É um bom filme sobre a atrocidade do amor e a constatação da falta de garantia da redenção (do espectador e do personagem).
Não se trata de um elogio à degradação vivida, mas a demonstração de que mesmo em situações de extrema desumanidade, existe a dignidade de uma pessoa que ousa afirmar sua vontade própria. Percebo, embora sem acompanhar as críticas ao filme dos comentários aqui depositados ou das manchetes sobre a polêmica e demais considerações a respeito, que existe um incômodo vasto sobre situações expostas no filme que abalam as crenças profundas das pessoas na redenção pelo amor, pelo final feliz, baseado numa expectativa que promova um nivelamento de justiça e alívio para violência do mundo. Mas nem a arte, nem a realidade são evasões para o mundo.
E, mesmo sem ver as críticas, dá para depreender assistindo-o que as situações demonstradas no filme questionam estas ideologias que se manifestam em possíveis críticas à representação clichê da impossibilidade da felicidade no amor gay, no incômodo a um esforço higienizador para promover boa aparência no mundo heteronormativo e puritano que um setor amplo dos gays assimilacionistas reinvindica uma imagem que confirma que os gays em geral possam ser monogâmicos, familiares e que não sejam promíscuos e nem usem drogas. Mas com assimilacionistas ou queers, com ou sem promiscuidade, com ou sem drogas, ambas as situações existem no mundo real e na arte.
A meu ver, não se pode exigir de um filme que representa um lado da situação que ele se prive de exibi-lo para não incomodar esse ideário dos que não se enquadram na situação e uma crítica dessa invalida-se por si mesma. A situação não se extingue por deixar de ser representada ou porque não querem vê-la. As críticas válidas a meu ver devem levar em consideração o papel dramático que a humanidade possa ser representada sem forçar um lado caricato do personagem na situação envolvida - no caso é o contexto de degradação moral, física, psíquica. Vou dar exemplos em que a vulnerabilidade social dos personagens é extremamente problemática para ser representada (como em Sauvage) e requer um absoluto cuidado: Cafarnaum onde a representação do personagem infantil em degradação é terrivelmente irreal - pois, sem pesar o imobilismo do personagem, como fazem filmes que forçam o vitimismo e exageram a vulnerabilidade do que já está vulnerável, dota-o de uma força sobrehumana de superar a situação - e Bar Luva Dourada, onde a representação dos personagens em degradação é terrivelmente real, pois restitui ao mundo o que os personagens são, humanos precários, frágeis, sem poder de mudar o mundo em volta ou a si mesmos, mas também passíveis de alguma humanidade e sensibilidade, pois são produtos de um contexto de desolação, mas nem por isso se permitem ser só a insígnia da decadência, se permitem gozar de um resquício da humanidade mesmo na tragédia.
No caso de Sauvage, a meu ver o filme consegue ser mais feliz ainda que Bar Luva dourada, pois o personagem garoto de programa mesmo na absoluta degradação consegue ainda afetar-se de modo subjetivo pelos outros (o abraço na médica, o adaptar-se de modo carinhoso para o cliente cadeirante e o cliente idoso que ama livros, a ternura pelo gay ladrão do boa noite cinderela) e se deixa escolher um amor impossível e sem ceder ao contexto utilitário do sugar daddy (prefere sofrer e se torturar pela impossibilidade de amar o garoto de programa lutador a encarar o contexto de amar alguém que cuidou dele, mas que não consegue se atrair por este alguém que não seja pela conveniência do cuidado). O amor é o que se é, o que se pode oferecer e sua humanidade limitada não compete ao terreno da utilidade e das ideologias românticas e puritanas e nisso a realidade e arte são pródigas em revelar.
Quando a paixão transborda a um nível sufocante, evocando o universo lírico de Jean Genet e sua devoção por machos viris marginais e traidores: Jean é um corpo gravitacional, Bosman e Henri seus súditos satélites.
Parece mais uma tragédia de Nelson Rodrigues do que um filme do Béla Tarr, que surpresa! Muito teatral e vários diálogos e menções a Orfeu, Hamlet, apenas cenas no interior da casa, muita putaria no lar, uma enfermeira com noivo cafetão, um filho beberrão amigo de um professor decadente e uma mãe rica e doente explorada por todos eles
Um thriller sofisticadíssimo de contraste geracional e com diálogos irônicos, com destaque para as falas da presidente de turma, Apoline (realmente apolínea e ascética em tudo, encarnando o espírito dos jovens da turma de superdotados), que resume o engajamento da seita púbere ao professor de 40 anos: você deveria gostar das imagens, são vintage, da sua geração. O professor, estudioso de Kafka, tem uma vida banal e inexpressiva, mas encontra o absurdo do seu autor favorito no comportamento dos adolescentes que tenta regular, por um fascínio literário camuflado de impulso pedagógico.
Você pode dizer que o filme tem uma narrativa confusa, que é pretensioso, mas dizer que ele não tem a trama costurada e encadeada entre os eventos de modo inteligente, não. Sou suspeito para falar do Ozon, mas esse thriller psicológico que não combina com o cardápio de filmes leves e lineares do Festival Varilux (no qual foi exibido, lembro bem, mas não pude conferir e só agora o faço) e é um filme do diretor mais atmosférico, sugestivo, com múltiplas camadas de imagens, temas psicanalíticos e pesadelos que se conectam à medida que o filme passa em associações como as dos gêmeos canibais, dos gatos escama de tartaruga e do Milo, da figura da mãe ausente e da irmã/irmão preterida/o. A exposição das vísceras (coração de gato/ olho-genitália/ feto absorvido) se contrastam com a opacidade dos pesadelos e das sugestões narrativas que imergem num plano inconsciente da psicanálise.
Mais uma vez, Angelopoulos expõe um personagem atormentado porque não conseguiu conciliar durante sua vida a militância política ou o engajamento artístico e intelectual com a vida pessoal (os cineastas A de Ulysses Gaze e Poeira do Tempo, o escritor Alexandre de Eternidade e Um dia) mas este Spyros de Viagem a Cítera tem algo mais insólito e um mistério maior que o aproxima do escritor-político e depois exilado místico de Passo suspenso da cegonha e do Spyros de Apicultor, como se estivesse consolidado em seu autoexílio interior e não sente a culpa pelo fracasso pessoal como os outros personagens acima citados entre parenteses. Nestes três filmes o mistério contemplativo destes personagens é transferido para as esposas (em Viagem a Cítera e o Apicultor) e à comunidade de exilados albaneses (Passo suspenso da cegonha). Não se coloca uma culpa interior nestes personagens para estes três filmes, como nos outros se instala uma cobrança interior e interpessoal pelo dano provocado à falta de conciliação entre as esferas pessoal e utópica do personagem. Mas sempre Angelopoulos em seu humanismo poético, constata a ausência de conciliação como um problema universal do mundo em desajuste que motiva o sujeito a não imergir apenas em sua vida pessoal, pagando um preço alto, e o diretor nunca exibe isso como uma culpa do personagem em si, por mais que sofram esse processo.
O propangadismo da revolução russa assume uma estetização da política que promove um excesso de didatismo doutrinário e de legendas explicativas e de informação, como se uma exposição de dados numa narrativa não se sustentasse por si mesma a partir do momento que o filme pretende abarcar um período longo da história de modo pretensioso para ser compreendido. Além da compactação do histórico da dinastia dos Romanov, apresenta o enredo de maneira confusa para aludir à personalidade desvairada do monge tarado, mas o filme se perde entre fazer uma reconstituição ficcional de um período tão abrangente e mostrar uma expressividade narrativa que tente absorver a loucura de Rasputin, Nem parece o Klimov de Vá e Veja ou de Proshchanie -Adeus a Matyora.
A imersão no universo marginal mais poética que já vi, sem coitadismo ou paternalismo, sem romantizar ou glamourizar a pobreza. Candeias é realmente excepcional em sua incursão pelos redutos das prostitutas, boias frias e caminhoneiros com sua fotografia em preto e branco realçando a subjetividade com naturalidade, enxergando beleza na banalidade e retratando uma precariedade de uma forma próxima a de todo mundo. Realiza uma trajetória das ruínas de São Miguel até Piracicaba, Aparecida e por fim na cidade de São Paulo falando de tipos religiosos, cafetinas, deficientes físicos, lutadoras de circo mambembe tipos que são invisibilizados além dos já citados. É também um documento magnífico da época com algum bucolismo, é isto: ele enxerga a marginalidade como naturalidade pitoresca, sem exotismo.
O passo suspenso da cegonha é um filme de mistério sobre as inquietações pessoais e o élan vital que se apropria e que transborda da temática política das fronteiras. O personagem de Marcello Mastroianni, assim como o escritor Alexandre de A Eternidade e Um dia ou os cineastas A de Olhar de Ulysses e Poeira do Tempo apresentam uma fixação política pessoal por uma utopia e ao mesmo uma conexão metafísica com a realidade que os torna alheios à banalidade dos movimentos políticos e aos relacionamentos interpessoais, pagando um preço alto por isso. As mulheres no filme ocupam uma posição de magnetismo central da trama: Jeanne Moureau, a esposa do político refugiado dá uma elegância e um sex appeal extraordinário, assim como a jovem amante do jornalista que absorve toda a carga erótica dos dançarinos em profusão no bar. É visualmente impressionante em todos os sentidos (o homem no guindaste, o casamento dos lados do rio, os homens nos postes, a tensão do passo na ponte da fronteira)
Sem repetir os comentários abaixo a respeito da poesia política de Angelopoulos, uma insinuação da narrativa que percebi na caracterização da companhia teatral: sua dissolução é justamente uma transposição do conflito político interior à própria esquerda greca/ Resistência, que se reflete na composição de uma diversidade de posições dos atores da companhia: uma parte se envolve com os grupos de resistência armada, outros são informantes que se aliam em proveito próprio com os britânicos e com os colaboracionistas ou são simpatizantes do fascismo italiano. Angelopoulos nos presenteia de forma poética com a revisão da história grega de 1936 a 1652, evocando de forma crítica como poderia ter sido diferente se a resistência de esquerda agisse de modo mais coeso como agiram os colaboracionistas nazistas eanticomunistas que rapidamente se aliaram aos aliados que ocuparam a Grécia (americanos e ingleses) para se perpetuar no poder e continuar a Guerra Fria.
Sofianos é um típico bandido homossexual de Jean Genet que tem um enredo trágico, envolvendo-se com o deputado do partido conservador, Kriezis. Marginal, traidor, informante e delator apresenta a ambiguidade e a alienação grupal em proveito próprio, oscilante como a graça de um tango grego composto em 1935 (a música da prisão: "Μην περιμένεις" , de Mendri Kakia (Μένδρη Κάκια).
Os Caçadores é o filme mais onírico das obras de Angelopoulos. Ao mesmo tempo é um sonho ou pesadelo fincado na realidade dos golpes e governos autoritários gregos entre 49 e 67. Mas o corpo do guerrilheiro é uma metáfora de um terror que assombra as elites e estimula os militares em sua gana de poder. O julgamento do corpo com seus depoimentos alude a essa situação de um poder alucinatório que perturba a sanidade desses sujeitos.
Megalexandros é uma liturgia épica que Angelopoulos concebeu para homenagear as aldeias e os camponeses gregos e criticar a ocupação britânica, que será outro motivo em outros filmes, em especial Viagem dos Comediantes. Angelopoulos vale-se do controverso Alexandre, o Grande, o qual aparece sempre acompanhado de um cantochão monódico ou escrita pneumática do seu bando- que também evoca a paisagem sonora do cristianismo ortodoxo - para falar de um essência grega comunitária a ser exaltada e de quebra falar de um tema que sempre está presente na sua obra - o exilado (o próprio Alexandre) que perdeu a a conexão com o espaço nativo - e criticar os intelectuais estrangeiros (os anarquistas italianos), a artistocracia e as elites transnacionais.
Discordo radicalmente que Reconstrução/Reconstituição/Anaparastasi é menos Angelopoulos ou é um Angelopoulos menor, a se maturar. Todos os temas principais da carreira angelopoulosiana estão lá: a questão do exílio e dos refugiados, a paisagem nostálgica da aldeia grega, a história grega em si mesma, a panorâmica grandiloquente que foca toda o drama espacial. A única informação discrepante que este filme possui em relação aos outros, o que de forma alguma é prejuízo para a qualidade do filme, é tom de reportagem que cerca a narrativa de reconstituição do crime que abala a aldeia e que foi um caso verídico - o filme intercala ficção e documentário, com trechos de entrevistas do próprio diretor com os aldeãos, evocando o cinema-verdade e o neorealismo italiano. Esta nuance do começo de carreira realmente desloca o relevo que o diretor dá ao intimismo dos personagens, embora a quebra da linearidade nos flashblacks está presente também nesse filme o que relativiza a dicotomia ficção-documentário, tornando o filme mais um exemplo de sua genialidade. Outra novidade é que a paisagem em preto de branco quase como incorporando um luto pela situação de evasão das aldeias pela proletarização urbana é uma situação inédita que aprofunda a poesia lúgubre das bétulas e outras árvores desfolhadas no cenário árido e minimalista das aldeias gregas.
Eu estou completamente obcecado por tudo neste filme. Acho que é meu favorito de culto a Angelopoulos, disputando o mesmo lugar cativo que O Olhar de Ulysses, apesar de reconhecer que em termos de arrebatamentos paisagísticos eu fique mais impressionado por Paisagem Na Neblina e A Eternidade e Um dia. Contudo, o que me faz ficar tão embasbacado com esse filme é justamente a entrega corporal dos personagens, a insuficiência das palavras como pretexto poético para uma direção espetacular que consegue extrair uma expressividade tão precisa e próxima aos sentimentos dos seus personagens, a partir de um combinação de sons, músicas, paisagens, silêncios, gestos que a todo tempo evocam o mistério de um Spyros, um homem circunspecto e macambúzio que mal fala, mas se expressa em arroubos de paixão, como se o mundo fosse evaporar, em especial com a jovem gasguita pela qual se apaixona e oferece carona. Tão gasguita e infantil, como uma ninfa ou vaga-lume que se identifica com Spyros pela sua condição nômade e que por isso aproveita o que pode ser oferecido e tem uma cota a oferecer pois incorpora o que é passageiro. Mas Spyros experimenta desta vez um sentimento arrebatador de fixação e não se sacia com o que a ninfa pode oferecer, tendo que se contentar com a oferta das abelhas (outras ninfas que lhe acompanham). A música I'll Hit The Roads de Julie Massimo casou perfeitamente com a personagem e a atmosfera do filme.
Nunca um filme de Angelopoulos foi tão avassalador emocionalmente quanto esse, tirando o Apicultor, que se aproxima em paixão o que Vale dos Lamentes oferece em desolação. A paisagem de Vale dos Lamentos, em especial as sequências das embarcações com bandeiras negras na aldeia alagada remete diretamente ao cenário das embarcações dos guerrilheiros de esquerda em Os Caçadores. Na revisão política da história grega dos períodos fascistas dos dias de 36, a ocupação nazista e a hegemonia dos colaboracionistas, guerra civil dentre 1947-1949, Vale dos Lamentos evoca a primeira trilogia do autor, focada na história grega formada pelos filmes Os Caçadores, Viagem dos Comediantes e Dias de 36: como neste conjunto fílmico, em O Vale dos Lamentos o contexto é o autoritarismo, as guerras civis e dos artistas que se unem aos sindicatos (Vale dos Lamentos) e a Resistência antinazista e anticolaboracionista (Viagem dos comediantes), embora sempre haja dissidências e informantes traidores (nos dois filmes).
O humanismo poético e o exílio mais uma vez encerram com chave de ouro a carreira de Angelopoulos nesse magistral filme que evoca o cineasta A de O Olhar de Ulysses e o escritor Alexandre de A Eternidade e Um Dia, assim como Jacob Levy evoca o curador da cinemateca de Sarajevo, Ivo Levy.
Uma constante nesses três é a questão do intelectual apaixonado pela carreira mas que não consegue atender a fome de afetos dos entes queridos em sua vida pessoal ou que nunca consegue aprofundar na mesma medida os amores que surgem em sua vida.
O olhar de Angelopoulos evita uma condenação moral desses personagens em suas carreiras e prefere incidir num humanismo poético que apresenta o tempo como uma evasão urgente, que precisa ser captado em sua intensidade antes que passe sem conseguirmos extrair o essencial para a arte e a vida: a poesia da experiência que pode ser recoberta pela poeira que deposita sob o peso dos dias. A terceira asa de Levy é o carpe diem da revolução, a utopia que não cessa no coração, a despeito das circunstâncias, das demandas particulares das relações e do acaso.
O Olhar de Ulysses é o mais angelopoulosiano dos seus 13 longas. Reúne todos os elementos principais recorrentes em todos os filmes: o humanismo poético, a paisagem como metafísica, a visceralidade de homens e mulheres misteriosos e apaixonados por uma carreira ou por um indivíduo que dispensa palavras, a revisão da história política da Grécia e a condição do exílio e dos refugiados como tema e metáfora da experiência da passagem e da precariedade da vida. O cineasta A será retomada em A Poeira do Tempo (2008) que também evoca o personagem do escritor de A Eternidade e Um dia, do intelectual consolidado, admirado em seu ofício mas com a vida pessoal em defasagem de ritmo com a a vida profissional. A obra de Angelopoulos é um labirinto de afetos e de paisagens que nos convida a um périplo pelas nossas crenças, pela nossa aldeia grega perdida, pelas nossas utopias, como o A e suas três bobinas dos irmãos Manakis.
Sanatório da Clepsidra é uma imersão onírica profunda no mundo decadente constatado liricamente por Bruno Schulz: os judeus e seu mercantilismo integrados ao império Austro-Húngaro, as memórias em fragmentos/ a paisagem em ruína desta época sob o comando habsburgo na Galícia, a musa Infanta Bianca em meio a esses escombros, os manequins e as figuras de cera, as prostitutas e a janela como alegoria dessa passagem/paisagem entre mundos evocativo de lembranças, assim como o bilheteiro de trem. A memória como o espaço de confinamento (sanatório) de um relógio de águas (clepsidra) permite reverter o curso do tempo e revelar os interstícios do que poderia ter sido ou interromper a restituição da vida ao tempo profano e instaurar um tempo mítico do retorno das recordações.
Tal qual os mestres loucos possuídos pela poesia (Tolstoi, Leonardo, Shakespeare, Bach, Bresson), que inspiraram o pai, o filho traduz os ensinamentos de Tarkóvski, como uma formulação do tempo e do mistério do mundo. O Texto – Fé e pertencimento, por Denilson Lopes, do dossiê sobre Tarkóvski da Revista Cult edição 214 expressou de modo preciso o que o filme-prostração evoca:
“A necessidade de falar sobre a fé, hoje em dia, me levou, no cinema, a me interessar por Tarkovski, num trajeto muito particular por espaços em que pudesse desaparecer, digo, sem temor nem pudor, em encantamento, em fascínio. Andando por essas imagens, meu templo, procurava uma antítese ao excesso de “eu penso”, “eu sinto”, “eu falo”, “eu critico”, “eu me oponho”.Há muito tempo desaprendi a rezar, e agora é como se estivesse voltando a me ajoelhar não por necessidade de acreditar em algo desesperadamente, e com certeza, não em Deus. O pedido era mais modesto: que eu nunca mais fosse eu mesmo. Uma cena se repete: sempre me vejo entrar e me ajoelhar, mesmo sem acreditar, mas crendo. Como um mantra, as palavras se repetem. E eu continuo sempre a entrar, a me ajoelhar diante de ti, diante de vós. [...] Buscar o pertencimento por um sacrifício, quando nada nem ninguém nos acolhe, quando não nos sentimos parte de nada a não ser, talvez, do mais concreto e material da existência, o dia a dia, o cotidiano, na sua surpresa e na sua repetição. É como se estivéssemos num grande claustro, mas sem esperança na ressurreição, no Juízo Final, apenas em viver este dia que ainda nos coube porque do amanhã, quando poderemos já não ser, nada sabemos. Pertencer a este momento e não a outro, pertencer a cada momento de forma tão presente como se ele não fosse mais passar. Uma oração que nos leve não a um outro mundo, mas cada vez mais para este mundo, não para a desistência da ação e do viver, nem para ser como o espectador, absorvido na contemplação do mundo, mas a pertencer ao quadro, estar na paisagem.” (LOPES, Denilson, Fé e pertencimento no cinema de Andrei Tarkovski, pág.: 44, Cult, Editora Bregantini, Edição 214, Julho de 2016).
Esse filme possui a melhor fotografia de interiores que já vi em filmes orientais. A sequência do letreiro da Fujifilm é uma composição de luz que incide diretamente na ambiência psíquica dos personagens. E o filme sabe tirar partido do uso da luz para exprimir estados de alma nos personagens, como por exemplo a escuridão e a sujeira sépia das paredes da casa do taxista. O apartamento de Chin é o ambiente mais confortável mas ao mesmo tempo o mais comedido de todos.
Impecável em todos os sentidos, destacando a questão dramatúrgica das atuações, da corporalidade dos atores e dos diálogos poéticos e reflexivos e também do propriamente cinematográfica na mise-en-scène, por meio das escolhas de ângulos de câmera (como na sequência genial do interior de um taxi na chuva), o diretor extrair uma graça quase litúrgica dos interiores degradados das habitações cubanas. Patricio Wood absolutamente soberbo no papel do macambuzio Miguel, absorvendo toda a profundidade da trama em seu mundinho particular formado pelo emprego numa lanchonete, a televisão e o noticiário das tragédias cotidianas dos Estados Unidos, seu mapa dos EUA e os cuidados de Diego. Este último o condena e o reverencia em sua esquisitice, ao mesmo tempo. Como um bruxo. Todos os personagens sentem-se afetados pela magia introspectiva da alteridade suprema de Diego, que contrasta absolutamente com a euforia latina dos cubanos. É como se Miguel revelasse o fundo da alma dos personagens, sua melancolia, suas angústias, tudo aquilo que evitam tocar e que preferem fugir nas atribulações prosaicas. Miguel é como um feiticeiro, uma coruja que expõe o interior dos segredos e do oculto, como constata a sobrinha de Diego.
É uma cilada, Binas. Bino no feminino e no plural. Porém divertida. E com uma narrativa muito absurdinha e compacta digna de folhetim com uma trama cheia de nexos e coincidências entre os personagens que só aconteceriam na exceção de plot points para prender o espectador novelesco. Tem uma sacada de morte genial ao enlatar o estuprador. O diretor (homem) deve fazer um julgamento apressado do que é o feminismo, reduzindo-o a uma reação raivosa contra o patriarcado - o que culmina na morte do pai que assume a culpa pelo abandono paternal - e o reflete numa narrativa parodística de empoderamento para engalanar uma geração novinha entusiasmada por uma experiência catártica, ao molde de Bacurau, armadilha apelativa apropriada pelo cinema de gênero. Filme basiquinho pra turminha lacrativa se divertir catarticamente em casa.
Selvagem
3.6 87É um bom filme sobre a atrocidade do amor e a constatação da falta de garantia da redenção (do espectador e do personagem).
Não se trata de um elogio à degradação vivida, mas a demonstração de que mesmo em situações de extrema desumanidade, existe a dignidade de uma pessoa que ousa afirmar sua vontade própria. Percebo, embora sem acompanhar as críticas ao filme dos comentários aqui depositados ou das manchetes sobre a polêmica e demais considerações a respeito, que existe um incômodo vasto sobre situações expostas no filme que abalam as crenças profundas das pessoas na redenção pelo amor, pelo final feliz, baseado numa expectativa que promova um nivelamento de justiça e alívio para violência do mundo. Mas nem a arte, nem a realidade são evasões para o mundo.
E, mesmo sem ver as críticas, dá para depreender assistindo-o que as situações demonstradas no filme questionam estas ideologias que se manifestam em possíveis críticas à representação clichê da impossibilidade da felicidade no amor gay, no incômodo a um esforço higienizador para promover boa aparência no mundo heteronormativo e puritano que um setor amplo dos gays assimilacionistas reinvindica uma imagem que confirma que os gays em geral possam ser monogâmicos, familiares e que não sejam promíscuos e nem usem drogas. Mas com assimilacionistas ou queers, com ou sem promiscuidade, com ou sem drogas, ambas as situações existem no mundo real e na arte.
A meu ver, não se pode exigir de um filme que representa um lado da situação que ele se prive de exibi-lo para não incomodar esse ideário dos que não se enquadram na situação e uma crítica dessa invalida-se por si mesma. A situação não se extingue por deixar de ser representada ou porque não querem vê-la. As críticas válidas a meu ver devem levar em consideração o papel dramático que a humanidade possa ser representada sem forçar um lado caricato do personagem na situação envolvida - no caso é o contexto de degradação moral, física, psíquica. Vou dar exemplos em que a vulnerabilidade social dos personagens é extremamente problemática para ser representada (como em Sauvage) e requer um absoluto cuidado: Cafarnaum onde a representação do personagem infantil em degradação é terrivelmente irreal - pois, sem pesar o imobilismo do personagem, como fazem filmes que forçam o vitimismo e exageram a vulnerabilidade do que já está vulnerável, dota-o de uma força sobrehumana de superar a situação - e Bar Luva Dourada, onde a representação dos personagens em degradação é terrivelmente real, pois restitui ao mundo o que os personagens são, humanos precários, frágeis, sem poder de mudar o mundo em volta ou a si mesmos, mas também passíveis de alguma humanidade e sensibilidade, pois são produtos de um contexto de desolação, mas nem por isso se permitem ser só a insígnia da decadência, se permitem gozar de um resquício da humanidade mesmo na tragédia.
No caso de Sauvage, a meu ver o filme consegue ser mais feliz ainda que Bar Luva dourada, pois o personagem garoto de programa mesmo na absoluta degradação consegue ainda afetar-se de modo subjetivo pelos outros (o abraço na médica, o adaptar-se de modo carinhoso para o cliente cadeirante e o cliente idoso que ama livros, a ternura pelo gay ladrão do boa noite cinderela) e se deixa escolher um amor impossível e sem ceder ao contexto utilitário do sugar daddy (prefere sofrer e se torturar pela impossibilidade de amar o garoto de programa lutador a encarar o contexto de amar alguém que cuidou dele, mas que não consegue se atrair por este alguém que não seja pela conveniência do cuidado).
O amor é o que se é, o que se pode oferecer e sua humanidade limitada não compete ao terreno da utilidade e das ideologias românticas e puritanas e nisso a realidade e arte são pródigas em revelar.
O Homem Ferido
3.7 12Quando a paixão transborda a um nível sufocante, evocando o universo lírico de Jean Genet e sua devoção por machos viris marginais e traidores: Jean é um corpo gravitacional, Bosman e Henri seus súditos satélites.
Almanaque de Outono
4.0 14Parece mais uma tragédia de Nelson Rodrigues do que um filme do Béla Tarr, que surpresa! Muito teatral e vários diálogos e menções a Orfeu, Hamlet, apenas cenas no interior da casa, muita putaria no lar, uma enfermeira com noivo cafetão, um filho beberrão amigo de um professor decadente e uma mãe rica e doente explorada por todos eles
Tetsuo, o Homem de Ferro
3.7 135fotogramas frenéticos de um amor oxidado.
O Professor Substituto
3.7 70 Assista AgoraUm thriller sofisticadíssimo de contraste geracional e com diálogos irônicos, com destaque para as falas da presidente de turma, Apoline (realmente apolínea e ascética em tudo, encarnando o espírito dos jovens da turma de superdotados), que resume o engajamento da seita púbere ao professor de 40 anos: você deveria gostar das imagens, são vintage, da sua geração. O professor, estudioso de Kafka, tem uma vida banal e inexpressiva, mas encontra o absurdo do seu autor favorito no comportamento dos adolescentes que tenta regular, por um fascínio literário camuflado de impulso pedagógico.
O Amante Duplo
3.3 107Você pode dizer que o filme tem uma narrativa confusa, que é pretensioso, mas dizer que ele não tem a trama costurada e encadeada entre os eventos de modo inteligente, não. Sou suspeito para falar do Ozon, mas esse thriller psicológico que não combina com o cardápio de filmes leves e lineares do Festival Varilux (no qual foi exibido, lembro bem, mas não pude conferir e só agora o faço) e é um filme do diretor mais atmosférico, sugestivo, com múltiplas camadas de imagens, temas psicanalíticos e pesadelos que se conectam à medida que o filme passa em associações como as dos gêmeos canibais, dos gatos escama de tartaruga e do Milo, da figura da mãe ausente e da irmã/irmão preterida/o. A exposição das vísceras (coração de gato/ olho-genitália/ feto absorvido) se contrastam com a opacidade dos pesadelos e das sugestões narrativas que imergem num plano inconsciente da psicanálise.
Viagem a Citera
4.2 17Mais uma vez, Angelopoulos expõe um personagem atormentado porque não conseguiu conciliar durante sua vida a militância política ou o engajamento artístico e intelectual com a vida pessoal (os cineastas A de Ulysses Gaze e Poeira do Tempo, o escritor Alexandre de Eternidade e Um dia) mas este Spyros de Viagem a Cítera tem algo mais insólito e um mistério maior que o aproxima do escritor-político e depois exilado místico de Passo suspenso da cegonha e do Spyros de Apicultor, como se estivesse consolidado em seu autoexílio interior e não sente a culpa pelo fracasso pessoal como os outros personagens acima citados entre parenteses. Nestes três filmes o mistério contemplativo destes personagens é transferido para as esposas (em Viagem a Cítera e o Apicultor) e à comunidade de exilados albaneses (Passo suspenso da cegonha). Não se coloca uma culpa interior nestes personagens para estes três filmes, como nos outros se instala uma cobrança interior e interpessoal pelo dano provocado à falta de conciliação entre as esferas pessoal e utópica do personagem. Mas sempre Angelopoulos em seu humanismo poético, constata a ausência de conciliação como um problema universal do mundo em desajuste que motiva o sujeito a não imergir apenas em sua vida pessoal, pagando um preço alto, e o diretor nunca exibe isso como uma culpa do personagem em si, por mais que sofram esse processo.
Agonia Rasputin
3.8 3O propangadismo da revolução russa assume uma estetização da política que promove um excesso de didatismo doutrinário e de legendas explicativas e de informação, como se uma exposição de dados numa narrativa não se sustentasse por si mesma a partir do momento que o filme pretende abarcar um período longo da história de modo pretensioso para ser compreendido. Além da compactação do histórico da dinastia dos Romanov, apresenta o enredo de maneira confusa para aludir à personalidade desvairada do monge tarado, mas o filme se perde entre fazer uma reconstituição ficcional de um período tão abrangente e mostrar uma expressividade narrativa que tente absorver a loucura de Rasputin, Nem parece o Klimov de Vá e Veja ou de Proshchanie -Adeus a Matyora.
A Opção ou As Rosas da Estrada
4.0 10A imersão no universo marginal mais poética que já vi, sem coitadismo ou paternalismo, sem romantizar ou glamourizar a pobreza. Candeias é realmente excepcional em sua incursão pelos redutos das prostitutas, boias frias e caminhoneiros com sua fotografia em preto e branco realçando a subjetividade com naturalidade, enxergando beleza na banalidade e retratando uma precariedade de uma forma próxima a de todo mundo. Realiza uma trajetória das ruínas de São Miguel até Piracicaba, Aparecida e por fim na cidade de São Paulo falando de tipos religiosos, cafetinas, deficientes físicos, lutadoras de circo mambembe tipos que são invisibilizados além dos já citados. É também um documento magnífico da época com algum bucolismo, é isto: ele enxerga a marginalidade como naturalidade pitoresca, sem exotismo.
O Passo Suspenso da Cegonha
4.1 17O passo suspenso da cegonha é um filme de mistério sobre as inquietações pessoais e o élan vital que se apropria e que transborda da temática política das fronteiras. O personagem de Marcello Mastroianni, assim como o escritor Alexandre de A Eternidade e Um dia ou os cineastas A de Olhar de Ulysses e Poeira do Tempo apresentam uma fixação política pessoal por uma utopia e ao mesmo uma conexão metafísica com a realidade que os torna alheios à banalidade dos movimentos políticos e aos relacionamentos interpessoais, pagando um preço alto por isso. As mulheres no filme ocupam uma posição de magnetismo central da trama: Jeanne Moureau, a esposa do político refugiado dá uma elegância e um sex appeal extraordinário, assim como a jovem amante do jornalista que absorve toda a carga erótica dos dançarinos em profusão no bar. É visualmente impressionante em todos os sentidos (o homem no guindaste, o casamento dos lados do rio, os homens nos postes, a tensão do passo na ponte da fronteira)
A Viagem dos Comediantes
4.0 8Sem repetir os comentários abaixo a respeito da poesia política de Angelopoulos, uma insinuação da narrativa que percebi na caracterização da companhia teatral: sua dissolução é justamente uma transposição do conflito político interior à própria esquerda greca/ Resistência, que se reflete na composição de uma diversidade de posições dos atores da companhia: uma parte se envolve com os grupos de resistência armada, outros são informantes que se aliam em proveito próprio com os britânicos e com os colaboracionistas ou são simpatizantes do fascismo italiano. Angelopoulos nos presenteia de forma poética com a revisão da história grega de 1936 a 1652, evocando de forma crítica como poderia ter sido diferente se a resistência de esquerda agisse de modo mais coeso como agiram os colaboracionistas nazistas eanticomunistas que rapidamente se aliaram aos aliados que ocuparam a Grécia (americanos e ingleses) para se perpetuar no poder e continuar a Guerra Fria.
Dias de 36
3.5 5Sofianos é um típico bandido homossexual de Jean Genet que tem um enredo trágico, envolvendo-se com o deputado do partido conservador, Kriezis. Marginal, traidor, informante e delator apresenta a ambiguidade e a alienação grupal em proveito próprio, oscilante como a graça de um tango grego composto em 1935 (a música da prisão: "Μην περιμένεις" , de Mendri Kakia (Μένδρη Κάκια).
Os Caçadores
4.0 3Os Caçadores é o filme mais onírico das obras de Angelopoulos. Ao mesmo tempo é um sonho ou pesadelo fincado na realidade dos golpes e governos autoritários gregos entre 49 e 67. Mas o corpo do guerrilheiro é uma metáfora de um terror que assombra as elites e estimula os militares em sua gana de poder. O julgamento do corpo com seus depoimentos alude a essa situação de um poder alucinatório que perturba a sanidade desses sujeitos.
O Megalexandros
4.1 3Megalexandros é uma liturgia épica que Angelopoulos concebeu para homenagear as aldeias e os camponeses gregos e criticar a ocupação britânica, que será outro motivo em outros filmes, em especial Viagem dos Comediantes. Angelopoulos vale-se do controverso Alexandre, o Grande, o qual aparece sempre acompanhado de um cantochão monódico ou escrita pneumática do seu bando- que também evoca a paisagem sonora do cristianismo ortodoxo - para falar de um essência grega comunitária a ser exaltada e de quebra falar de um tema que sempre está presente na sua obra - o exilado (o próprio Alexandre) que perdeu a a conexão com o espaço nativo - e criticar os intelectuais estrangeiros (os anarquistas italianos), a artistocracia e as elites transnacionais.
Reconstrução
3.5 4Discordo radicalmente que Reconstrução/Reconstituição/Anaparastasi é menos Angelopoulos ou é um Angelopoulos menor, a se maturar. Todos os temas principais da carreira angelopoulosiana estão lá: a questão do exílio e dos refugiados, a paisagem nostálgica da aldeia grega, a história grega em si mesma, a panorâmica grandiloquente que foca toda o drama espacial. A única informação discrepante que este filme possui em relação aos outros, o que de forma alguma é prejuízo para a qualidade do filme, é tom de reportagem que cerca a narrativa de reconstituição do crime que abala a aldeia e que foi um caso verídico - o filme intercala ficção e documentário, com trechos de entrevistas do próprio diretor com os aldeãos, evocando o cinema-verdade e o neorealismo italiano. Esta nuance do começo de carreira realmente desloca o relevo que o diretor dá ao intimismo dos personagens, embora a quebra da linearidade nos flashblacks está presente também nesse filme o que relativiza a dicotomia ficção-documentário, tornando o filme mais um exemplo de sua genialidade. Outra novidade é que a paisagem em preto de branco quase como incorporando um luto pela situação de evasão das aldeias pela proletarização urbana é uma situação inédita que aprofunda a poesia lúgubre das bétulas e outras árvores desfolhadas no cenário árido e minimalista das aldeias gregas.
O Apicultor
4.1 16Eu estou completamente obcecado por tudo neste filme. Acho que é meu favorito de culto a Angelopoulos, disputando o mesmo lugar cativo que O Olhar de Ulysses, apesar de reconhecer que em termos de arrebatamentos paisagísticos eu fique mais impressionado por Paisagem Na Neblina e A Eternidade e Um dia. Contudo, o que me faz ficar tão embasbacado com esse filme é justamente a entrega corporal dos personagens, a insuficiência das palavras como pretexto poético para uma direção espetacular que consegue extrair uma expressividade tão precisa e próxima aos sentimentos dos seus personagens, a partir de um combinação de sons, músicas, paisagens, silêncios, gestos que a todo tempo evocam o mistério de um Spyros, um homem circunspecto e macambúzio que mal fala, mas se expressa em arroubos de paixão, como se o mundo fosse evaporar, em especial com a jovem gasguita pela qual se apaixona e oferece carona. Tão gasguita e infantil, como uma ninfa ou vaga-lume que se identifica com Spyros pela sua condição nômade e que por isso aproveita o que pode ser oferecido e tem uma cota a oferecer pois incorpora o que é passageiro. Mas Spyros experimenta desta vez um sentimento arrebatador de fixação e não se sacia com o que a ninfa pode oferecer, tendo que se contentar com a oferta das abelhas (outras ninfas que lhe acompanham). A música I'll Hit The Roads de Julie Massimo casou perfeitamente com a personagem e a atmosfera do filme.
O Vale dos Lamentos
4.5 10Nunca um filme de Angelopoulos foi tão avassalador emocionalmente quanto esse, tirando o Apicultor, que se aproxima em paixão o que Vale dos Lamentes oferece em desolação. A paisagem de Vale dos Lamentos, em especial as sequências das embarcações com bandeiras negras na aldeia alagada remete diretamente ao cenário das embarcações dos guerrilheiros de esquerda em Os Caçadores. Na revisão política da história grega dos períodos fascistas dos dias de 36, a ocupação nazista e a hegemonia dos colaboracionistas, guerra civil dentre 1947-1949, Vale dos Lamentos evoca a primeira trilogia do autor, focada na história grega formada pelos filmes Os Caçadores, Viagem dos Comediantes e Dias de 36: como neste conjunto fílmico, em O Vale dos Lamentos o contexto é o autoritarismo, as guerras civis e dos artistas que se unem aos sindicatos (Vale dos Lamentos) e a Resistência antinazista e anticolaboracionista (Viagem dos comediantes), embora sempre haja dissidências e informantes traidores (nos dois filmes).
A Poeira do Tempo
3.9 14O humanismo poético e o exílio mais uma vez encerram com chave de ouro a carreira de Angelopoulos nesse magistral filme que evoca o cineasta A de O Olhar de Ulysses e o escritor Alexandre de A Eternidade e Um Dia, assim como Jacob Levy evoca o curador da cinemateca de Sarajevo, Ivo Levy.
Uma constante nesses três é a questão do intelectual apaixonado pela carreira mas que não consegue atender a fome de afetos dos entes queridos em sua vida pessoal ou que nunca consegue aprofundar na mesma medida os amores que surgem em sua vida.
O olhar de Angelopoulos evita uma condenação moral desses personagens em suas carreiras e prefere incidir num humanismo poético que apresenta o tempo como uma evasão urgente, que precisa ser captado em sua intensidade antes que passe sem conseguirmos extrair o essencial para a arte e a vida: a poesia da experiência que pode ser recoberta pela poeira que deposita sob o peso dos dias. A terceira asa de Levy é o carpe diem da revolução, a utopia que não cessa no coração, a despeito das circunstâncias, das demandas particulares das relações e do acaso.
Um Olhar a Cada Dia
4.4 25O Olhar de Ulysses é o mais angelopoulosiano dos seus 13 longas. Reúne todos os elementos principais recorrentes em todos os filmes: o humanismo poético, a paisagem como metafísica, a visceralidade de homens e mulheres misteriosos e apaixonados por uma carreira ou por um indivíduo que dispensa palavras, a revisão da história política da Grécia e a condição do exílio e dos refugiados como tema e metáfora da experiência da passagem e da precariedade da vida. O cineasta A será retomada em A Poeira do Tempo (2008) que também evoca o personagem do escritor de A Eternidade e Um dia, do intelectual consolidado, admirado em seu ofício mas com a vida pessoal em defasagem de ritmo com a a vida profissional. A obra de Angelopoulos é um labirinto de afetos e de paisagens que nos convida a um périplo pelas nossas crenças, pela nossa aldeia grega perdida, pelas nossas utopias, como o A e suas três bobinas dos irmãos Manakis.
O Sanatório da Clepsidra
3.9 24Sanatório da Clepsidra é uma imersão onírica profunda no mundo decadente constatado liricamente por Bruno Schulz: os judeus e seu mercantilismo integrados ao império Austro-Húngaro, as memórias em fragmentos/ a paisagem em ruína desta época sob o comando habsburgo na Galícia, a musa Infanta Bianca em meio a esses escombros, os manequins e as figuras de cera, as prostitutas e a janela como alegoria dessa passagem/paisagem entre mundos evocativo de lembranças, assim como o bilheteiro de trem. A memória como o espaço de confinamento (sanatório) de um relógio de águas (clepsidra) permite reverter o curso do tempo e revelar os interstícios do que poderia ter sido ou interromper a restituição da vida ao tempo profano e instaurar um tempo mítico do retorno das recordações.
Andrei Tarkóvski: Uma Oração de Cinema
4.3 5Tal qual os mestres loucos possuídos pela poesia (Tolstoi, Leonardo, Shakespeare, Bach, Bresson), que inspiraram o pai, o filho traduz os ensinamentos de Tarkóvski, como uma formulação do tempo e do mistério do mundo. O Texto – Fé e pertencimento, por Denilson Lopes, do dossiê sobre Tarkóvski da Revista Cult edição 214 expressou de modo preciso o que o filme-prostração evoca:
“A necessidade de falar sobre a fé, hoje em dia, me levou, no cinema, a me interessar por Tarkovski, num trajeto muito particular por espaços em que pudesse desaparecer, digo, sem temor nem pudor, em encantamento, em fascínio. Andando por essas imagens, meu templo, procurava uma antítese ao excesso de “eu penso”, “eu sinto”, “eu falo”, “eu critico”, “eu me oponho”.Há muito tempo desaprendi a rezar, e agora é como se estivesse voltando a me ajoelhar não por necessidade de acreditar em algo desesperadamente, e com certeza, não em Deus. O pedido era mais modesto: que eu nunca mais fosse eu mesmo. Uma cena se repete: sempre me vejo entrar e me ajoelhar, mesmo sem acreditar, mas crendo. Como um mantra, as palavras se repetem. E eu continuo sempre a entrar, a me ajoelhar diante de ti, diante de vós.
[...]
Buscar o pertencimento por um sacrifício, quando nada nem ninguém nos acolhe, quando não nos sentimos parte de nada a não ser, talvez, do mais concreto e material da existência, o dia a dia, o cotidiano, na sua surpresa e na sua repetição. É como se estivéssemos num grande claustro, mas sem esperança na ressurreição, no Juízo Final, apenas em viver este dia que ainda nos coube porque do amanhã, quando poderemos já não ser, nada sabemos. Pertencer a este momento e não a outro, pertencer a cada momento de forma tão presente como se ele não fosse mais passar. Uma oração que nos leve não a um outro mundo, mas cada vez mais para este mundo, não para a desistência da ação e do viver, nem para ser como o espectador, absorvido na contemplação do mundo, mas a pertencer ao quadro, estar na paisagem.”
(LOPES, Denilson, Fé e pertencimento no cinema de Andrei Tarkovski, pág.: 44, Cult, Editora Bregantini, Edição 214, Julho de 2016).
História de Taipei
4.0 21 Assista AgoraEsse filme possui a melhor fotografia de interiores que já vi em filmes orientais. A sequência do letreiro da Fujifilm é uma composição de luz que incide diretamente na ambiência psíquica dos personagens. E o filme sabe tirar partido do uso da luz para exprimir estados de alma nos personagens, como por exemplo a escuridão e a sujeira sépia das paredes da casa do taxista. O apartamento de Chin é o ambiente mais confortável mas ao mesmo tempo o mais comedido de todos.
Últimos Dias em Havana
4.0 19 Assista AgoraImpecável em todos os sentidos, destacando a questão dramatúrgica das atuações, da corporalidade dos atores e dos diálogos poéticos e reflexivos e também do propriamente cinematográfica na mise-en-scène, por meio das escolhas de ângulos de câmera (como na sequência genial do interior de um taxi na chuva), o diretor extrair uma graça quase litúrgica dos interiores degradados das habitações cubanas. Patricio Wood absolutamente soberbo no papel do macambuzio Miguel, absorvendo toda a profundidade da trama em seu mundinho particular formado pelo emprego numa lanchonete, a televisão e o noticiário das tragédias cotidianas dos Estados Unidos, seu mapa dos EUA e os cuidados de Diego. Este último o condena e o reverencia em sua esquisitice, ao mesmo tempo. Como um bruxo. Todos os personagens sentem-se afetados pela magia introspectiva da alteridade suprema de Diego, que contrasta absolutamente com a euforia latina dos cubanos. É como se Miguel revelasse o fundo da alma dos personagens, sua melancolia, suas angústias, tudo aquilo que evitam tocar e que preferem fugir nas atribulações prosaicas. Miguel é como um feiticeiro, uma coruja que expõe o interior dos segredos e do oculto, como constata a sobrinha de Diego.
Mulheres Armadas, Homens na Lata
3.3 9 Assista AgoraÉ uma cilada, Binas. Bino no feminino e no plural. Porém divertida. E com uma narrativa muito absurdinha e compacta digna de folhetim com uma trama cheia de nexos e coincidências entre os personagens que só aconteceriam na exceção de plot points para prender o espectador novelesco. Tem uma sacada de morte genial ao enlatar o estuprador. O diretor (homem) deve fazer um julgamento apressado do que é o feminismo, reduzindo-o a uma reação raivosa contra o patriarcado - o que culmina na morte do pai que assume a culpa pelo abandono paternal - e o reflete numa narrativa parodística de empoderamento para engalanar uma geração novinha entusiasmada por uma experiência catártica, ao molde de Bacurau, armadilha apelativa apropriada pelo cinema de gênero. Filme basiquinho pra turminha lacrativa se divertir catarticamente em casa.