É uma cilada, Binas. Bino no feminino e no plural. Porém divertida. E com uma narrativa muito absurdinha e compacta digna de folhetim com uma trama cheia de nexos e coincidências entre os personagens que só aconteceriam na exceção de plot points para prender o espectador novelesco. Tem uma sacada de morte genial ao enlatar o estuprador. O diretor (homem) deve fazer um julgamento apressado do que é o feminismo, reduzindo-o a uma reação raivosa contra o patriarcado - o que culmina na morte do pai que assume a culpa pelo abandono paternal - e o reflete numa narrativa parodística de empoderamento para engalanar uma geração novinha entusiasmada por uma experiência catártica, ao molde de Bacurau, armadilha apelativa apropriada pelo cinema de gênero. Filme basiquinho pra turminha lacrativa se divertir catarticamente em casa.
A paisagem da aldeia é um personagem marcante da história, como sugere o título,para além das presenças ausentes - fantasmagóricas -, onde uma aridez da neve quebequense que encobre e absorve tudo, mesmo parcialmente fora do inverno, como as máscaras dos mortos que perturbam a rotina dos vivos cobrando sua hegemonia territorial e temporal. O filme emula as paisagens de Angelopoulos em algumas cenas.
Nos três volumes de Arabian Nights, os animais encarnam as lições mais representativas da narrativa, das vespas ao galo madrugador (primeiro volume), do cão Dixie (no segundo) aos tentilhões e pintassilgos (no terceiro). O amor é um abismo ismo-ismo e ecoa.
É impossível não ser maniqueísta considerando-se a desgraça do Holodomor e o totalitarismo stalinista, algo que transcende as visões políticas de esquerda e de direita. Mas a forma como a tragédia da fome de 1933 provocada pela perseguição aos kuláks a partir do programa de coletivização da agricultura, é retratada no filme, é extremamente melodramática, com uma trilha sonora sofrível e dissonante articulada a contrastes entre fotografia bucólica dos bons momentos da família camponesa protagonista, fotografia pesada em preto e branco e fotografia sépia, a tautológica exploração do clichê comunista come criancinha e abusando dessa fragilidade infantil como mote, o que soterra a já impotente e desumanizada condição dos personagens. O filme nem como ficção que reconstitui um momento histórico serve, como documento de pesquisa, mas lembra mais um bramido de agonia de alguém que viveu isso e que não consegue de forma alguma se distanciar, seja na forma de concepção, seja como pesquisa histórica. Pode servir como imagem exasperada e enternecedora de um apelo propagandista dos ancaps e sua cruzada antiestatal ou como imagem apelativa para saciar os anseios melodramáticos das tias do zap. As cenas da queda do sino e dos corpos jogados no buraco são impressionantemente plásticas.
É uma espiral metalinguística que te absorve em diversos momentos que turvam a tênue distinção entre ficção e documentário. Realmente há um transporte aos bastidores da produção de uma encenação, mas há também o acesso direto à intimidade de uma diretora teatral e seu amante em cenas absolutamente caseiras (Isaac Babel, a nudez masculina etc.), que remetem a contextos imediatamente cotidianos, mas também evocam os bastidores de produção de uma nacionalidade xenófoba. É como uma desoladora constatação de uma intimidade humana com uma indulgente pulsão para o massacre do outro.
Que vontade de comer msemmen e rziza ouvindo Warda e aprender a sentir a massa com a Samia (Amelie Poulain marroquina sim) ou ter seu corpo musicalmente desperto depois de anos enlutado. É um filme de delicadeza, gestos e sabores.
O curta do Elia Suleiman vale pelo filme todo, uma fotografia que aproveita muito a beleza da cidade. Os curtas de Benicio Del Toro, Julio Medem, Juan Carlos Tabio e Laurent Cantet constituem imersões deliciosas pelo casario antigo e com um tom irremediavelmente latino e novelesco, sendo o último uma pérola etnográfica sobre a festa de Oxum. O segundo episódio de Pablo Trapero é um mergulho na musicalidade do diretor sérvio Emir Kusturica e é bastante sutil. O de Gaspar Noé parece ser um ritual corretivo/purificador de lesbianidade (?) que aproxima a ilha cubana de um estereótipo de primitivismo/ homofobia, pois é um ritual de limpeza, mas feito na escuridão como se incorporasse uma culpa ou proibição das religiões negras por existirem ou do olhar inquisidor do ocidental, de outro modo, é uma marginalidade sendo englobada por outra e filmado por um ocidental que gosta de retratar marginais de modo quase sempre publicitário.
Um poema visual sobre a insalubridade e a aridez que dispensa a verborragia e nossa expectativa mal acostumada aos grandes acontecimentos e plot points. Sobre a tal incomunicabilidade, é um recurso para promover uma ênfase na pictorialidade dos gestos e dos cenários,, nalguns momentos, sépia das imagens que tende ao cinza e ao sombreado nas extremidades noutros, para focalizar uma dinâmica de culto ao fogo sagrado do lar (aludindo à lareira em Fustel de Coulages, Cidade Antiga): na casa em ambiente bucólico o ritual se processa fora e se completa no interior, na pensão imersa na zona urbana do meretrício portuário, o fogo se instala na centralidade dos planos em diversos momentos, seja em explosões em ruínas tarkovskianas, incêndios não programados, fogueiras improvisadas ou num pedido infantil por um cigarro. O filme todo, a despeito da incomunicabilidade e o vazio associado, é dissolvido em focos centrais de cores quentes, música latina, animação ou situações de busca por asilo e aninhamento
Uma aula de cinema chinês que emula Tarkovski em seus planos-sequência que transportam suavemente o espectador no âmago da cena e nas casas abandonadas com goteiras e infiltrações e nas ruínas românticas com animais transeuntes (a casa onde Luo Hongwu se encontra com Wan Qiwen, a casa virante dos amantes, a praça em frente ao puteiro).
Visto na mostra de cinema catalão do Instituto Cervantes-Recife em 11/07/16, mas revisto ontem. É um filme que usa o mote da reconstituição histórica como pano de fundo para exibir uma estética camp gay adolescente fashionista/editorial de moda à la Maria Antonieta de Sofia Coppola e Xavier Dolan, focando na glamourização palaciana de um cenário de decadência no reinado breve de Amadeo de Saboya, de 1871 a 1873, que chega a Madri com o intuito de atualizar a Espanha, mas o país passava por um momento de grande desequilíbrio politico para ele poder cumprir seu objetivo. Ganhou no VII Prêmios Gaudí 2015 – Melhor direção artística e melhor figurino, o que ressalta meu argumento que o filme foca na exuberância monárquica e no deslumbramento do corpos gays jovens dos empregados do rei [destaque para a releitura de Courbet], de modo anacrônico, e também pelo apelo juvenil sessentista da bela canção dos Les Surfs - A present tu peux t'en aller. A tartaruga cravejada de pedras preciosas, creditada como Providência, marca o elemento decadentista do final do século XIX, como o réptil idealizado pelo personagem de Des Esseintes, que rasteja sob o peso da ostentação humana descrita em À rebours, Joris Karl Huysmans.
Tem a carga dramática dos filmes de Fassbinder: não ter para onde ir é a tal utopia do título mas mesmo mergulhadas no mais cru dos cenários, as putas se permitem sonhar com alguma evasão ou desejo.
É uma adaptação caótica como o Nienasycenie de Witkancy, o qual ainda não li totalmente, mas tive contato com a obra pelo link wolnelektury. pl/media/book/pdf/witkacy-nienasycenie. pdf e alguns trechos traduzidos em inglês na internet, assim como ao restante de sua obra teatral, na pintura e na filosofia.
Mantém o caos da literatura do autor, mas incorpora uma licença sexual criadora de Grodecki, conhecido pela sua trilogia da prostituição masculina tcheca, o que produz um saldo negativo à complexidade da obra. A leitura de Grodecki é bastante simplista, pois ignora o papel das pílulas de Murti-Bing, enquanto metáfora para domesticação e aceitação interior do absurdo e do totalitário, a postura crítica e reflexiva de Witkancy sobre a metafísica na arte - o que o filme explora no personagem do pianista corcunda- e ainda, na última meia hora do filme, apela para uma zombaria bufona, caricata e racista dos chineses, como se estes fossem responsáveis pela decadência imperialista do ocidente ou o pior da decadência dos mundos. A crítica de Witkancy aos totalitarismos e à tecnocracia economicista ocidental permite ver na arte uma forma de invenção diante do caos do mundo, o filme de Grodecki só inventa nas citações de Witkancy e nem na imitação crua do grotesco no autor, ele conseguir se exprimir de modo não caricato.
Noite Amarela é uma promessa de complexidade no cinema de gênero, mas no balanço geral da obra não consegue sair do canto, não sabe aproveitar nem os clichês do gênero do terror psicológico, nem a ambiência aterradora da ilha, da casa, da estátua ou mesmo dos sonhos e dos eventos passados entre as meninas, assim como não consegue se aproveitar dos conceitos manifestos no filme. É uma hesitação em forma de filme, não engata em momento algum, nem como sugestões. Há uma frouxidão entre os eventos narrativos, a partir da qual as imagens não são exploradas de modo a induzir uma atmosfera fantasmagórica e tensa, o amarelo da corrosão da ferrugem ou da parca luz que ilumina a ilha; prefere oferecer dados soltos, como a tagarelice juvenil, a noite boêmia, apenas nos últimos 40 minutos é que há uma imersão nos estados psicológicos alucinados e na paisagem sombria. Ou seja: não há tempo para desenvolver a complexidade da atmosfera e a sugestão ambiental da paisagem e a direção prefere uma demarcação local e um enfoque na adolescência a promover este desenvolvimento. Portanto, ele se perde em realizar a conexão entre a intenção de demarcar uma verossimilhança de hábitos locais de Campina Grande e do estilo de vida adolescente estranho e a complexidade das imagens e do conceito ambiental do filme. Está claro que há uma certa sugestão de estados mentais proporcionada pela composição da paisagem ou certo gatilho emocional para as crises internas pessoais dos adolescentes (a noite da garrafada, a ausência de resposta no aplicativo de mensagem, os sonhos de morte etc), mas o filme se perde em tentar evocar durante a narrativa uma identidade local dos eventos anteriores à ida para a ilha ou alguma relação das protagonistas Karina e da neta de Heitor Medeiros, Mônica com a pesquisa do seu avô sobre fotografia quântica desenvolvida na casa da ilha, assim como a aparente aplicação do conceito einsteiniano de Seu Heitor, ação fantasmagórica à distância, aos devaneios, sonhos, déjà-vus de Karina. Perde um tempo enorme prestando homenagem a uma cena boêmia de Campina Grande para não estabelecer conexões entre os fantasmas que perseguem Marina na ocasião desta noite da garrafada, o dente-amuleto do cara levou a garrafada, a contemplação do vazio, da porta, dos buracos. Acaba reprimindo todas as potencialidades como uma sugestão sufocada entre um conceito complexo e a superficialidade do clichê impressionista, abafado como um adolescente esquisito que sofre bullying. É como se a própria contemplação do vazio, do estado amorfo, a náusea em Sartre, fosse o flerte que o filme quisesse se impregnar e a perturbação que provoca as alucinações dos adolescentes, um histeria juvenil para chamar atenção.
A fotografia deste filme é uma entidade sobrenatural que conduz todas as situações, é tão visualmente consistente que absorve toda a expressividade narrativa. Não há qualquer necessidade de diálogos, que realmente são tautológicos e inexpressivos para justamente reforçar o papel cabal da fotografia que tudo absorve, a densidade que falta aos personagens flutuantes como libélulas a bater a cabeça na luz. Ela é o tal homem morto que desperta o maquinista.
É um filme que não transmite a decadência da aristocracia rural e as sombras como um todo e que concentra estes atributos na excelente interpretação de Isolda Cresta, como a vampírica Aurélia. A obra apresenta uma contida carga sexual e também contida atmosfera sombria. O diretor parece, a meu ver, realçar o caráter de deslumbre pastoril que José Roberto sente na nova paisagem e no amor juvenil entre Nina e Paulo, a ponto de saturar o filme com uma trilha sonora amena e pueril. A locação da fazenda Rochedo foi uma escolha eficaz, embora o filme esteja muito pouco interessado em aproveitar a decadência das acomodações do quarto de Paulo e José Roberto. O tenebroso mesmo fica nas interpretações vampíricas de Miguel e Aurélia, assim como nas suas extensões animais com sede de sangue e desejo (o casal de pastores alemães presos). O resto do filme é bastante bucólico, ensolarado e luminoso, inclusive o próprio professor/capataz, com toda sua reflexividade e presença forasteira que atrai sexualmente a todos os empregados e Aurélia, como o hóspede de Teorema, Pasolini.
José Roberto, nestes termos, acaba sendo uma personagem oscilante, limiar entre a velhice vampírica de Aurélia que projeta seus desejos nele e o que ele o faz com Paulo e a juventude como liberdade, pois Miguel o sente como aquele que tem coragem e liberdade pra fazer o que ele não faz, a ponto de puni-lo por isso.
O que o filme sugere, o livro deixa explícito (a atração recíproca entre Paulo e José Roberto): “Nesse instante, ambos estavam tão próximos que um sentia no rosto a respiração do outro. E sem saber por que, ambos compreenderam que já não havia entre eles nenhuma hostilidade e que, ao contrário, alguma coisa poderosa como o instinto os tinha unido, como se, colhidos pela engrenagem de um fato misterioso e inesperado, devessem lutar juntos para se libertarem.”
Satantango (1994) exprime um dos meus recordes cinéfilos que tenho orgulho em ostentar: assisti aos seus 450 minutos (7 horas de duração), partindo duma tarde, das 13 às 21 horas, com breves refeições de 15 minutos, e, não satisfeito, fui logo justapondo, em sequência, aos 156 minutos de Cavalo de Turim (2011), do mesmo diretor, filme que divide com o Tango de Satã a excepcional e bela atriz Erika Bók. A obra de Bela Tárr de 1994, inspirada por um romance homônimo de 1985, de Laszló Krasznahorkai (também elaborou o roteiro do filme com o diretor), foi recentemente restaurada para o formato 4k em 2018. Satantango, enquanto tempo, é uma dança argentina com seis passos para trás e seis para frente, mas enquanto realização fílmica é um desabamento constante, um puxar de tapetes. O deslizamento sutil da câmera nos travellings e aproximações vagarosas te absorvem e, a meu ver, o ritmo lento concebido desta forma, suave, que respeita à situação decadente dos personagens - camponeses que perderam sua fazenda coletiva (Os Schmidt, Os Kráner, Os Halics, O professor), uma menina tida como maluca (Estiko), um líder demagogo e explorador (Irimiás), sujeitos excêntricos, mas espertos (o doutor, Futaki) -, não se trata de uma modalidade audiovisual que reforça a densidade da desolação, por mais que se diga que a gradação preto-branco seja um aprofundamento subjetivo e psicológico, isso não quer dizer que a sua fruição seja um peso extra (alguns filmes mais joviais e leves da Nouvelle Vague, por exemplo). Pode ser um pressentir da tragédia, mas não um peso em si mesmo (a antecipação do fim de um regime, da proletarização dos camponeses), pois preferir as séries americanas ou não ter tempo para um filme deste tipo, isto sim é uma tragédia já antecipada pelo próprio filme. Um dos capítulos, DESCOSTURAR-SE, explicita no próprio título o que se sente, exatamente, neste deslizamento constante do solo em que se pisa, do peso que se prende à desolação, o filme é uma aproximação serena por diversos ângulos e planos de um tempo que vai e volta como os passos da dança tango. No deslizamento dos travellings, o autor evita os cortes abruptos nos diversos planos sequência que absorvem o escuro das roupas simulando cortes na montagem que remetem ao Rope (1948) de Hitchcock. E, para citar Georges Perec, uma tentativa de esgotamento de um local húngaro, é para o que se dedica, diariamente, o personagem do Doutor em suas imersões com brandy de frutas na paisagem árida de prados sódicos, quando observa por uma janela e registra em seus diários a rotina dos camponeses e em esboços descritivos do local, dos quais sempre nota uma alteração de detalhe na percepção ou na sua disposição fortuita. Satantango não entrega a tragédia de modo cru e transparente e para tanto se vale da imensa duração de sete horas, do contínuo ato de evitação de cortes na montagem dos planos, justamente para fazer impregnar a imersão na alma e facilitar a exposição a uma realidade tão cruel, como é a da menina Estiko ao assassinar o seu gato, personagem infantil que revela a coexistência entre a inocência e a crueldade. No núcleo adulto, a inocência e crueldade, geralmente, estão separados como no caso do personagem de Irimiás, o qual enganou durante dois anos os camponeses com uma morte forjada, auxiliado pelo cúmplice Sanyi Horgos, irmão da menina louca e das prostitutas. Irimiás é um perverso tido como messias pelos camponeses, que ora se comporta como bruto - as autoridades locais o têm como criminoso e vagabundo - e ora se comporta como pseudo intelectual e demagogo, fazendo discursos manipuladores. Inclusive, posso dizer que a terceira parte do filme, onde Irimiás se coloca como protagonista de fato, é a pior parte da obra, justamente onde a sua verborragia discursiva e um texto de sua autoria, pífio, depreciativo e misógino, que descreve os camponeses, dominam a narrativa.
Neste quesito acerca da manipulação política pelas autoridades locais de incidentes catastróficos, Satantango evoca outra obra do diretor, As Harmonias de Werckmeister (2000), onde uma revolta popular violenta explode motivada por tais articulações; em Satantango, Irimiás deve favores ao capitão, indo ao seu encontro numa repartição pública, local onde decidem promover um plano de apropriação da indenização e de proletarização dos trabalhadores rurais e é neste espaço burocrático onde se revela a essência do plano sórdido, conforme fala do capitão: as pessoas temem a liberdade, a liberdade não é para a duração deste mundo, as pessoas preferem a ordem. Outra pista para enxergar o pensamento de Bela Tárr é a sequência na terceira parte em que os cavalos escaparam do abatedouro na cidade, onde se perde a inocência, Irimiás comentou em resposta à pergunta QUEM CUIDA DELES? EU MESMO! Em troca da ordem previsível pelo medo do suposto caos associado à liberdade, as pessoas doam suas vidas e um salário de um ano por uma fala meia boca de um demagogo que lhes oferece uma tutela pastoral e paternalista de um falso messias. Outra semelhança com Harmonias de Werckmeister é a ambiência do botequim como reveladora do fundo existencial da obra: Em Satantango, a dança como debilidade (é exatamente assim como se expressa a esposa de Schmidt!) e as situações ébrias e repetitivas, em Werckmeister, um eclipse performado por bêbados e encenado pelo entregador de jornais, János Valuska. Outro ponto a ser destacado no filme é o papel da sonoplastia conduzindo a narrativa. Na primeira sequência, a Sra. Schmid e Futaki mencionam sinos de uma capela, mas não podemos ouvi-los; em seu lugar as moscas são estridentes. Num bar, onde se exibe a brutalidade de Irimiás, uma música climática e perturbadora, que se repete no filme por várias vezes, assume o foco narrativo por solicitação do personagem. No boteco onde se dança tango, um martelar incessante de ponteiro demarca a rotina dos trabalhadores mesmo durante a sua distensão emocional. O ruído das máquinas de escrever demarcam a rotina na repartição pública do capitão. Nas caminhadas, o vento oprime e o lixo ou as folhas é esvoaçante (o mesmo ocorre exemplarmente em O Cavalo de Turim, 2011). Nos raros momentos de liberdade, o silêncio domina, (nas ruínas da fazenda, na casa do doutor). Nos momentos mais opressivos, o discurso de Irimiás surge ou na iminência de levante, os sons exasperados da natureza dominam (o tropel dos cavalos em busca da liberdade, o rebanho no cio, a sanfona conduzindo a dança). Em Bela Tárr, o silêncio pode ser um bálsamo.
"cada impressão ficou nítida na minha memória, a caminhada sobre as velhas tábuas do cais, o cheiro da maresia, nosso velho barco, eu me lembro bem do misto de ansiedade e alegria com que apertava o braço de Lucas, acho que no fundo sempre me senti assim e acho mesmo que era esse tipo de embriaguez que fascinava Lucas. Era isso que ele chamava de vida, essa aventura [...] porque Lucas fazia esse tipo de viagem, eu nunca cheguei a compreender inteiramente, era seu lado escuro, seu mistério, exatamente o que me atraía e me encantava nele" .
Assim como o Sísifo mergulhado no absurdo, os personagens carregam pedras que rolam no topo da colina e repetem a tragédia, na qual os mais experientes pressentem que para onde se vá, as coisas não irão mudar. Perturbados pelo absurdo da existência, alguns se apegam a certos princípios de afeto ou de ímpeto vital no qual se realizam como forma de garantir algum grão de esperança em meio ao caos: a peteca, a neta, um amor precário ou a serenidade perdida em um elefante no zoológico.
Mulheres Armadas, Homens na Lata
3.3 9 Assista AgoraÉ uma cilada, Binas. Bino no feminino e no plural. Porém divertida. E com uma narrativa muito absurdinha e compacta digna de folhetim com uma trama cheia de nexos e coincidências entre os personagens que só aconteceriam na exceção de plot points para prender o espectador novelesco. Tem uma sacada de morte genial ao enlatar o estuprador. O diretor (homem) deve fazer um julgamento apressado do que é o feminismo, reduzindo-o a uma reação raivosa contra o patriarcado - o que culmina na morte do pai que assume a culpa pelo abandono paternal - e o reflete numa narrativa parodística de empoderamento para engalanar uma geração novinha entusiasmada por uma experiência catártica, ao molde de Bacurau, armadilha apelativa apropriada pelo cinema de gênero. Filme basiquinho pra turminha lacrativa se divertir catarticamente em casa.
Antologia da Cidade Fantasma
3.1 8A paisagem da aldeia é um personagem marcante da história, como sugere o título,para além das presenças ausentes - fantasmagóricas -, onde uma aridez da neve quebequense que encobre e absorve tudo, mesmo parcialmente fora do inverno, como as máscaras dos mortos que perturbam a rotina dos vivos cobrando sua hegemonia territorial e temporal. O filme emula as paisagens de Angelopoulos em algumas cenas.
As Mil e Uma Noites: Volume 1, O Inquieto
4.1 28 Assista AgoraNos três volumes de Arabian Nights, os animais encarnam as lições mais representativas da narrativa, das vespas ao galo madrugador (primeiro volume), do cão Dixie (no segundo) aos tentilhões e pintassilgos (no terceiro). O amor é um abismo ismo-ismo e ecoa.
As Mil e Uma Noites: Volume 2, O Desolado
4.2 9...foi tanto uma máquina de amar quanto uma máquina de esquecer.
Famine 33
3.8 8É impossível não ser maniqueísta considerando-se a desgraça do Holodomor e o totalitarismo stalinista, algo que transcende as visões políticas de esquerda e de direita. Mas a forma como a tragédia da fome de 1933 provocada pela perseguição aos kuláks a partir do programa de coletivização da agricultura, é retratada no filme, é extremamente melodramática, com uma trilha sonora sofrível e dissonante articulada a contrastes entre fotografia bucólica dos bons momentos da família camponesa protagonista, fotografia pesada em preto e branco e fotografia sépia, a tautológica exploração do clichê comunista come criancinha e abusando dessa fragilidade infantil como mote, o que soterra a já impotente e desumanizada condição dos personagens. O filme nem como ficção que reconstitui um momento histórico serve, como documento de pesquisa, mas lembra mais um bramido de agonia de alguém que viveu isso e que não consegue de forma alguma se distanciar, seja na forma de concepção, seja como pesquisa histórica. Pode servir como imagem exasperada e enternecedora de um apelo propagandista dos ancaps e sua cruzada antiestatal ou como imagem apelativa para saciar os anseios melodramáticos das tias do zap. As cenas da queda do sino e dos corpos jogados no buraco são impressionantemente plásticas.
A Árvore do Desejo
3.9 2De onde surge a beleza do mundo?
Para onde ela vai?
Ou talvez ela esteja apenas escondendo
seu rosto de nós por um tempo?
Eu Não Me Importo Se Entrarmos Para a História Como …
4.1 8É uma espiral metalinguística que te absorve em diversos momentos que turvam a tênue distinção entre ficção e documentário. Realmente há um transporte aos bastidores da produção de uma encenação, mas há também o acesso direto à intimidade de uma diretora teatral e seu amante em cenas absolutamente caseiras (Isaac Babel, a nudez masculina etc.), que remetem a contextos imediatamente cotidianos, mas também evocam os bastidores de produção de uma nacionalidade xenófoba. É como uma desoladora constatação de uma intimidade humana com uma indulgente pulsão para o massacre do outro.
Adam
4.1 22Que vontade de comer msemmen e rziza ouvindo Warda e aprender a sentir a massa com a Samia (Amelie Poulain marroquina sim) ou ter seu corpo musicalmente desperto depois de anos enlutado. É um filme de delicadeza, gestos e sabores.
7 Dias em Havana
3.5 79O curta do Elia Suleiman vale pelo filme todo, uma fotografia que aproveita muito a beleza da cidade. Os curtas de Benicio Del Toro, Julio Medem, Juan Carlos Tabio e Laurent Cantet constituem imersões deliciosas pelo casario antigo e com um tom irremediavelmente latino e novelesco, sendo o último uma pérola etnográfica sobre a festa de Oxum. O segundo episódio de Pablo Trapero é um mergulho na musicalidade do diretor sérvio Emir Kusturica e é bastante sutil. O de Gaspar Noé parece ser um ritual corretivo/purificador de lesbianidade (?) que aproxima a ilha cubana de um estereótipo de primitivismo/ homofobia, pois é um ritual de limpeza, mas feito na escuridão como se incorporasse uma culpa ou proibição das religiões negras por existirem ou do olhar inquisidor do ocidental, de outro modo, é uma marginalidade sendo englobada por outra e filmado por um ocidental que gosta de retratar marginais de modo quase sempre publicitário.
Três Dias
3.6 7Um poema visual sobre a insalubridade e a aridez que dispensa a verborragia e nossa expectativa mal acostumada aos grandes acontecimentos e plot points. Sobre a tal incomunicabilidade, é um recurso para promover uma ênfase na pictorialidade dos gestos e dos cenários,, nalguns momentos, sépia das imagens que tende ao cinza e ao sombreado nas extremidades noutros, para focalizar uma dinâmica de culto ao fogo sagrado do lar (aludindo à lareira em Fustel de Coulages, Cidade Antiga): na casa em ambiente bucólico o ritual se processa fora e se completa no interior, na pensão imersa na zona urbana do meretrício portuário, o fogo se instala na centralidade dos planos em diversos momentos, seja em explosões em ruínas tarkovskianas, incêndios não programados, fogueiras improvisadas ou num pedido infantil por um cigarro. O filme todo, a despeito da incomunicabilidade e o vazio associado, é dissolvido em focos centrais de cores quentes, música latina, animação ou situações de busca por asilo e aninhamento
Longa Jornada Noite Adentro
3.6 64 Assista AgoraUma aula de cinema chinês que emula Tarkovski em seus planos-sequência que transportam suavemente o espectador no âmago da cena e nas casas abandonadas com goteiras e infiltrações e nas ruínas românticas com animais transeuntes (a casa onde Luo Hongwu se encontra com Wan Qiwen, a casa virante dos amantes, a praça em frente ao puteiro).
Siekierezada
3.9 3- Pode ser divino, mas...
horrivelmente desumano.
- Você está certo. Porque raramente
vamos além da elipse
Estrela Cadente
2.8 4Visto na mostra de cinema catalão do Instituto Cervantes-Recife em 11/07/16, mas revisto ontem. É um filme que usa o mote da reconstituição histórica como pano de fundo para exibir uma estética camp gay adolescente fashionista/editorial de moda à la Maria Antonieta de Sofia Coppola e Xavier Dolan, focando na glamourização palaciana de um cenário de decadência no reinado breve de Amadeo de Saboya, de 1871 a 1873, que chega a Madri com o intuito de atualizar a Espanha, mas o país passava por um momento de grande desequilíbrio politico para ele poder cumprir seu objetivo. Ganhou no VII Prêmios Gaudí 2015 – Melhor direção artística e melhor figurino, o que ressalta meu argumento que o filme foca na exuberância monárquica e no deslumbramento do corpos gays jovens dos empregados do rei [destaque para a releitura de Courbet], de modo anacrônico, e também pelo apelo juvenil sessentista da bela canção dos Les Surfs - A present tu peux t'en aller. A tartaruga cravejada de pedras preciosas, creditada como Providência, marca o elemento decadentista do final do século XIX, como o réptil idealizado pelo personagem de Des Esseintes, que rasteja sob o peso da ostentação humana descrita em À rebours, Joris Karl Huysmans.
Utopia
4.5 3Tem a carga dramática dos filmes de Fassbinder: não ter para onde ir é a tal utopia do título mas mesmo mergulhadas no mais cru dos cenários, as putas se permitem sonhar com alguma evasão ou desejo.
Insatiability (Nienasycenie)
3.0 1É uma adaptação caótica como o Nienasycenie de Witkancy, o qual ainda não li totalmente, mas tive contato com a obra pelo link wolnelektury. pl/media/book/pdf/witkacy-nienasycenie. pdf e alguns trechos traduzidos em inglês na internet, assim como ao restante de sua obra teatral, na pintura e na filosofia.
Mantém o caos da literatura do autor, mas incorpora uma licença sexual criadora de Grodecki, conhecido pela sua trilogia da prostituição masculina tcheca, o que produz um saldo negativo à complexidade da obra. A leitura de Grodecki é bastante simplista, pois ignora o papel das pílulas de Murti-Bing, enquanto metáfora para domesticação e aceitação interior do absurdo e do totalitário, a postura crítica e reflexiva de Witkancy sobre a metafísica na arte - o que o filme explora no personagem do pianista corcunda- e ainda, na última meia hora do filme, apela para uma zombaria bufona, caricata e racista dos chineses, como se estes fossem responsáveis pela decadência imperialista do ocidente ou o pior da decadência dos mundos. A crítica de Witkancy aos totalitarismos e à tecnocracia economicista ocidental permite ver na arte uma forma de invenção diante do caos do mundo, o filme de Grodecki só inventa nas citações de Witkancy e nem na imitação crua do grotesco no autor, ele conseguir se exprimir de modo não caricato.
A Noite Amarela
2.7 51Noite Amarela é uma promessa de complexidade no cinema de gênero, mas no balanço geral da obra não consegue sair do canto, não sabe aproveitar nem os clichês do gênero do terror psicológico, nem a ambiência aterradora da ilha, da casa, da estátua ou mesmo dos sonhos e dos eventos passados entre as meninas, assim como não consegue se aproveitar dos conceitos manifestos no filme. É uma hesitação em forma de filme, não engata em momento algum, nem como sugestões. Há uma frouxidão entre os eventos narrativos, a partir da qual as imagens não são exploradas de modo a induzir uma atmosfera fantasmagórica e tensa, o amarelo da corrosão da ferrugem ou da parca luz que ilumina a ilha; prefere oferecer dados soltos, como a tagarelice juvenil, a noite boêmia, apenas nos últimos 40 minutos é que há uma imersão nos estados psicológicos alucinados e na paisagem sombria. Ou seja: não há tempo para desenvolver a complexidade da atmosfera e a sugestão ambiental da paisagem e a direção prefere uma demarcação local e um enfoque na adolescência a promover este desenvolvimento. Portanto, ele se perde em realizar a conexão entre a intenção de demarcar uma verossimilhança de hábitos locais de Campina Grande e do estilo de vida adolescente estranho e a complexidade das imagens e do conceito ambiental do filme. Está claro que há uma certa sugestão de estados mentais proporcionada pela composição da paisagem ou certo gatilho emocional para as crises internas pessoais dos adolescentes (a noite da garrafada, a ausência de resposta no aplicativo de mensagem, os sonhos de morte etc), mas o filme se perde em tentar evocar durante a narrativa uma identidade local dos eventos anteriores à ida para a ilha ou alguma relação das protagonistas Karina e da neta de Heitor Medeiros, Mônica com a pesquisa do seu avô sobre fotografia quântica desenvolvida na casa da ilha, assim como a aparente aplicação do conceito einsteiniano de Seu Heitor, ação fantasmagórica à distância, aos devaneios, sonhos, déjà-vus de Karina. Perde um tempo enorme prestando homenagem a uma cena boêmia de Campina Grande para não estabelecer conexões entre os fantasmas que perseguem Marina na ocasião desta noite da garrafada, o dente-amuleto do cara levou a garrafada, a contemplação do vazio, da porta, dos buracos. Acaba reprimindo todas as potencialidades como uma sugestão sufocada entre um conceito complexo e a superficialidade do clichê impressionista, abafado como um adolescente esquisito que sofre bullying. É como se a própria contemplação do vazio, do estado amorfo, a náusea em Sartre, fosse o flerte que o filme quisesse se impregnar e a perturbação que provoca as alucinações dos adolescentes, um histeria juvenil para chamar atenção.
O Homem das Multidões
3.4 107A fotografia deste filme é uma entidade sobrenatural que conduz todas as situações, é tão visualmente consistente que absorve toda a expressividade narrativa. Não há qualquer necessidade de diálogos, que realmente são tautológicos e inexpressivos para justamente reforçar o papel cabal da fotografia que tudo absorve, a densidade que falta aos personagens flutuantes como libélulas a bater a cabeça na luz. Ela é o tal homem morto que desperta o maquinista.
O Desconhecido
2.8 1É um filme que não transmite a decadência da aristocracia rural e as sombras como um todo e que concentra estes atributos na excelente interpretação de Isolda Cresta, como a vampírica Aurélia. A obra apresenta uma contida carga sexual e também contida atmosfera sombria. O diretor parece, a meu ver, realçar o caráter de deslumbre pastoril que José Roberto sente na nova paisagem e no amor juvenil entre Nina e Paulo, a ponto de saturar o filme com uma trilha sonora amena e pueril. A locação da fazenda Rochedo foi uma escolha eficaz, embora o filme esteja muito pouco interessado em aproveitar a decadência das acomodações do quarto de Paulo e José Roberto. O tenebroso mesmo fica nas interpretações vampíricas de Miguel e Aurélia, assim como nas suas extensões animais com sede de sangue e desejo (o casal de pastores alemães presos). O resto do filme é bastante bucólico, ensolarado e luminoso, inclusive o próprio professor/capataz, com toda sua reflexividade e presença forasteira que atrai sexualmente a todos os empregados e Aurélia, como o hóspede de Teorema, Pasolini.
José Roberto, nestes termos, acaba sendo uma personagem oscilante, limiar entre a velhice vampírica de Aurélia que projeta seus desejos nele e o que ele o faz com Paulo e a juventude como liberdade, pois Miguel o sente como aquele que tem coragem e liberdade pra fazer o que ele não faz, a ponto de puni-lo por isso.
O que o filme sugere, o livro deixa explícito (a atração recíproca entre Paulo e José Roberto): “Nesse instante, ambos estavam tão próximos que um sentia no rosto a respiração do outro. E sem saber por que, ambos compreenderam que já não havia entre eles nenhuma hostilidade e que, ao contrário, alguma coisa poderosa como o instinto os tinha unido, como se, colhidos pela engrenagem de um fato misterioso e inesperado, devessem lutar juntos para se libertarem.”
O Tango de Satã
4.3 139Satantango (1994) exprime um dos meus recordes cinéfilos que tenho orgulho em ostentar: assisti aos seus 450 minutos (7 horas de duração), partindo duma tarde, das 13 às 21 horas, com breves refeições de 15 minutos, e, não satisfeito, fui logo justapondo, em sequência, aos 156 minutos de Cavalo de Turim (2011), do mesmo diretor, filme que divide com o Tango de Satã a excepcional e bela atriz Erika Bók. A obra de Bela Tárr de 1994, inspirada por um romance homônimo de 1985, de Laszló Krasznahorkai (também elaborou o roteiro do filme com o diretor), foi recentemente restaurada para o formato 4k em 2018. Satantango, enquanto tempo, é uma dança argentina com seis passos para trás e seis para frente, mas enquanto realização fílmica é um desabamento constante, um puxar de tapetes.
O deslizamento sutil da câmera nos travellings e aproximações vagarosas te absorvem e, a meu ver, o ritmo lento concebido desta forma, suave, que respeita à situação decadente dos personagens - camponeses que perderam sua fazenda coletiva (Os Schmidt, Os Kráner, Os Halics, O professor), uma menina tida como maluca (Estiko), um líder demagogo e explorador (Irimiás), sujeitos excêntricos, mas espertos (o doutor, Futaki) -, não se trata de uma modalidade audiovisual que reforça a densidade da desolação, por mais que se diga que a gradação preto-branco seja um aprofundamento subjetivo e psicológico, isso não quer dizer que a sua fruição seja um peso extra (alguns filmes mais joviais e leves da Nouvelle Vague, por exemplo). Pode ser um pressentir da tragédia, mas não um peso em si mesmo (a antecipação do fim de um regime, da proletarização dos camponeses), pois preferir as séries americanas ou não ter tempo para um filme deste tipo, isto sim é uma tragédia já antecipada pelo próprio filme.
Um dos capítulos, DESCOSTURAR-SE, explicita no próprio título o que se sente, exatamente, neste deslizamento constante do solo em que se pisa, do peso que se prende à desolação, o filme é uma aproximação serena por diversos ângulos e planos de um tempo que vai e volta como os passos da dança tango. No deslizamento dos travellings, o autor evita os cortes abruptos nos diversos planos sequência que absorvem o escuro das roupas simulando cortes na montagem que remetem ao Rope (1948) de Hitchcock. E, para citar Georges Perec, uma tentativa de esgotamento de um local húngaro, é para o que se dedica, diariamente, o personagem do Doutor em suas imersões com brandy de frutas na paisagem árida de prados sódicos, quando observa por uma janela e registra em seus diários a rotina dos camponeses e em esboços descritivos do local, dos quais sempre nota uma alteração de detalhe na percepção ou na sua disposição fortuita. Satantango não entrega a tragédia de modo cru e transparente e para tanto se vale da imensa duração de sete horas, do contínuo ato de evitação de cortes na montagem dos planos, justamente para fazer impregnar a imersão na alma e facilitar a exposição a uma realidade tão cruel, como é a da menina Estiko ao assassinar o seu gato, personagem infantil que revela a coexistência entre a inocência e a crueldade.
No núcleo adulto, a inocência e crueldade, geralmente, estão separados como no caso do personagem de Irimiás, o qual enganou durante dois anos os camponeses com uma morte forjada, auxiliado pelo cúmplice Sanyi Horgos, irmão da menina louca e das prostitutas. Irimiás é um perverso tido como messias pelos camponeses, que ora se comporta como bruto - as autoridades locais o têm como criminoso e vagabundo - e ora se comporta como pseudo intelectual e demagogo, fazendo discursos manipuladores. Inclusive, posso dizer que a terceira parte do filme, onde Irimiás se coloca como protagonista de fato, é a pior parte da obra, justamente onde a sua verborragia discursiva e um texto de sua autoria, pífio, depreciativo e misógino, que descreve os camponeses, dominam a narrativa.
Neste quesito acerca da manipulação política pelas autoridades locais de incidentes catastróficos, Satantango evoca outra obra do diretor, As Harmonias de Werckmeister (2000), onde uma revolta popular violenta explode motivada por tais articulações; em Satantango, Irimiás deve favores ao capitão, indo ao seu encontro numa repartição pública, local onde decidem promover um plano de apropriação da indenização e de proletarização dos trabalhadores rurais e é neste espaço burocrático onde se revela a essência do plano sórdido, conforme fala do capitão: as pessoas temem a liberdade, a liberdade não é para a duração deste mundo, as pessoas preferem a ordem. Outra pista para enxergar o pensamento de Bela Tárr é a sequência na terceira parte em que os cavalos escaparam do abatedouro na cidade, onde se perde a inocência, Irimiás comentou em resposta à pergunta QUEM CUIDA DELES? EU MESMO! Em troca da ordem previsível pelo medo do suposto caos associado à liberdade, as pessoas doam suas vidas e um salário de um ano por uma fala meia boca de um demagogo que lhes oferece uma tutela pastoral e paternalista de um falso messias. Outra semelhança com Harmonias de Werckmeister é a ambiência do botequim como reveladora do fundo existencial da obra: Em Satantango, a dança como debilidade (é exatamente assim como se expressa a esposa de Schmidt!) e as situações ébrias e repetitivas, em Werckmeister, um eclipse performado por bêbados e encenado pelo entregador de jornais, János Valuska.
Outro ponto a ser destacado no filme é o papel da sonoplastia conduzindo a narrativa. Na primeira sequência, a Sra. Schmid e Futaki mencionam sinos de uma capela, mas não podemos ouvi-los; em seu lugar as moscas são estridentes. Num bar, onde se exibe a brutalidade de Irimiás, uma música climática e perturbadora, que se repete no filme por várias vezes, assume o foco narrativo por solicitação do personagem. No boteco onde se dança tango, um martelar incessante de ponteiro demarca a rotina dos trabalhadores mesmo durante a sua distensão emocional. O ruído das máquinas de escrever demarcam a rotina na repartição pública do capitão. Nas caminhadas, o vento oprime e o lixo ou as folhas é esvoaçante (o mesmo ocorre exemplarmente em O Cavalo de Turim, 2011). Nos raros momentos de liberdade, o silêncio domina, (nas ruínas da fazenda, na casa do doutor). Nos momentos mais opressivos, o discurso de Irimiás surge ou na iminência de levante, os sons exasperados da natureza dominam (o tropel dos cavalos em busca da liberdade, o rebanho no cio, a sanfona conduzindo a dança). Em Bela Tárr, o silêncio pode ser um bálsamo.
Trens Estreitamente Vigiados
4.0 42Se fosse uma pornochanchada, ia se chamar o carimbador tarado e o donzelo
O Sol Em Uma Rede
3.9 8Mãos... o formato humano mais entranho.
Retrato de uma Jovem em Chamas
4.4 902 Assista AgoraNa numerologia, 28 (2+8 = 10, nao conta o zero) = 1, ou seja, a escolha perfeita para a unidade, mesmo diante de uma tempestade de Vivaldi.
Tormenta
3.4 4"cada impressão ficou nítida na minha memória, a caminhada sobre as velhas tábuas do cais, o cheiro da maresia, nosso velho barco, eu me lembro bem do misto de ansiedade e alegria com que apertava o braço de Lucas, acho que no fundo sempre me senti assim e acho mesmo que era esse tipo de embriaguez que fascinava Lucas. Era isso que ele chamava de vida, essa aventura [...] porque Lucas fazia esse tipo de viagem, eu nunca cheguei a compreender inteiramente, era seu lado escuro, seu mistério, exatamente o que me atraía e me encantava nele" .
Um Elefante Sentado Quieto
4.2 62Assim como o Sísifo mergulhado no absurdo, os personagens carregam pedras que rolam no topo da colina e repetem a tragédia, na qual os mais experientes pressentem que para onde se vá, as coisas não irão mudar. Perturbados pelo absurdo da existência, alguns se apegam a certos princípios de afeto ou de ímpeto vital no qual se realizam como forma de garantir algum grão de esperança em meio ao caos: a peteca, a neta, um amor precário ou a serenidade perdida em um elefante no zoológico.