Bacurau: heterotopia do sertão e distopia do mundo
O longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles revela de forma profunda e meticulosa uma experiência social de resistência e enfrentamento das hostilidades sistêmicas e naturais, algo que cabe ao sertão não como reduto de pobreza e miséria, mas como método e tradição. A enunciação, que funciona como máxima, de Ailton Krenak, em que ele constata e ensina que o homem branco irá sofrer com o bolsonarismo enquanto que o indígena já enfrenta o colonialismo brutal desde o tal descobrimento, também se aplica ao sertanejo. O sertão e a cultura indígena devem ser inspiração para nossa identidade, nosso projeto de mundo e nossa resistência ao modelo distopico que a necropolitica bolsonarista e o capitalismo financeiro impõem.
É desse sertão que os diretores extraem a poética da produção e a brutalidade que permeia o contexto atual e como reagir a ela. O povoado de Bacurau no Município fictício de Serra Verde (que corresponde na realidade ao povoado de Barra no Município de Parelhas- RN), enfrenta uma crise no abastecimento de água, convertida em um bem privado que é controlado por milícias sertanejas e usado eleitoralmente pelo prefeito como moeda clientelista em promessas homeopáticas.
Embora a crise hídrica e conflitos resultantes, a manipulação eleitoral e voto de cabresto sejam uma situação histórica do cotidiano sertanejo, o que torna Bacurau uma distopia tecnológica é justamente a inclusão digital e o acesso eficaz aos recursos da web 2.0, num povoado onde nunca falta sinal no celular e num país onde o culto às armas e o Estado policial-armamentista se consolida a ponto de anunciar na televisão execuções públicas no Vale do Anhangabaú e onde prefeitos trocam vidas inteiras de um povoado por um punhado de dólares para a diversão gamer de uns gringos incautos. Como Gabriel Mascaro em Divino Amor, Kleber e Juliano apresenta um quadro de Brasil terrívelmente possível, onde a tecnologia é instrumento do tráfico de influências, abuso de poder e da teologia capitalista da prosperidade e das armas.
Mas em que Bacurau ensina a resistir e exalta o sertão como tradição de resistência e manancial de sentido? Justamente por apresentar um povoado extremamente unido em sua consciência de classe e vínculos comunitários e ser uma heterotopia letrada com biblioteca e museu fartos, ciberconectada, onde tradição popular e saber formal do professor são igualmente reverenciados. Em Bacurau, seus habitantes se orgulham do Museu histórico do povoado, das memórias do cangaço, onde a igreja é uma instituição afetiva, mas apenas facultativa, onde um puteiro container e uma mulher trans tem trânsito livres. Bacurau é um oásis de memória e cultura e uma heterotopia, um lugar de alteridade conectado à brutalidade do sertão e do mundo. O filme vai além da tradição alegórica do cinema de Glauber Rocha, onde as tradições do sertão e imagens arcaicas da cultura nordestina coexistem numa temporalidade mítica e montagem suspensas da história ordinária com os conflitos politicos e agrários e a crise hídrica do sertão. Bacurau integra essa memória, essas referências alegóricas à vivência das pessoas: as armas, o cangaço e as recordações orgulhosas saem do Museu e invadem a praça. De Augusto Matraga a Antonio das Mortes e Lia de Itamaracá, Bacurau vai além do pássaro "brabo", é um pássaro que herda tradições e carrega gente.
Um documentário que defende a tese da crise política contemporânea fundada pelo abuso de poder econômico, porém que é excessivamente redundante e serve meramente como um levantamento exaustivo (e bota exaustivo nisso) de dados. Até no didatismo o documentário se perde, ao apresentar esquetes caricatas totalmente desnecessários ao andamento da obra. Elenca fatos fundamentais como a negligência de auditoria, licenciamento e fiscalização pelo governo e pela Samarco com alertas de rompimento anteriores ao fatídico crime ambiental de Mariana, o financiamento das campanhas políticas pelos empresários, o fator irracional do capitalismo financeiro que atua na oscilação do preço do minério de ferro demovendo os dirigentes de extinguir a barragem de Fundão de modo a reter os lucros e preservar os acionistas internacionais a despeito dos riscos já previstos, o custo muito maior com as reparações a ter que contratar alguns mihões de um plano apresentado de simulação computacional que controlaria e evitaria a tragédia, o pacto do governo Dilma em oferecer à empresa a administração do pagamento da multa reparadora de 20 bilhões a partir de uma fundação criada pela própria Samarco. Vale apenas como registro dos relatos das vítimas e pela pesquisa, porém se perde totalmente na montagem e na construção dessa narrativa apêndice do deputado.
Uma pérola que evoca os anos 70 não apenas no contexto histórico do golpe militar na Argentina, mas na estética noir dos policiais de Jean-Pierre Melville, nos letreiros e na textura granulada dos anos 80. Repleto de esquetes absurdas e cenas alegóricas que simulam práticas ditatoriais de tortura, o filme proporciona uma atmosfera sufocante, de terror e paranoia psicológica, apresentado personagens contraditórios terrivelmente cristãos e cartesianos ao mesmo tempo, a ponto de direcionar o clímax de toda a tensão narrativa num eclipse lunar.
Um filme que reproduz a irregularidade da inspiração dieguesiana em sua carreira de filmes com poucos bons momentos como Chuvas de Verão, A Grande Cidade, Bye Bye Brasil mas repleta de equívocos que encobrem boas ideias e imagens marcantes, como em Os Herdeiros. Este filme tem tudo o que ocorre nos outros onde bons momentos e imagens marcantes coexistem com uma narrativa frouxa, superficialidade dos papéis e clichês embotados. Algumas imagens surpreendem no filme, embasadas na ideia ousada de representar uma biografia de uma família-circo num picadeiro, mas não há aprofundamento dos personagens e a proposta de uma leveza superficial em apresentá-los de forma breve não se coaduna à densidade das situações expostas, gerando um conflito na fruição da narrativa. A distração ilusionista, a ludicidade mágica, o entretenimento fantástico, tudo isto que evoca a atmosfera circense não se vincula à proposta pretensiosa de mostrar uma continuidade familiar ou mostrar um período denso de relações e sua complexidade. Alguns bons momentos respiram neste filme, como o conto do pistonista e destaco a complexidade visual e psíquica da personagem de Margarete (Mariana Ximenes)
Assistam o documentário alemão The Cleaners – Im Schatten der Netzwelt (2018). Sim, é preciso levar esse soco no estômago. Sim, principalmente vocês ativistas de rede social que acham que estão contribuindo para maior equilíbrio e positividade planetária, para a redução de toxicidade e ausência de empatia, mas ignoram ou fingem não saber que, quem define se sua publicação é adequada ou não, são os moderadores de comunidade terceirizados da Filipinas, quase uma milícia virtual de Duterte. São sujeitos hiperexplorados que precisam atingir a meta de 25.000 fotos deletadas diariamente. O Google, o Twitter e o Facebook contratam empresas terceirizadas na Filipinas para recrutar esses sujeitos, pagos com salários baixos típicos dessa mão de obra terceirizada em países africanos e orientais. Sim, são sujeitos que vivem num país governado por um maníaco que se comparou ao Hitler dos narcotraficantes ("Hitler matou 3 milhões de judeus, eu quero fazer isso com os criminosos na Filipinas"). Esses sujeitos que admiram Duterte são os que policiam o conteúdo de sua rede social, e assumem o quanto esse trabalho é perverso ou também como cães de guarda da moralidade. Muitos se suicidam tendo que ver vídeos de automutilação, pedofilia e decapitação do Isis. E são os mesmos sujeitos que equiparam sua publicação fofinha e engajada e cheia de boa intenção com a da ultra direita Americana (pois eles não são neutros e admiram uma lógica bolsonazista/trumpiana/dutertiana). São eles que permitem páginas que pregam o genocídio dos rohyngias, etnia muçulmana perseguida em Myanmar e Bangladesh. São eles que permitem o racismo xenófobo e proíbem a pintura de Trump com micropênis - a ponto de excluírem todas as redes sociais de Ilma Gore, a artista que o retratou. Não é uma tecnologia neutra, mas sujeitos hipercatólicos no mau sentido que se autoflagelam e idolatram o estado armamentista de Duterte. Um Bolsonaro piorado mil vezes e popular em seu país. E foi o Facebook quem elegeu Trump. São negócios, ora! A própria Nicole Wong, advogada do google e especialista em ética nas redes sociais, assume que muitas publicações são deletadas por total separação do contexto por esses funcionários terceirizados e que na Turquia as publicações que não agradam Erdogan são bloqueadas para o IP dos turcos por medo de o governo turco proibir as empresas do Google lá. Enquanto você acha normal e saudável ficar longe de bolsominion e da contrariedade, longe da diplomacia Democrática, por alegar que são eles é que são fascistas e que não toleram a diversidade, você nada mais é que um bonifrate, um minionzinho replicador de conteúdo calculado por padrões de curtidas em algoritmos. E também uma manipulada pela mílicia digital e tercerizada de Duterte! E esse mecanismo de isolamento em bolhas seguras e livres de contrariedade é justamente o controle social que destrói a representatividade da mídia e da democracia e equipara sua boa vontade às fake News dos tios do zap pela mesma infantilização consumista ("só quero ouvir o que me agrada") e é o que um Estado neoliberal substituído pelas empresas planeja! Ou seja, esse Estado se isentar da representação, da educação e da conscientização e atribuir ao indivíduo a total responsabilidade para ter sua própria informação isolada e suas pós-verdades para fazer justiças e linchamentos com as próprias mãos. Uma milícia digital dutertiana promovendo neoliberalismo virtual e elegendo Trumps e Bolsonaros em nome de uma relativa liberdade de expressão colonizada e de uma pseudoextinção empatica do cyberbullying que propaga a fofolencia xenófoba.
''AQUELAS FLORES PERDIDAS AO VENTO: Não há dúvida de que o ato da representação quase sempre envolve violência junto ao sujeito da representação. Há um contraste real entre a violência do ato de representar e a calma de se representar isto. Eles foram pegos entre salamaleques e sussurros. O mundo não interessa aos árabes, nem aos muçulmanos. Enquanto o Islã espera atenção política, o mundo Árabe é o principal cenário e paisagem. Enquanto o mundo Árabe existe como um mundo, que nunca é visto como tal, ele sempre é considerado como um todo, em relação a países do Oriente Médio. Eles adorariam morrer por um lar e eles estão morrendo por isso. Os árabes podem falar?''
Como disse a diretora de fotografia do filme, Lisa Rinzler, a profundidade de campo em Wenders é uma psicologia calma das imagens, e, acrescento, dos sons.
Apesar da mesma estética apelativa de publicidade e mesmo sensacionalismo de seus outros filmes como I Stand Alone, devo confessar que os movimentos de câmera da sequência de dança posterior à apresentação dos personagens são espetaculares e salvam o filme da auto celebração.
Amores em cor contrastando com lama e fuligem. A belíssima imagem do casal Tibby Lupton e Laura Crich na lama, as irmãs Brangwen em vestes vivas em contraste com as cores cinzas da cidade e dos rostos dos mineiros, o sangue derramado na madeira ou num cavalo branco, a verve artística de Hermione e Gudrun, o apelo da reprodução da vida comum em Ursula e Gerald e Rupert como o fator ou pivô das vontades viscerais reprimidas ou latentes em toda a trama.
O último suspiro revanchista da utopia e sua dissolução, poderia ser a alcunha desta película. Os herdeiros representa, pateticamente, um acerto de contas moralista, que é, ao mesmo tempo, um tiro no próprio pé, com uma esquerda conciliadora ou com posicionamentos políticos que ousam agir por conta própria. Isto tanto no sentido da forma, quanto no de conteúdo.
No sentido de forma, Os herdeiros é uma tentativa frustrada de levar adiante um estilo datado e ruminado do cinema novo, sem o brilhantismo autoral de Glauber Rocha: lançando mão de todos os clichês de gênero, apresenta atuações empostadas e performativamente berradas, num pastiche de Brecht com Neorrealismo italiano, um cadinho de alegorias e condensações de brasilidades sob a égide carnavalesca.
No sentido da temática, propõe um revisionismo histórico da saga quixotesca da esquerda brasileira desde a revolução de 30 até o golpe de 64. Entretanto, o filme recruta um militante Ferreira Gullar, como o líder assassinado David Martins. A posição do personagem era a mesma do militante na vida real, a posição de aliança do partido comunista e que integrara o CPC da UNE, na década de 60: ''O partido tem um programa. A etapa em que vivemos é da revolução democrática. Nossa aliança com a oposição liberal e os setores avançados da burguesia vai provocar a união nacional contra o nazi- fascismo. E forçará o país a entrar na guerra. Depois virão eleições e essa será uma vitória do partido”... O que o filme condena à morte é a estratégia das esquerdas, de aliança “com a oposição liberal e os setores avançados da burguesia”, durante os anos 1950 e a primeira metade da década de 1960. Ao mesmo tempo que trata esta postura como falida, condena moralmente a postura do protagonista jornalista e militante do filme, Jorge Ramos que realiza o mesmo, porém sem as injunções coletivas de um movimento ou do partido, apenas pensando individualmente em seu poder.
O filme executa uma injunção moralista contra um personagem que ousa infiltrar-se no poder agindo sob desígnios autonomistas, quando não obedece aos planos familiares do oligarca do café, ao delatar sob tortura o amigo do partido comunista, David Martins, ao não aceitar o cargo no jornal do empresário Medeiros e se tornar radialista da rádio do Povo, ao não ajudar o professor de esquerda perseguido pela ditadura militar. Os herdeiros executa isto como um tiro no pé ideológico: o filho esquerdista do casamento de Jorge com a oligarquia cafeeira entrega o pai aos militares, quando este concorre ao senado tentando aliança com o partido comunista.
O filme de Cacá é uma cobrança pelo martírio da mediocridade e um desgosto pela impossibilidade da utopia radical e a afiliação purista; a esquerda brasileira do cinema novo, em seus acessos stalinistas, sentiu mal estar com o gênio individual e a critica política de Glauber Rocha, que arrojava uma poética própria e não cedia aos desígnios partidários simplistas. Jorge Ramos é uma versão política de alguém que não cede ao patriarcalismo mandatário da esquerda ou da direita, complexificando sua própria narrativa biográfica. Os herdeiros é um pastiche do cinema novo e do fracasso simbólico e prático da esquerda brasileira que culminou na avacalhação genial do cinema marginal. Foi o prenúncio da lição. A inventividade autoral do cinema, enquanto política e estética, teve que chegar e abandonar a sarna autoritária de falar em nome de um povo do cinema novo, masturbando uma fórmula de alegorias. Todavia, o filme demonstra uma ligeira autoralidade em alguns momentos felizes de sua fotografia.
O sadismo estético de Bianchi proporciona experiências necessárias de sofrimento quando busca a realidade condensada, algo como como uma sugestão menos inofensiva que o odorama (Polyester, Jonh Waters) e que expulsa qualquer ilusão de entretenimento ou evasão reconfortante que a pretensa separação arte/vida instaura. O realismo cru consegue ser mais nonsense e caricato que qualquer Gil Gomes (que inaugura o filme em sua verve sensacionalista) e anuncia o que há por vir em sua tônica desumanizadora que insiste em provocar mal estar em um audiência dopada por programas sociais e a banalidade do mal, cutucando o racionalismo e o naturalismo de cientistas que experimentam animais, de antropólogos e cientistas sociais que elaboram teses sobre a miséria alheia, de militantes de esquerda falastrões. O diretor do espetáculo teatral (Renato Borghi) é um agente missionário do resgate dessa dor alheia a ponto de torturar um rato ou expor os atores à visita a um hospital público. É uma intimação para o desenvolvimento de empatia como elemento necessário de criação. O belíssimo Alexandre Paternost como contra-regra, por trás das coxias, é um dos poucos que despertam emoções para além de palavrórios, como se fosse um anjo que consegue estimular sensações de modo espontâneo nos outros atores que o desejam e como o único que sangra e que vomita diante dos horrores expostos. Cruel, mas necessário
Salário do medo é um thriller que extrai beleza plástica da decadência humana, jogada no petróleo, entre as pústulas, baratas e necroses. A despeito da denúncia política de oposição à inviabilidade sistêmica do capitalismo, no contexto da guerra fria. Para além destes elementos que aludem à geopolítica do petróleo ou à divisão de trabalho neocolonial entre Estados Unidos, estrangeiros em geral e a América Latina, a trama sobressai em termos de complexidade na tensão psicológica entre os personagens, particularmente no que tange ao culto da virilidade, o homoerotismo e o desprezo ao feminino.
Os dois protagonistas franceses, Mario e Jo, têm uma identificação à primeira vista (''você quer um autógrafo?'') à revelia do interesse da enciumada Linda, apaixonada e sempre desprezada e preterida por Mario, que vive com o parceiro italiano Luigi dos pulmões comidos por cimento, que logo assume a posição de Linda manifestando cenas de ciúmes na taverna que todos frequentam na primeira metade do filme. Os outros homens, Luigi e Linda enciumados da relação entre Mario e Jo, tentam sempre provocar Jo e frustrar o clima dos dois em sua mesma mesa sempre reservada ao lado do som, o qual sempre é desligado por Jo.
Na segunda metade do filme, quando os quatro motoristas escolhidos para o transporte da nitroglicerina, Bimba e Luigi num e Mario e Jo noutro, a decadência física dos personagens aliada à exaltação da virilidade/ repulsa da fragilidade e do feminino chega a um nível niilista e alarmante. Bimba diz não gostar de garotas para Luigi, Jo se acovarda em medo e febre e não ostenta mais a coragem que o atraía para Mario e Luigi reconquista a atenção de Mario após a explosão de uma pedra que impedia o caminho. A partir disto a crueza e o desprezo, assim como a dominação de Jo por Mario se tornam dilacerantes, como se a derrocada da masculinidade do personagem do Jo fosse proporcional à degeneração dos personagens no filme. Recomendo a leitura do artigo ''La pulsión homoerótica en El salario del miedo'', de Jordi Revert que concorda com todas as minhas impressões e o meu fascínio pelas personagens, cuja leitura fiz após uma pesquisa sobre o autor do livro, Georges Arnaud, que inspira o filme.
Um filme irregular, construído sob algumas interrupções de verba (Cinemin, n. 13, 1985) mas relevante pela espontaneidade manifesta de um ethos de malemolência nacional, cujos filmes cariocas se esmeraram em cunhar e pela contundente força narrativa da trilogia política proposta por Gustavo Dahl (Bravo Guerreiro, Uirá e Tensão no Rio). A despeito da austeridade temática que emerge do colonial-fascismo na América Latina, cujo enredo aborda as relações diplomáticas entre Brasil e a imaginária Valdívia, onde se intromete o golpismo alimentado pelas transações comerciais petrolíferas (nada mais atual), há um verniz pitoresco da cotidianidade que se revela na crença do presidente de Valdívia no Tarot e a consulta espiritual a um médium (personagem excelente de José Lewgoy) como elemento de desfecho da trama, além da inserção de personas caricatas como o jornalista americano do Washington Post, as relações extraoficiais com um capanga traficante e a amante mantida sob espumante. Tudo isto embalado pela trilha desconcertantemente precisa de Arrigo Barnabé
Uma incursão onírica e poética ao íntimo e pessoal da paisagem turca de Tróia. Paisagem no sentido de sugestão mental de estados d'alma e de articulação de novas formas de ver um mundo camponês tradicionalmente tido como inerte. O presente grego é a a presença e a consciência do escritor Sinan que promove uma crítica mordaz aos costumes locais sem deixar de reconhecer alguma beleza lírica e deslocada para além dos hegemônicos fatores moral/ religioso e econômico reconhecido pelo turismo mainstream associado ao campo de batalha grego/turco. A reapropriação espacial da paisagem operada na mise en scene mediante a construção narrativa da personagem de Sinan insere uma figura flâneur atípica e desajeitada mas com potência sensível equivalente ao ocidental do final do século XIX.
Santiago, Itália
3.8 12 Assista Agora''Eu não sou imparcial''
Bacurau
4.3 2,8K Assista AgoraBacurau: heterotopia do sertão e distopia do mundo
O longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles revela de forma profunda e meticulosa uma experiência social de resistência e enfrentamento das hostilidades sistêmicas e naturais, algo que cabe ao sertão não como reduto de pobreza e miséria, mas como método e tradição. A enunciação, que funciona como máxima, de Ailton Krenak, em que ele constata e ensina que o homem branco irá sofrer com o bolsonarismo enquanto que o indígena já enfrenta o colonialismo brutal desde o tal descobrimento, também se aplica ao sertanejo. O sertão e a cultura indígena devem ser inspiração para nossa identidade, nosso projeto de mundo e nossa resistência ao modelo distopico que a necropolitica bolsonarista e o capitalismo financeiro impõem.
É desse sertão que os diretores extraem a poética da produção e a brutalidade que permeia o contexto atual e como reagir a ela. O povoado de Bacurau no Município fictício de Serra Verde (que corresponde na realidade ao povoado de Barra no Município de Parelhas- RN), enfrenta uma crise no abastecimento de água, convertida em um bem privado que é controlado por milícias sertanejas e usado eleitoralmente pelo prefeito como moeda clientelista em promessas homeopáticas.
Embora a crise hídrica e conflitos resultantes, a manipulação eleitoral e voto de cabresto sejam uma situação histórica do cotidiano sertanejo, o que torna Bacurau uma distopia tecnológica é justamente a inclusão digital e o acesso eficaz aos recursos da web 2.0, num povoado onde nunca falta sinal no celular e num país onde o culto às armas e o Estado policial-armamentista se consolida a ponto de anunciar na televisão execuções públicas no Vale do Anhangabaú e onde prefeitos trocam vidas inteiras de um povoado por um punhado de dólares para a diversão gamer de uns gringos incautos. Como Gabriel Mascaro em Divino Amor, Kleber e Juliano apresenta um quadro de Brasil terrívelmente possível, onde a tecnologia é instrumento do tráfico de influências, abuso de poder e da teologia capitalista da prosperidade e das armas.
Mas em que Bacurau ensina a resistir e exalta o sertão como tradição de resistência e manancial de sentido? Justamente por apresentar um povoado extremamente unido em sua consciência de classe e vínculos comunitários e ser uma heterotopia letrada com biblioteca e museu fartos, ciberconectada, onde tradição popular e saber formal do professor são igualmente reverenciados. Em Bacurau, seus habitantes se orgulham do Museu histórico do povoado, das memórias do cangaço, onde a igreja é uma instituição afetiva, mas apenas facultativa, onde um puteiro container e uma mulher trans tem trânsito livres. Bacurau é um oásis de memória e cultura e uma heterotopia, um lugar de alteridade conectado à brutalidade do sertão e do mundo. O filme vai além da tradição alegórica do cinema de Glauber Rocha, onde as tradições do sertão e imagens arcaicas da cultura nordestina coexistem numa temporalidade mítica e montagem suspensas da história ordinária com os conflitos politicos e agrários e a crise hídrica do sertão. Bacurau integra essa memória, essas referências alegóricas à vivência das pessoas: as armas, o cangaço e as recordações orgulhosas saem do Museu e invadem a praça. De Augusto Matraga a Antonio das Mortes e Lia de Itamaracá, Bacurau vai além do pássaro "brabo", é um pássaro que herda tradições e carrega gente.
O Amigo do Rei
3.6 1Um documentário que defende a tese da crise política contemporânea fundada pelo abuso de poder econômico, porém que é excessivamente redundante e serve meramente como um levantamento exaustivo (e bota exaustivo nisso) de dados. Até no didatismo o documentário se perde, ao apresentar esquetes caricatas totalmente desnecessários ao andamento da obra. Elenca fatos fundamentais como a negligência de auditoria, licenciamento e fiscalização pelo governo e pela Samarco com alertas de rompimento anteriores ao fatídico crime ambiental de Mariana, o financiamento das campanhas políticas pelos empresários, o fator irracional do capitalismo financeiro que atua na oscilação do preço do minério de ferro demovendo os dirigentes de extinguir a barragem de Fundão de modo a reter os lucros e preservar os acionistas internacionais a despeito dos riscos já previstos, o custo muito maior com as reparações a ter que contratar alguns mihões de um plano apresentado de simulação computacional que controlaria e evitaria a tragédia, o pacto do governo Dilma em oferecer à empresa a administração do pagamento da multa reparadora de 20 bilhões a partir de uma fundação criada pela própria Samarco. Vale apenas como registro dos relatos das vítimas e pela pesquisa, porém se perde totalmente na montagem e na construção dessa narrativa apêndice do deputado.
Vermelho Sol
3.4 22Uma pérola que evoca os anos 70 não apenas no contexto histórico do golpe militar na Argentina, mas na estética noir dos policiais de Jean-Pierre Melville, nos letreiros e na textura granulada dos anos 80. Repleto de esquetes absurdas e cenas alegóricas que simulam práticas ditatoriais de tortura, o filme proporciona uma atmosfera sufocante, de terror e paranoia psicológica, apresentado personagens contraditórios terrivelmente cristãos e cartesianos ao mesmo tempo, a ponto de direcionar o clímax de toda a tensão narrativa num eclipse lunar.
O Grande Circo Místico
2.2 139Um filme que reproduz a irregularidade da inspiração dieguesiana em sua carreira de filmes com poucos bons momentos como Chuvas de Verão, A Grande Cidade, Bye Bye Brasil mas repleta de equívocos que encobrem boas ideias e imagens marcantes, como em Os Herdeiros. Este filme tem tudo o que ocorre nos outros onde bons momentos e imagens marcantes coexistem com uma narrativa frouxa, superficialidade dos papéis e clichês embotados. Algumas imagens surpreendem no filme, embasadas na ideia ousada de representar uma biografia de uma família-circo num picadeiro, mas não há aprofundamento dos personagens e a proposta de uma leveza superficial em apresentá-los de forma breve não se coaduna à densidade das situações expostas, gerando um conflito na fruição da narrativa. A distração ilusionista, a ludicidade mágica, o entretenimento fantástico, tudo isto que evoca a atmosfera circense não se vincula à proposta pretensiosa de mostrar uma continuidade familiar ou mostrar um período denso de relações e sua complexidade. Alguns bons momentos respiram neste filme, como o conto do pistonista e destaco a complexidade visual e psíquica da personagem de Margarete (Mariana Ximenes)
Divino Amor
3.4 241distopia crente vaporwave
The Cleaners
3.8 6Assistam o documentário alemão
The Cleaners – Im Schatten der Netzwelt (2018). Sim, é preciso levar esse soco no estômago. Sim, principalmente vocês ativistas de rede social que acham que estão contribuindo para maior equilíbrio e positividade planetária, para a redução de toxicidade e ausência de empatia, mas ignoram ou fingem não saber que, quem define se sua publicação é adequada ou não, são os moderadores de comunidade terceirizados da Filipinas, quase uma milícia virtual de Duterte.
São sujeitos hiperexplorados que precisam atingir a meta de 25.000 fotos deletadas diariamente. O Google, o Twitter e o Facebook contratam empresas terceirizadas na Filipinas para recrutar esses sujeitos, pagos com salários baixos típicos dessa mão de obra terceirizada em países africanos e orientais.
Sim, são sujeitos que vivem num país governado por um maníaco que se comparou ao Hitler dos narcotraficantes ("Hitler matou 3 milhões de judeus, eu quero fazer isso com os criminosos na Filipinas").
Esses sujeitos que admiram Duterte são os que policiam o conteúdo de sua rede social, e assumem o quanto esse trabalho é perverso ou também como cães de guarda da moralidade. Muitos se suicidam tendo que ver vídeos de automutilação, pedofilia e decapitação do Isis. E são os mesmos sujeitos que equiparam sua publicação fofinha e engajada e cheia de boa intenção com a da ultra direita Americana (pois eles não são neutros e admiram uma lógica bolsonazista/trumpiana/dutertiana). São eles que permitem páginas que pregam o genocídio dos rohyngias, etnia muçulmana perseguida em Myanmar e Bangladesh. São eles que permitem o racismo xenófobo e proíbem a pintura de Trump com micropênis - a ponto de excluírem todas as redes sociais de Ilma Gore, a artista que o retratou.
Não é uma tecnologia neutra, mas sujeitos hipercatólicos no mau sentido que se autoflagelam e idolatram o estado armamentista de Duterte. Um Bolsonaro piorado mil vezes e popular em seu país. E foi o Facebook quem elegeu Trump. São negócios, ora! A própria Nicole Wong, advogada do google e especialista em ética nas redes sociais, assume que muitas publicações são deletadas por total separação do contexto por esses funcionários terceirizados e que na Turquia as publicações que não agradam Erdogan são bloqueadas para o IP dos turcos por medo de o governo turco proibir as empresas do Google lá.
Enquanto você acha normal e saudável ficar longe de bolsominion e da contrariedade, longe da diplomacia Democrática, por alegar que são eles é que são fascistas e que não toleram a diversidade, você nada mais é que um bonifrate, um minionzinho replicador de conteúdo calculado por padrões de curtidas em algoritmos. E também uma manipulada pela mílicia digital e tercerizada de Duterte!
E esse mecanismo de isolamento em bolhas seguras e livres de contrariedade é justamente o controle social que destrói a representatividade da mídia e da democracia e equipara sua boa vontade às fake News dos tios do zap pela mesma infantilização consumista ("só quero ouvir o que me agrada") e é o que um Estado neoliberal substituído pelas empresas planeja! Ou seja, esse Estado se isentar da representação, da educação e da conscientização e atribuir ao indivíduo a total responsabilidade para ter sua própria informação isolada e suas pós-verdades para fazer justiças e linchamentos com as próprias mãos. Uma milícia digital dutertiana promovendo neoliberalismo virtual e elegendo Trumps e Bolsonaros em nome de uma relativa liberdade de expressão colonizada e de uma pseudoextinção empatica do cyberbullying que propaga a fofolencia xenófoba.
Imagem e Palavra
3.4 34 Assista Agora''AQUELAS FLORES PERDIDAS AO VENTO: Não há dúvida de que o ato da representação quase sempre envolve violência junto ao sujeito da representação.
Há um contraste real entre a violência do ato de representar e a calma de se representar isto. Eles foram pegos entre salamaleques e sussurros. O mundo não interessa aos árabes, nem aos muçulmanos. Enquanto o Islã espera atenção política, o mundo Árabe é o principal cenário e paisagem. Enquanto o mundo Árabe existe como um mundo, que nunca é visto como tal, ele sempre é considerado como um todo, em relação a países do Oriente Médio. Eles adorariam morrer por um lar e eles estão morrendo por isso. Os árabes podem falar?''
A Hora dos Fornos: Notas e Testemunhos do Neocolonialismo, Violência …
4.5 11La cumbia montonera
O Céu de Lisboa
4.0 30Como disse a diretora de fotografia do filme, Lisa Rinzler, a profundidade de campo em Wenders é uma psicologia calma das imagens, e, acrescento, dos sons.
O Sol dos Amantes
3.6 2Romeu e Julieta com a paisagem de Grande Sertão Veredas.
Clímax
3.6 1,1K Assista AgoraApesar da mesma estética apelativa de publicidade e mesmo sensacionalismo de seus outros filmes como I Stand Alone, devo confessar que os movimentos de câmera da sequência de dança posterior à apresentação dos personagens são espetaculares e salvam o filme da auto celebração.
Violent Virgin
3.5 2poço, lago e estrelas cadentes
Segunda-Feira ao Sol
4.1 49''Spregel''
Mulheres Apaixonadas
3.9 32Amores em cor contrastando com lama e fuligem. A belíssima imagem do casal Tibby Lupton e Laura Crich na lama, as irmãs Brangwen em vestes vivas em contraste com as cores cinzas da cidade e dos rostos dos mineiros, o sangue derramado na madeira ou num cavalo branco, a verve artística de Hermione e Gudrun, o apelo da reprodução da vida comum em Ursula e Gerald e Rupert como o fator ou pivô das vontades viscerais reprimidas ou latentes em toda a trama.
Os Herdeiros
3.5 10O último suspiro revanchista da utopia e sua dissolução, poderia ser a alcunha desta película. Os herdeiros representa, pateticamente, um acerto de contas moralista, que é, ao mesmo tempo, um tiro no próprio pé, com uma esquerda conciliadora ou com posicionamentos políticos que ousam agir por conta própria. Isto tanto no sentido da forma, quanto no de conteúdo.
No sentido de forma, Os herdeiros é uma tentativa frustrada de levar adiante um estilo datado e ruminado do cinema novo, sem o brilhantismo autoral de Glauber Rocha: lançando mão de todos os clichês de gênero, apresenta atuações empostadas e performativamente berradas, num pastiche de Brecht com Neorrealismo italiano, um cadinho de alegorias e condensações de brasilidades sob a égide carnavalesca.
No sentido da temática, propõe um revisionismo histórico da saga quixotesca da esquerda brasileira desde a revolução de 30 até o golpe de 64. Entretanto, o filme recruta
um militante Ferreira Gullar, como o líder assassinado David Martins. A posição do personagem era a mesma do militante na vida real, a posição de aliança do partido comunista e que integrara o CPC da UNE, na década de 60: ''O partido tem um programa. A etapa em que vivemos é da revolução democrática. Nossa aliança com a oposição liberal e os setores avançados da burguesia vai provocar a união nacional contra o nazi- fascismo. E forçará o país a entrar na guerra. Depois virão eleições e essa será uma vitória do partido”... O que o filme condena à morte é a estratégia das esquerdas, de aliança “com a oposição liberal e os setores avançados da burguesia”, durante os anos 1950 e a primeira metade da década de 1960. Ao mesmo tempo que trata esta postura como falida, condena moralmente a postura do protagonista jornalista e militante do filme, Jorge Ramos que realiza o mesmo, porém sem as injunções coletivas de um movimento ou do partido, apenas pensando individualmente em seu poder.
O filme executa uma injunção moralista contra um personagem que ousa infiltrar-se no poder agindo sob desígnios autonomistas, quando não obedece aos planos familiares do oligarca do café, ao delatar sob tortura o amigo do partido comunista, David Martins, ao não aceitar o cargo no jornal do empresário Medeiros e se tornar radialista da rádio do Povo, ao não ajudar o professor de esquerda perseguido pela ditadura militar. Os herdeiros executa isto como um tiro no pé ideológico: o filho esquerdista do casamento de Jorge com a oligarquia cafeeira entrega o pai aos militares, quando este concorre ao senado tentando aliança com o partido comunista.
O filme de Cacá é uma cobrança pelo martírio da mediocridade e um desgosto pela impossibilidade da utopia radical e a afiliação purista; a esquerda brasileira do cinema novo, em seus acessos stalinistas, sentiu mal estar com o gênio individual e a critica política de Glauber Rocha, que arrojava uma poética própria e não cedia aos desígnios partidários simplistas. Jorge Ramos é uma versão política de alguém que não cede ao patriarcalismo mandatário da esquerda ou da direita, complexificando sua própria narrativa biográfica. Os herdeiros é um pastiche do cinema novo e do fracasso simbólico e prático da esquerda brasileira que culminou na avacalhação genial do cinema marginal. Foi o prenúncio da lição. A inventividade autoral do cinema, enquanto política e estética, teve que chegar e abandonar a sarna autoritária de falar em nome de um povo do cinema novo, masturbando uma fórmula de alegorias. Todavia, o filme demonstra uma ligeira autoralidade em alguns momentos felizes de sua fotografia.
A Causa Secreta
3.2 9O sadismo estético de Bianchi proporciona experiências necessárias de sofrimento quando busca a realidade condensada, algo como como uma sugestão menos inofensiva que o odorama (Polyester, Jonh Waters) e que expulsa qualquer ilusão de entretenimento ou evasão reconfortante que a pretensa separação arte/vida instaura. O realismo cru consegue ser mais nonsense e caricato que qualquer Gil Gomes (que inaugura o filme em sua verve sensacionalista) e anuncia o que há por vir em sua tônica desumanizadora que insiste em provocar mal estar em um audiência dopada por programas sociais e a banalidade do mal, cutucando o racionalismo e o naturalismo de cientistas que experimentam animais, de antropólogos e cientistas sociais que elaboram teses sobre a miséria alheia, de militantes de esquerda falastrões. O diretor do espetáculo teatral (Renato Borghi) é um agente missionário do resgate dessa dor alheia a ponto de torturar um rato ou expor os atores à visita a um hospital público. É uma intimação para o desenvolvimento de empatia como elemento necessário de criação. O belíssimo Alexandre Paternost como contra-regra, por trás das coxias, é um dos poucos que despertam emoções para além de palavrórios, como se fosse um anjo que consegue estimular sensações de modo espontâneo nos outros atores que o desejam e como o único que sangra e que vomita diante dos horrores expostos. Cruel, mas necessário
O Salário do Medo
4.3 105 Assista AgoraSalário do medo é um thriller que extrai beleza plástica da decadência humana, jogada no petróleo, entre as pústulas, baratas e necroses. A despeito da denúncia política de oposição à inviabilidade sistêmica do capitalismo, no contexto da guerra fria. Para além destes elementos que aludem à geopolítica do petróleo ou à divisão de trabalho neocolonial entre Estados Unidos, estrangeiros em geral e a América Latina, a trama sobressai em termos de complexidade na tensão psicológica entre os personagens, particularmente no que tange ao culto da virilidade, o homoerotismo e o desprezo ao feminino.
Os dois protagonistas franceses, Mario e Jo, têm uma identificação à primeira vista (''você quer um autógrafo?'') à revelia do interesse da enciumada Linda, apaixonada e sempre desprezada e preterida por Mario, que vive com o parceiro italiano Luigi dos pulmões comidos por cimento, que logo assume a posição de Linda manifestando cenas de ciúmes na taverna que todos frequentam na primeira metade do filme. Os outros homens, Luigi e Linda enciumados da relação entre Mario e Jo, tentam sempre provocar Jo e frustrar o clima dos dois em sua mesma mesa sempre reservada ao lado do som, o qual sempre é desligado por Jo.
Na segunda metade do filme, quando os quatro motoristas escolhidos para o transporte da nitroglicerina, Bimba e Luigi num e Mario e Jo noutro, a decadência física dos personagens aliada à exaltação da virilidade/ repulsa da fragilidade e do feminino chega a um nível niilista e alarmante. Bimba diz não gostar de garotas para Luigi, Jo se acovarda em medo e febre e não ostenta mais a coragem que o atraía para Mario e Luigi reconquista a atenção de Mario após a explosão de uma pedra que impedia o caminho. A partir disto a crueza e o desprezo, assim como a dominação de Jo por Mario se tornam dilacerantes, como se a derrocada da masculinidade do personagem do Jo fosse proporcional à degeneração dos personagens no filme. Recomendo a leitura do artigo ''La pulsión homoerótica en El salario del miedo'', de Jordi Revert que concorda com todas as minhas impressões e o meu fascínio pelas personagens, cuja leitura fiz após uma pesquisa sobre o autor do livro, Georges Arnaud, que inspira o filme.
Ida
3.7 439vitral requintado ao lado do estrume
Tensão no Rio
2.9 2Um filme irregular, construído sob algumas interrupções de verba (Cinemin, n. 13, 1985) mas relevante pela espontaneidade manifesta de um ethos de malemolência nacional, cujos filmes cariocas se esmeraram em cunhar e pela contundente força narrativa da trilogia política proposta por Gustavo Dahl (Bravo Guerreiro, Uirá e Tensão no Rio). A despeito da austeridade temática que emerge do colonial-fascismo na América Latina, cujo enredo aborda as relações diplomáticas entre Brasil e a imaginária Valdívia, onde se intromete o golpismo alimentado pelas transações comerciais petrolíferas (nada mais atual), há um verniz pitoresco da cotidianidade que se revela na crença do presidente de Valdívia no Tarot e a consulta espiritual a um médium (personagem excelente de José Lewgoy) como elemento de desfecho da trama, além da inserção de personas caricatas como o jornalista americano do Washington Post, as relações extraoficiais com um capanga traficante e a amante mantida sob espumante. Tudo isto embalado pela trilha desconcertantemente precisa de Arrigo Barnabé
A Deusa Negra
3.5 1Hipnotizante como o olhar de Léa Garcia interpretando Iemanjá, assim como a trilha sonora, um afrobeat composto e produzido por Remi Kabaka.
A Vida Provisória
4.0 10“Todos os amores são belos, mas é preciso não esquecer de lutar por pensar demais no amor, ou não haverá mais amor nessa terra.”
O Amor de Emmanuelle
3.2 7o traseiro do amor de emmanuelle à milanesa
A Árvore dos Frutos Selvagens
4.0 46Uma incursão onírica e poética ao íntimo e pessoal da paisagem turca de Tróia. Paisagem no sentido de sugestão mental de estados d'alma e de articulação de novas formas de ver um mundo camponês tradicionalmente tido como inerte. O presente grego é a a presença e a consciência do escritor Sinan que promove uma crítica mordaz aos costumes locais sem deixar de reconhecer alguma beleza lírica e deslocada para além dos hegemônicos fatores moral/ religioso e econômico reconhecido pelo turismo mainstream associado ao campo de batalha grego/turco. A reapropriação espacial da paisagem operada na mise en scene mediante a construção narrativa da personagem de Sinan insere uma figura flâneur atípica e desajeitada mas com potência sensível equivalente ao ocidental do final do século XIX.