dominar o outro (sexualmente ou não).
O filme não apresenta inconsistências de argumento; cada passo dado é revisado pelos habilidosos jornalistas que assinam o longa, encarando processos milionários durante sua produção e, ainda, tendo que aguentar os próprios donos da Jane O’Brien Media em sessões do filme nos festivais de cinema dos EUA. Todas as acusações foram retiradas mais tarde, mas o fuzuê que este filme gerou não tá no gibi, e só por isso ele já merece uma conferida.
O assunto, em si, causa certo estranhamento: como assim competições de cócegas geram milhões de dólares, e incluem carros, casas e outros valores para seus participantes? Farrier e Reeve estão certos de que há algo por trás disso, e que não cheira bem, e tentarão ir até o limite de si mesmos para encontrar essas respostas.
TICKLED deve ser assistido seguido de THE TICKLE KING, que resume os eventos que circundaram a estreia do filme (e os confrontos com os mesmos homens que não quiseram ser entrevistados para a sua produção). O que realmente entristece é que a página da Jane O’Brien Media continua de pé, e ao que parece todo o acervo foi transferido para uma nova página, chamada Tickletopia. Apesar de toda a polêmica, a organização (que parece ser um imenso polvo de tentáculos infinitos) se safou da difamação do doc e saiu ilesa, tendo mudado apenas de nome.
Muito embora David D’Amato, o antagonista do filme, tenha falecido em 2017, a questão que TICKLED levanta continua ecoando, agora sem um responsável definido para ser respondida: quem está por trás disso e quantas pessoas com este fetiche estariam sendo beneficiadas com a veiculação ilegal dos vídeos desses garotos? São perguntas possíveis, e bastante complicadas de responder. Resta-nos reassistir ao material, na intenção de buscar alguma outra resposta para elas...
Assombroso.
“David Farrier: Comecei esta jornada intrigado a respeito de um esporte bizarro chamado 'Competição de Resistência a Cócegas', mas agora acho que isto nunca foi sobre cócegas... Isto é sobre poder, controle e assédio. É sobre a loucura de uma pessoa, e quão longe ela pode ir. Uma pessoa que conseguiu se proteger com dinheiro suficiente para continuar sua obsessão sem problemas. Mas agora, é a vida dele que está exposta. Pelo menos uma vez, é ele na câmera.”
Infiltrado na Klan
4.3 1,9K Assista AgoraO ódio é sempre filho do medo.
O notável realizador Spike Lee volta às telas com o ambicioso “Infiltrado na Klan”, longa que traz ainda mais vitalidade à carreira provocadora do diretor, com filmes como os aclamados “Malcolm X” e “Do The Right Thing”. O protagonismo negro, a crítica social e as reivindicações por representatividade num contexto cada vez mais racista fazem de BLACKKKLANSMAN um dos melhores e mais atuais filmes do ano.
Didático e direto-ao-ponto, a produção de Jordan Peele conta a trajetória de Ron Stallworth, o primeiro policial negro do Colorado que nos anos 70 passa a investigar a Ku Klux Klan, que desde 1945 vinha crescendo em número de praticantes no país. Spike Lee, que nos anos 90 já era considerado um dos maiores cineastas sobre a questão afro-americana, disseca a narrativa surpreendentemente cômica tranquilo e ainda nos entrega referências incríveis ao final, com os recentes desfiles dos supremacistas brancos e discursos do presidente dos EUA dizendo que, entre eles, “provavelmente tem muita gente boa também”.
Este longa já levou o Grand Prix de Cannes e tenho certeza que vai levar ao menos uma indicação por melhor roteiro adaptado no Óscar! Tirando aqui e ali alguns exageros (certas piadinhas sem graça e a repetição insistente da mesma trilha sonora), “Infiltrado na Klan” é um filme que cai ao gosto do público sem o menor esforço, e consegue fazer um discurso inabalável anti-racismo e contra o anti-semitismo. Sendo Ron e Flip respectivamente negro e judeu, o filme trabalha a questão do preconceito a essas pessoas de diversas maneiras, finalizando com uma bandeira do país ao contrário, e em preto-e-branco.
Com isso, o recado foi dado!
É um filme muito bom. E para uma produção comercial, dá pra colocá-lo junto à “13ª Emenda”, como uma leitura complementar bastante proveitosa.
Bravo!
“Kwame Ture: Se eu não sou por mim, quem será? Se eu sou por mim sozinho, quem sou eu? Se não agora, quando? E se não vocês, quem?"
Jogador Nº 1
3.9 1,4K Assista AgoraSteven Spielberg, premiadíssimo diretor que dispensa introdução, fez filmes que marcaram gerações: “Tubarão”, “E.T. – O Extraterrestre” e todos os da saga “Indiana Jones”, por exemplo. Agora, retornando à ficção científica que o consagrou, o cineasta estadunidense apresenta um prognóstico no mínimo alarmante sobre a maneira como podemos nos relacionar daqui a 30 anos, na superprodução futurista READY PLAYER ONE, uma aventura distópica super-engajada com os esportes eletrônicos, os chamados "eSports".
O papo já havia sido dado no longa de Mark Neveldine e Brian Taylor, “Gamer” (2009). Neste filme há um retrato do “hiperestímulo” e da realidade virtual como processo inevitável no contexto da pós-modernidade – porque a realidade não dá mais conta de entreter ou encantar qualquer pessoa, todos vivem por e para a vida virtual, no estilo “Nosedive”, só que muito pior... Neste e naquele filme, os “delírios luminosos” chegam a ser frustrantes para os olhos (muito por causa do exagero), e em ambos a megaprodução acaba saturando a narrativa de efeitos especiais e recheios que mais fazem por estética que por narrativa (embora sejam filmes muito bem-feitos, neste sentido).
A sensação que dá, no final das contas, é a de que Spielberg não exatamente critica este modelo de consumo anestesiante, mas o reconhece em vários momentos da história da cultura pop (sobretudo quando o filme passa por quase meia-hora de homenagem a “O Iluminado”, de Stanley Kubrick). Por vezes, vemos que a situação social de Wade Watts é tão ruim que ele usa a OASIS para evadir dela, mas é como se o diretor espertamente pusesse no mesmo saco todo o legado histórico de video-games dos anos 80 pra cá, e resumisse tudo numa frase: a evasão é a mesma e, por isso, deve ser igualmente homenageada.
Pois é isso que os consoles são, afinal; “consolos”, evasões da realidade. É claro que há benefícios mentais de raciocínio, lógica, reflexo e de outras naturezas no uso que fazemos dos jogos, mas será que uma vida inteira dedicada à tela é uma vida completa, saudável e disposta, como o filme mostra? Porque, no fundo, pessoas que passam mais de 12 horas por dia jogando não necessariamente se sentem dispostas assim, e há estudos recentes a este respeito. Spielberg, aqui, não comenta sobre eles, e eu entendo: trata-se de uma superprodução para o público mais jovem, naturalmente consumidor desses mesmos games, e uma crítica dessas talvez não fizesse sentido no contexto do filme. Porém, o silêncio a respeito da saúde física e mental desses protagonistas (se eles fossem pessoas de verdade) pode não ser de todo benéfico: afinal, Wade vira uma exceção em meio à regra de pessoas miseráveis, de cuja miséria querem escapar criando avatares em espaçonaves.
O filme, em si, é um raso (e bom) divertimento.
As leituras possíveis, porém, vão bem mais longe que isso.
Assistam.
“Halliday: Eu criei a OASIS porque nunca me senti em casa no mundo real. Simplesmente não sabia como me relacionar com pessoas lá. Tive medo por toda a minha vida, até o dia que eu soube que minha vida estava acabando. Então eu percebi que... Por mais assustadora e dolorosa que a realidade pode ser, ela é o único lugar em que você pode pegar uma refeição decente. Porque a realidade... é real.”
Pantanal - A Boa Inocência de Nossas Origens
4.0 1Há imagens aqui que não têm preço.
PANTANAL é uma produção da 3 Tabela Filmes que ecoa demais. Assisti numa mostra chamada Planeta.doc, um festival de cinema que premia documentários que tratem da sustentabilidade e do ecossistema de maneira socioambiental. A Planeta.doc ainda disponibiliza os filmes participantes em seu site, por vezes fazendo exibições em escolas e universidades; um trampo lindo de se ver, de verdade...
É neste contexto que “A Boa Inocência de Nossas Origens” chega com força, tendo sido dirigido pelas firmes mãos de Isabella Faya e Eduardo Nunes. O doc apresenta a vida, cultura e sobretudo a humanidade de populações ribeirinhas do Mato Grosso e Mato Grosso do Sul; os pescadores com suas dificuldades, sua ancestralidade e seu notável equilíbrio com a natureza.
Os entrevistados, em sua maioria, dependem da pesca pra viver, pesca esta absolutamente autônoma e sustentável ecologicamente. Como uma das especialistas diz, “não podemos mais falar em meio-ambiente sem uma perspectiva socioambiental”, até porque observar essas localidades por essa ótica remove do contexto os povos que nasceram, cresceram e hoje dependem do meio-ambiente para resistir: “a pesca não é um lazer nosso, é nossa maneira de nos alimentar. É o nosso trabalho”, diz uma pescadora, em outro momento do filme.
O mais incrível de PANTANAL (além das imagens lindas, costuradas pelos inesquecíveis poemas de Manoel de Barros) é que ele adereça direitinho o problema ao agronegócio: não poucas vezes ribeirinhos contam de abusos, maus-tratos e de expurgos pelos quais passaram quando os "donos reais das terras” vieram tomar posse delas – a indústria agropecuária com sua ambição por capitalizar tudo que na natureza ainda não tenha sido capitalizado.
É o encontro de Lampião com Eike Batista, mas em outra região do país. Novas embalagens para antigos interesses, e quem quiser conferir, é só colar no site do Planeta.doc! Vale muito a pena.
Filmaço! Confiram!
“As pessoas sempre pensam no Pantanal como um paraíso selvagem rico em biodiversidade, mas esquecem que há séculos homens e mulheres das comunidades tradicionais resistem a todo tipo de ameaça e conservam esse conjunto de riquezas que foi reconhecido como Reserva da Biosfera Mundial pela Unesco. Exibir o filme no dia do aniversário do Rio Paraguai, esse rio que corta quatro países até desaguar no Atlântico, é um presente que queremos dar para os pescadores de Cáceres.” – Izabella Faya.
A Árvore da Vida
3.4 3,1K Assista AgoraNão sei dizer se este filme conseguiu alcançar o que queria.
A ÁRVORE DA VIDA é um longa ambicioso de Terrence Malick, que conta a história de um homem através do tempo, focando em seu crescimento em Waco, Texas, e indo filosoficamente do big bang até uma espécie de “fim dos tempos”, pelo menos para a humanidade. Sendo introduzido com uma passagem do livro de Jó, de cara percebemos que há certo viés existencialista/cristão no filme, não somente pelas menções às descobertas científicas sobre a origem do mundo, como também às inúmeras referências à religião cristã – desde as muitas igrejas frequentadas pelos protagonistas até as conversas com Deus.
O longa tem uma história central, mas é sensível que o intuito não é contá-la: a ideia, aqui, é criar imagens em experimentos estéticos/estilísticos, capitaneados pelo lendário Douglas Trumbull, o supervisor de efeitos especiais de “2001 – Uma Odisseia no Espaço”, do Stanley Kubrick. Depois que o protagonista Jack O’Brien observa uma árvore, ele começa a fazer uma reminiscência sobre tudo o que viveu e também toda a existência pré-si. A ideia de usar o abstracionismo como recurso linguístico é genial – vemos células, mitocôndrias, plasma, vulcões, dinossauros e todo tipo de animal pré-histórico durante a primeira hora de filme, o que é uma decisão muito perigosa (e que custou as saídas de muitas pessoas dos cinemas no mundo). O filme tem uma pegada autoral muito forte, só que foi vendido como um drama com Brad Pitt (é só ver como o trailer sugere um drama “convencional”, quando o filme passa longe demais dessa experiência para ser vendido assim).
Por mais que nos deleitemos com o primor técnico/fotográfico da obra, e mesmo a ambientação nos anos 50, o longa não parece saber exatamente para onde vai, e todo o seu percurso acaba não terminando satisfatoriamente. Lembro de ter tido a mesma sensação com o “Samsara”, um documentário ‘mente aberta’ do mesmo ano sobre a meta-narrativa oriental: você vê inúmeras imagens de pessoas, momentos, atitudes, lugares, e elas só vão passando, uma a uma, e você, num exercício desgastante de contemplação hermética, precisa se esforçar para dar um sentido (ou vários) para o que está sendo visto. Assim ocorre com “The Tree of Life”, na medida que a última hora do filme é como um grande acervo de memórias de um homem que, ambiguamente, parece prestes a morrer e a viver de novo.
E é este talvez o ponto mais alto do filme: sua incerteza. Não temos confirmação de qual dos irmãos morreu, ou como, nem por quê, e também não sabemos direito para onde foram os personagens no intermédio entre a infância de Jack e a sua vida adulta como arquiteto. Só o que temos são flashes, bem no estilo "O Espelho" do Tarkóvski, da vida de um homem que passa a revisitá-la para encontrar justificativas, perspectivas ou até verdades diferentes para o que viveu. Inclusive, em vários momentos, pensei que Malick tinha se inspirado diretamente n“O Espelho” para compor algumas dessas imagens da natureza, das algas, com esses enquadramentos tão bonitos...
O filme em si é estonteante, mas é quase só isso. Depois de duas horas e meia de sessão, o que a gente sente mais se assemelha a um cansaço irreconciliável do que um real aproveitamento de uma obra densa e profusa. A impressão que passa é que este projeto, como o “Enter The Void”, do Gaspar Noé, demorou tantos anos para ser produzido e finalizado que acabou perdendo sua força de discurso no meio do processo, tanto pelas escolhas de tratamento da (anti-)narrativa, quanto pela própria duração – sendo o filme de Noé ainda menos tolerável, com suas colossais 3 horas de “existencialismo”.
Foi o primeiro da filmografia de Malick a que assisti, e acrescento que gostei muito da forma dele. Este tipo de filme contemplativo, quando bem feito e mais sucinto, evoca de nós reflexões das mais profundas; a exemplo do clássico “Koyaanisqatsi”, de 1983, com suas vastas imagens do avanço da urbanização no contexto ocidental. É claro que são abordagens diferentes, mas talvez o filme de Malick ganhasse mais se tivesse tido a mesma fritação experimental, mas quase uma hora a menos.
Esperava mais da experiência, mas vou conferir seus outros filmes...
“Jovem Jack: Eu não sabia Seu nome naquela época, mas sei que era Você. Sempre Você me chamando...”
Bohemian Rhapsody
4.1 2,2K Assista AgoraApesar do marketing americano ter estampado “destemidos vivem para sempre” nos posteres promocionais, BOHEMIAN RHAPSODY não é um filme “sobre o Queen”, mas sobre Freddie Mercury e o Queen. Como mais tarde foi escrito em outro poster, “a única coisa mais extraordinária do que a música deles é a história dele”, e isso resume bem qual é a pegada do longa de Bryan Singer, que tem em sua carreira cinco filmes da franquia X-Men e dois filmes sobre o Super-Homem para contar.
Deixando os super-heróis de lado, Singer aqui conduz com boa dinâmica e consciência vários aspectos importantes sobre a banda (de dentro e fora dela). As discussões com a gravadora, a dissolução do casamento de Mercury, o lançamento de seu álbum solo, “Mr. Bad Guy”, e vários outros fatos são aqui narrados de maneira bastante instigante, mesmo para quem não os conhece a fundo. A performance de Rami Malek como Mercury é um show à parte, e os atores chamados para encarnar os demais membros são tão fieis aos originais que parece que voltamos no tempo para assisti-los (e mesmo os próprios disseram que se confundiam se eram eles mesmos ou não no filme). Por tudo isso, o longa pode ser considerado muito bem-feito, e moderadamente fiel à história como se deu – dada a liberdade para modificar alguns contextos, a fim de tornar a narrativa mais coesa e retilínea, e, portanto, mais cinematográfica.
Porém, o filme tem uma questão. Hollywood e a Indústria Cultural costumam fazer isso: higienizar personalidades notáveis, içá-las ao patamar de gênios romantizados, e glorificar suas mortes escolhendo por quais motivos serão lembrados para sempre. É claro que Freddie Mercury detinha (provavelmente) o maior talento entre os músicos do Queen, mas o que fica sensível em BOHEMIAN RHAPSODY é como as atitudes dos quatro, como banda e como indivíduos mesmo, beira uma santidade que não parece real. O filme, tendo sido produzido pelo ex-empresário da banda, Jim Beach, faz compreender que nas festonas que Mercury dava, por exemplo, o trio de amigos imaculados simplesmente não tiveram par em sujeira alguma. Com raríssimas exceções, em momentos como Freddie expondo as traições de Roger Taylor para sua esposa, vemos crítica nesse sentido; no mais, todo o tratamento à “parte ruim” que a banda passou soa como um retrato “parcial demais”, mesmo abordando as dificuldades de Freddie com as drogas, por exemplo, entre outros fatores menos conhecidos.
Isto, em si, não prejudica o filme, que tem fôlego e dinâmica para entreter e emocionar por quase duas horas e vinte direto, sem pausas. O longa de Bryan Singer, apesar de “para a família” demais em se tratando do estilo de vida de Freddie Mercury, é plenamente capaz de fazer o que é o melhor de seus objetivos: incitar novas pessoas a conhecer e gostar da banda. Tendo sido feito como um retorno aos anos 70/80, mas para a nova geração que chega nos anos 2000, BOHEMIAN RHAPSODY é um filme para ser assistido por todas e todos, sem restrições.
E ainda tem “Another One Bites The Dust”! Porra!
Que musicão...
"Roger Taylor: [singing in high pitch] Galileo!
Freddie Mercury: Do it again.
Roger Taylor: [singing in high pitch] Galileo!
Freddie Mercury: One more.
Roger Taylor: HOW MANY MORE GALILEOS DO YOU WANT?"
A Infância de Ivan
4.3 156 Assista AgoraNada surpreendente, em se tratando do diretor que estamos falando...
Filme de estreia de Andrei Tarkóvski, A INFÂNCIA DE IVAN tem perfeita consciência de onde quer chegar. Trata-se do primeiro resultado físico de um homem que ainda aos 30 anos já tinha concebido sua abordagem estética/filosófica ao cinema, tendo sido recém-formado pela VGIK, em Moscou, alguns anos antes.
Este trampo sucede seu TCC, “O Rolo compressor e o Violinista”, e foi a produção que o catapultou para uma notoriedade ímpar no cinema de seu tempo: Bergman e Kieslowski chegaram a dizer que este filme os impactou diretamente no fazer cinematográfico, e não é à toa: “Ivan’s Childhood” levou até o Leão de Ouro do ano, proporcionando a Tarkóvski a popularidade necessária para que a Mosfilm seguisse em parceria com ele para fazer o cinema soviético progredir em sua direção.
É notável o trabalho do diretor de fotografia Vadim Yusov, que mais tarde trabalharia com Tarkóvski nos excelentes “Andrei Rublev” e “Solaris”. O cuidado que ambos colocam na imagem, na condução dos takes, nas cenas ao ar livre, a cena do beijo (!!!), a fuga pelo mangue... O filme é todo filmado de maneira excelente, com a mão firme de condutor experiente que Tarkóvski já tinha, mesmo no seu primeiro trabalho em longa-metragem. Os recursos de misturar sonhos com realidade, a enigmática presença dos cavalos, seus estudos sobre a água e sua maneira ímpar de trabalhar a natureza (sobretudo naquela cena com o Capitão Kholin e Masha) tornam toda a experiência de IVAN muito mais completa e satisfatória. Por vezes, as escolhas de direção sobressaem aos olhos e à própria cena, e somos tomados de assalto por enquadramentos que só nos deixam mesmo embasbacados de tão certeiros, tão bem compostos.
Para além de tudo isso, o comentário social que Tarkóvski tece sobre os horrores da guerra (que Ingmar viria a continuar em seu exímio VERGONHA, em 1968), faz todo o sentido e encontra respaldo nos roteiros seguintes em que ele trabalhou: “O Espelho” e “Solaris” são bons exemplos. E é encarnando nesta criança, na “infância” que esta criança não chegou a ter completamente, que Andrei discorre sobre talvez o maior horror de todo o filme: a perspectiva de ter a memória, mas de nunca poder retornar ao tempo da inocência que o corpo pede, por causa do amadurecimento forçado e traumático que reside nos embates físicos de uma guerra como a Segunda Guerra Mundial.
O Holocausto foi a infância de vários Ivans reais.
Que nunca nos esqueçamos deles...
Maravilhoso.
Mãe de Ivan: Se um poço é realmente fundo, você pode ver uma estrela lá embaixo mesmo no meio de um dia ensolarado.
Um Grande Garoto
3.5 372 Assista AgoraFofo!
ABOUT A BOY é um daqueles filmes na onda de comédias românticas com um “conto moral”, uma lição que é aprendida – no caso, a lição de Will (Hugh Grant), um cara machista e babaca, que aprende a não ser assim. O processo se dá através das conversas que tem com Marcus, um menino nerd de 12 anos com uma história de vida pesadíssima para contar...
É sempre perigoso escrever roteiros a respeito de pessoas com transtorno de humor, depressão e que podem até se tornar suicidas (sobretudo na comédia romântica), mas ABOUT A BOY, apesar de alguns tropeços em piadinhas aqui e ali, consegue sair satisfatoriamente bem da zona de conforto, e nos entrega uma história bastante agradável.
Este filme, inclusive, foi roteirizado pelos diretores Chris e Paul Weitz para se tornar uma série, lançada em 2014, com o mesmo nome. É a história de superação do ócio, e um conto sobre o movimento que há nas palavras de uma criança, quando são sábias e nos ensinam a ser, sobretudo, melhor.
“Will: I am an island. I am bloody Ibiza!”
O Grande Circo Místico
2.2 139Uma grande porcaria, isso sim...
O GRANDE CIRCO MÍSTICO, nosso candidato ao Óscar do ano que vem, tem falhas terríveis. São atuações fracas, um péssimo encadeamento dos núcleos narrativos e uma edição que parece feita às pressas, para participar de festivais. O longa, de Cacá Diegues, mal estreou e já estava envolvido em polêmicas: pelos maus tratos aos animais que retrata, a produção sofreu vários boicotes em Portugal, onde foi rodada.
O filme narra a trajetória da família Knieps, dona de um grande circo, no curso de suas tristezas e felicidades ao longo de um século – mas não consegue ir mais longe que um mero exercício de fotografia, iluminação e cor. As subtramas são superficiais, há misoginia demais no filme (o diretor claramente tem fetiches por suas atrizes peladas), todas as violências e suas questões são gratuitas ou mal-exploradas, e a experiência, em si, se mostra muito aquém do que podia ter sido – ainda mais para uma obra produzida ao longo de três anos.
Fica perceptível que uma pesquisa foi feita em cima de “Moulin Rouge”; o diretor de fotografia, Gustavo Habda, admitiu ter se inspirado no filme de Baz Luhrmann para encontrar “um lado mais moderno de encenação, cenário e luz”. Ao longo das quase 2 horas de filme (que se estende de maneira a parecer até mais longo que isso), nos perguntamos a quê exatamente estamos assistindo, e por quê este filme é o nosso representante para a próxima cerimônia do Óscar (e não um “Aquarius”, do Kleber Mendonça Filho, por exemplo).
Vai ficando escancarado como O GRANDE CIRCO MÍSTICO não possui substância e nem consegue entregar entretenimento, reflexão, ou ao menos um retrato fidedigno das décadas que apresenta – o filme é uma enorme salada de frutas escolhidas de qualquer maneira, tangenciando temas como abuso de drogas, aborto, infidelidade, estupro, incesto, doenças mentais e celibato, sem conseguir produzir sequer uma linha decente a respeito de qualquer um deles.
À parte de Jesuíta Barbosa, que dá um show de atuação, e dos méritos técnicos deste trabalho, O GRANDE CIRCO MÍSTICO é daqueles filmes de se passar longe no cinema.
Assistam a qualquer outra coisa, que vai ser melhor.
E tenho dito.
Que vergonha...
“Celavi: Se a fantasia faz bem, troque então a realidade por ela!”
Acossado
4.1 510 Assista Agora“Acossado” é um filme bastante acessível, mas parece tropeçar socialmente em seu discurso vanguardista...
À BOUT DE SOUFFLE, primeiro longa de Jean-Luc Godard, com roteiro assinado por François Truffaut, impactou o cinema de maneira poderosa e definitiva, sendo até hoje lembrado por seus controversos jump-cuts – os cortes que uma mesma cena tem ao longo de seu curso. O filme todo é baseado na técnica, e Godard quis provocar a radicalização desta experiência, para nos deixar cada vez mais “sem fôlego” ao longo do filme – e como isso funciona, viu?
Aspectos que facilitam a digestão de “Acossado” incluem o fato de que ele é bastante acessível, fácil de entender – muito diferente do “Demônio das Onze Horas”, outro longa do diretor, muito mais radical em sua abordagem à Nouvelle Vague que emergia. “Acossado” não tem fôlego porque está sempre com pressa, e a pressa ecoa nele porque é até uma maneira de editá-lo; o longa tem edição fugaz, fortificando a fuga que Michel, o protagonista, protagoniza. Tendo sido totalmente escrito de improviso, e filmado em apenas 4 semanas, À BOUT DE SOUFFLE antecipou a estética “vaga” da Nouvelle Vague, embora não tenha radicalizado a estrutura ou a narrativa em si.
Aqui, na estreia de Jean-Luc, o que sentimos é que o enredo está sendo descoberto durante a gravação – primeiro, porque os diálogos não necessariamente se interconectam, depois, porque é bastante tangível o fato de que os atores não têm noção do que está para acontecer nas próximas cenas [Godard disse mais tarde que acordava de manhã e escrevia o roteiro do dia com Truffaut, e ia gravar com os atores à tarde]; toda a abordagem do fazer artístico era radical e, para hoje, nada problemática.
Mas o problema deste filme está em outro lugar.
Para além dos aspectos técnicos, “Acossado” perpassa questões muito problemáticas – e não sei se consegue fazer um comentário social exatamente crítico a esse respeito. Há machismo demais em quase todas as atitudes de Michel, e a Patricia, uma mulher quase completamente submissa a ele, apoia-o em sua empreitada sem nem questionar. Há muita generalização porca em forma de sexismo aqui, compreendendo de maneira bem preconceituosa como os gêneros se relacionam ou podem vir-a-se-relacionar. Há abuso em suas atitudes perante a 'amada', e não sei dizer se o filme consegue realmente tecer uma crítica sobre esse abuso ou se o incorpora como linguagem de si – porque nem os personagens mais distantes do núcleo principal questionam essas violências.
De qualquer forma, é o aspecto sobre o filme que, hoje, mais incomoda. Fora isso (se é que é possível separar tais coisas), À BOUT DE SOUFFLE tem sua relevância estética na história do cinema, e o seu impacto foi sentido ao longo dos anos 60 – e em todo o arcabouço cultural que herdamos desta década.
No mais, é silêncio.
Enxergar é não ver.
“Parvulesco: Duas coisas são importantes na vida: para homens, mulheres; para mulheres, dinheiro.”
Animais Noturnos
4.0 2,2K Assista AgoraDifícil de digerir, mas vale muito a pena.
Design de produção arrojado, figurino excelente, boas atuações e um final chique, muito chique, essas são as palavras para definir o segundo longa de Tom Ford, NOCTURNAL ANIMALS. O estilista da Gucci assina a direção, produção e o roteiro deste filme neo-noir ambicioso, e não erra a mão ao desenvolver suas ideias.
Pensei que a obra não fosse passar no teste de Bechdel (os diálogos entre as mulheres envolvem quase sempre o ex-marido de Susan), mas, felizmente, passou! Notei também que, na real, apesar de ser a protagonista, o filme não se trata da personagem de Amy Adams, Susan – mas de um incrível projeto de vingança que é perspicazmente sublinhado ao longo do filme. A palheta de cores e a direção me lembraram os longas do David Fincher, como “Garota Exemplar” e “Os Homens que Não Amavam as Mulheres” – há qualquer semelhança entre esses e “Animais Noturnos”, que não sei discernir, embora sejam substancialmente diferentes em vários aspectos...
A culpa, a vergonha, o arrependimento. Susan Morrow escolheu uma vida para si e, hoje, diante do que a vida se mostrou ser, ela não sabe mais o que fazer, não encontrando sentido nem na própria arte. Eis que chega, desavisado, um livro pelo correio, a ser publicado por Edward, seu ex-marido, com quem teve um casamento infeliz, encerrado de forma brutal e traumática para ambos. Ela abre a primeira página e começa a ler...
Escolhas, portas-que-abrem, portas-que-fecham; Amy Adams e Jake Gyllenhaal trabalham com talento (ela bem mais que ele) e o filme, como um drama-suspense, funciona satisfatoriamente bem. É mais um daqueles pra lista “filmes de gênero misto”, em que elementos do Terror, Suspense, Drama e até Romance entram numa mesma história, estruturada com acurácia suficiente para se tornar instigante em todo o percurso.
“Animais Noturnos” é, finalmente, um longa muito bem editado – com cortes secos, indo direto ao ponto – mesmo que tenha alguns problemas de iluminação (sobretudo na seção de dentro do carro). Apesar das falhas técnicas, o filme realmente se destaca, tendo levado até o prêmio de Júri no Festival de Veneza, em 2016, e não é pra menos: depois daquele final, que ressoa na gente, fica difícil esquecer aquela última cena...
Retumbante.
Do tipo de suspense que “fica”.
“Anne Sutton: We all eventually turn into our mothers.”
Pânico
3.6 1,6K Assista AgoraHoje um clássico entre os slashers, SCREAM não é o primeiro de seu tipo, mas contribuiu fortemente para uma verdadeira homenagem ao gênero Terror. As várias referências aos clássicos (de “Halloween” a “O Iluminado”, de “Psicose” a “O Exorcista”...) enriquecem o longa de Wes Craven, conhecido pelo inesquecível “A Hora do Pesadelo”, de 1984. Pode parecer datado em 2018, pelas limitações técnicas, mas “Pânico”, no contexto do cinema que se fazia em 1996, abriu margem para uma série de outros filmes que envolviam ligações, casas abandonadas e vilões à espreita: praticamente toda a produção dos anos 2000 se baseou nesta fórmula, com algumas variações.
A protagonista Casey, encarnada pela Neve Campbell, é uma das raras personagens femininas fortes no Terror, sobretudo no contexto dos slashers. Sua liderança e clareza de raciocínio para desvendar quem é o Ghostface me lembrou demais a Sigourney Weaver, dos filmes da franquia “Alien”. No Terror, ainda é raro encontrar mulheres com mais coragem que todos os homens de um filme, mas em SCREAM, essa é a regra, e não a exceção!
A única questão que realmente incomoda é como o filme, num geral, se dirige demais para tal personagem (como que para nos despistar de quem realmente é o Ghostface) só para mais tarde nos entregar justamente esta pessoa! A impressão que fica é que, depois de saber, as pistas foram quase um erro de cálculo do roteiro, que poderia ter deixado mais dúvidas, para assim entregar um culpado “menos evidente”.
Mesmo assim, a experiência é fortuita demais para ser desperdiçada.
Quem será Ghostface, o assassino que está aterrorizando geral em Woodsboro?
A pergunta até agora permanece...
Filmaço!
“Ghostface: What’s your favorite scary movie?”
Edifício Master
4.3 372 Assista AgoraCoutinho será sempre lembrado com carinho.
EDIFÍCIO MASTER, longa do cineasta brasileiro Eduardo Coutinho, nos convida a visitar os apês de um prédio distinto em Copacabana. Nele vivem pessoas com histórias inacreditáveis, que envolvem traumas, rompimentos, gravidez na adolescência e até abortos... Entre os entrevistados teve ainda o ex-técnico Paulo Mata, que em 1997 ficou nu em campo, em protesto à arbitragem de uma partida. Alguns dos momentos mais emocionantes do filme ocorrem quando presenciamos a intimidade dessas pessoas, como o Henrique, com a música “My Way” do Frank Sinatra, e o depoimento da Alessandra, prostituta que questiona a moralidade implacável de seus apedrejadores. Os depoimentos da Daniela, professora de inglês com neurose e sociofobia, e do Luiz, porteiro do prédio que sente imensa falta do pai, também são demasiadamente humanos...
E é nisso que se encontra a riqueza deste documentário, na humanidade que há em cada um de seus entrevistados; “um filme sobre pessoas como você e eu”. O depoimento das senhorinhas do início, que falam sobre como o edifício virou “um prédio de família, graças a Deus”, passa a ser questionado diante da quantidade de histórias antiéticas e mesmo imorais que são contadas, de pessoas que abrem de suas vidas as maiores vergonhas, sem problemas de assumir as decisões que tomaram no passado.
EDIFÍCIO MASTER é um filmaço sobre os valores humanos, que são sempre intransferíveis e condicionados pelos nossos próprios contextos sociais. Dá pra simplesmente sair julgando o comentário meritocrata da Maria Pia, doméstica espanhola que acredita que “não existe pobreza”, ou a fala da Renata, que tentou abortar um filho por meios espirituais? Ou ainda a Maria Regina, que teve 22 filhos, dos quais 15 foram abortados?
Trata-se de um longa relativamente fácil de fazer – gravado em três semanas, o filme não tem trilha sonora, atores, ensaios nem figurino; é tão somente o poder dessas histórias que o torna tão encantador, instigante, engraçado e até emocionante. É o drama da humana manada, o povo-como-ele-é, nas próprias palavras, sobre si. Como dizem dois entrevistados em momentos diferentes, "é a realidade”. Claro que aqui há decisões de direção e toda a (brilhante) edição que o filme precisou ter – Jordana Berg fez um ótimo trabalho! – mas, num geral, o longa procura ser bastante fiel às situações como ocorreram, e por isso mesmo ele será lembrado na posteridade...
Mesmo que em momentos pareça cortado muito secamente (sobretudo da metade pro final), EDIFÍCIO MASTER estava além de seu tempo, evidenciando humanidade num “antro de perdição muito pesado”, como diz Vera, logo ao início do filme. É uma produção iluminada, vinda de uma cabeça muito sã e que sabia direitinho como evidenciar bondade no caos, e a humanidade que reside em todo pecado...
Coutinho será sempre lembrado com carinho...
“Daniela: Eu sei que pode ser feio, mas às vezes fico contente quando eu subo e desço no elevador sozinha, não porque eu não vou perder tempo parando em um andar, mas porque eu sei que não vou ter que ver e nem ser vista.”