"Mad Max" começou como um filme de orçamento limitadíssimo estrelado pelo até então desconhecido Mel Gibson. Com a aclamação da crítica, as sequências, com nítidos contornos hollywoodianos, tornaram-se inevitáveis (com direito até à participação da rockeira Tina Turner em uma delas). A série ficou imortalizada na cabeça dos fãs e reverenciada como uma das melhores dos anos 80.
Trinta anos depois do lançamento de "Além da Cúpula do Trovão", George Miller, que já demonstrou ser um diretor competente ao fazer bons filmes dos mais variados gêneros, sente-se à vontade para expandir o universo que ele mesmo criou. Ao optar por utilizar veículos reais em tela - em vez de puro CGI - , Miller confere um realismo vibrante às cenas de ação, estas muito bem filmadas e que, em nenhum momento, lembram os ângulos esquisitos e a câmera trêmula que são características de cineastas como Michael Bay. Além disso, o diretor australiano consegue a proeza de fazer do bizarro um atrativo a mais - ver um guerreiro com uma guitarra flamejante em meio à perseguição é, com o perdão da palavra, irado.
O roteiro, escrito a seis mãos, concentra-se mais na ação frenética do que no desenvolvimento dos personagens. Mas isso não significa que eles são rasos e descartáveis. Mesmo sem grandes diálogos, Tom Hardy injeta carisma, vigor físico e instabilidade psicológica ao seu Mad Max, uma versão inquestionavelmente superior à de Mel Gibson; ao passo que Hugh Keays-Byrne surge amedrontador como o líder totalitário e populista Immortan Joe, um vilão parecidíssimo, tanto no figurino quanto no trabalho de dicção, com Bane, de "Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge" - será que Hardy andou lhe dando umas dicas? Contudo, em meio à opulência dos corpos masculinos, quem rouba a cena é a Imperatriz Furiosa, vivida por Charlize Theron (perfeita no papel). Dona do arco dramático mais relevante da narrativa, Furiosa surge como uma espécie de rebelde feminista que questiona o despotismo de Immortan Joe e o modo como ele trata as várias esposas que tem ("nós não somos objetos", diz uma dessas mulheres em determinado momento). Desde "Kill Bill", não se via uma personagem feminina tão expressiva quanto a de Theron, uma verdadeira prova do diferencial dessa produção de George Miller em relação a outros filmes de ação, que, geralmente, reduzem o papel da mulher a um rostinho bonito a ser salvo pelo herói.
A parte técnica é irrepreensível. John Seale, diretor de fotografia, consegue retratar com perfeição as cores do deserto. Os efeitos especiais são usados de maneira contida e não têm nada de inverossímeis, gerando, junto com o trabalho de Seale e a direção de arte, um verdadeiro delírio visual em tela. Graças à boa edição e mixagem, o som deixa de ser apenas um acompanhamento para a imagem e se torna essencial para a grandiosidade das cenas de perseguição automobilística, com direito a motores estridentes, colisões fatais e tiroteio contínuo.
Em um mundo habitado por blockbusters como "Transformers", "Battleship" e "G.I. Joe", encontrar uma produção que divirta e não insulte a inteligência do espectador é motivo de comemoração. Resta torcer para que o combustível de George Miller seja suficiente para que Max e Furiosa voltem a fazer barulho nas salas de cinema em um futuro próximo.
Personagens surtados, humor negro, trilha pop e sangue, muito sangue. Esses elementos são parte do repertório tarantinesco que, desde a década de 90, vem conquistando cinéfilos dos mais variados cantos do mundo. Logo na virada dos anos 2000, Quentin Tarantino apresentou aquela que é a sua grande obra-prima até o prezado momento. Nem o mais otimista dos fãs poderia imaginar algo como "Kill Bill".
A trama acompanha o plano de vingança da Noiva, uma assassina profissional vivida por Uma Thurman. Aliando sensualidade e sadismo, ela tem o melhor desempenho da sua carreira e nem de longe parece a mesma atriz que participou do sofrível "Batman & Robin". Mas os méritos não devem ficar só para Thurman. O trabalho estupendo de Tarantino - que acumula as funções de diretor e roteirista - é fundamental para a qualidade das atuações e, consequentemente, do filme. Primeiramente, o roteiro acerta ao não mostrar a Noiva como uma personagem unidimensional. Muito pelo contrário, ao mesmo tempo em que nutre uma sede animalesca por vingança, a assassina demonstra um ou outro traço de humanidade, como no momento em que hesita em matar a ex-colega na frente da filha desta. Já Bill, o grande vilão da história, não tem seu rosto mostrado em nenhum momento, o que ressalta a aura de mistério e periculosidade criada em seu entorno. Além de usar artimanhas como flashbacks e narração em off, Tarantino faz referências ao cinema de ação oriental que incluem a presença de animes na narrativa, a coreografia das lutas e a ambientação (todo o terceiro ato do filme se passa no Japão). O resultado disso tudo são cenas de pancadaria absurdamente bem filmadas, não havendo limite para o derramamento de sangue.
A fotografia do experiente Robert Richardson é encantadora, com direito a movimentos ousados e frenéticos de câmera - mas nunca trêmulos - e o uso do preto e branco em meio à batalha. As trilhas pop dão um charme a mais e contribuem para a criação da atmosfera do longa. Cada música escolhida cumpre uma função. Ao ser assobiada por uma assassina, "Twisted Nerve" coloca nos ouvidos do espectador o clima de tensão; enquanto "Battle Without Honor or Humanity" prepara o terreno para o devastador combate que surgirá na tela em questão de minutos.
Quando chegam os créditos finais, é impossível não se lamentar pelo fato de o filme ter acabado. Por outro lado, os fãs do bom cinema de ação têm outro grande grande motivo para sorrir: a vingança da Noiva continua em "Kill Bill: Volume 2".
Nem sempre uma boa ideia é sinônimo de um bom filme. O motivo disso é que qualquer bom enredo pode ser arruinado, seja por direção incompetente, seja por elenco pífio. No caso de "Beleza Adormecida", ocorrem os dois problemas. A premissa de uma jovem solitária que preenche o seu vazio emocional com sexo e aceita fazer parte de um serviço nada comum é deveras interessante, levando o espectador a pensar que encontrará uma trama cheia de profundidade e dilemas morais (como o excelente "Shame", de Steve McQueen). Mas isso está longe de ser verdade.
Julia Leigh, diretora e roteirista, conduz o filme com mão pesada, não sabendo ditar o menor ritmo ou dinamismo. As cenas não fluem, elas arrastam-se em um verdadeiro exercício de paciência, o que piora quando o roteiro tenta parecer sofisticado e intelectualmente complexo ao trazer um senhor recitando da maneira mais artificial possível uma espécie de fábula que, supostamente, casa com o desfecho.
No que concerne ao elenco, Emily Browning mostra ser apenas um rostinho bonito. Tendo seu corpo e seus mamilos pouco salientes explorados incessantemente pela câmera de Leigh, a atriz exibe expressões mínimas e impossibilita que o espectador crie algum tipo de vínculo com a arrogante Lucy. Os momentos desta com Birdmann, uma espécie de amigo vivido de maneira amadora por Ewen Leslie, são risíveis e desprovidos de valor, já que a relação entre ambos é inexplicavelmente não explorada, resumindo-se a um ou outro diálogo descartável.
Portanto, reitera-se a afirmação inicial: nem toda boa ideia gera um resultado satisfatório. "Beleza Adormecida" é a grande prova disso; uma produção boba, frágil e vazia. Não seria surpresa se, ao subir dos créditos finais, o espectador, assim como a beleza do título, encontre-se adormecido. E, nesse caso, o sono compensa mais, muito mais.
Todo brasileiro sabe, ou deveria saber, quem é o fotógrafo Sebastião Salgado. O que quase ninguém conhece é o ser humano Sebastião Salgado. Pensando nisso, Wim Wenders apresenta um documentário que mergulha fundo não só na obra, mas também na vida desse profissional. Na companhia do co-diretor Juliano Ribeiro Salgado (filho do protagonista, como denuncia o sobrenome), Wenders mostra desde o passado de Sebastião no interior de Minas Gerais e o primeiro contato dele com uma câmera fotográfica até as viagens épicas mundo afora.
O grande acerto da dupla é dar o espaço necessário para o próprio fotógrafo explicar e explorar seu trabalho. Cada fotografia esconde uma história e uma lição por trás, sendo emocionante acompanhar a narração ora apaixonada, ora melancólica de Sebastião. Sua obra ganha um bom panorama, existindo, ao mesmo tempo, fotografias de doer o coração e causar extremo desconforto - como as feitas na Etiópia -, e outras cuja beleza é incontestável - destaque para aquelas tiradas durante o incêndio dos poços de petróleo, que parecem ter saído diretamente de uma tela do surrealista Salvador Dalí; e as da expedição "Gênesis", incluindo aí a pose simpática de um gorila e a captura do exato momento em que uma baleia levanta sua enorme cauda. Indubitavelmente, uma genuína poesia visual diante do espectador.
Além disso, o documentário explora a relação de Sebastião com a família. Juliano relata que o pai sempre foi ausente, ficando sempre aos cuidados da mãe, Lélia, a mulher que, além de ter concebido a ideia da criação do Instituto Terra, é a responsável por organizar as fotos e preparar os livros de Sebastião. A recíproca "por trás de todo grande homem, há uma grande mulher" nunca foi tão verdadeira. O pai do fotógrafo também ganha voz, mostrando-se como um senhor simples, mas muito dedicado na criação dos filhos.
Mostrando-se extremamente lúcidos e coesos na direção, Wim Wenders e Juliano Salgado merecem todos os elogios possíveis. Eles exibem como ninguém um vasto emaranhado de emoções e experiências inesquecíveis em "O Sal da Terra". Após o fim da projeção, o espectador sai transformado e acreditando no futuro da humanidade. Já Sebastião deixa de ser apenas "aquele fotógrafo careca" diante dos olhos do público, e se torna a figura sábia, o dono de uma lição de vida que merece cada segundo dos cento e dez minutos do documentário. Tudo o que eu tenho a dizer é: foi um prazer te conhecer, Sebastião.
Michael Moore é um documentarista sem igual que consegue imprimir forte conteúdo político à sétima arte de um modo nunca visto antes. Depois do relato contundente e igualmente chocante da cultura da violência nos Estados Unidos feito em "Tiros em Columbine", Moore vai ainda mais longe ao expor as mazelas e a imundície da política norte-americana, focando na figura maquiavélica de George W. Bush e na Guerra do Iraque. O resultado não decepciona.
Todo o documentário é dotado de um ritmo veloz. Logo no começo, o cineasta expõe, de maneira didática e eficaz, evidências claras que convencem o espectador de que a vitória de Bush na eleição presidencial de 2000 foi fruto de uma grande fraude. Em seguida, uma cena que muito lembra o atual modelo político brasileiro: em vão, cidadãos comuns pressionam os seus representantes para atender à vontade popular. A obra ganha força a partir do momento em que aborda o atentado ás torres gêmeas e a consequente Guerra do Iraque. Nessa parte, Moore não poupa críticas ao presidente Bush, que é apontado como um líder inescrupuloso, manipulador, negligente com a segurança nacional e membro de uma família que, desde muito antes do 11 de setembro, andava de mãos dadas com grupos terroristas. Tudo isso é mostrado por meio da narração irônica do próprio diretor, que recorre também ao uso de animações e músicas em tom de deboche e desprezo pelo político. O momento em que vemos Bush, juntamente com os seus correligionários, ser maquiado, ao som de uma hipnótica trilha de guitarra composta por Jeff Gibbs representa a hipocrisia instaurada no mais alto escalão do governo, onde todos agem como verdadeiros atores postos frente às câmeras. A Guerra do Iraque é apresentada como sendo fruto de um mero capricho daqueles que estavam no poder. Um conflito desnecessário e movido a interesses econômicos que, com o apoio de grande parte da opinião pública, ceifou a vida de milhares de soldados americanos, incluindo aí jovens cidadãos.
Premiado em Cannes, "Fahrenheit 11 de setembro" - o título faz referência direta ao livro "Fahrenheit 451", publicado por Ray Bradbury em 1953 - é um registro poderoso, polêmico e verdadeiro sobre os bastidores do fato que mudou os rumos da história mundial. Mais do que um trabalho impecável de apuração e análise de registros e arquivos que apresentam uma versão diferente da oficial, esse documentário é uma prova da coragem de Michael Moore em tornar pública uma verdade tão inconveniente. Depois de 122 minutos, as imagens de George W. Bush e da Guerra do Iraque deixam de ser as mesmas de antes.
Amado e odiado ao mesmo tempo, Che Guevara é um ícone da história mundial e uma figura constante na literatura e no cinema. Enquanto muitas obras optam por focar nos atos guerrilheiros do argentino (como os dois filmes dirigidos por Steven Soderbergh, por exemplo), "Diários de Motocicleta" direciona o seu olhar para a formação do caráter revolucionário de Che, ocorrida quando ele ainda era um jovem de vinte e poucos anos.
O projeto ficou a cargo do brasileiro Walter Salles, o cineasta que emocionou o mundo com "Central do Brasil". Adepto de road-movies, ele seria a pessoa perfeita para dirigir esse filme. Seria. O problema é que Salles falha miseravelmente ao transformar a jornada pessoal de Che e seu fiel companheiro, Alberto Granado, em uma experiência vazia para o espectador, uma mera viagem regada a paisagens bonitas, mulheres, bebidas, mentiras e uma ou outra confusão. Em mais de duas horas de longa, vários temas perpassam a narrativa e são tratados de maneira superficial pelo diretor e pelo roteirista, o porto-riquenho José Rivera. A opressão estatal, a extrema pobreza, a herança deixada pelos europeus, as doenças, nada disso recebe uma atenção maior, nada tem sua causa ou consequências explicadas minuciosamente. Desse modo, fica difícil compreender a transformação de personalidade do outrora despreocupado Che Guevara. Quer dizer que, só por ter presenciado a miséria e sido bem recebido pelo povo sul-americano, ele convence a si mesmo de que é necessário lutar pela autoafirmação do continente (como bem denota o burocrático monólogo do terceiro ato)? A travessia do rio Amazonas, emblemática em sua essência, acaba tornando-se uma cena desprovida de valor e emoção e acompanhada da trilha melosa de Gustavo Santaolalla.
Mas nem tudo é desprezível no filme de Walter Salles. Gael García Bernal e Rodrigo de La Serna sobressaem-se em cena. Os dois atores exibem uma enorme química juntos, levando a crer que, de fato, são melhores amigos há vários anos. As paisagens, que vão desde planícies a florestas, estão encantadoras em uma verdadeira demonstração da beleza do continente e de um apurado trabalho de direção de arte. Destaque para a sequência que contrasta o Peru antigo (Machu Picchu, no caso) com o Peru contemporâneo (a capital Lima). Do mesmo modo que está longe de ser uma obra-prima, "Diários de Motocicleta" está longe de ser uma produção completamente medíocre. É a tentativa frustrada de representar a formação humana do homem que mudou os rumos da história latino-americana. Che Guevara e a sua viagem pela América ainda aguardam por um filme digno de sua grandiosidade.
Nunca antes na história do cinema houve tantos remakes e reboots. Utilizando o argumento de que é necessário atualizar uma obra do século passado para os tempos de hoje, os estúdios invadem as salas de projeção com novas versões de filmes que, um dia, fizeram sucesso. Enquanto algumas refilmagens - como os dois recentes "Planeta dos Macacos" - adquirem caráter próprio e realmente têm sua existência justificada, outras são totalmente descartáveis. Infelizmente, o "Poltergeist" de 2015 encaixa-se nesse último grupo, sendo um filme feito apenas para garantir uns trocados a mais para a Twentieth Century Fox.
Escolhido para a direção, Gil Kenan, do divertidíssimo "A Casa Monstro", mostra-se completamente perdido na condução do terceiro longa da sua carreira. Além de gastar um bom tempo de projeção enquadrando insignificantes torres de transmissão de energia, Kenan emprega humor em cenas que deveriam ser tensas; introduz elementos sem nenhuma relevância, como, por exemplo, o boneco de palhaço; e apresenta personagens superficiais e dispensáveis - qual a função da irritante adolescente vivida por Saxon Sharbino, afinal?.
Como se não bastassem direção e roteiro frágeis, o elenco deixa a desejar. Sam Rockwell e Jared Harris, prejudicados por seus personagens caricatos, estão inexpressivos; ao passo que a atriz mirim Kennedi Clements profere suas falas de maneira artificial, como se fosse um brinquedo automaticamente programado para desempenhar essa tarefa. O único acima da média é Kyle Cattlet, que desempenha o papel do filho do meio do casal Bowen com extrema naturalidade e segurança.
Pela parte técnica, a fotografia é eficaz na construção do ambiente ora claro, ora escuro da casa e no movimento das câmeras. Por outro lado, a visível digitalização das criaturas e do portal luminoso evidencia a simplicidade e a fraqueza dos efeitos especiais. A única cena que chega a agradar aos olhos é a do ataque da árvore. O restante parece ter sido feito em um programa caseiro de edição de imagens.
Em suma, o "Poltergeist" do século XXI não impressiona, não assusta e, tampouco, diverte. Nem a presença de Sam Raimi - a mente por trás da trilogia "Evil Dead"- como produtor ajudou o pouco experiente Gil Kenan a fazer um filme à altura do original de 1982. Tobe Hooper e Steven Spielberg (diretor e roteirista do clássico, respectivamente) devem estar constrangidos de terem seu trabalho transformado nesse subproduto que não vale sequer o preço do ingresso. Na melhor das palavras: uma versão a ser esquecida.
Até que ponto é tolerável invadir a privacidade dos outros? Com o recente escândalo de espionagem revelado por Edward Snowden, essa questão passou a ocupar o foco das discussões. De um lado, há os defensores da ideia de que a segurança e o controle social vêm em primeiro lugar, não importando os métodos para se chegar a isso. Do outro, há aqueles que reivindicam a liberdade e a privacidade individual como direitos inalienáveis.
Lançado em 1954, "Janela Indiscreta" aborda de maneira bastante lúcida a polêmica acima. Alfred Hitchcock, mestre do suspense e cineasta de visão singular, usa a figura de L.B. Jeff, um fotógrafo afastado do serviço que passa seus dias espionando a vizinhança onde mora, para provocar o espectador e fazê-lo julgar tudo que vê em cena. Estaria o homem agindo como um bisbilhoteiro paranoico ou suas suspeitas realmente procedem?
Trata-se de uma dúvida muito bem trabalhada pelo roteiro. Abrindo espaço para múltiplas possibilidades, a narrativa mantém o público com a pergunta em mente até o início do terceiro ato, quando a situação ganha contornos dramáticos e deixa qualquer um agonizado na beira da poltrona. O fato de o filme se passar inteiramente em um único ambiente - o apartamento de Jeff - não atrapalha o ritmo das cenas, que fluem de maneira dinâmica e espontânea.
O papel do protagonista caiu como uma luva para James Stewart. Criando uma personalidade própria - personalidade de um homem aventureiro, astuto e averso a relações conjugais duradouras -, o ator deixa a impressão de que Jeff realmente existe e está emocionalmente conectado a todos que o veem na tela. Destaca-se ainda a participação de Grace Kelly, atriz que acerta ao incorporar sensualidade, inocência e sagacidade a uma mesma personagem, rompendo com o estereótipo de moça ingênua cuja função resume-se a servir de interesse amoroso para a figura masculina. Dando suporte ao enredo, Thelma Ritter e Wendell Corey (a enfermeira Stella e o detetive Doyle, respectivamente) também são dignos de elogios.
O único ponto em que a direção concisa e segura de Hitchcock peca é na condução do clímax no terceiro ato, mais precisamente na cena envolvendo a queda do fotógrafo da janela do apartamento. Com cortes frenéticos, o diretor dificulta a compreensão da passagem temporal e gera uma certa confusão no momento, levando a crer que uma sequência mirabolante de eventos aconteceu em míseros segundos. Tirando isso, "Janela Indiscreta" é uma obra primorosa, capaz de divertir, instigar e, ao mesmo tempo, fomentar a discussão sobre segurança e privacidade. Ao final de pouco mais de uma hora e cinquenta minutos de filme, qualquer um será levado a pensar duas vezes antes de espionar o vizinho.
Cenários coloridos, personagens cômicos, situações hilárias, grandes aventuras. Tudo isso faz parte da fórmula de sucesso dos estúdios Disney, Pixar e Dreamworks - com uma ou outra exceção, é claro. Feita em claymotion, a animação independente "Mary e Max: Uma Amizade Diferente" vai na contramão do modelo hollywoodiano. Adam Elliot não hesita em abordar temáticas adultas no longa animado, sendo o resultado digno de aplausos.
Mary (voz de Toni Collette) e Max (voz de Philip Seymour Hoffman) estão separados por milhares de quilômetros, mas têm tudo a ver. Ambos parecem ter saído da mais melancólica das poesias drummondianas. São pessoas solitárias, introvertidas e que não enxergam seu lugar no mundo. A amizade surge como uma espécie de refúgio para a realidade pouco agradável. Os cenários da animação refletem muito do mundo interior dos personagens. A Austrália de Mary - menina curiosa, criativa e apaixonada pelo vizinho - é extremamente colorida quando comparada à lúgubre e mórbida Nova York de Max, este um quarentão com sérios distúrbios mentais, cuja existência resume-se à reclusão no apartamento que divide com seus animais de estimação. A outrora charmosa e encantadora Big Apple nunca havia sido mostrada de maneira tão desoladora em um longa animado.
O roteiro pode desagradar a alguns pelo andamento lento e pela evidente falta de um clímax bem definido. Contudo, ele se mostra perfeito no que propõe: contar a história de maneira crua, sem ornamentá-la com idealismos e clichês.
A trilha sonora de Dale Cornelius é eficaz ao externar os sentimentos dos personagens. Em determinado momento, quando Mary empolga-se com a chegada de uma carta do seu amigo, uma música dinâmica e vibrante sobressai-se na cena, despertando certo ânimo no espectador.
Grande parte do mérito do qualidade do filme deve-se à direção de Adam Elliot. Ganhador do Oscar de Melhor Curta-Metragem de Animação em 2004, ele faz aqui sua estreia como diretor de longas. Elliot conduz a história com minuciosa precisão e admirável segurança, sabendo bem o ponto no qual quer levar o público. Portanto, cada minuto da narrativa tem o seu motivo de existir, nada é descartável - assim como a amizade entre Mary e Max.
Por fim, cabe salientar que não se trata de um desenho voltado ao público infantil. Os pais que reunirem os filhos para assistir à obra terão uma decepção. Trata-se, na verdade, de uma história triste que será melhor entendida por aqueles que possuem ou já possuíram uma amizade a distância. A dor de ter um amigo perto e, ao mesmo tempo, tão longe, é impossível de ser descrita por qualquer uma das cartas trocadas por Mary e Max.
Realizar uma obra cômica protagonizada por transexuais é desafiador. O que acaba acontecendo na maioria das vezes é os personagens serem tratados de maneira estereotipada e vistos como donos de um humor e uma histeria que beiram o ridículo (basta assistir a qualquer "episódio" do antigo Zorra Total ou a um filme besteirol americano para constatar isso). Felizmente, não é o que ocorre em "Priscilla, a Rainha do Deserto".
Stephan Elliott entrega um filme à altura da verdadeira essência da comunidade LGBT. Ao mesmo tempo em que diverte o público com consagrados números musicais e situações hilárias, o diretor promove comoção ao mostrar as três protagonistas como seres humanos normais, repletos de desejos, sonhos, dúvidas e angústias que precisam lidar com a intolerância e o conservadorismo da população do interior da Austrália. Nunca antes na história do cinema houve uma simbiose tão perfeita entre comédia e drama - mérito do roteiro assinado pelo próprio Elliott. Em uma determinada cena, por exemplo, o espectador observa as personagens divertindo-se despretensiosamente em um hotel para, logo em seguida, presenciar o ônibus que dá título ao filme ser encontrado pichado com graves ofensas. A monstruosidade do ato é inegável.
Sobram elogios para o elenco. O trio principal - formado por Hugo Weaving, Terrence Stamp e Guy Pearce - está irreconhecível. Eles não só incorporam os personagens; literalmente adentram no psicológico deles. Quem está acostumado a ver Weaving em papéis vilanescos e sombrios terá uma grata surpresa. Aqui, ele surge como uma figura carismática e jocosa, ao passo que Terrence Stamp, literalmente metamorfoseado no papel, vive aquela que podemos chamar de a mais sisuda do trio; e Guy Pearce, bem à vontade e seguro de si, vive a mais burlesca. Juntos, os três revelam uma química impressionante, com destaque para a cena da performance musical com os descendentes de arborígenes no deserto.
É interessante notar também que os nativos, comumente apontados pela cultura midiática como seres atrasados e inferiores, são uns dos poucos envolvidos na história que não desprezam o trio dançarino. Isso sem falar na verdadeira aula de tolerância oportunada por uma determinada criança que descobre a múltipla face do seu pai e age com extrema naturalidade, dizendo inocentemente que seria legal se este arrumasse um namorado.
Não dá para falar de "Priscilla" sem falar em música e figurino. A primeira, com canções de sucesso, embala toda a narrativa, sendo uma espécie de fio condutor da história. Já as roupas criadas por Tim Chappel e Lizzy Gardiner são fruto de um verdadeiro exercício da criatividade, havendo espaço para as mais extravagantes vestimentas, incluindo aí um traje feito com sandálias de borracha. No que concerne à fotografia, não há do que reclamar. As cores do deserto são bem trabalhadas em tela, reinando a visão de uma paisagem desolada, mas que não deixa de estar cheia de vida e alegria.
Desse modo, "Priscilla, a Rainha do Deserto" é mais do que uma verdadeira obra-prima do cinema australiano. Ela rompe paradigmas ao explorar a faceta pouco mostrada dos transexuais e presta um tributo à comunidade LGBT. Em suma, é uma fábula sobre amizade, família, coragem e tolerância.
Um senhor de idade tenta acompanhar os passos da filha. Impaciente, ela caminha em um ritmo incompatível com o seu pai, que, apesar do enorme esforço, não consegue alcançá-la. Trata-se de uma cena emblemática do filme uruguaio "A Demora" que explicita um grave problema familiar: o distanciamento emocional entre pais e filhos, principalmente quando aqueles encontram-se na terceira idade.
Por meio de um ritmo lento e planos longos, o cineasta Rodrigo Plá mostra aos poucos o cotidiano da família de Maria (Roxana Blanco), uma mulher que, além de enfrentar apuros financeiros para criar sozinha os três filhos, ainda precisa lidar com o pai, Augustín (Carlos Vallarino, excepcional no papel), um senhor que padece de um grave problema de esquecimento. O desinteresse de Maria com a figura do seu próprio pai é visível logo nos primeiros minutos de longa. Eles mal conversam, e quando o pai reaparece após um breve sumiço, ela sequer olha para o seu rosto. Tudo isso serve como uma espécie de preâmbulo para o ato desesperado e irracional de Maria.
O roteiro de Laura Santullo aborda Augustín como uma figura um tanto desconectada da realidade. Largado ao relento, ele crê cegamente na afetividade da filha e decide aguardar por seu retorno, nem que para isso tenha de enfrentar o terrível frio de Montevidéu. Carlos Vallarino incorpora o personagem com tanta naturalidade que, em certo momento, somos levados a crer que não se trata de uma ficção, mas sim de um registro documental em que o ator e Augustín são criaturas indissociáveis. A maneira como Maria é construída também merece atenção. Ela não é uma filha má - tampouco despreza seu pai. O problema é que tomou a decisão errada em um momento no qual se via totalmente acuada, sofrendo um enorme remorso por conta disso.
"A Demora" deve, portanto, ser encarada como uma obra que escancara o quão difícil é ser idoso. Simples, mas tocante, é um filme que transcende a ficção e dialoga com a realidade. Sem dúvida, merece ser visto.
"Blade Runner" é uma ficção-científica que privilegia o desenvolvimento dos seus personagens em detrimento de possíveis cenas de ação. E isso não é uma crítica. Dotado de diálogos interessantes, mensagens filosóficas, uma visão distópica do futuro e um intimismo raro, o filme de Ridley Scott é singular em todos os aspectos. Nada de personagens destruidores ou seguros de si. Todos eles - até o mais malvado dos vilões - não passam de criaturas amarguradas, preocupadas em alongar a sua curta existência num planeta pouco hospitaleiro. O caçador de androides de Harrison Ford está longe de ser o herói que os filmes de ficção-científica costumam trazer.
O roteiro tem um ritmo lento, o que chega a ser prejudicial em dado momento do filme. Outro problema é o de trazer questões mal-explicadas e deixar outras em aberto. Mas o lirismo com que ele trata a narrativa futurística compensa esses defeitos. Por trás de uma realidade opressora - ressaltada pelo formidável trabalho de fotografia e direção de arte, que criam uma metrópole ora colorida, ora cinzenta e sempre movimentada, ocupada por grandes edifícios e pela sujeira que toma conta das ruas -, há criaturas tentando enxergar-se como seres humanos. A busca de cada um resume-se a encontrar sua própria identidade.
Se Harrison Ford surge um tanto quanto apagado como Rick Deckard, Rutger Hauer rouba a cena vivendo Batty. O ator incorpora todo o cinismo, a violência, a compaixão e a ternura (note como ele reage à morte da parceira Pris) que são propícios ao replicante. Sua performance é elevada pela derradeira cena do telhado, na qual profere uma frase cheia de significado. Só esse momento em si já justifica o ato de assistir ao filme.
Em "Blade Runner", é traçado um mundo no qual não há reais vilões. Apenas vítimas. Vítimas de um sistema controlador, repressivo e que joga todos contra todos. Futuro distante e distópico ou realidade?
Muitas vezes, um filme feito fora da terra do Tio Sam deixa qualquer figurão de Hollywood com uma enorme inveja. O suspense espanhol "El Cuerpo" consegue essa proeza.
O diretor e roteirista Oriol Paulo é dono de um talento único no quesito manipulação do público. Em uma narrativa que surpreende a cada momento, Paulo manipula o espectador como se este fosse um boneco nas mãos de um ventríloquo, levando-o a repensar e reavaliar tudo aquilo que vê em cena. O fato de haver um quê de sobrenatural perpassando a história torna-a ainda mais intrigante.
É importante destacar que todos os elementos convergem para um bom filme. O elenco está afiadíssimo e entrega atuações de indiscutível qualidade. A edição consegue incorporar os saltos temporais e as várias perspectivas dos personagens envolvidos a um ritmo dinâmico; ao passo que a trilha sonora mostra-se discreta, mas pontual, aparecendo sempre na hora certa para criar tensão. Pela parte visual, a fotografia e a direção de arte atuam em sintonia na criação do necrotério, ambiente no qual se passa grande parte do longa. Nota-se que, mesmo nos momentos mais escuros, é possível visualizar o que ocorre em cena - ao contrário de muitos filmes que pecam nesse aspecto da iluminação em ambientes obscuros.
Por fim, vale falar que "El Cuerpo" é uma obra que merece ser vista. Não será surpresa se, daqui a algum tempo, um grande estúdio hollywoodiano anunciar um remake do filme de Oriol Paulo. É uma história que os americanos adorariam adaptar a seu bel-prazer, ainda mais em tempos de criatividade escassa. Uma coisa eles não podem negar: "El Cuerpo" é um suspense que seria capaz de deixar até Alfred Hitchcock de boca aberta. Um grand finale digno de aplausos.
Uma das belezas do cinema é a sua capacidade de trazer à tona temas que muitas vezes passam despercebidos no cotidiano ou ignorados nas grandes discussões. Corrupção, racismo, pobreza e violência são assuntos constantemente debatidos. O mesmo não se pode dizer da precariedade dos hospitais psiquiátricos no Brasil. É aí que entra "Bicho de Sete Cabeças".
Utilizando uma estética que foge à tradicionalmente usada no cinema, a diretora Laís Bodanzky apresenta a realidade nua e crua de um sanatório pela óptica de Neto, um jovem rebelde e incompreendido pela família. Recursos como músicas de letras fortes, cortes bruscos, planos distorcidos e saltos temporais servem para transmitir toda a instabilidade psicológica do protagonista, sem que nada pareça forçado ou gratuito. As cenas de violência e abuso são de horrorizar qualquer um.
Grande parte do sucesso do filme deve-se à atuação de Rodrigo Santoro. Com pouco mais de vinte anos na época, Santoro convence como um genuíno adolescente. O ator comprova que é dono de um talento único ao exprimir toda a carga emocional exigida pelo papel. Além disso, demonstra também uma boa dinâmica com o restante do elenco; seja com Othon Bastos, que interpreta seu rigoroso pai; seja com Gero Camilo, que, em uma performance formidável, vive um paciente totalmente fora de si.
A construção da clínica psiquiátrica como um ambiente frio, perturbador e opressor é resultado de uma exemplar direção de arte.
O roteiro de Luiz Bolognesi - inspirado no livro "Canto dos Malditos", do ex-interno Austregésilo Carrano - é um ataque direto ao sistema de tratamento psiquiátrico. Constituído de práticas reprováveis e desumanas e de instituições corruptas, o modelo exibido durante pouco mais de uma hora de projeção é apontado como monstruoso, atuando a favor da degradação emocional, psicológica e física dos pacientes, ao invés de promover a recuperação destes. Quando do lançamento do filme, a sociedade pareceu ter captado a mensagem - a questão dos hospitais psiquiátricos chegou a ocupar espaço até mesmo no Senado Federal. Hoje, a pergunta que fica no ar é: de 2001 pra cá, algo realmente mudou?
Um assassinato, um boneco macabro, uma cidade do interior, uma velha sinistra, um policial arrogante, muita neblina e trovoadas nos momentos mais tensos. O que tudo isso tem em comum? São elementos que se tornaram marcas clássicas do terror, sendo raros os cineastas que dispensam tais artifícios em seus longas. Desse modo, não é de se estranhar que "Gritos Mortais" siga exatamente o mesmo padrão do que vem sendo feito há décadas no gênero, o que não é necessariamente ruim. O filme de James Wan - diretor do excelente "Jogos Mortais" e dos razoáveis "Sobrenatural" e "Invocação do Mal" - funciona dentro de sua proposta. A história, assinada pelo próprio Wan, em parceria com Leigh Whannell, brinca com a aura de mistério construída em torno dos bonecos usados por ventríloquos e consegue envolver o espectador, mantendo-o atento a cada detalhe em cena.
A atuação pouco inspirada de Ryan Kwanten - que recita seus textos sem entusiasmo nenhum - não chega a arruinar o filme, mas se torna um obstáculo para a identificação entre público e personagem. Apesar disso, há momentos marcantes no filme, como o macabro diálogo com um boneco de palhaço no terceiro ato.
No que se refere à parte técnica, não há do que reclamar. A fotografia de John R. Leonetti e o trabalho de direção de arte estão em consonância para a constituição do clima sombrio e amedrontador que permeia o visual do longa. Imponente e capaz de provocar um frio na espinha do mais impávido espectador, a música tema de Charlie Clouser é comparável, em termos de qualidade, àquela feita no clássico "O Exorcista". Sem dúvida, trata-se de mais um louvável composição desse profissional que, desde "Jogos Mortais", vem se mostrando extremamente eficiente.
Por último e não menos importante, cabe chamar a atenção para o desfecho da narrativa. É uma tradição de James Wan surpreender o público com um grand finale, e, em "Gritos Mortais", ele não poderia fazer diferente. O problema é que a grande revelação soa inverossímil e até mesmo mal-explicada, exigindo um pouco de reflexão e atenção de quem assiste (há, no Youtube, um final alternativo que elucida melhor a surpresa). Tirando isso, é uma revelação imprevisível e capaz de deixar qualquer um atônito, com os olhos esbugalhados.
Se o público espera um terror inovador e que vá deixá-lo noite após noite com medo do escuro, irá se decepcionar com o longa. Caso esteja mais interessado em um entretenimento despretensioso, "Gritos Mortais" é uma opção mais que acertada. Aos que verão, é necessário alertar uma coisa: quando ver Mary Shaw, não grite.
Certos personagens exigem dedicação total dos atores que os interpretam. Muitas vezes, o profissional vai além do que é esperado para alcançar a perfeição. Al Pacino teve a felicidade de conseguir esse feito no ano de 1992. Ele é, sem dúvida, o grande atrativo de "Perfume de Mulher". Na pele de Frank Slade, um ex-coronel cego que passa seus dias como um homem angustiado e solitário que desperta antipatia até mesmo da sua própria família, Pacino tem uma atuação estrondosa. Destaca-se o esmero com a criação dos trejeitos do personagem, desde o capricho no elaboração do tom de voz até a expressão visual - ficando difícil acreditar que o ator que enxergamos na tela não é de fato cego. Isso sem falar no momento da dança de tango, que, coreografada e executada de maneira exemplar, é uma das cenas mais bonitas e serenas da história do cinema.
Apesar de um pouco ofuscado pelo talento arrebatador do protagonista, Chris O'Donnell (o Robin dos filmes de Joel Schumacher) consegue bons momentos. O fato de o seu personagem, um estudante universitário, estar passando por um complicado dilema em sua vida acadêmica e pessoal aproxima-o do público e colabora positivamente para uma boa química com o velho Frank Slade, que parece estar sempre disposto a transmitir lições de moral e novos valores. Um exemplo disso é a cena do terceiro ato na qual o ex-militar profere um inflamado monólogo para defender seu "acompanhante de feriado" de uma punição injusta. Confrontado por um realismo de arrepiar, o espectador sente-se na pele de qualquer um dos presentes no auditório da tradicionalíssima Baird.
Falando um pouco da direção, Martin Brest é extremamente sábio ao não vitimizar em demasia a figura de Frank e evitar o uso de clichês - como, por exemplo, o surgimento de um interesse amoroso que redimiria o personagem principal. A visão de Nova York como uma cidade deleitável também constitui-se como um acerto do diretor, pois casa perfeitamente com a proposta da trama, que é mostrar a busca do protagonista por momentos hedônicos.
Desse modo, "Perfume de Mulher" é um daqueles filmes que ficam na história da sétima arte não só por apresentar uma das melhores atuações já vistas em mais de cem anos de cinema, mas também por ser uma fábula sobre esperança, coragem e integridade. Que o discurso do coronel Frank Slade sirva não só para os estudantes de Baird - que sirva, também, para qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo.
Apesar de ser um prato cheio para os fãs dos quadrinhos, "Vingadores: Era de Ultron" escorrega em alguns problemas clássicos de blockbusters.
Primeiramente, o diretor e roteirista Joss Whedon demonstra uma certa dificuldade na hora de lidar com a trama prolixa. Muitos personagens surgem em tela, nem sempre recebendo o devida tratamento. Os irmãos Maximoff, por exemplo, agem movidos por uma motivação rasa e clichê - o desejo de vingança - e não cumprem nenhuma função que justifique suas presenças no filme. Na verdade, chega até a ser risível a ingenuidade dos gêmeos em acreditar em supostas boas intenções de uma criatura tão perversa como Ultron. Este surge como um vilão totalmente digitalizado e que, nem de longe, apresenta o carisma e a densidade psicológica de Loki, antagonista do filme anterior. Tudo o que o Ultron faz é atacar sem mais nem menos e proferir discursos megalomaníacos sobre a necessidade de "destruir o mundo para reerguê-lo". O personagem Visão também apresenta sérios problemas, Ele surge de maneira mal explicada na trama e parece ter a resposta para tudo, sendo aceito como aliado sem grandes questionamentos por parte dos Vingadores.
Pra não dizer que não falei das flores, vamos ao lado bom do filme. O elenco principal mostra-se bastante seguro e à vontade em seus papéis, com Whedon sabendo explorar bem as peculiaridades de cada um. O sarcasmo de Tony Stark continua eficiente. A insegurança de Bruce Banner é ainda mais forte. A despeito de, em alguns momentos, ser reduzida a um mero interesse amoroso, a Viúva Negra não deixa a desejar em questão de astúcia e firmeza. Thor, Capitão América e Gavião Arqueiro - em especial, esse último, que chega a ocupar especial posição em dado momento - também demonstram uma evolução na maneira como são representados nessa sequência. Pela parte técnica, o longa é um delírio visual. Os efeitos visuais estão surpreendentes, com destaque para a criação extremamente realista do Hulk, feito através da tecnologia de slow-motion. Além disso, a fotografia e a direção de arte também chamam a atenção pela qualidade, especialmente na criação de um país fictício, concebido nos moldes de uma república soviética do século passado.
Em suma, mesmo com seus equívocos, "Vingadores: Era de Ultron" está longe de ser um filme ruim. Conseguindo cumprir a promessa para a qual estava submetido - divertir o público sem, necessariamente, envolvê-lo em uma história complexa -, espera-se que esse segundo capítulo da jornada dos heróis supere o sucesso de bilheteria do primeiro e contribua para expandir ainda mais o universo Marvel no cinema. Se tudo continuar assim, a sétima arte não se verá livre das adaptações de quadrinhos tão cedo.
"Medianeras" é, antes de tudo, um filme sobre a solidão. No vocabulário drummondiano, Martin e Mariana, os dois protagonistas da história, são verdadeiros gauches - criaturas desajustadas, perdidas, que não vivem, apenas percorrem suas existências como verdadeiros zumbis.
Partindo dessa realidade, o diretor Gustavo Taretto apresenta um apanhado de fatores e situações que caracterizam as angústias do homem contemporâneo.Martin, um criador de sites, e Mariana, uma arquiteta frustrada, moram na mesma rua, e, ao passo que se encontram extremamente próximos, estão profundamente distantes entre si. A Internet só se mostra eficaz para desligá-los da realidade. A moradia que os abriga mais serve como uma obscura masmorra existencial do que um doce lar. Os relacionamentos amorosos de ambos são um completo desastre. O cotidiano é desprovido de atrativos e os dias tardam a passar. Isso é o século XXI.
Buenos Aires, uma metrópole marcada pelos contrastes, é o pano de fundo para essa história de amor inusitada. Cada detalhe da cidade é explorado poeticamente nas narrações dos protagonistas. Os prédios altos, os cabos de fio, as publicidades em edifício, tudo vira objeto de reflexão filosófica em um retrato melancólico da vida que habita a capital - melancolia esta ressaltada por uma fotografia de cores frias, nada atraentes.
A metafórica abertura de uma nova janela nos apartamentos tem um impacto profundo na vida do casal de solitários, surgindo como uma luz capaz de quebrar a escuridão de suas cavernas. E, logo o meio que os desconectava da realidade, acaba unindo-os diretamente, jogando-os de frente para um destino que é aguardado pelo espectador desde o primeiro ato.
Apesar de ser perfeito na construção e na condução da sua temática e dos seus personagens, "Medianeras" pode desagradar a alguns por seu ritmo lento e pela ausência de um clímax bem definido. Por isso, assim como na vida dos protagonistas gauches, é necessário ter paciência e acreditar que o melhor momento, aquele momento grandioso capaz de compensar todo o resto, ainda está por vir.
No momento, espera-se que a vida imite essa belíssima obra de arte e que, qualquer ser humano que se veja como um Martin ou uma Mariana consiga quebrar sua parede e abrir a janela para enxergar a luz de um fabuloso mundo novo. Até lá, resta erguer a cabeça e seguir em frente, pois, como diz um velho ditado, a noite é sempre mais escura antes do amanhecer.
Em "O Abutre", o diretor Dan Gilroy traça um retrato chocante do que é o telejornalismo diário. Lou Bloom (Jake Gyllenhaal, estupendo em cena) é um sujeito que descobre numa simples câmera a fonte de dinheiro que sempre buscou, revelando aos poucos seu lado ardiloso, frio e egoísta. Aproveitando-se de tudo, desde a falta de sorte das vítimas que filma até a ingenuidade do seu jovem assistente, Bloom vaga pelas ruas de Los Angeles fazendo o inimaginável para conseguir as imagens que tanto quer.
O roteiro é de uma lucidez louvável, evitando a construção de personagens estereotipados e a transmissão de qualquer mensagem moral, já que, no agitado mundo das manchetes e notícias, não há espaço para a ética.
Em suma, "O Abutre" constitui-se como um prato cheio não só para discutir a atuação sensacionalista da mídia, mas também para se refletir sobre o comportamento de toda a sociedade atual.
Conhecido por sua extravagância e criatividade, Wes Anderson não demonstra o menor receio em usar e abusar das suas marcas autorais. E tudo está presente - o seu usual elenco (composto por nomes como Edward Norton e Bill Murray), os cenários cuidadosamente pensados, a centralização dos elementos em cena, os movimentos lentos e precisos de câmera, os cortes lentos, os diálogos inteligentes e vários personagens charmosos. O resultado disso tudo é "O Grande Hotel Budapeste", uma verdadeira obra-prima.
O personagem central da obra, Monsieur Gustave, é genialmente interpretado por Ralph Fiennes. O ator britânico dá vida ao gerente do hotel do título com enorme empolgação, carisma e sensibilidade, tornando-o uma figura de traços singulares que dificilmente será esquecida pelo público. A Academia cometeu um crime ao não indicar Fiennes ao Oscar de Melhor Ator. As atuações de Tony Revolori, Adrien Brody, F. Murray Abraham, Edward Norton eTilda Swinton também merecem elogios. Sem dúvida, trata-se de um elenco de dar inveja a qualquer realizador.
A direção de Anderson é extremamente precisa, o que leva a um filme que sabe mesclar como poucos os elementos de drama e comédia, sempre valorizando seus personagens cativantes e dando espaço para que aqueles que os interpretem exibam seu talento. Os cenários e os figurinos são um verdadeiro exercício da criatividade, tratando-se de um trabalho que - pela sua excentricidade - supera o que normalmente é feito em filmes de época.
A trilha sonora de Alexandre Desplat é eficiente ao imprimir dinamismo ás cenas e estabelecer com perfeição a atmosfera simples e glamourosa de uma inusitada nação da Europa Oriental.
Em tempos marcados por um tsunami de blockbusters, reboots, remakes e sequências é interessante notar que - parafraseando o Monsieur Gustave - ainda há um lampejo de originalidade no açougue bárbaro que se tornou a indústria cinematográfica. Esse lampejo tem nome. Chama-se Wes Anderson
A ideia do diretor Scott Derrickson e do roteirista Paul H. Boardman de fazer uma mistura de gêneros - no caso, drama de tribunal com terror - é, no mínimo, interessante.
Contudo, a concretização do projeto não poderia ser mais falha, a começar pela escolha do elenco. Laura Linney tem uma atuação sofrível como uma advogada de defesa, permanecendo com a mesma expressão quase todo o filme. Jennifer Carpenter, que deveria ser o centro do filme e protagonizar momentos macabros, acaba prejudicada pelo roteiro e tendo sua participação reduzida a três ou quatro cenas. O único que se salva é o experiente Tom Wilkinson, que incorpora com firmeza a mentalidade de um padre atormentado.
Derrickson também peca na hora de filmar os momentos mais tensos do longa - entre eles, a tentativa de exorcismo, trecho no qual a câmera tremula demasiadamente e a fotografia obscura dificulta a percepção do que ocorre na tela.
Para piorar as coisas, o roteiro priva o espectador do privilégio de uma trama subjetiva. Assim sendo, a história, que poderia muito bem ser contada a partir dos dois pontos de vista - o religioso, no qual Emily estaria realmente possuída; e o científico, em que a garota sofreria de problemas mentais - ignora esta última visão e foca apenas na primeira, trazendo cenas de manifestação sobrenatural que, ao não causarem impacto nem provocarem medo, chegam a ser risíveis.
"O Exorcismo de Emily Rose" nada mais é do que uma boa ideia jogada no lixo por uma direção incompetente.
Alfred Hitchcock possui a incrível capacidade de transformar uma trama simples decorrida em um único ambiente em uma verdadeira obra-prima do cinema. "Festim Diabólico" não é apenas um filme de suspense, mas uma análise minuciosa do comportamento humano, onde cada personagem parece ser uma peça de xadrez devidamente posicionada em seu lugar no tabuleiro. Dessa forma, é interessante notar as diferentes reações - tanto por parte dos anfitriões, quanto dos convidados - frente ao misterioso "sumiço" de David. Enquanto o sr. Cadell (James Stewart) age com uma desconfiança minuciosa, o jovem Kenneth (Douglas Dick) aproveita a ausência do conhecido para tentar atrair a namorada deste.
É interessante observar também que Hitchcock não usa nenhuma trilha sonora durante os 80 minutos de longa. Muito pelo contrário, o silêncio é o responsável pela construção de uma crescente tensão, havendo ainda alguns momentos em que leves ruídos invadem o espaço do apartamento - com destaque para a genial cena em que o jovem Philip é questionado, de forma acusatória, sobre o desaparecimento de David e o barulho de uma sirene toma penetra no ambiente no exato momento em que o "suspeito" esbanja uma expressão de desconforto e insegurança.
Uma das grandes contribuições que esse diretor britânico deixou para a posteridade foi a ideia de que um suspense não precisa ter, necessariamente, um enredo complexo e uma vasta gama de personagens para funcionar. Basta saber manipular as emoções o espectador e criar situações instigantes que levem qualquer um a ficar com os dois olhos grudados na tela e com a bunda presa na cadeira. Uma fórmula infalível de sucesso.
O cinema nacional é, ocasionalmente, apontado pelo grande público como limitado e pouco criativo. "Central do Brasil" é um dos vários filmes tupiniquins que mostram que se trata de uma acusação infeliz e injusta, feita por quem - geralmente - desconhece a verdadeira alma da nossa produção cinematográfica.
Com uma direção bastante segura de Walter Salles, o drama no estilo road movie apresenta uma sensibilidade poucas vezes vista antes na telona. Salles mostra-se um verdadeiro gênio na condução dos seus atores, arrancando ótimas interpretações de todo o elenco. O destaque, é claro, fica por conta de Fernanda Montenegro, que transmite com enorme maestria os sentimentos e as particularidades de Dora, uma velha carrancuda e impaciente que, pouco a pouco, cria um laço afetivo com o menino Josué, este muito bem interpretado pelo novato Vinícius de Oliveira. Também não há motivo para reclamar das performances de Othon Bastos e Marília Pêra.
O roteiro, escrito a seis mãos, transforma a viagem de Dora e Josué em não apenas uma excursão pelo interior do Brasil, mas também em uma jornada de descoberta existencial - com direito até a uma paixão perdida na estrada. A trilha sonora de Antonio Pinto e Jaques Morelenbaum acompanha quase toda a narrativa, mostrando-se bela e simples, ao passo que a fotografia de Walter Carvalho é eficaz no retrato das paisagens do país, desde a agitada estação que dá nome ao filme até a rusticidade das pequenas cidades.
"Central do Brasil" é uma verdadeira pérola do cinema nacional. Uma obra que demonstra o enorme potencial dos cineastas brasileiros em criar uma história singela e intimista, capaz de tocar plateias do mundo inteiro.
Em um gênero tão saturado de clichês e muitas vezes tido como menor pelos próprios profissionais de cinema, é extremamente complicado criar uma história que seja, ao mesmo tempo, original e horripilante. Pode-se dizer, desse modo, que um ou outro filme de terror produzido em um intervalo de um ano realmente possua os requisitos necessários para ser elevado à categoria de obra cinematográfica (no último ano, o longa australiano "The Babadook" assumiu tal posto). Produzido por Guillermo del Toro, "Mama" não impressiona e não consegue romper o paradigma de um enredo formulaico e pouco criativo - tornando-se só mais um filme entre tantos que são lançados anualmente
O primeiro ato é incrivelmente bem realizado. Através de uma fotografia sombria e de uma trilha sonora imponente, adianta-se a ideia de que algo terrível pode acontecer a qualquer momento. O diretor Andy Muschietti capricha na construção dos personagens e das situações que os cercam (o momento em que as garotas são encontradas na cabana é memorável), contando, para isso, com o trabalho de Jessica Chastain, que surge convincente em cena.
Contudo, decorridos a primeira meia-hora de projeção, o filme piora progressivamente. Personagens que até então representavam alguma importância são literalmente escanteados pelo roteiro, no caso; o tio das garotas, Luke - cujo longo período de tempo no hospital é resumido a uma ou outra cena - ; e o médico vivido por Daniel Kash. É provável que esse "esquecimento" tenha sido proposital, de modo a dar mais tempo em tela para a personagem de Chastain e seu relacionamento com as crianças, incorrendo em um outro erro infeliz, no qual uma das meninas cria, de maneira inesperada e inexplicada, um afeto especial pela "nova mãe", até então retratada como uma mulher impassível.
Surge, então, o terceiro ato. Marcado pela falta de ritmo - a sensação de tensão é perdida por volta da metade do filme -, o desfecho é a finalização trágica da já citada série de erros, culminando em uma sequência que parece ter saído de um conto infantil da Disney, com a nítida intenção de transmitir uma lição de amor materno.
Não seria absurdo que "Mama", um filme produzido por um dos cineastas mais respeitados da contemporaneidade e protagonizado pela atriz do momento, constitui-se como um verdadeiro fracasso ao desperdiçar todo o potencial que possuía para contar uma boa história e, até mesmo, entrar na seleta lista de melhores obras de terror já feitas no mundo do cinema.
Mad Max: Estrada da Fúria
4.2 4,7K Assista Agora"Mad Max" começou como um filme de orçamento limitadíssimo estrelado pelo até então desconhecido Mel Gibson. Com a aclamação da crítica, as sequências, com nítidos contornos hollywoodianos, tornaram-se inevitáveis (com direito até à participação da rockeira Tina Turner em uma delas). A série ficou imortalizada na cabeça dos fãs e reverenciada como uma das melhores dos anos 80.
Trinta anos depois do lançamento de "Além da Cúpula do Trovão", George Miller, que já demonstrou ser um diretor competente ao fazer bons filmes dos mais variados gêneros, sente-se à vontade para expandir o universo que ele mesmo criou. Ao optar por utilizar veículos reais em tela - em vez de puro CGI - , Miller confere um realismo vibrante às cenas de ação, estas muito bem filmadas e que, em nenhum momento, lembram os ângulos esquisitos e a câmera trêmula que são características de cineastas como Michael Bay. Além disso, o diretor australiano consegue a proeza de fazer do bizarro um atrativo a mais - ver um guerreiro com uma guitarra flamejante em meio à perseguição é, com o perdão da palavra, irado.
O roteiro, escrito a seis mãos, concentra-se mais na ação frenética do que no desenvolvimento dos personagens. Mas isso não significa que eles são rasos e descartáveis.
Mesmo sem grandes diálogos, Tom Hardy injeta carisma, vigor físico e instabilidade psicológica ao seu Mad Max, uma versão inquestionavelmente superior à de Mel Gibson; ao passo que Hugh Keays-Byrne surge amedrontador como o líder totalitário e populista Immortan Joe, um vilão parecidíssimo, tanto no figurino quanto no trabalho de dicção, com Bane, de "Batman - O Cavaleiro das Trevas Ressurge" - será que Hardy andou lhe dando umas dicas?
Contudo, em meio à opulência dos corpos masculinos, quem rouba a cena é a Imperatriz Furiosa, vivida por Charlize Theron (perfeita no papel). Dona do arco dramático mais relevante da narrativa, Furiosa surge como uma espécie de rebelde feminista que questiona o despotismo de Immortan Joe e o modo como ele trata as várias esposas que tem ("nós não somos objetos", diz uma dessas mulheres em determinado momento). Desde "Kill Bill", não se via uma personagem feminina tão expressiva quanto a de Theron, uma verdadeira prova do diferencial dessa produção de George Miller em relação a outros filmes de ação, que, geralmente, reduzem o papel da mulher a um rostinho bonito a ser salvo pelo herói.
A parte técnica é irrepreensível. John Seale, diretor de fotografia, consegue retratar com perfeição as cores do deserto. Os efeitos especiais são usados de maneira contida e não têm nada de inverossímeis, gerando, junto com o trabalho de Seale e a direção de arte, um verdadeiro delírio visual em tela. Graças à boa edição e mixagem, o som deixa de ser apenas um acompanhamento para a imagem e se torna essencial para a grandiosidade das cenas de perseguição automobilística, com direito a motores estridentes, colisões fatais e tiroteio contínuo.
Em um mundo habitado por blockbusters como "Transformers", "Battleship" e "G.I. Joe", encontrar uma produção que divirta e não insulte a inteligência do espectador é motivo de comemoração. Resta torcer para que o combustível de George Miller seja suficiente para que Max e Furiosa voltem a fazer barulho nas salas de cinema em um futuro próximo.
Kill Bill: Volume 1
4.2 2,3K Assista AgoraPersonagens surtados, humor negro, trilha pop e sangue, muito sangue. Esses elementos são parte do repertório tarantinesco que, desde a década de 90, vem conquistando cinéfilos dos mais variados cantos do mundo. Logo na virada dos anos 2000, Quentin Tarantino apresentou aquela que é a sua grande obra-prima até o prezado momento. Nem o mais otimista dos fãs poderia imaginar algo como "Kill Bill".
A trama acompanha o plano de vingança da Noiva, uma assassina profissional vivida por Uma Thurman. Aliando sensualidade e sadismo, ela tem o melhor desempenho da sua carreira e nem de longe parece a mesma atriz que participou do sofrível "Batman & Robin".
Mas os méritos não devem ficar só para Thurman. O trabalho estupendo de Tarantino - que acumula as funções de diretor e roteirista - é fundamental para a qualidade das atuações e, consequentemente, do filme.
Primeiramente, o roteiro acerta ao não mostrar a Noiva como uma personagem unidimensional. Muito pelo contrário, ao mesmo tempo em que nutre uma sede animalesca por vingança, a assassina demonstra um ou outro traço de humanidade, como no momento em que hesita em matar a ex-colega na frente da filha desta.
Já Bill, o grande vilão da história, não tem seu rosto mostrado em nenhum momento, o que ressalta a aura de mistério e periculosidade criada em seu entorno.
Além de usar artimanhas como flashbacks e narração em off, Tarantino faz referências ao cinema de ação oriental que incluem a presença de animes na narrativa, a coreografia das lutas e a ambientação (todo o terceiro ato do filme se passa no Japão). O resultado disso tudo são cenas de pancadaria absurdamente bem filmadas, não havendo limite para o derramamento de sangue.
A fotografia do experiente Robert Richardson é encantadora, com direito a movimentos ousados e frenéticos de câmera - mas nunca trêmulos - e o uso do preto e branco em meio à batalha.
As trilhas pop dão um charme a mais e contribuem para a criação da atmosfera do longa. Cada música escolhida cumpre uma função. Ao ser assobiada por uma assassina, "Twisted Nerve" coloca nos ouvidos do espectador o clima de tensão; enquanto "Battle Without Honor or Humanity" prepara o terreno para o devastador combate que surgirá na tela em questão de minutos.
Quando chegam os créditos finais, é impossível não se lamentar pelo fato de o filme ter acabado. Por outro lado, os fãs do bom cinema de ação têm outro grande grande motivo para sorrir: a vingança da Noiva continua em "Kill Bill: Volume 2".
Beleza Adormecida
2.4 1,2K Assista AgoraNem sempre uma boa ideia é sinônimo de um bom filme. O motivo disso é que qualquer bom enredo pode ser arruinado, seja por direção incompetente, seja por elenco pífio. No caso de "Beleza Adormecida", ocorrem os dois problemas. A premissa de uma jovem solitária que preenche o seu vazio emocional com sexo e aceita fazer parte de um serviço nada comum é deveras interessante, levando o espectador a pensar que encontrará uma trama cheia de profundidade e dilemas morais (como o excelente "Shame", de Steve McQueen). Mas isso está longe de ser verdade.
Julia Leigh, diretora e roteirista, conduz o filme com mão pesada, não sabendo ditar o menor ritmo ou dinamismo. As cenas não fluem, elas arrastam-se em um verdadeiro exercício de paciência, o que piora quando o roteiro tenta parecer sofisticado e intelectualmente complexo ao trazer um senhor recitando da maneira mais artificial possível uma espécie de fábula que, supostamente, casa com o desfecho.
No que concerne ao elenco, Emily Browning mostra ser apenas um rostinho bonito. Tendo seu corpo e seus mamilos pouco salientes explorados incessantemente pela câmera de Leigh, a atriz exibe expressões mínimas e impossibilita que o espectador crie algum tipo de vínculo com a arrogante Lucy. Os momentos desta com Birdmann, uma espécie de amigo vivido de maneira amadora por Ewen Leslie, são risíveis e desprovidos de valor, já que a relação entre ambos é inexplicavelmente não explorada, resumindo-se a um ou outro diálogo descartável.
Portanto, reitera-se a afirmação inicial: nem toda boa ideia gera um resultado satisfatório. "Beleza Adormecida" é a grande prova disso; uma produção boba, frágil e vazia. Não seria surpresa se, ao subir dos créditos finais, o espectador, assim como a beleza do título, encontre-se adormecido. E, nesse caso, o sono compensa mais, muito mais.
O Sal da Terra
4.6 449 Assista AgoraTodo brasileiro sabe, ou deveria saber, quem é o fotógrafo Sebastião Salgado. O que quase ninguém conhece é o ser humano Sebastião Salgado.
Pensando nisso, Wim Wenders apresenta um documentário que mergulha fundo não só na obra, mas também na vida desse profissional. Na companhia do co-diretor Juliano Ribeiro Salgado (filho do protagonista, como denuncia o sobrenome), Wenders mostra desde o passado de Sebastião no interior de Minas Gerais e o primeiro contato dele com uma câmera fotográfica até as viagens épicas mundo afora.
O grande acerto da dupla é dar o espaço necessário para o próprio fotógrafo explicar e explorar seu trabalho. Cada fotografia esconde uma história e uma lição por trás, sendo emocionante acompanhar a narração ora apaixonada, ora melancólica de Sebastião. Sua obra ganha um bom panorama, existindo, ao mesmo tempo, fotografias de doer o coração e causar extremo desconforto - como as feitas na Etiópia -, e outras cuja beleza é incontestável - destaque para aquelas tiradas durante o incêndio dos poços de petróleo, que parecem ter saído diretamente de uma tela do surrealista Salvador Dalí; e as da expedição "Gênesis", incluindo aí a pose simpática de um gorila e a captura do exato momento em que uma baleia levanta sua enorme cauda. Indubitavelmente, uma genuína poesia visual diante do espectador.
Além disso, o documentário explora a relação de Sebastião com a família. Juliano relata que o pai sempre foi ausente, ficando sempre aos cuidados da mãe, Lélia, a mulher que, além de ter concebido a ideia da criação do Instituto Terra, é a responsável por organizar as fotos e preparar os livros de Sebastião. A recíproca "por trás de todo grande homem, há uma grande mulher" nunca foi tão verdadeira.
O pai do fotógrafo também ganha voz, mostrando-se como um senhor simples, mas muito dedicado na criação dos filhos.
Mostrando-se extremamente lúcidos e coesos na direção, Wim Wenders e Juliano Salgado merecem todos os elogios possíveis. Eles exibem como ninguém um vasto emaranhado de emoções e experiências inesquecíveis em "O Sal da Terra". Após o fim da projeção, o espectador sai transformado e acreditando no futuro da humanidade. Já Sebastião deixa de ser apenas "aquele fotógrafo careca" diante dos olhos do público, e se torna a figura sábia, o dono de uma lição de vida que merece cada segundo dos cento e dez minutos do documentário. Tudo o que eu tenho a dizer é: foi um prazer te conhecer, Sebastião.
Fahrenheit 11 de Setembro
3.9 260Michael Moore é um documentarista sem igual que consegue imprimir forte conteúdo político à sétima arte de um modo nunca visto antes. Depois do relato contundente e igualmente chocante da cultura da violência nos Estados Unidos feito em "Tiros em Columbine", Moore vai ainda mais longe ao expor as mazelas e a imundície da política norte-americana, focando na figura maquiavélica de George W. Bush e na Guerra do Iraque. O resultado não decepciona.
Todo o documentário é dotado de um ritmo veloz. Logo no começo, o cineasta expõe, de maneira didática e eficaz, evidências claras que convencem o espectador de que a vitória de Bush na eleição presidencial de 2000 foi fruto de uma grande fraude. Em seguida, uma cena que muito lembra o atual modelo político brasileiro: em vão, cidadãos comuns pressionam os seus representantes para atender à vontade popular.
A obra ganha força a partir do momento em que aborda o atentado ás torres gêmeas e a consequente Guerra do Iraque. Nessa parte, Moore não poupa críticas ao presidente Bush, que é apontado como um líder inescrupuloso, manipulador, negligente com a segurança nacional e membro de uma família que, desde muito antes do 11 de setembro, andava de mãos dadas com grupos terroristas. Tudo isso é mostrado por meio da narração irônica do próprio diretor, que recorre também ao uso de animações e músicas em tom de deboche e desprezo pelo político. O momento em que vemos Bush, juntamente com os seus correligionários, ser maquiado, ao som de uma hipnótica trilha de guitarra composta por Jeff Gibbs representa a hipocrisia instaurada no mais alto escalão do governo, onde todos agem como verdadeiros atores postos frente às câmeras.
A Guerra do Iraque é apresentada como sendo fruto de um mero capricho daqueles que estavam no poder. Um conflito desnecessário e movido a interesses econômicos que, com o apoio de grande parte da opinião pública, ceifou a vida de milhares de soldados americanos, incluindo aí jovens cidadãos.
Premiado em Cannes, "Fahrenheit 11 de setembro" - o título faz referência direta ao livro "Fahrenheit 451", publicado por Ray Bradbury em 1953 - é um registro poderoso, polêmico e verdadeiro sobre os bastidores do fato que mudou os rumos da história mundial. Mais do que um trabalho impecável de apuração e análise de registros e arquivos que apresentam uma versão diferente da oficial, esse documentário é uma prova da coragem de Michael Moore em tornar pública uma verdade tão inconveniente. Depois de 122 minutos, as imagens de George W. Bush e da Guerra do Iraque deixam de ser as mesmas de antes.
Diários de Motocicleta
3.9 827Amado e odiado ao mesmo tempo, Che Guevara é um ícone da história mundial e uma figura constante na literatura e no cinema. Enquanto muitas obras optam por focar nos atos guerrilheiros do argentino (como os dois filmes dirigidos por Steven Soderbergh, por exemplo), "Diários de Motocicleta" direciona o seu olhar para a formação do caráter revolucionário de Che, ocorrida quando ele ainda era um jovem de vinte e poucos anos.
O projeto ficou a cargo do brasileiro Walter Salles, o cineasta que emocionou o mundo com "Central do Brasil". Adepto de road-movies, ele seria a pessoa perfeita para dirigir esse filme. Seria. O problema é que Salles falha miseravelmente ao transformar a jornada pessoal de Che e seu fiel companheiro, Alberto Granado, em uma experiência vazia para o espectador, uma mera viagem regada a paisagens bonitas, mulheres, bebidas, mentiras e uma ou outra confusão.
Em mais de duas horas de longa, vários temas perpassam a narrativa e são tratados de maneira superficial pelo diretor e pelo roteirista, o porto-riquenho José Rivera. A opressão estatal, a extrema pobreza, a herança deixada pelos europeus, as doenças, nada disso recebe uma atenção maior, nada tem sua causa ou consequências explicadas minuciosamente.
Desse modo, fica difícil compreender a transformação de personalidade do outrora despreocupado Che Guevara. Quer dizer que, só por ter presenciado a miséria e sido bem recebido pelo povo sul-americano, ele convence a si mesmo de que é necessário lutar pela autoafirmação do continente (como bem denota o burocrático monólogo do terceiro ato)?
A travessia do rio Amazonas, emblemática em sua essência, acaba tornando-se uma cena desprovida de valor e emoção e acompanhada da trilha melosa de Gustavo Santaolalla.
Mas nem tudo é desprezível no filme de Walter Salles. Gael García Bernal e Rodrigo de La Serna sobressaem-se em cena. Os dois atores exibem uma enorme química juntos, levando a crer que, de fato, são melhores amigos há vários anos.
As paisagens, que vão desde planícies a florestas, estão encantadoras em uma verdadeira demonstração da beleza do continente e de um apurado trabalho de direção de arte. Destaque para a sequência que contrasta o Peru antigo (Machu Picchu, no caso) com o Peru contemporâneo (a capital Lima).
Do mesmo modo que está longe de ser uma obra-prima, "Diários de Motocicleta" está longe de ser uma produção completamente medíocre. É a tentativa frustrada de representar a formação humana do homem que mudou os rumos da história latino-americana. Che Guevara e a sua viagem pela América ainda aguardam por um filme digno de sua grandiosidade.
Poltergeist: O Fenômeno
2.4 1,3K Assista AgoraNunca antes na história do cinema houve tantos remakes e reboots. Utilizando o argumento de que é necessário atualizar uma obra do século passado para os tempos de hoje, os estúdios invadem as salas de projeção com novas versões de filmes que, um dia, fizeram sucesso. Enquanto algumas refilmagens - como os dois recentes "Planeta dos Macacos" - adquirem caráter próprio e realmente têm sua existência justificada, outras são totalmente descartáveis. Infelizmente, o "Poltergeist" de 2015 encaixa-se nesse último grupo, sendo um filme feito apenas para garantir uns trocados a mais para a Twentieth Century Fox.
Escolhido para a direção, Gil Kenan, do divertidíssimo "A Casa Monstro", mostra-se completamente perdido na condução do terceiro longa da sua carreira. Além de gastar um bom tempo de projeção enquadrando insignificantes torres de transmissão de energia, Kenan emprega humor em cenas que deveriam ser tensas; introduz elementos sem nenhuma relevância, como, por exemplo, o boneco de palhaço; e apresenta personagens superficiais e dispensáveis - qual a função da irritante adolescente vivida por Saxon Sharbino, afinal?.
Como se não bastassem direção e roteiro frágeis, o elenco deixa a desejar. Sam Rockwell e Jared Harris, prejudicados por seus personagens caricatos, estão inexpressivos; ao passo que a atriz mirim Kennedi Clements profere suas falas de maneira artificial, como se fosse um brinquedo automaticamente programado para desempenhar essa tarefa.
O único acima da média é Kyle Cattlet, que desempenha o papel do filho do meio do casal Bowen com extrema naturalidade e segurança.
Pela parte técnica, a fotografia é eficaz na construção do ambiente ora claro, ora escuro da casa e no movimento das câmeras. Por outro lado, a visível digitalização das criaturas e do portal luminoso evidencia a simplicidade e a fraqueza dos efeitos especiais. A única cena que chega a agradar aos olhos é a do ataque da árvore. O restante parece ter sido feito em um programa caseiro de edição de imagens.
Em suma, o "Poltergeist" do século XXI não impressiona, não assusta e, tampouco, diverte. Nem a presença de Sam Raimi - a mente por trás da trilogia "Evil Dead"- como produtor ajudou o pouco experiente Gil Kenan a fazer um filme à altura do original de 1982. Tobe Hooper e Steven Spielberg (diretor e roteirista do clássico, respectivamente) devem estar constrangidos de terem seu trabalho transformado nesse subproduto que não vale sequer o preço do ingresso. Na melhor das palavras: uma versão a ser esquecida.
Janela Indiscreta
4.3 1,2K Assista AgoraAté que ponto é tolerável invadir a privacidade dos outros?
Com o recente escândalo de espionagem revelado por Edward Snowden, essa questão passou a ocupar o foco das discussões. De um lado, há os defensores da ideia de que a segurança e o controle social vêm em primeiro lugar, não importando os métodos para se chegar a isso. Do outro, há aqueles que reivindicam a liberdade e a privacidade individual como direitos inalienáveis.
Lançado em 1954, "Janela Indiscreta" aborda de maneira bastante lúcida a polêmica acima. Alfred Hitchcock, mestre do suspense e cineasta de visão singular, usa a figura de L.B. Jeff, um fotógrafo afastado do serviço que passa seus dias espionando a vizinhança onde mora, para provocar o espectador e fazê-lo julgar tudo que vê em cena. Estaria o homem agindo como um bisbilhoteiro paranoico ou suas suspeitas realmente procedem?
Trata-se de uma dúvida muito bem trabalhada pelo roteiro. Abrindo espaço para múltiplas possibilidades, a narrativa mantém o público com a pergunta em mente até o início do terceiro ato, quando a situação ganha contornos dramáticos e deixa qualquer um agonizado na beira da poltrona. O fato de o filme se passar inteiramente em um único ambiente - o apartamento de Jeff - não atrapalha o ritmo das cenas, que fluem de maneira dinâmica e espontânea.
O papel do protagonista caiu como uma luva para James Stewart. Criando uma personalidade própria - personalidade de um homem aventureiro, astuto e averso a relações conjugais duradouras -, o ator deixa a impressão de que Jeff realmente existe e está emocionalmente conectado a todos que o veem na tela.
Destaca-se ainda a participação de Grace Kelly, atriz que acerta ao incorporar sensualidade, inocência e sagacidade a uma mesma personagem, rompendo com o estereótipo de moça ingênua cuja função resume-se a servir de interesse amoroso para a figura masculina.
Dando suporte ao enredo, Thelma Ritter e Wendell Corey (a enfermeira Stella e o detetive Doyle, respectivamente) também são dignos de elogios.
O único ponto em que a direção concisa e segura de Hitchcock peca é na condução do clímax no terceiro ato, mais precisamente na cena envolvendo a queda do fotógrafo da janela do apartamento. Com cortes frenéticos, o diretor dificulta a compreensão da passagem temporal e gera uma certa confusão no momento, levando a crer que uma sequência mirabolante de eventos aconteceu em míseros segundos.
Tirando isso, "Janela Indiscreta" é uma obra primorosa, capaz de divertir, instigar e, ao mesmo tempo, fomentar a discussão sobre segurança e privacidade. Ao final de pouco mais de uma hora e cinquenta minutos de filme, qualquer um será levado a pensar duas vezes antes de espionar o vizinho.
Mary e Max: Uma Amizade Diferente
4.5 2,4KCenários coloridos, personagens cômicos, situações hilárias, grandes aventuras. Tudo isso faz parte da fórmula de sucesso dos estúdios Disney, Pixar e Dreamworks - com uma ou outra exceção, é claro.
Feita em claymotion, a animação independente "Mary e Max: Uma Amizade Diferente" vai na contramão do modelo hollywoodiano. Adam Elliot não hesita em abordar temáticas adultas no longa animado, sendo o resultado digno de aplausos.
Mary (voz de Toni Collette) e Max (voz de Philip Seymour Hoffman) estão separados por milhares de quilômetros, mas têm tudo a ver. Ambos parecem ter saído da mais melancólica das poesias drummondianas. São pessoas solitárias, introvertidas e que não enxergam seu lugar no mundo. A amizade surge como uma espécie de refúgio para a realidade pouco agradável.
Os cenários da animação refletem muito do mundo interior dos personagens. A Austrália de Mary - menina curiosa, criativa e apaixonada pelo vizinho - é extremamente colorida quando comparada à lúgubre e mórbida Nova York de Max, este um quarentão com sérios distúrbios mentais, cuja existência resume-se à reclusão no apartamento que divide com seus animais de estimação. A outrora charmosa e encantadora Big Apple nunca havia sido mostrada de maneira tão desoladora em um longa animado.
O roteiro pode desagradar a alguns pelo andamento lento e pela evidente falta de um clímax bem definido. Contudo, ele se mostra perfeito no que propõe: contar a história de maneira crua, sem ornamentá-la com idealismos e clichês.
A trilha sonora de Dale Cornelius é eficaz ao externar os sentimentos dos personagens. Em determinado momento, quando Mary empolga-se com a chegada de uma carta do seu amigo, uma música dinâmica e vibrante sobressai-se na cena, despertando certo ânimo no espectador.
Grande parte do mérito do qualidade do filme deve-se à direção de Adam Elliot. Ganhador do Oscar de Melhor Curta-Metragem de Animação em 2004, ele faz aqui sua estreia como diretor de longas. Elliot conduz a história com minuciosa precisão e admirável segurança, sabendo bem o ponto no qual quer levar o público. Portanto, cada minuto da narrativa tem o seu motivo de existir, nada é descartável - assim como a amizade entre Mary e Max.
Por fim, cabe salientar que não se trata de um desenho voltado ao público infantil. Os pais que reunirem os filhos para assistir à obra terão uma decepção. Trata-se, na verdade, de uma história triste que será melhor entendida por aqueles que possuem ou já possuíram uma amizade a distância. A dor de ter um amigo perto e, ao mesmo tempo, tão longe, é impossível de ser descrita por qualquer uma das cartas trocadas por Mary e Max.
Priscilla, a Rainha do Deserto
3.8 611 Assista AgoraRealizar uma obra cômica protagonizada por transexuais é desafiador. O que acaba acontecendo na maioria das vezes é os personagens serem tratados de maneira estereotipada e vistos como donos de um humor e uma histeria que beiram o ridículo (basta assistir a qualquer "episódio" do antigo Zorra Total ou a um filme besteirol americano para constatar isso). Felizmente, não é o que ocorre em "Priscilla, a Rainha do Deserto".
Stephan Elliott entrega um filme à altura da verdadeira essência da comunidade LGBT. Ao mesmo tempo em que diverte o público com consagrados números musicais e situações hilárias, o diretor promove comoção ao mostrar as três protagonistas como seres humanos normais, repletos de desejos, sonhos, dúvidas e angústias que precisam lidar com a intolerância e o conservadorismo da população do interior da Austrália.
Nunca antes na história do cinema houve uma simbiose tão perfeita entre comédia e drama - mérito do roteiro assinado pelo próprio Elliott. Em uma determinada cena, por exemplo, o espectador observa as personagens divertindo-se despretensiosamente em um hotel para, logo em seguida, presenciar o ônibus que dá título ao filme ser encontrado pichado com graves ofensas. A monstruosidade do ato é inegável.
Sobram elogios para o elenco. O trio principal - formado por Hugo Weaving, Terrence Stamp e Guy Pearce - está irreconhecível. Eles não só incorporam os personagens; literalmente adentram no psicológico deles.
Quem está acostumado a ver Weaving em papéis vilanescos e sombrios terá uma grata surpresa. Aqui, ele surge como uma figura carismática e jocosa, ao passo que Terrence Stamp, literalmente metamorfoseado no papel, vive aquela que podemos chamar de a mais sisuda do trio; e Guy Pearce, bem à vontade e seguro de si, vive a mais burlesca.
Juntos, os três revelam uma química impressionante, com destaque para a cena da performance musical com os descendentes de arborígenes no deserto.
É interessante notar também que os nativos, comumente apontados pela cultura midiática como seres atrasados e inferiores, são uns dos poucos envolvidos na história que não desprezam o trio dançarino. Isso sem falar na verdadeira aula de tolerância oportunada por uma determinada criança que descobre a múltipla face do seu pai e age com extrema naturalidade, dizendo inocentemente que seria legal se este arrumasse um namorado.
Não dá para falar de "Priscilla" sem falar em música e figurino. A primeira, com canções de sucesso, embala toda a narrativa, sendo uma espécie de fio condutor da história. Já as roupas criadas por Tim Chappel e Lizzy Gardiner são fruto de um verdadeiro exercício da criatividade, havendo espaço para as mais extravagantes vestimentas, incluindo aí um traje feito com sandálias de borracha.
No que concerne à fotografia, não há do que reclamar. As cores do deserto são bem trabalhadas em tela, reinando a visão de uma paisagem desolada, mas que não deixa de estar cheia de vida e alegria.
Desse modo, "Priscilla, a Rainha do Deserto" é mais do que uma verdadeira obra-prima do cinema australiano. Ela rompe paradigmas ao explorar a faceta pouco mostrada dos transexuais e presta um tributo à comunidade LGBT. Em suma, é uma fábula sobre amizade, família, coragem e tolerância.
A Demora
3.8 30 Assista AgoraUm senhor de idade tenta acompanhar os passos da filha. Impaciente, ela caminha em um ritmo incompatível com o seu pai, que, apesar do enorme esforço, não consegue alcançá-la. Trata-se de uma cena emblemática do filme uruguaio "A Demora" que explicita um grave problema familiar: o distanciamento emocional entre pais e filhos, principalmente quando aqueles encontram-se na terceira idade.
Por meio de um ritmo lento e planos longos, o cineasta Rodrigo Plá mostra aos poucos o cotidiano da família de Maria (Roxana Blanco), uma mulher que, além de enfrentar apuros financeiros para criar sozinha os três filhos, ainda precisa lidar com o pai, Augustín (Carlos Vallarino, excepcional no papel), um senhor que padece de um grave problema de esquecimento. O desinteresse de Maria com a figura do seu próprio pai é visível logo nos primeiros minutos de longa. Eles mal conversam, e quando o pai reaparece após um breve sumiço, ela sequer olha para o seu rosto. Tudo isso serve como uma espécie de preâmbulo para o ato desesperado e irracional de Maria.
O roteiro de Laura Santullo aborda Augustín como uma figura um tanto desconectada da realidade. Largado ao relento, ele crê cegamente na afetividade da filha e decide aguardar por seu retorno, nem que para isso tenha de enfrentar o terrível frio de Montevidéu. Carlos Vallarino incorpora o personagem com tanta naturalidade que, em certo momento, somos levados a crer que não se trata de uma ficção, mas sim de um registro documental em que o ator e Augustín são criaturas indissociáveis.
A maneira como Maria é construída também merece atenção. Ela não é uma filha má - tampouco despreza seu pai. O problema é que tomou a decisão errada em um momento no qual se via totalmente acuada, sofrendo um enorme remorso por conta disso.
"A Demora" deve, portanto, ser encarada como uma obra que escancara o quão difícil é ser idoso. Simples, mas tocante, é um filme que transcende a ficção e dialoga com a realidade. Sem dúvida, merece ser visto.
Blade Runner: O Caçador de Andróides
4.1 1,6K Assista Agora"Blade Runner" é uma ficção-científica que privilegia o desenvolvimento dos seus personagens em detrimento de possíveis cenas de ação. E isso não é uma crítica.
Dotado de diálogos interessantes, mensagens filosóficas, uma visão distópica do futuro e um intimismo raro, o filme de Ridley Scott é singular em todos os aspectos. Nada de personagens destruidores ou seguros de si. Todos eles - até o mais malvado dos vilões - não passam de criaturas amarguradas, preocupadas em alongar a sua curta existência num planeta pouco hospitaleiro. O caçador de androides de Harrison Ford está longe de ser o herói que os filmes de ficção-científica costumam trazer.
O roteiro tem um ritmo lento, o que chega a ser prejudicial em dado momento do filme. Outro problema é o de trazer questões mal-explicadas e deixar outras em aberto. Mas o lirismo com que ele trata a narrativa futurística compensa esses defeitos. Por trás de uma realidade opressora - ressaltada pelo formidável trabalho de fotografia e direção de arte, que criam uma metrópole ora colorida, ora cinzenta e sempre movimentada, ocupada por grandes edifícios e pela sujeira que toma conta das ruas -, há criaturas tentando enxergar-se como seres humanos. A busca de cada um resume-se a encontrar sua própria identidade.
Se Harrison Ford surge um tanto quanto apagado como Rick Deckard, Rutger Hauer rouba a cena vivendo Batty. O ator incorpora todo o cinismo, a violência, a compaixão e a ternura (note como ele reage à morte da parceira Pris) que são propícios ao replicante. Sua performance é elevada pela derradeira cena do telhado, na qual profere uma frase cheia de significado. Só esse momento em si já justifica o ato de assistir ao filme.
Em "Blade Runner", é traçado um mundo no qual não há reais vilões. Apenas vítimas. Vítimas de um sistema controlador, repressivo e que joga todos contra todos. Futuro distante e distópico ou realidade?
O Corpo
4.1 1,0KMuitas vezes, um filme feito fora da terra do Tio Sam deixa qualquer figurão de Hollywood com uma enorme inveja. O suspense espanhol "El Cuerpo" consegue essa proeza.
O diretor e roteirista Oriol Paulo é dono de um talento único no quesito manipulação do público. Em uma narrativa que surpreende a cada momento, Paulo manipula o espectador como se este fosse um boneco nas mãos de um ventríloquo, levando-o a repensar e reavaliar tudo aquilo que vê em cena. O fato de haver um quê de sobrenatural perpassando a história torna-a ainda mais intrigante.
É importante destacar que todos os elementos convergem para um bom filme. O elenco está afiadíssimo e entrega atuações de indiscutível qualidade. A edição consegue incorporar os saltos temporais e as várias perspectivas dos personagens envolvidos a um ritmo dinâmico; ao passo que a trilha sonora mostra-se discreta, mas pontual, aparecendo sempre na hora certa para criar tensão. Pela parte visual, a fotografia e a direção de arte atuam em sintonia na criação do necrotério, ambiente no qual se passa grande parte do longa. Nota-se que, mesmo nos momentos mais escuros, é possível visualizar o que ocorre em cena - ao contrário de muitos filmes que pecam nesse aspecto da iluminação em ambientes obscuros.
Por fim, vale falar que "El Cuerpo" é uma obra que merece ser vista. Não será surpresa se, daqui a algum tempo, um grande estúdio hollywoodiano anunciar um remake do filme de Oriol Paulo. É uma história que os americanos adorariam adaptar a seu bel-prazer, ainda mais em tempos de criatividade escassa. Uma coisa eles não podem negar: "El Cuerpo" é um suspense que seria capaz de deixar até Alfred Hitchcock de boca aberta. Um grand finale digno de aplausos.
Bicho de Sete Cabeças
4.0 1,1K Assista AgoraUma das belezas do cinema é a sua capacidade de trazer à tona temas que muitas vezes passam despercebidos no cotidiano ou ignorados nas grandes discussões. Corrupção, racismo, pobreza e violência são assuntos constantemente debatidos. O mesmo não se pode dizer da precariedade dos hospitais psiquiátricos no Brasil. É aí que entra "Bicho de Sete Cabeças".
Utilizando uma estética que foge à tradicionalmente usada no cinema, a diretora Laís Bodanzky apresenta a realidade nua e crua de um sanatório pela óptica de Neto, um jovem rebelde e incompreendido pela família. Recursos como músicas de letras fortes, cortes bruscos, planos distorcidos e saltos temporais servem para transmitir toda a instabilidade psicológica do protagonista, sem que nada pareça forçado ou gratuito. As cenas de violência e abuso são de horrorizar qualquer um.
Grande parte do sucesso do filme deve-se à atuação de Rodrigo Santoro. Com pouco mais de vinte anos na época, Santoro convence como um genuíno adolescente. O ator comprova que é dono de um talento único ao exprimir toda a carga emocional exigida pelo papel. Além disso, demonstra também uma boa dinâmica com o restante do elenco; seja com Othon Bastos, que interpreta seu rigoroso pai; seja com Gero Camilo, que, em uma performance formidável, vive um paciente totalmente fora de si.
A construção da clínica psiquiátrica como um ambiente frio, perturbador e opressor é resultado de uma exemplar direção de arte.
O roteiro de Luiz Bolognesi - inspirado no livro "Canto dos Malditos", do ex-interno Austregésilo Carrano - é um ataque direto ao sistema de tratamento psiquiátrico. Constituído de práticas reprováveis e desumanas e de instituições corruptas, o modelo exibido durante pouco mais de uma hora de projeção é apontado como monstruoso, atuando a favor da degradação emocional, psicológica e física dos pacientes, ao invés de promover a recuperação destes.
Quando do lançamento do filme, a sociedade pareceu ter captado a mensagem - a questão dos hospitais psiquiátricos chegou a ocupar espaço até mesmo no Senado Federal. Hoje, a pergunta que fica no ar é: de 2001 pra cá, algo realmente mudou?
Gritos Mortais
3.0 781 Assista AgoraUm assassinato, um boneco macabro, uma cidade do interior, uma velha sinistra, um policial arrogante, muita neblina e trovoadas nos momentos mais tensos. O que tudo isso tem em comum? São elementos que se tornaram marcas clássicas do terror, sendo raros os cineastas que dispensam tais artifícios em seus longas.
Desse modo, não é de se estranhar que "Gritos Mortais" siga exatamente o mesmo padrão do que vem sendo feito há décadas no gênero, o que não é necessariamente ruim. O filme de James Wan - diretor do excelente "Jogos Mortais" e dos razoáveis "Sobrenatural" e "Invocação do Mal" - funciona dentro de sua proposta. A história, assinada pelo próprio Wan, em parceria com Leigh Whannell, brinca com a aura de mistério construída em torno dos bonecos usados por ventríloquos e consegue envolver o espectador, mantendo-o atento a cada detalhe em cena.
A atuação pouco inspirada de Ryan Kwanten - que recita seus textos sem entusiasmo nenhum - não chega a arruinar o filme, mas se torna um obstáculo para a identificação entre público e personagem. Apesar disso, há momentos marcantes no filme, como o macabro diálogo com um boneco de palhaço no terceiro ato.
No que se refere à parte técnica, não há do que reclamar. A fotografia de John R. Leonetti e o trabalho de direção de arte estão em consonância para a constituição do clima sombrio e amedrontador que permeia o visual do longa. Imponente e capaz de provocar um frio na espinha do mais impávido espectador, a música tema de Charlie Clouser é comparável, em termos de qualidade, àquela feita no clássico "O Exorcista". Sem dúvida, trata-se de mais um louvável composição desse profissional que, desde "Jogos Mortais", vem se mostrando extremamente eficiente.
Por último e não menos importante, cabe chamar a atenção para o desfecho da narrativa. É uma tradição de James Wan surpreender o público com um grand finale, e, em "Gritos Mortais", ele não poderia fazer diferente. O problema é que a grande revelação soa inverossímil e até mesmo mal-explicada, exigindo um pouco de reflexão e atenção de quem assiste (há, no Youtube, um final alternativo que elucida melhor a surpresa). Tirando isso, é uma revelação imprevisível e capaz de deixar qualquer um atônito, com os olhos esbugalhados.
Se o público espera um terror inovador e que vá deixá-lo noite após noite com medo do escuro, irá se decepcionar com o longa. Caso esteja mais interessado em um entretenimento despretensioso, "Gritos Mortais" é uma opção mais que acertada. Aos que verão, é necessário alertar uma coisa: quando ver Mary Shaw, não grite.
Perfume de Mulher
4.3 1,3K Assista AgoraCertos personagens exigem dedicação total dos atores que os interpretam. Muitas vezes, o profissional vai além do que é esperado para alcançar a perfeição.
Al Pacino teve a felicidade de conseguir esse feito no ano de 1992. Ele é, sem dúvida, o grande atrativo de "Perfume de Mulher". Na pele de Frank Slade, um ex-coronel cego que passa seus dias como um homem angustiado e solitário que desperta antipatia até mesmo da sua própria família, Pacino tem uma atuação estrondosa. Destaca-se o esmero com a criação dos trejeitos do personagem, desde o capricho no elaboração do tom de voz até a expressão visual - ficando difícil acreditar que o ator que enxergamos na tela não é de fato cego. Isso sem falar no momento da dança de tango, que, coreografada e executada de maneira exemplar, é uma das cenas mais bonitas e serenas da história do cinema.
Apesar de um pouco ofuscado pelo talento arrebatador do protagonista, Chris O'Donnell (o Robin dos filmes de Joel Schumacher) consegue bons momentos. O fato de o seu personagem, um estudante universitário, estar passando por um complicado dilema em sua vida acadêmica e pessoal aproxima-o do público e colabora positivamente para uma boa química com o velho Frank Slade, que parece estar sempre disposto a transmitir lições de moral e novos valores. Um exemplo disso é a cena do terceiro ato na qual o ex-militar profere um inflamado monólogo para defender seu "acompanhante de feriado" de uma punição injusta. Confrontado por um realismo de arrepiar, o espectador sente-se na pele de qualquer um dos presentes no auditório da tradicionalíssima Baird.
Falando um pouco da direção, Martin Brest é extremamente sábio ao não vitimizar em demasia a figura de Frank e evitar o uso de clichês - como, por exemplo, o surgimento de um interesse amoroso que redimiria o personagem principal. A visão de Nova York como uma cidade deleitável também constitui-se como um acerto do diretor, pois casa perfeitamente com a proposta da trama, que é mostrar a busca do protagonista por momentos hedônicos.
Desse modo, "Perfume de Mulher" é um daqueles filmes que ficam na história da sétima arte não só por apresentar uma das melhores atuações já vistas em mais de cem anos de cinema, mas também por ser uma fábula sobre esperança, coragem e integridade. Que o discurso do coronel Frank Slade sirva não só para os estudantes de Baird - que sirva, também, para qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo.
Vingadores: Era de Ultron
3.7 3,0K Assista AgoraApesar de ser um prato cheio para os fãs dos quadrinhos, "Vingadores: Era de Ultron" escorrega em alguns problemas clássicos de blockbusters.
Primeiramente, o diretor e roteirista Joss Whedon demonstra uma certa dificuldade na hora de lidar com a trama prolixa. Muitos personagens surgem em tela, nem sempre recebendo o devida tratamento. Os irmãos Maximoff, por exemplo, agem movidos por uma motivação rasa e clichê - o desejo de vingança - e não cumprem nenhuma função que justifique suas presenças no filme. Na verdade, chega até a ser risível a ingenuidade dos gêmeos em acreditar em supostas boas intenções de uma criatura tão perversa como Ultron. Este surge como um vilão totalmente digitalizado e que, nem de longe, apresenta o carisma e a densidade psicológica de Loki, antagonista do filme anterior. Tudo o que o Ultron faz é atacar sem mais nem menos e proferir discursos megalomaníacos sobre a necessidade de "destruir o mundo para reerguê-lo".
O personagem Visão também apresenta sérios problemas, Ele surge de maneira mal explicada na trama e parece ter a resposta para tudo, sendo aceito como aliado sem grandes questionamentos por parte dos Vingadores.
Pra não dizer que não falei das flores, vamos ao lado bom do filme. O elenco principal mostra-se bastante seguro e à vontade em seus papéis, com Whedon sabendo explorar bem as peculiaridades de cada um. O sarcasmo de Tony Stark continua eficiente. A insegurança de Bruce Banner é ainda mais forte. A despeito de, em alguns momentos, ser reduzida a um mero interesse amoroso, a Viúva Negra não deixa a desejar em questão de astúcia e firmeza. Thor, Capitão América e Gavião Arqueiro - em especial, esse último, que chega a ocupar especial posição em dado momento - também demonstram uma evolução na maneira como são representados nessa sequência.
Pela parte técnica, o longa é um delírio visual. Os efeitos visuais estão surpreendentes, com destaque para a criação extremamente realista do Hulk, feito através da tecnologia de slow-motion. Além disso, a fotografia e a direção de arte também chamam a atenção pela qualidade, especialmente na criação de um país fictício, concebido nos moldes de uma república soviética do século passado.
Em suma, mesmo com seus equívocos, "Vingadores: Era de Ultron" está longe de ser um filme ruim. Conseguindo cumprir a promessa para a qual estava submetido - divertir o público sem, necessariamente, envolvê-lo em uma história complexa -, espera-se que esse segundo capítulo da jornada dos heróis supere o sucesso de bilheteria do primeiro e contribua para expandir ainda mais o universo Marvel no cinema. Se tudo continuar assim, a sétima arte não se verá livre das adaptações de quadrinhos tão cedo.
Medianeras: Buenos Aires na Era do Amor Virtual
4.3 2,3K Assista Agora"Medianeras" é, antes de tudo, um filme sobre a solidão. No vocabulário drummondiano, Martin e Mariana, os dois protagonistas da história, são verdadeiros gauches - criaturas desajustadas, perdidas, que não vivem, apenas percorrem suas existências como verdadeiros zumbis.
Partindo dessa realidade, o diretor Gustavo Taretto apresenta um apanhado de fatores e situações que caracterizam as angústias do homem contemporâneo.Martin, um criador de sites, e Mariana, uma arquiteta frustrada, moram na mesma rua, e, ao passo que se encontram extremamente próximos, estão profundamente distantes entre si. A Internet só se mostra eficaz para desligá-los da realidade. A moradia que os abriga mais serve como uma obscura masmorra existencial do que um doce lar. Os relacionamentos amorosos de ambos são um completo desastre. O cotidiano é desprovido de atrativos e os dias tardam a passar. Isso é o século XXI.
Buenos Aires, uma metrópole marcada pelos contrastes, é o pano de fundo para essa história de amor inusitada. Cada detalhe da cidade é explorado poeticamente nas narrações dos protagonistas. Os prédios altos, os cabos de fio, as publicidades em edifício, tudo vira objeto de reflexão filosófica em um retrato melancólico da vida que habita a capital - melancolia esta ressaltada por uma fotografia de cores frias, nada atraentes.
A metafórica abertura de uma nova janela nos apartamentos tem um impacto profundo na vida do casal de solitários, surgindo como uma luz capaz de quebrar a escuridão de suas cavernas. E, logo o meio que os desconectava da realidade, acaba unindo-os diretamente, jogando-os de frente para um destino que é aguardado pelo espectador desde o primeiro ato.
Apesar de ser perfeito na construção e na condução da sua temática e dos seus personagens, "Medianeras" pode desagradar a alguns por seu ritmo lento e pela ausência de um clímax bem definido. Por isso, assim como na vida dos protagonistas gauches, é necessário ter paciência e acreditar que o melhor momento, aquele momento grandioso capaz de compensar todo o resto, ainda está por vir.
No momento, espera-se que a vida imite essa belíssima obra de arte e que, qualquer ser humano que se veja como um Martin ou uma Mariana consiga quebrar sua parede e abrir a janela para enxergar a luz de um fabuloso mundo novo. Até lá, resta erguer a cabeça e seguir em frente, pois, como diz um velho ditado, a noite é sempre mais escura antes do amanhecer.
O Abutre
4.0 2,5K Assista AgoraEm "O Abutre", o diretor Dan Gilroy traça um retrato chocante do que é o telejornalismo diário. Lou Bloom (Jake Gyllenhaal, estupendo em cena) é um sujeito que descobre numa simples câmera a fonte de dinheiro que sempre buscou, revelando aos poucos seu lado ardiloso, frio e egoísta.
Aproveitando-se de tudo, desde a falta de sorte das vítimas que filma até a ingenuidade do seu jovem assistente, Bloom vaga pelas ruas de Los Angeles fazendo o inimaginável para conseguir as imagens que tanto quer.
O roteiro é de uma lucidez louvável, evitando a construção de personagens estereotipados e a transmissão de qualquer mensagem moral, já que, no agitado mundo das manchetes e notícias, não há espaço para a ética.
Em suma, "O Abutre" constitui-se como um prato cheio não só para discutir a atuação sensacionalista da mídia, mas também para se refletir sobre o comportamento de toda a sociedade atual.
O Grande Hotel Budapeste
4.2 3,0KConhecido por sua extravagância e criatividade, Wes Anderson não demonstra o menor receio em usar e abusar das suas marcas autorais. E tudo está presente - o seu usual elenco (composto por nomes como Edward Norton e Bill Murray), os cenários cuidadosamente pensados, a centralização dos elementos em cena, os movimentos lentos e precisos de câmera, os cortes lentos, os diálogos inteligentes e vários personagens charmosos. O resultado disso tudo é "O Grande Hotel Budapeste", uma verdadeira obra-prima.
O personagem central da obra, Monsieur Gustave, é genialmente interpretado por Ralph Fiennes. O ator britânico dá vida ao gerente do hotel do título com enorme empolgação, carisma e sensibilidade, tornando-o uma figura de traços singulares que dificilmente será esquecida pelo público. A Academia cometeu um crime ao não indicar Fiennes ao Oscar de Melhor Ator.
As atuações de Tony Revolori, Adrien Brody, F. Murray Abraham, Edward Norton eTilda Swinton também merecem elogios. Sem dúvida, trata-se de um elenco de dar inveja a qualquer realizador.
A direção de Anderson é extremamente precisa, o que leva a um filme que sabe mesclar como poucos os elementos de drama e comédia, sempre valorizando seus personagens cativantes e dando espaço para que aqueles que os interpretem exibam seu talento.
Os cenários e os figurinos são um verdadeiro exercício da criatividade, tratando-se de um trabalho que - pela sua excentricidade - supera o que normalmente é feito em filmes de época.
A trilha sonora de Alexandre Desplat é eficiente ao imprimir dinamismo ás cenas e estabelecer com perfeição a atmosfera simples e glamourosa de uma inusitada nação da Europa Oriental.
Em tempos marcados por um tsunami de blockbusters, reboots, remakes e sequências é interessante notar que - parafraseando o Monsieur Gustave - ainda há um lampejo de originalidade no açougue bárbaro que se tornou a indústria cinematográfica. Esse lampejo tem nome. Chama-se Wes Anderson
O Exorcismo de Emily Rose
3.5 1,5K Assista AgoraA ideia do diretor Scott Derrickson e do roteirista Paul H. Boardman de fazer uma mistura de gêneros - no caso, drama de tribunal com terror - é, no mínimo, interessante.
Contudo, a concretização do projeto não poderia ser mais falha, a começar pela escolha do elenco. Laura Linney tem uma atuação sofrível como uma advogada de defesa, permanecendo com a mesma expressão quase todo o filme. Jennifer Carpenter, que deveria ser o centro do filme e protagonizar momentos macabros, acaba prejudicada pelo roteiro e tendo sua participação reduzida a três ou quatro cenas. O único que se salva é o experiente Tom Wilkinson, que incorpora com firmeza a mentalidade de um padre atormentado.
Derrickson também peca na hora de filmar os momentos mais tensos do longa - entre eles, a tentativa de exorcismo, trecho no qual a câmera tremula demasiadamente e a fotografia obscura dificulta a percepção do que ocorre na tela.
Para piorar as coisas, o roteiro priva o espectador do privilégio de uma trama subjetiva. Assim sendo, a história, que poderia muito bem ser contada a partir dos dois pontos de vista - o religioso, no qual Emily estaria realmente possuída; e o científico, em que a garota sofreria de problemas mentais - ignora esta última visão e foca apenas na primeira, trazendo cenas de manifestação sobrenatural que, ao não causarem impacto nem provocarem medo, chegam a ser risíveis.
"O Exorcismo de Emily Rose" nada mais é do que uma boa ideia jogada no lixo por uma direção incompetente.
Festim Diabólico
4.3 885 Assista AgoraAlfred Hitchcock possui a incrível capacidade de transformar uma trama simples decorrida em um único ambiente em uma verdadeira obra-prima do cinema. "Festim Diabólico" não é apenas um filme de suspense, mas uma análise minuciosa do comportamento humano, onde cada personagem parece ser uma peça de xadrez devidamente posicionada em seu lugar no tabuleiro. Dessa forma, é interessante notar as diferentes reações - tanto por parte dos anfitriões, quanto dos convidados - frente ao misterioso "sumiço" de David. Enquanto o sr. Cadell (James Stewart) age com uma desconfiança minuciosa, o jovem Kenneth (Douglas Dick) aproveita a ausência do conhecido para tentar atrair a namorada deste.
É interessante observar também que Hitchcock não usa nenhuma trilha sonora durante os 80 minutos de longa. Muito pelo contrário, o silêncio é o responsável pela construção de uma crescente tensão, havendo ainda alguns momentos em que leves ruídos invadem o espaço do apartamento - com destaque para a genial cena em que o jovem Philip é questionado, de forma acusatória, sobre o desaparecimento de David e o barulho de uma sirene toma penetra no ambiente no exato momento em que o "suspeito" esbanja uma expressão de desconforto e insegurança.
Uma das grandes contribuições que esse diretor britânico deixou para a posteridade foi a ideia de que um suspense não precisa ter, necessariamente, um enredo complexo e uma vasta gama de personagens para funcionar. Basta saber manipular as emoções o espectador e criar situações instigantes que levem qualquer um a ficar com os dois olhos grudados na tela e com a bunda presa na cadeira. Uma fórmula infalível de sucesso.
Central do Brasil
4.1 1,8K Assista AgoraO cinema nacional é, ocasionalmente, apontado pelo grande público como limitado e pouco criativo. "Central do Brasil" é um dos vários filmes tupiniquins que mostram que se trata de uma acusação infeliz e injusta, feita por quem - geralmente - desconhece a verdadeira alma da nossa produção cinematográfica.
Com uma direção bastante segura de Walter Salles, o drama no estilo road movie apresenta uma sensibilidade poucas vezes vista antes na telona. Salles mostra-se um verdadeiro gênio na condução dos seus atores, arrancando ótimas interpretações de todo o elenco. O destaque, é claro, fica por conta de Fernanda Montenegro, que transmite com enorme maestria os sentimentos e as particularidades de Dora, uma velha carrancuda e impaciente que, pouco a pouco, cria um laço afetivo com o menino Josué, este muito bem interpretado pelo novato Vinícius de Oliveira. Também não há motivo para reclamar das performances de Othon Bastos e Marília Pêra.
O roteiro, escrito a seis mãos, transforma a viagem de Dora e Josué em não apenas uma excursão pelo interior do Brasil, mas também em uma jornada de descoberta existencial - com direito até a uma paixão perdida na estrada.
A trilha sonora de Antonio Pinto e Jaques Morelenbaum acompanha quase toda a narrativa, mostrando-se bela e simples, ao passo que a fotografia de Walter Carvalho é eficaz no retrato das paisagens do país, desde a agitada estação que dá nome ao filme até a rusticidade das pequenas cidades.
"Central do Brasil" é uma verdadeira pérola do cinema nacional. Uma obra que demonstra o enorme potencial dos cineastas brasileiros em criar uma história singela e intimista, capaz de tocar plateias do mundo inteiro.
Mama
3.0 2,8K Assista AgoraEm um gênero tão saturado de clichês e muitas vezes tido como menor pelos próprios profissionais de cinema, é extremamente complicado criar uma história que seja, ao mesmo tempo, original e horripilante. Pode-se dizer, desse modo, que um ou outro filme de terror produzido em um intervalo de um ano realmente possua os requisitos necessários para ser elevado à categoria de obra cinematográfica (no último ano, o longa australiano "The Babadook" assumiu tal posto). Produzido por Guillermo del Toro, "Mama" não impressiona e não consegue romper o paradigma de um enredo formulaico e pouco criativo - tornando-se só mais um filme entre tantos que são lançados anualmente
O primeiro ato é incrivelmente bem realizado. Através de uma fotografia sombria e de uma trilha sonora imponente, adianta-se a ideia de que algo terrível pode acontecer a qualquer momento. O diretor Andy Muschietti capricha na construção dos personagens e das situações que os cercam (o momento em que as garotas são encontradas na cabana é memorável), contando, para isso, com o trabalho de Jessica Chastain, que surge convincente em cena.
Contudo, decorridos a primeira meia-hora de projeção, o filme piora progressivamente. Personagens que até então representavam alguma importância são literalmente escanteados pelo roteiro, no caso; o tio das garotas, Luke - cujo longo período de tempo no hospital é resumido a uma ou outra cena - ; e o médico vivido por Daniel Kash.
É provável que esse "esquecimento" tenha sido proposital, de modo a dar mais tempo em tela para a personagem de Chastain e seu relacionamento com as crianças, incorrendo em um outro erro infeliz, no qual uma das meninas cria, de maneira inesperada e inexplicada, um afeto especial pela "nova mãe", até então retratada como uma mulher impassível.
Surge, então, o terceiro ato. Marcado pela falta de ritmo - a sensação de tensão é perdida por volta da metade do filme -, o desfecho é a finalização trágica da já citada série de erros, culminando em uma sequência que parece ter saído de um conto infantil da Disney, com a nítida intenção de transmitir uma lição de amor materno.
Não seria absurdo que "Mama", um filme produzido por um dos cineastas mais respeitados da contemporaneidade e protagonizado pela atriz do momento, constitui-se como um verdadeiro fracasso ao desperdiçar todo o potencial que possuía para contar uma boa história e, até mesmo, entrar na seleta lista de melhores obras de terror já feitas no mundo do cinema.