"Burning" (Em Chamas) é mais um filme escrito e dirigido por Lee Chang-dong. Foi muito bem recebido pela crítica. Com um roteiro diferente, repleto de metáforas e mistérios, ele brinca com a percepção e a compreensão do público, indicando que vai contar uma história, para depois revelar que não era bem o que parecia. As chaves da trama serão encontradas nas entrelinhas, já que o longa não entrega uma história fechada.
O protagonista, Jon-su (Yoo Ah-in), é um rapaz introvertido, que pouco fala e interage menos ainda com outras pessoas. Dele se sabe pouco, apenas que serviu o exército, formou-se em escrita criativa e está escrevendo um romance. Ele tem uma irmã casada, seu pai está respondendo a um processo por agressão física e sua mãe saiu de casa quando ele ainda era pequeno. Esse parece ser o mundo real de Jon-su.
A parte da trama que parece não ser factual, é a que apresenta dois outros personagens: Hae-mi (Jeon Jong-seo), uma colega de infância de Jon-su, e Ben (Steven Yeun), um jovem e rico conhecido de Hae-mi, que diz ganhar a vida jogando. Tudo em torno desses dois personagens parecerá surreal e estranho.
Logo na primeira cena entre Hae-mi e Jon-su, ela entrega a ele um cartão numerado, para que ele participe de um sorteio na loja onde ela trabalha. Em seguida, ao colocar a mão na urna, ela olha diretamente para ele e retira o número exato. Depois, no apartamento de Hae-mi, ela conta para Jon-su que adotou um gato de rua, chamado 'Fervura', mas informa que o animal nunca aparece para estranhos.
O personagem Ben, por sua vez, conta que fica fascinado com as lágrimas das pessoas, pois afirma nunca ter chorado na vida. Mais adiante, ele revela para Jon-su uma esquisita mania: a cada dois meses, sai em busca de estufas abandonadas para incendiá-las. E avisa que já escolheu a próxima estufa, bem perto da casa onde Jon-su mora. A partir daí, Jon-su mapeia todas as possíveis estufas abandonadas, para tentar identificar qual será a escolhida por Ben e, enquanto isso, algo inexplicável acontece à Hae-mi.
Ou seja, pode ser que esses personagens existam apenas na mente de Jon-su ou no romance que ele escreve. Outra cena que parece não fazer sentido, é quando Jon-su reencontra a mãe: não há diálogo pessoal entre eles e ela se mantém distraída com o celular. Para corroborar com a possibilidade de tudo ser uma fantasia, o apartamento de Hae-mi no final do filme é diferente das cenas iniciais, faltando objetos, fotos e algumas decorações. Quem mora realmente ali?
Então, este parece ser um filme que nos fala sobre solidão, isolamento e dificuldade de socialização, pois Jon-su pode ter algum espectro autista. Na cena em que ele conversa com o advogado de seu pai, por exemplo, ele evita o olhar direto, mantém uma postura corporal de afastamento e demonstra incomodar-se quando o advogado o toca.
Um filme que, no mínimo, intriga e deixa muitas perguntas.
Pelo jeito Lee Chang-dong não quis poupar o coração de ninguém com este roteiro. "Milyang" (Sol Secreto) é um drama bruto, visceral. A interpretação de Jeon Do-Yeon está assombrosa - ela recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes (2007) por seu papel (Shin-ae) neste filme.
O filme é longo, tem quase 2 horas e meia de exibição, mas a jornada de Shin-ae é tão sombria e tortuosa que mostrá-la apressadamente talvez tornasse confusos todos os efeitos que cada acontecimento desencadeia na vida e no estado emocional da personagem. E não são poucos.
Shin-ae vivencia seu primeiro luto por seu marido, morto em um acidente aéreo. Muda-se para a província de Miryang com seu filho pequeno (Jun), por ser o local onde seu marido nasceu. Na primeira metade do longa, Shin-ae ambienta-se na nova moradia. Conhece os moradores, aproxima-se do Sr. Kim (Song Kang-ho), abre uma escola de piano, matricula Jun na escola local e planeja comprar um terreno na cidade, para construir sua casa.
É a partir da segunda metade do filme que a crueldade e a tragédia irão recair sobre Shin-ae. Tal como na vida real, as desgraças não têm uma lógica, simplesmente acontecem. Há choques tão terríveis que não há reação imediata para eles. Shin-ae, ao sofrer um golpe hediondo, não consegue chorar ou externar sua dor, mas algum tempo depois, numa interpretação magnífica e contundente da atriz, a dor materializa-se em seu peito, sufoca sua garganta. Ela luta para arrancar aquilo de dentro de si, que lhe tira o ar e o chão.
Em meio ao sofrimento que a dilacera, Shin-ae é incentivada por uma vizinha a buscar apoio na fé - em um Deus que até então lhe era totalmente desconhecido. Mas o que ela talvez esperasse não era somente o alívio da dor, mas que a justiça divina fosse feita. Assim, ao descobrir que o amor e o perdão de Deus poderiam alcançar a todos, a decepção e a revolta não tardam a atingi-la, e uma série de tormentos voltam a abatê-la.
Filme contundente como poucos... capaz de mostrar o sofrimento sem nenhum pudor.
"Poetry" (Poesia) é um drama elegante e delicado como sua protagonista, uma senhora sexagenária (Yun Jeong‑hie) que trabalha como cuidadora de um idoso enfermo. Ela cria sozinha um neto adolescente, que a trata com descaso e se transforma numa grande fonte de problemas.
Dirigido por Lee Chang-dong, este filme fala sobre luto, esquecimento e solidão. O luto, por tudo o que se perde ao longo do caminho, seja a vida ou mesmo as lembranças, a pureza, a sensibilidade para enxergar beleza nas coisas. O esquecimento, que resulta da morte, da invisibilidade existencial, do descaso, da perda da memória causada pela doença. A solidão, que vem da falta de conexão com as pessoas ao redor, com a percepção da injustiça, do desrespeito e da aspereza.
A interpretação de Yun Jeong‑hie adquire um tamanho e uma beleza que fazem jus ao título do filme. A atitude da protagonista costuma ser interpretada como passividade, mas se observarmos bem a cultura oriental, conseguimos compreender melhor o seu sofrimento contido e a forma como lida com ele. Ela não luta, não se insurge contra a dor que lhe atinge, apenas a aceita e tenta sobreviver da melhor forma. Quando o desespero finalmente a domina, ela se retrai num pranto escondido, quieto.
Tudo no filme emana poesia. E é nesse ponto que cai por terra a afirmação de que o poeta deve beber ou estar apaixonado para escrever um poema. Ao contrário, a poesia brota da dor. O poeta precisa conectar-se a ela e procurar vivê-la com sensibilidade. Deve conectar-se também às dores alheias, deixando que passem por uma porta entreaberta para o seu mundo interior. O álcool turva a percepção, anestesia os sentidos - e isso fica bem demonstrado no filme.
É numa aula de poesia que a protagonista redescobre o mundo, que passa a experimentá-lo de uma outra maneira, a tentar compreendê-lo melhor. Suas descobertas são lindas. Ela passa a ver não só os objetos, mas a sua essência; não só as formas, mas o seu significado. E assim, ela também começa a penetrar no luto de uma jovem menina que pôs fim à vida, logo no início do filme.
E é para essa menina que ela escreve o seu primeiro poema.
"Hide and Seek" (Esconde-Esconde) tem um roteiro interessante, porém repleto de furos. Comprova um vez mais que os orientais são mestres em fazer filmes de suspense ou terror, mas talvez Jung Huh, no ímpeto de elevar a tensão ou manter o público sob o efeito da apreensão, tenha esquecido de que é, sim, importante dar sentido à trama ou concluí-la de forma minimamente plausível, do contrário a imersão fica prejudicada.
Um bom filme de suspense/terror não é apenas o que causa medo durante a exibição, mas aquele que, ao final da sessão nos deixa com receio até de caminhar de volta para casa. A premissa de "Hide and Seek" prometia algo assim, porém perdeu-se a partir da segunda metade da trama, quando o desfecho começou a ser construído.
De qualquer forma, é um filme tecnicamente apurado, com ótimo design de produção, bela fotografia e elegância de figurino.
"The Eternal Return of Antonis Paraskevas" (O Eterno Retorno de Antonis Paraskevas), com roteiro e direção de Elina Psikou, tem um título que imediatamente nos faz pensar na teoria filosófica da eterna recorrência encontrada na literatura antiga e, posteriormente, reiterada por Nietzsche. E é sobre essa ideia que se constrói a trama do filme: um evento cíclico, que nunca alcança o seu final. A maior prova dessa alegoria é a semelhança entre as cenas inicial e final do filme - o túnel.
O enredo nos fala do drama existencial de Antonis Paraskevas, um âncora de TV que já viveu seus dias de glória mas que, ultimamente, anda em decadência tanto na mídia quanto em sua vida financeira e pessoal. Tentando recuperar o antigo reconhecimento, ele simula o seu desaparecimento e assiste, de longe, o grau de repercussão que isso terá. Sua inquietação e expectativa eram de que o suposto sequestro fosse gerar uma comoção de grandes proporções nos veículos de comunicação e, então, após o suposto pagamento de um vultoso resgate, seu retorno o consolidaria novamente como mártir.
A questão mais dolorida para ele é, justamente, descobrir que ninguém é eterno ou insubstituível, e que todo sucesso é efêmero. Antonis é narcisista, uma pessoa solitária e que parece ter problemas em viver desvinculado da 'persona' que criou. Em um trecho do filme, ele canta a música de Julio Iglesias 'Me Olvidé de Vivir', cuja letra resume perfeitamente sua vida e suas angústias.
Ao perceber que simplesmente retornando, em breve cairia no mesmo ostracismo, ele começa a acreditar que precisa planejar o momento ideal e a melhor forma para que isso ocorra. Ele começa então a fazer uma dramática realimentação de sua ausência, para que o assunto continue sendo notícia. Há uma cena que simboliza perfeitamente o processo em que Antonis se desvincula do personagem e parte em busca da concretização cada vez mais complicada de seu plano.
Um filme cheio de simbolismos e metáforas. Seu conteúdo é tão rico que a história de Antonis se assemelha à de seu próprio país: a Grécia. Uma mostra disso é a cena em que ele está sentado em uma poltrona, rodeado por estátuas gregas que remontam à antiguidade, período em que aquela região foi o berço e a base de todo o conhecimento e civilização e, no entanto, hoje atravessa sérias crises econômicas e, nem de longe, evoca aquele passado.
Vale muito a pena assistir e tentar compreender o que este filme nos propõe.
"El Sol del Membrillo" (O Sol do Marmelo) é um filme que registra o processo criativo de um artista plástico e de que forma a ação e a passagem do tempo irão influenciar seu trabalho. No caso, o artista é o pintor espanhol Antonio López, que decide reproduzir em tela, uma árvore frutificada de marmelos, plantada por ele no quintal de sua casa.
Parece algo tão simples e trivial, mas não é bem assim. Retratar a natureza viva pode tornar-se complicado, principalmente uma planta que está sujeita à ação do clima (sol, vento, chuva) e, mais ainda, ao tempo que a transforma constantemente, amadurecendo seus frutos e renovando sua folhagem. Por isso o pintor terá de ser breve, ou não conseguirá reproduzir seu modelo.
Poder acompanhar todo o processo criativo de Antonio López é fascinante; o filme é uma aula sobre arte e sobre os ciclos da vida. Suas telas são cuidadosamente diagramadas para que o desenho fique centralizado e corresponda, em escala, ao seu modelo original. Ele escolhe e calcula cuidadosamente o ângulo que será retratado, inclusive fixando a exata posição dos pés do observador em frente à tela e, assim, certificando-se que ocupará aquele mesmo lugar todos os dias.
Quem vê uma tela pronta, certamente irá se encantar com sua beleza, mas jamais imaginará todas as circunstâncias e desafios que resultaram naquela bela obra de arte. Antonio López chega ao ponto de trabalhar diariamente no mesmo horário, para tentar reproduzir com fidelidade o efeito da luz do sol sobre as cores do modelo.
Então, este é um filme diferente, com desenvolvimento narrativo lento e sem aventuras fascinantes ou surpresas, apenas o trabalho e a passagem do tempo na vida de um artista e de seu modelo.
A fotografia de "Sokout" (O Silêncio) - assinada por Ebrahim Ghafori - é linda, colorida, alegre e delicada. Os closes nos rostos das crianças revelam o olhar refinado de um artista. Há cenas que parecem quadros, de tão perfeitas.
Esteticamente o filme é belíssimo, mas o problema é que o diretor e roteirista Mohsen Makhmalbaf não deixa muito claro o que pretende com a história, já que manteve os personagens na total superfície, sem que criassem conexões entre si ou com o público e sem percursos narrativos definidos. O roteiro não sustenta um filme com a duração de 76 minutos, infelizmente.
O enredo nos apresenta o pequeno Khorshid (Tahmineh Normatova), um menino cego que trabalha numa pequena fábrica de instrumentos musicais. Ele os afina, pois com sua limitação visual, acabou desenvolvendo bastante a sua audição. Contudo, seu patrão vive descontente com seus constantes atrasos e distrações. Ele tem uma amiga, a linda e encantadora menina Nadareh (Nadereh Abdelahyeva), que tenta ajudá-lo constantemente.
Khorshid e sua mãe vivem o dilema de um despejo iminente, por não terem o dinheiro para pagar o aluguel. Entretanto, esse problema parece ter sido usado apenas como elemento dramático, face a impessoalidade dos personagens e ausência de outras circunstâncias que enriqueçam a trama. O desfecho também ficou meio sem pé ou cabeça, parecendo mais um artifício de última hora do que uma licença criativa do cineasta - afinal, associar a genialidade de Beethoven àquele 'bá-tim-bum' foi um delírio.
"Redeu-ai" (Olhos Vermelhos) teria potencial para ir além, mas acabou perdendo-se no excesso de informações e na confusão entre as duas linhas temporais do roteiro.
A trama é, sim, assustadora. Basta imaginar-se a bordo de um trem descontrolado e sem saída. Junte-se a essa situação o fato de que esse mesmo trem, no passado, sofreu um acidente que causou várias mortes e parte das vítimas eram crianças.
Os orientais têm uma forma bem aterrorizante de retratar o sobrenatural. Em geral, são apenas sombras, vultos ou olhos na escuridão que se voltam contra qualquer centelha de vida que encontram pelo caminho. Então, quando bem dirigidas as cenas, esses filmes se tornam imbatíveis no quesito frio na espinha.
Por isso, faltou uma pitada a mais de calafrio para que "Redeu-ai" cumprisse melhor sua tarefa.
"Ghostland" (A Casa do Medo: Incidente em Ghostland) é um filme de horror diferente. Seu ritmo no primeiro ato do longa é vagaroso, parecendo uma repetição de outros filmes do gênero, com a tradicional história de uma família que recebe como herança uma velha casa numa cidadezinha do interior.
Os fatos continuam ocorrendo meio aleatoriamente, até o terceiro ato, quando realmente as cenas começam a causar um misto de mal-estar e angústia. Semelhante ao que ocorre em muitas tramas de horror, as explicações ou motivações para que as situações aconteçam parecem não ter muita importância, apenas o pavor que elas causam. O problema é que violência gratuita o tempo todo, causa mais incômodo que medo.
Tudo indica que Pascal Laugier seja melhor diretor que roteirista, apesar do sucesso que teve com 'Mártires' (Martyrs). Em Ghostland, por exemplo, não há qualquer construção de personagens; o roteiro muitas vezes não convence, deixa furos no seu desenvolvimento ou simplesmente não faz sentido mesmo. Assim, todo o mérito do filme fica reservado para as cenas eletrizantes. Essas sim, bem tensas...
"The Farewell" (A Despedida) é um filme que fala sobre escolhas difíceis de serem feitas, ou até mesmo impossíveis, por não existir nenhuma boa alternativa disponível. O enredo nos mostrará o dilema de uma família chinesa em torno de sua matriarca Nai Nai (Shuzhen Zhou), que está com câncer em estado avançado. Resta-lhe pouco tempo de vida, mas ela desconhece que tem a doença. A família terá de decidir se conta a ela ou não.
Nessa hora, levam-se em consideração os valores culturais e princípios éticos. Nai Nai, apesar de idosa, mantém-se lúcida, disposta e com muita alegria de viver. O consenso familiar é de que devem continuar a omitir-lhe o fato, porém desejam reunir-se com ela uma última vez, já que parte da família imigrou há anos para os Estados Unidos.
A alternativa encontrada foi celebrar às pressas o casamento do neto Hao Hao (Han Chen), ocasião em que todos os familiares viajariam para passar alguns dias ao lado dela. Sua neta Billi (Awkwafina), que foi criada nos EUA, é a única voz destoante. Neste ponto, ficam explícitas as diferenças culturais entre os dois países. Billi acredita que Nai Nai tem o direito de saber que está morrendo, pois assim terá a oportunidade de despedir-se da família e dos amigos, sanar pendências e realizar algum desejo em particular.
Os pontos de vista de Billi, entretanto, são repelidos pelo pai e pelo tio, que defendem os costumes chineses. Para eles, a vida não pertence somente ao indivíduo, ela é parte de um todo que envolve sua família e a sociedade. Assim, os parentes têm o direito de decidir se contam ou não. Para eles, o medo é mais letal que o câncer. Desconhecer a proximidade da morte é o que nos permite viver com alegria.
A direção de Lulu Wang é extremamente competente e delicada, nunca deixando que o filme se torne um drama carregado. Ao contrário, somos tomados o tempo inteiro pelo encanto e vitalidade de Nai Nai e, só em raras cenas, acompanhamos a evolução de sua doença. A narrativa flui com sutileza, deixando-nos perceber a dor do luto antecipado apenas no semblante de Billi, no discurso que seu tio faz durante o casamento e no choro de Hao Hao.
O filme termina e fica a dúvida: Qual teria sido a melhor alternativa? Eu encontrei minha resposta nos créditos finais.
A vida real está cheia de histórias que dariam excelentes filmes. Essa parece ter sido a inspiração de Daniel Sánchez Arévalo, ao escrever o roteiro de "Azul Oscuro Casi Negro" (Azul Escuro Quase Negro), uma comédia dramática sobre o cotidiano de pessoas comuns. Num estilo que lembra o de Almodóvar, Arévalo também dirige o longa conduzindo com naturalidade várias tramas paralelas, alternando dramaticidade com um humor afinado.
Os personagens centrais são: Jorge (quim Gutiérrez), Antonio (Antonio de La Torre), Israel (Raúl Arévalo), Paula (Marta Etura) e Natalia (Eva Pallarés) e o destino de todos eles se entrelaçará em algum momento. Assim como acontece na vida de muitas pessoas, os protagonistas também irão se deparar com situações difíceis, como a descoberta e aceitação da homossexualidade, o sentimento de inferioridade causado pela diferença social, a falta de oportunidades de trabalho para quem tem origem humilde, o amor não correspondido, o peso de cuidar de um idoso e uma deturpada visão de masculinidade.
Com tantos temas relevantes espelhados na realidade humana, acredito que o roteiro, assim como buscou inspiração na vida, não precisava ter um final fechado. A maneira escolhida para o desfecho empobreceu um pouco o filme. Me pergunto por que os cineastas ainda acreditam que cinema é igual a série de TV, com um final que traz respostas ou soluções para tudo.
Héctor (Biel Montoro) tem 17 anos. Sua família resume-se ao irmão Ismael (Nacho Sánchez) e sua avó Cuca (Lola Cordón), uma velhinha acamada que há 5 anos sofreu um derrame e vive numa casa de repouso.
Basicamente, Hector é um adolescente problemático que já passou inúmeras vezes pelo centro de recuperação para menores, mas sempre retorna por cometer novos delitos ou por tentar fugir. É um rapaz que quase nunca sorri, tem dificuldades para relacionar-se com as pessoas e demonstra sentir amor somente por sua avó - para os demais, reserva um semblante sempre irritado.
"Diecisiete" (Dezessete) nos mostrará 3 dias da vida de Héctor, faltando pouco tempo para que complete 18 anos. Em meio a mais uma de suas fugas, ele vai até o abrigo retirar sua avó, por acreditar que ela está prestes a falecer. Seu plano é levá-la à aldeia onde o avô está enterrado, para que ela seja sepultada junto com ele.
O roteiro traz outras subtramas, com apelo emocional: A busca por um cachorrinho que Hector cuidou e treinou enquanto estava no centro de recuperação, um imprevisto com a sepultura do avô e os motivos que levaram os irmãos a ter uma relação conturbada e distante. A narrativa vai evoluindo num ritmo lento, mas não cansativo. Junto com as bonitas paisagens da viagem são revelados detalhes importantes da vida dos irmãos; percebe-se o arco de amadurecimento de Hector e Ismael.
Pode ser um enredo batido, meio clichê, mas aquece o coração.
A Disney faz o que sabe fazer bem: entreter. Então, seus filmes vêm com essa chancela: são bons entretenimentos. Feitos para alcançar todos os tipos de público, são obras caras e caprichadas na plasticidade. Porém, não vão além disso.
"Cruella" é um bom exemplo. Um filme com o selo de qualidade Disney, sem dúvida. Mas sem grandes mensagens, sem cenas polêmicas e sem suscitar reflexões ou debates. Apenas 2 horas de distração. Conta com um elenco maravilhoso. Nomes que seriam capazes de salvar até filmes muito ruins. Emma Stone, quando lhe é exigida verve dramática, sabe dar conta do recado. Emma Thompson está totalmente divina como a Baronesa elegante e malvada; e Mark Strong, é encantador sempre que aparece em cena.
No mais, "Cruella" flerta todo tempo com 'O Diabo Veste Prada'. Aliás, a escolha do figurino está espetacular, assinado por Jenny Beavan, designer já premiada duas vezes com o Oscar. Outro ponto alto do filme é a sua trilha sonora. Aqui, a Disney não economizou nem um centavo com direitos autorais: temos Nina Simone, David Bowie, Tina Turner, The Doors, The Clash, Rolling Stones, Queen, Black Sabbath, Florence + The Machine e uma infinidade de outras estrelas da música.
Mas nem tudo brilha em "Cruella". O roteiro é enfadonho demais, previsível e reciclado, tem as mesmas piadas tolas de outras produções da casa e um CGI de qualidade questionável. Um filme mais longo do que deveria, também.
"Dylda"(Uma Mulher Alta) é um ótimo exemplar do cinema russo contemporâneo. Um dos primeiros filmes do jovem diretor Kantemir Balagov (de apenas 28 anos), baseado no livro de Svetlana Aleksiévitc - 'A Guerra Não Tem Rosto de Mulher'. O drama contará traumas e sofrimentos que duas mulheres vivenciaram durante a Segunda Guerra; marcas que irão carregar durante a vida inteira, cada uma a seu modo.
É um filme com muita carga emotiva, cuja trama central é a amizade entre as ex-combatentes: Lya (Viktoria Miroshnichenko, que tem 1,82m - é a mulher alta a que o título se refere) e Masha (Vasilisa Perelygina). Após a guerra, as duas vão trabalhar num hospital militar para onde são levados os soldados feridos e mutilados. Lá serão desenvolvidas tramas secundárias que irão emoldurar e fundamentar, mais adiante, a narrativa principal.
A estória nos mostra que, mesmo terminada a guerra, as sequelas continuarão transformando dolorosamente a vida daquelas mulheres. Marsha traz no rosto um constante sorriso, mas pouco tem de alegria. Lya é introspectiva, silenciosa. Dela quase nada nos é revelado. Sabemos apenas que, não bastassem as dores e marcas que as duas carregam, ainda pairam sobre elas o luto, a culpa e a solidão. Masha exige de Lya uma terrível reparação pelo que aconteceu a seu filho Pashka. Lya, completamente destroçada, parece não ser capaz de enfrentar mais uma violência.
Filme delicado, sensível, belo. São excelentes a direção, o roteiro e a atuação das protagonistas. Única ressalva é que poderia ser um pouco mais curto, com uma narrativa mais fluida, porém isso não o desmerece em nada. A fotografia é de Kseniya Sereda, que com apenas 25 anos fez um trabalho lindo. As imagens parecem quadros, com predominância de sombras e das cores verde e vermelha, em tons mais fechados, sóbrios. Arte... com certeza.
"J'ai Perdu Mon Corps" (Perdi Meu Corpo) é uma animação francesa com roteiro de Guillaume Lauran, o mesmo de 'O Fabuloso Destino de Amélie Poulain'. Temos aqui um enredo irreverente que conta a estória de dois personagens, sendo que um deles é bastante incomum: uma mão decepada! O outro personagem é o jovem Naoufel, dono da mão.
A animação é muito bonita, mesclando técnicas de 2D e 3D e apresentando um resultado que funciona maravilhosamente. Os ilustradores preocuparam-se com detalhes como a simulação de ângulos e enquadramentos de câmera, que dão a impressão de que os personagens realmente estão sendo filmados. A direção é de Jérémy Clapin, grafista e ilustrador.
O filme parte de duas narrativas paralelas: a vida de Naoufel (seu presente e flashbacks de sua infância) e o surrealismo de uma mão decepada em busca de seu corpo. Logo de início descobrimos que a mão pertencia a Naoufel, porém, só no último ato do filme será revelado como ocorreu a separação e qual a mensagem que o filme deseja transmitir com ela.
A trama aborda questões muito relevantes: como lidamos com nossas perdas, como enfrentamos a dor e o luto de uma separação indesejada, como superamos a sensação de incompletude e, por fim, como nos libertarmos da ideia de que estamos fadados a cumprir um destino pré-determinado. O personagem Naoufel nos deixa um valioso ensinamento: para que a vida ganhe novos rumos é necessário buscar o imponderável. Atrever-se em direção ao novo pode não trazer os resultados esperados, mas certamente ampliará as possibilidades.
É um enredo rico e interessante, apenas poderia ter sido contado num filme mais curto. Contudo, adianto que vale muito a pena ir até o fim.
"Blade Runner 2049" é a sequência do filme lançado em 1982 ('Blade Runner'). Mais longo que o filme original, esta produção traz qualidades técnicas semelhantes e inovadoras (fotografia, efeitos visuais, design de produção). A competente direção é de Denis Villeneuve que, assim como Ridley Scott, também recebeu críticas, especialmente pela forma arrastada como a narrativa se desenvolve. Certamente, tal como ocorreu com seu antecessor, o tempo se encarregará de conferir à obra o seu merecido valor.
O cenário é a Los Angeles de 2049, que continua repleta de letreiros e hologramas, alagada pela chuva constante e superpopulosa. Passaram-se 30 anos e agora os replicantes estão aprimorados e convivem com os humanos, mas ainda desempenhando os trabalhos pesados. Logo nas primeiras cenas conhecemos um dos novos replicantes: K (Ryan Gosling) que trabalha para a polícia de L. A., caçando os exemplares sobreviventes daqueles antigos androides rebeldes e hostis.
Ao eliminar um desses antigos replicantes, K se depara com uma descoberta que será o início de sua jornada existencial. Um segredo guardado por 30 anos, que poderá desestabilizar completamente a convivência entre os humanos e os androides. Assim como no longa de 1982, K também viverá uma história de amor com Joi (Ana de Armas), uma criação virtual capaz de sentir emoções como um ser humano. Numa das cenas mais impressionantes feitas com CG, o holograma de Joi sincroniza-se ao corpo da prostituta Mariette (Mackenzie Davis) e faz sexo com K. Outra cena que envolveu técnicas inovadoras de substituição digital e captura de movimentos, foi o aparecimento de Rachael, com a mesma aparência que tinha no filme de 1982.
Tal como o filme anterior, esta sequência traz uma espinha dorsal que nos induz a pensar sobre os caminhos que a humanidade terá, de que forma utilizará a tecnologia, qual o verdadeiro conceito de ser humano, a importância de nossas memórias, de nossos relacionamentos e qual o legado que deixaremos às futuras gerações. O tempo nos dirá.
Interessante relembrar que o filme "Blade Runner" (Blade Runner: O Caçador de Androides) quando lançado, em 1982, não foi bem recebido pelo público; no entanto, hoje é uma referência para inúmeros outros filmes, tendo se tornado uma obra cultuada não só pelos cinéfilos. O diretor Ridley Scott, que traz no currículo uma extensa e aclamada filmografia, é constantemente lembrado pelos seus primeiros grandes sucessos: "Alien" e "Blade Runner".
O filme tem como trama central a perseguição policial a um grupo de androides (replicantes) que se rebelou contra sua condição de escravidão numa das colônias fora da Terra. O motim faz com que os replicantes sejam considerados ameaças aos humanos, devendo ser eliminados. Essa é a missão dos caçadores de androides, um esquadrão policial do qual faz parte o agente Deckard (Harrison Ford). Seis dos replicantes conseguem voltar à Terra, mas dois deles morrem; Deckard é então convocado para executar os quatro restantes: Zhora (Joanna Cassidy), Leon (Brion James), Pris (Daryl Hannah) e o líder Roy (Rutger Hauer).
A caçada aos replicantes tem como cenário uma caótica Los Angeles ambientada no ano de 2019, com um visual cyberpunk futurista, cheio de referências à cultura japonesa. A atmosfera é soturna, com prédios antigos e deteriorados contrastando com os imensos letreiros em neon e imagens holográficas espalhadas pela cidade. As ruas são completamente tomadas pelas pessoas, que se comprimem para escapar da chuva e da névoa constantes, enquanto os veículos cruzam o céu.
Como subtrama, o filme traz o romance entre Deckard e a androide Rachael (Sean Young) adentrando na parte mais filosófica e simbólica do enredo. A capacidade de Rachael para amar e sofrer torna-se desconfortante e inexplicável, pois contraria a definição usual do que distingue uma máquina de um ser humano. Aliás, muitos outros conceitos serão abordados pelo filme, como a importância do passado e das memórias para a nossa referência existencial, e o torturante dilema entre vida e morte. Os replicantes, apesar de não envelhecerem na aparência, também estão sujeitos a uma curta existência. Inconformados, eles procuram seu criador, Eldon Tyrell (Joe Turkel), em busca de meios para prolongar sua vida, mas a morte para eles também é inexorável.
Filme esplêndido, não só pelas qualidades constantemente destacadas, como fotografia, enredo e trilha sonora (composta por Vangelis), mas principalmente pelo que ele nos instiga.
Com um elenco estupendo e uma super produção cinematográfica, Yorgos Lanthimos alçou definitivamente o voo que o levará ao seleto rol dos grandes diretores. Com "The Favourite" (A Favorita) nota-se um outro perfil do diretor, mais agradável e acessível ao público, acrescentando um pouco de sátira à sua já conhecida crítica aos predicados humanos menos elevados, como a ganância, luxúria, inveja e traição.
O filme conta com Olívia Colman, ganhadora do Oscar de Melhor Atriz (2019) por este papel de rainha Ana da Grã-Bretanha; e com as também perfeitas Rachel Weisz (Lady Sarah de Marlborough) e Emma Stone (Abigail Hill). O filme tem uma produção tão primorosa, que concorreu ao Oscar em 10 categorias. A fotografia, assinada por Robbie Ryan, impressiona por sua distorção de imagens e giros de câmera, mostrando os detalhes e ângulos dos grandiosos e ricos cenários. O figurino ficou sob a responsabilidade de Sandy Powell, que contabiliza 14 indicações ao Oscar, tendo sido agraciada com 3 delas.
O roteiro, escrito por Deborah Davis e Tony McNamara, se inspira em um período da história do reinado de Ana da Grã-Bretanha (por volta de 1702 a 1713), enquanto ocorria a guerra da sucessão espanhola. O longa mostra os bastidores desse reinado e descrevem Ana como uma monarca frágil, manipulável e que mantinha um relacionamento amoroso secreto com Lady Sarah. Segundo historiadores, porém, Ana foi uma governante séria que soube lidar muito bem com o desafio de comandar a Inglaterra.
Com a chegada de Abigail Hill ao palácio, a moça começa a articular sua aproximação com a rainha Ana, surgindo então um secreto triângulo amoroso, baseado na disputa pelo poder. Abigail e Sarah tornam-se inimigas obstinadas e não medem esforços para ser a 'favorita' da rainha.
A trama é embalada por clássicos de Bach, Handel, Vivaldi e Schumann, mas é com "Skyline Pigeon" que Yorgos Lanthimos escolhe finalizar o longa, como se com aquela canção nos anunciasse sua liberdade e busca pelos novos horizontes.
"Alps" (Alpes) é um filme de Yorgos Lanthimos que não tem a mesma força de outras obras que ele dirigiu e escreveu, mas também apresenta um enredo bastante excêntrico, o que já é característica do cineasta.
O longa conta a estória de 4 pessoas que fazem parte de um estranho grupo de apoio chamado de 'Alpes': uma enfermeira (Aggeliki Papoulia), um socorrista de ambulância (Aris Servetalis), uma ginasta (Ariane Labed) e seu treinador (Johnny Vekris).
Eles oferecem um tipo diferente de serviço às famílias que perderam seus entes queridos: propõem-se a fazer o papel da pessoa falecida para amenizar a dor do luto. Assim, passam a encenar situações baseadas nos gostos, características e atitudes daqueles que morreram. Sim, é tudo muito surreal, mas no contexto do filme é um trabalho aceito e contratado pelas famílias. Yorgos mostra uma ousadia meio sem propósito, ao tornar grotesca a experiência da perda.
Neste filme, novamente serão exibidas cenas desconfortáveis. Os personagens masculinos de Yorgos costumam ser misóginos e agressivos, impondo-se sobre o feminino pela força bruta, punindo, espancando e humilhando. As mulheres, em geral, aceitam ou se submetem a tais insultos, violências e desrespeito. Fica difícil compreender a insistência dele nesses arquétipos.
A enfermeira, por exemplo, quebrando uma das regras impostas pelo grupo, acaba sendo agredida e expulsa. Ela então entra em desespero. Este talvez seja o momento mais dramático e relevante da trama, quando a personagem cai num vazio existencial. De tanto viver vidas alheias, esqueceu-se da sua. Fica uma sensação estranha de que tudo poderia ser substituído de um momento para o outro...
Apesar de não ser um filme memorável, cumpre bem seu papel de criticar a humanidade e ridicularizar suas convenções.
Impressionante! Esta é a palavra que me ocorre para descrever a experiência de assistir "Kynodontas" (Dente Canino). Parece que a genialidade, a ousadia e a loucura de Yorgos Lanthimos estão separadas por fios inacreditavelmente delgados, tornando quase impossível identificarmos os limites entre elas.
O roteiro deste filme foi considerado pela crítica como uma representação do mito da caverna, porém o cineasta passou longe do óbvio e imprimiu sua visão particular, libertando-se de convenções, regras, costumes ou padrões socialmente aceitos, para colocar em cena situações que surpreendem, chocam ou causam repulsa. E ele não se preocupou com o que podiam pensar sobre isso, porque ao final sabia que estava entregando uma obra respeitavelmente única, séria e profunda. Tanto é verdade, que o filme acabou sendo indicado ao Oscar em 2011, na categoria Melhor Filme Estrangeiro.
O filme é um verdadeiro estudo sobre o comportamento humano. O enredo parte de uma questão simples e direta: o que aconteceria a um ser humano se fosse criado, desde pequeno, dentro de um mundo fechado e sem nenhum contato com o exterior, sendo-lhe inclusive ensinada uma linguagem própria, onde as palavras recebessem significados diferentes? Estas respostas estarão, sim, em "Kynodontas".
Já aviso que o filme apresentará algumas cenas violentas e até mesmo incestuosas, porém nenhuma estará ali gratuitamente. Pode ser também que outras perguntas fiquem sem resposta, como por exemplo, quais foram os motivos para que o pai (Christos Stergioglou) decidisse proceder daquela maneira com sua família? Contudo, responder a isto pareceu não ser relevante. O filme também tem um desfecho aberto, deixando-nos sem uma última resposta... mas, diante do desenvolvimento da trama, não poderia ser diferente.
Tudo que Yorgos Lanthimos parece desejar com este filme, é que seu público pense a respeito da responsabilidade que um adulto tem ao educar ou ensinar um novo ser humano. O poder das imposições e crenças familiares é capaz de manipular, moldar a forma como uma criança entenderá e reagirá ao mundo. E isso provavelmente determinará suas ações e percepções durante toda a vida.
Realmente o diretor e roteirista Yorgos Lanthimos tem um talento peculiar, com obras super originais e diferentes de tudo o que se vê ultimamente nos cinemas. Este filme, "The Lobster" (O Lagosta) é um exemplo perfeito: um misto de ficção e suspense ambientado em um futuro estranho e distópico.
O roteiro é extremamente interessante, fazendo uma crítica à necessidade que as pessoas têm de encontrar um par ideal, bem como à movimentação e energia gastas nessa constante busca. No filme, os personagens vivem numa sociedade que os proíbe terminantemente de serem solteiros. David (Colin Farrell), que perdeu sua esposa para outro homem, vai para um curioso hotel onde há outros solteiros, como ele.
O Objetivo dessa bizarra hospedagem é encontrar, dentro de 45 dias, seu parceiro ideal. Esse prazo pode ser estendido com uma condição: participar de caçadas periódicas, onde a caça são outros seres humanos solteiros, que vivem escondidos na mata. Caso falhem as tentativas, aquele que permanecer solteiro será transformado, por meio de uma estranha cirurgia, em um animal à sua escolha e será solto na floresta.
Este enredo nos induz a muitas reflexões. A sociedade realmente instituiu o casamento e a formação de um núcleo familiar como metas para tornar-se alguém mais responsável e feliz. A padronização dos relacionamentos é real e notória, basta vermos o arsenal de livros que tratam do assunto e os periódicos que oferecem fórmulas milagrosas para tornar os relacionamentos duradouros, ainda que em alguns seja questionável a existência do amor.
Este é um daqueles filmes muito bacanas, que ficam na mente mesmo depois que terminam.
Um sentimento que me acompanhou em todos os filmes que vi de Yorgos Lanthimos, é o desconforto. E, no caso de "The Killing of a Sacred Deer" (O Sacrifício do Cervo Sagrado), esse mal estar começou quando notei a ausência de expressões vocais e faciais nos personagens.
Claro que, desde cedo, todos aprendemos a usar a comunicação não verbal para interagir com as pessoas. Existem padrões comportamentais típicos dos humanos, como gestos, posturas e expressões faciais. Todos esses 'sinais' servem para informar aos outros como nos sentimos. Pois bem... neste filme de Yorgos Lanthimos - e em alguns outros dele - não encontramos nada disso.
Tudo aqui será fora do comum, a começar pelo sexo. O casal de médicos Steven (Colin Farrell) e Anna (Nicole Kidman) nos mostram uma variante curiosa da relação sexual: a anestesia geral. A linguagem narrativa deste filme realmente cria uma atmosfera estranha para o público, o que ajuda a aumentar a tensão e a angústia da trama. Aqui os personagens não sorriem, não expressam raiva, dor ou medo. Suas vozes são sempre monocórdias, independentemente da situação.
Como se não bastasse a quebra com todos os padrões de expressão, em muitos momentos, os diálogos também são bastante constrangedores. Os humanos civilizados costumam adotar condutas sociais que restringem os assuntos íntimos de serem abordados publicamente e, somente entre pessoas e em situações específicas, eles são comentados sem gerar embaraços. Pois estas amenidades sociais também foram dispensadas neste filme e, alguns diálogos conseguem gerar acanhamento só de imaginá-los.
Como cereja do bolo - um bolo meio amargo - temos a trilha sonora do filme, se é que poderíamos classificá-la assim... São notas agudas, estridentes, incômodas e desprovidas de melodia. Acentuam a tensão e o nervosismo apenas para o espectador, pois os personagens permanecem impassíveis. Um filme diferente, cheio de singularidades.
Tão curioso que nos incentiva a procurar por outras obras do diretor.
Um título doce como "Baby Driver" (Em Ritmo de Fuga) pode estar escondendo um punhado de dinamite. Com um roteiro um pouco fraco, parecendo um romance adolescente, o que o filme tem de melhor são as cenas de ação. Essas sim, são adrenalina pura. A direção e o roteiro são de Edgar Wright, que traz para o longa a sua já conhecida habilidade para as sequências eletrizantes de perseguição e fuga. As câmeras giram e fazem percursos vertiginosos, levando-nos até a acreditar que as manobras de Baby são realmente possíveis.
Outra qualidade do filme é sua trilha sonora, recheada de músicas da melhor qualidade, como as clássicas 'Easy', 'Brighton Rock', 'Tequila' e muitas outras. Também fica difícil dizer qual foi a melhor atuação, já que Jamie Foxx (Bats) e Jon Hamm (Buddy) parecem ter nascido para o crime. O protagonista Ansel Ergot (Baby) cumpriu bem sua parte, apesar de não ter carga dramática para as cenas mais intensas, ele tem carisma e acaba brilhando nas cenas de ação.
As personagens femininas, infelizmente, estão bastante estereotipadas. Elza Gonzalez (Darling) como a menina má, Lily James (Debora) como a menina boa. Nem precisamos pensar muito para saber como será o destino de cada uma. Sky Ferreira, como a mãe de Baby, era casada com um marido violento e cedo encontrou a morte, virando uma dolorosa lembrança na vida do filho.
O roteiro também abriu mão de contar mais fatos sobre a vida de Baby, talvez por considerar irrelevantes; por exemplo, num único diálogo é explicado como Baby entrou para o crime - um motivo meio bizarro, como se coerência não importasse muito. Fato é que o arco do personagem se resumiu ao já batido romance fofo e a esperada redenção - sem mencionar o mesmo desfecho de sempre.
Então, se não exigirmos muito do roteiro e nos concentrarmos na ação, o filme é um ótimo entretenimento!
"Nobody" (Anônimo) foi uma grata surpresa. Não havia lido nada sobre e o cartaz de divulgação também não me chamava a atenção. Entretanto, trata-se de um ótimo filme, com roteiro bastante simples mas eficiente, com cenas de ação bem feitas, elenco perfeito, trilha sonora magnífica! E o filme é enxuto, não fica esticando diálogos ou explicando demais - é papo reto o tempo inteiro.
O filme tem várias situações inesperadas e conta com um humor ácido e inteligente. A começar pelo velho e batido clichê dos inimigos serem sempre os russos. Porém, o toque de ironia está justamente em brincar com a célebre obsessão dos americanos, já que o diretor Ilya Naishuller é russo. Também fica difícil não achar engraçado o contraste na escolha das músicas que embalam as passagens mais sanguinárias. O filme é todo um deleite.
Logo no início, as cenas já aguçam a curiosidade, mas a narrativa volta um pouco ao passado para nos contar quem é Hutch Mansell - o protagonista. Ele é o oposto do herói: é um acanhado e incógnito pai de família que, dia após dia, ocupa-se de tarefas triviais, como: preparar o café da manhã dos filhos, cumprir sua jornada de trabalho e, à noite, colocar o lixo para fora. Mas ele tem um segredo.
Sua vida acomodada o torna uma pessoa praticamente invisível e, aqui, temos o mote para todos os acontecimentos que virão. Uma noite, dois ladrões invadem a casa de Hutch. Ele tem a oportunidade de revidar e defender sua família, mas não o faz. Esse comportamento passivo é interpretado como covardia e fraqueza, tendo um desdobramento doloroso para ele, que perde o respeito de todos e ainda passa a ser desprezado por seu filho mais velho.
O ator Bob Odenkirk é um show a parte. Ele consegue trilhar o difícil arco de seu personagem com enorme naturalidade e credibilidade. Vai transformando-se em uma pessoa completamente diferente, porém, mantendo a sua essência. Maravilhoso! E ainda tem carisma de sobra.
Apesar de tudo, é bom destacar que o filme é, sim, bastante violento. Muito tiroteio, pancadaria, facadas, sangue e dentes quebrados. A chacina acontece com gosto de vingança, ou seja, é impiedosa e com requintes de sadismo. Ah... e tem cenas pós-créditos, viu? O que me deixou com a esperança de que a saga de Hutch Mansell seja longeva. Tomara.
Em Chamas
3.9 379 Assista Agora"Burning" (Em Chamas) é mais um filme escrito e dirigido por Lee Chang-dong. Foi muito bem recebido pela crítica. Com um roteiro diferente, repleto de metáforas e mistérios, ele brinca com a percepção e a compreensão do público, indicando que vai contar uma história, para depois revelar que não era bem o que parecia. As chaves da trama serão encontradas nas entrelinhas, já que o longa não entrega uma história fechada.
O protagonista, Jon-su (Yoo Ah-in), é um rapaz introvertido, que pouco fala e interage menos ainda com outras pessoas. Dele se sabe pouco, apenas que serviu o exército, formou-se em escrita criativa e está escrevendo um romance. Ele tem uma irmã casada, seu pai está respondendo a um processo por agressão física e sua mãe saiu de casa quando ele ainda era pequeno. Esse parece ser o mundo real de Jon-su.
A parte da trama que parece não ser factual, é a que apresenta dois outros personagens: Hae-mi (Jeon Jong-seo), uma colega de infância de Jon-su, e Ben (Steven Yeun), um jovem e rico conhecido de Hae-mi, que diz ganhar a vida jogando. Tudo em torno desses dois personagens parecerá surreal e estranho.
Logo na primeira cena entre Hae-mi e Jon-su, ela entrega a ele um cartão numerado, para que ele participe de um sorteio na loja onde ela trabalha. Em seguida, ao colocar a mão na urna, ela olha diretamente para ele e retira o número exato. Depois, no apartamento de Hae-mi, ela conta para Jon-su que adotou um gato de rua, chamado 'Fervura', mas informa que o animal nunca aparece para estranhos.
O personagem Ben, por sua vez, conta que fica fascinado com as lágrimas das pessoas, pois afirma nunca ter chorado na vida. Mais adiante, ele revela para Jon-su uma esquisita mania: a cada dois meses, sai em busca de estufas abandonadas para incendiá-las. E avisa que já escolheu a próxima estufa, bem perto da casa onde Jon-su mora. A partir daí, Jon-su mapeia todas as possíveis estufas abandonadas, para tentar identificar qual será a escolhida por Ben e, enquanto isso, algo inexplicável acontece à Hae-mi.
Ou seja, pode ser que esses personagens existam apenas na mente de Jon-su ou no romance que ele escreve. Outra cena que parece não fazer sentido, é quando Jon-su reencontra a mãe: não há diálogo pessoal entre eles e ela se mantém distraída com o celular. Para corroborar com a possibilidade de tudo ser uma fantasia, o apartamento de Hae-mi no final do filme é diferente das cenas iniciais, faltando objetos, fotos e algumas decorações. Quem mora realmente ali?
Então, este parece ser um filme que nos fala sobre solidão, isolamento e dificuldade de socialização, pois Jon-su pode ter algum espectro autista. Na cena em que ele conversa com o advogado de seu pai, por exemplo, ele evita o olhar direto, mantém uma postura corporal de afastamento e demonstra incomodar-se quando o advogado o toca.
Um filme que, no mínimo, intriga e deixa muitas perguntas.
Sol Secreto
4.0 30Pelo jeito Lee Chang-dong não quis poupar o coração de ninguém com este roteiro. "Milyang" (Sol Secreto) é um drama bruto, visceral. A interpretação de Jeon Do-Yeon está assombrosa - ela recebeu o prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes (2007) por seu papel (Shin-ae) neste filme.
O filme é longo, tem quase 2 horas e meia de exibição, mas a jornada de Shin-ae é tão sombria e tortuosa que mostrá-la apressadamente talvez tornasse confusos todos os efeitos que cada acontecimento desencadeia na vida e no estado emocional da personagem. E não são poucos.
Shin-ae vivencia seu primeiro luto por seu marido, morto em um acidente aéreo. Muda-se para a província de Miryang com seu filho pequeno (Jun), por ser o local onde seu marido nasceu. Na primeira metade do longa, Shin-ae ambienta-se na nova moradia. Conhece os moradores, aproxima-se do Sr. Kim (Song Kang-ho), abre uma escola de piano, matricula Jun na escola local e planeja comprar um terreno na cidade, para construir sua casa.
É a partir da segunda metade do filme que a crueldade e a tragédia irão recair sobre Shin-ae. Tal como na vida real, as desgraças não têm uma lógica, simplesmente acontecem. Há choques tão terríveis que não há reação imediata para eles. Shin-ae, ao sofrer um golpe hediondo, não consegue chorar ou externar sua dor, mas algum tempo depois, numa interpretação magnífica e contundente da atriz, a dor materializa-se em seu peito, sufoca sua garganta. Ela luta para arrancar aquilo de dentro de si, que lhe tira o ar e o chão.
Em meio ao sofrimento que a dilacera, Shin-ae é incentivada por uma vizinha a buscar apoio na fé - em um Deus que até então lhe era totalmente desconhecido. Mas o que ela talvez esperasse não era somente o alívio da dor, mas que a justiça divina fosse feita. Assim, ao descobrir que o amor e o perdão de Deus poderiam alcançar a todos, a decepção e a revolta não tardam a atingi-la, e uma série de tormentos voltam a abatê-la.
Filme contundente como poucos... capaz de mostrar o sofrimento sem nenhum pudor.
Poesia
4.1 189"Poetry" (Poesia) é um drama elegante e delicado como sua protagonista, uma senhora sexagenária (Yun Jeong‑hie) que trabalha como cuidadora de um idoso enfermo. Ela cria sozinha um neto adolescente, que a trata com descaso e se transforma numa grande fonte de problemas.
Dirigido por Lee Chang-dong, este filme fala sobre luto, esquecimento e solidão. O luto, por tudo o que se perde ao longo do caminho, seja a vida ou mesmo as lembranças, a pureza, a sensibilidade para enxergar beleza nas coisas. O esquecimento, que resulta da morte, da invisibilidade existencial, do descaso, da perda da memória causada pela doença. A solidão, que vem da falta de conexão com as pessoas ao redor, com a percepção da injustiça, do desrespeito e da aspereza.
A interpretação de Yun Jeong‑hie adquire um tamanho e uma beleza que fazem jus ao título do filme. A atitude da protagonista costuma ser interpretada como passividade, mas se observarmos bem a cultura oriental, conseguimos compreender melhor o seu sofrimento contido e a forma como lida com ele. Ela não luta, não se insurge contra a dor que lhe atinge, apenas a aceita e tenta sobreviver da melhor forma. Quando o desespero finalmente a domina, ela se retrai num pranto escondido, quieto.
Tudo no filme emana poesia. E é nesse ponto que cai por terra a afirmação de que o poeta deve beber ou estar apaixonado para escrever um poema. Ao contrário, a poesia brota da dor. O poeta precisa conectar-se a ela e procurar vivê-la com sensibilidade. Deve conectar-se também às dores alheias, deixando que passem por uma porta entreaberta para o seu mundo interior. O álcool turva a percepção, anestesia os sentidos - e isso fica bem demonstrado no filme.
É numa aula de poesia que a protagonista redescobre o mundo, que passa a experimentá-lo de uma outra maneira, a tentar compreendê-lo melhor. Suas descobertas são lindas. Ela passa a ver não só os objetos, mas a sua essência; não só as formas, mas o seu significado. E assim, ela também começa a penetrar no luto de uma jovem menina que pôs fim à vida, logo no início do filme.
E é para essa menina que ela escreve o seu primeiro poema.
Esconde-Esconde
3.4 40"Hide and Seek" (Esconde-Esconde) tem um roteiro interessante, porém repleto de furos. Comprova um vez mais que os orientais são mestres em fazer filmes de suspense ou terror, mas talvez Jung Huh, no ímpeto de elevar a tensão ou manter o público sob o efeito da apreensão, tenha esquecido de que é, sim, importante dar sentido à trama ou concluí-la de forma minimamente plausível, do contrário a imersão fica prejudicada.
Um bom filme de suspense/terror não é apenas o que causa medo durante a exibição, mas aquele que, ao final da sessão nos deixa com receio até de caminhar de volta para casa. A premissa de "Hide and Seek" prometia algo assim, porém perdeu-se a partir da segunda metade da trama, quando o desfecho começou a ser construído.
De qualquer forma, é um filme tecnicamente apurado, com ótimo design de produção, bela fotografia e elegância de figurino.
O eterno retorno de Antonis Paraskevas
3.4 4"The Eternal Return of Antonis Paraskevas" (O Eterno Retorno de Antonis Paraskevas), com roteiro e direção de Elina Psikou, tem um título que imediatamente nos faz pensar na teoria filosófica da eterna recorrência encontrada na literatura antiga e, posteriormente, reiterada por Nietzsche. E é sobre essa ideia que se constrói a trama do filme: um evento cíclico, que nunca alcança o seu final. A maior prova dessa alegoria é a semelhança entre as cenas inicial e final do filme - o túnel.
O enredo nos fala do drama existencial de Antonis Paraskevas, um âncora de TV que já viveu seus dias de glória mas que, ultimamente, anda em decadência tanto na mídia quanto em sua vida financeira e pessoal. Tentando recuperar o antigo reconhecimento, ele simula o seu desaparecimento e assiste, de longe, o grau de repercussão que isso terá. Sua inquietação e expectativa eram de que o suposto sequestro fosse gerar uma comoção de grandes proporções nos veículos de comunicação e, então, após o suposto pagamento de um vultoso resgate, seu retorno o consolidaria novamente como mártir.
A questão mais dolorida para ele é, justamente, descobrir que ninguém é eterno ou insubstituível, e que todo sucesso é efêmero. Antonis é narcisista, uma pessoa solitária e que parece ter problemas em viver desvinculado da 'persona' que criou. Em um trecho do filme, ele canta a música de Julio Iglesias 'Me Olvidé de Vivir', cuja letra resume perfeitamente sua vida e suas angústias.
Ao perceber que simplesmente retornando, em breve cairia no mesmo ostracismo, ele começa a acreditar que precisa planejar o momento ideal e a melhor forma para que isso ocorra. Ele começa então a fazer uma dramática realimentação de sua ausência, para que o assunto continue sendo notícia. Há uma cena que simboliza perfeitamente o processo em que Antonis se desvincula do personagem e parte em busca da concretização cada vez mais complicada de seu plano.
Um filme cheio de simbolismos e metáforas. Seu conteúdo é tão rico que a história de Antonis se assemelha à de seu próprio país: a Grécia. Uma mostra disso é a cena em que ele está sentado em uma poltrona, rodeado por estátuas gregas que remontam à antiguidade, período em que aquela região foi o berço e a base de todo o conhecimento e civilização e, no entanto, hoje atravessa sérias crises econômicas e, nem de longe, evoca aquele passado.
Vale muito a pena assistir e tentar compreender o que este filme nos propõe.
O Sol do Marmelo
3.9 12"El Sol del Membrillo" (O Sol do Marmelo) é um filme que registra o processo criativo de um artista plástico e de que forma a ação e a passagem do tempo irão influenciar seu trabalho. No caso, o artista é o pintor espanhol Antonio López, que decide reproduzir em tela, uma árvore frutificada de marmelos, plantada por ele no quintal de sua casa.
Parece algo tão simples e trivial, mas não é bem assim. Retratar a natureza viva pode tornar-se complicado, principalmente uma planta que está sujeita à ação do clima (sol, vento, chuva) e, mais ainda, ao tempo que a transforma constantemente, amadurecendo seus frutos e renovando sua folhagem. Por isso o pintor terá de ser breve, ou não conseguirá reproduzir seu modelo.
Poder acompanhar todo o processo criativo de Antonio López é fascinante; o filme é uma aula sobre arte e sobre os ciclos da vida. Suas telas são cuidadosamente diagramadas para que o desenho fique centralizado e corresponda, em escala, ao seu modelo original. Ele escolhe e calcula cuidadosamente o ângulo que será retratado, inclusive fixando a exata posição dos pés do observador em frente à tela e, assim, certificando-se que ocupará aquele mesmo lugar todos os dias.
Quem vê uma tela pronta, certamente irá se encantar com sua beleza, mas jamais imaginará todas as circunstâncias e desafios que resultaram naquela bela obra de arte. Antonio López chega ao ponto de trabalhar diariamente no mesmo horário, para tentar reproduzir com fidelidade o efeito da luz do sol sobre as cores do modelo.
Então, este é um filme diferente, com desenvolvimento narrativo lento e sem aventuras fascinantes ou surpresas, apenas o trabalho e a passagem do tempo na vida de um artista e de seu modelo.
O Silêncio
4.0 42A fotografia de "Sokout" (O Silêncio) - assinada por Ebrahim Ghafori - é linda, colorida, alegre e delicada. Os closes nos rostos das crianças revelam o olhar refinado de um artista. Há cenas que parecem quadros, de tão perfeitas.
Esteticamente o filme é belíssimo, mas o problema é que o diretor e roteirista Mohsen Makhmalbaf não deixa muito claro o que pretende com a história, já que manteve os personagens na total superfície, sem que criassem conexões entre si ou com o público e sem percursos narrativos definidos. O roteiro não sustenta um filme com a duração de 76 minutos, infelizmente.
O enredo nos apresenta o pequeno Khorshid (Tahmineh Normatova), um menino cego que trabalha numa pequena fábrica de instrumentos musicais. Ele os afina, pois com sua limitação visual, acabou desenvolvendo bastante a sua audição. Contudo, seu patrão vive descontente com seus constantes atrasos e distrações. Ele tem uma amiga, a linda e encantadora menina Nadareh (Nadereh Abdelahyeva), que tenta ajudá-lo constantemente.
Khorshid e sua mãe vivem o dilema de um despejo iminente, por não terem o dinheiro para pagar o aluguel. Entretanto, esse problema parece ter sido usado apenas como elemento dramático, face a impessoalidade dos personagens e ausência de outras circunstâncias que enriqueçam a trama. O desfecho também ficou meio sem pé ou cabeça, parecendo mais um artifício de última hora do que uma licença criativa do cineasta - afinal, associar a genialidade de Beethoven àquele 'bá-tim-bum' foi um delírio.
Olhos Vermelhos
2.1 4"Redeu-ai" (Olhos Vermelhos) teria potencial para ir além, mas acabou perdendo-se no excesso de informações e na confusão entre as duas linhas temporais do roteiro.
A trama é, sim, assustadora. Basta imaginar-se a bordo de um trem descontrolado e sem saída. Junte-se a essa situação o fato de que esse mesmo trem, no passado, sofreu um acidente que causou várias mortes e parte das vítimas eram crianças.
Os orientais têm uma forma bem aterrorizante de retratar o sobrenatural. Em geral, são apenas sombras, vultos ou olhos na escuridão que se voltam contra qualquer centelha de vida que encontram pelo caminho. Então, quando bem dirigidas as cenas, esses filmes se tornam imbatíveis no quesito frio na espinha.
Por isso, faltou uma pitada a mais de calafrio para que "Redeu-ai" cumprisse melhor sua tarefa.
A Casa do Medo: Incidente em Ghostland
3.5 754"Ghostland" (A Casa do Medo: Incidente em Ghostland) é um filme de horror diferente. Seu ritmo no primeiro ato do longa é vagaroso, parecendo uma repetição de outros filmes do gênero, com a tradicional história de uma família que recebe como herança uma velha casa numa cidadezinha do interior.
Os fatos continuam ocorrendo meio aleatoriamente, até o terceiro ato, quando realmente as cenas começam a causar um misto de mal-estar e angústia. Semelhante ao que ocorre em muitas tramas de horror, as explicações ou motivações para que as situações aconteçam parecem não ter muita importância, apenas o pavor que elas causam.
O problema é que violência gratuita o tempo todo, causa mais incômodo que medo.
Tudo indica que Pascal Laugier seja melhor diretor que roteirista, apesar do sucesso que teve com 'Mártires' (Martyrs). Em Ghostland, por exemplo, não há qualquer construção de personagens; o roteiro muitas vezes não convence, deixa furos no seu desenvolvimento ou simplesmente não faz sentido mesmo. Assim, todo o mérito do filme fica reservado para as cenas eletrizantes.
Essas sim, bem tensas...
A Despedida
4.0 298"The Farewell" (A Despedida) é um filme que fala sobre escolhas difíceis de serem feitas, ou até mesmo impossíveis, por não existir nenhuma boa alternativa disponível. O enredo nos mostrará o dilema de uma família chinesa em torno de sua matriarca Nai Nai (Shuzhen Zhou), que está com câncer em estado avançado. Resta-lhe pouco tempo de vida, mas ela desconhece que tem a doença. A família terá de decidir se conta a ela ou não.
Nessa hora, levam-se em consideração os valores culturais e princípios éticos. Nai Nai, apesar de idosa, mantém-se lúcida, disposta e com muita alegria de viver. O consenso familiar é de que devem continuar a omitir-lhe o fato, porém desejam reunir-se com ela uma última vez, já que parte da família imigrou há anos para os Estados Unidos.
A alternativa encontrada foi celebrar às pressas o casamento do neto Hao Hao (Han Chen), ocasião em que todos os familiares viajariam para passar alguns dias ao lado dela. Sua neta Billi (Awkwafina), que foi criada nos EUA, é a única voz destoante. Neste ponto, ficam explícitas as diferenças culturais entre os dois países. Billi acredita que Nai Nai tem o direito de saber que está morrendo, pois assim terá a oportunidade de despedir-se da família e dos amigos, sanar pendências e realizar algum desejo em particular.
Os pontos de vista de Billi, entretanto, são repelidos pelo pai e pelo tio, que defendem os costumes chineses. Para eles, a vida não pertence somente ao indivíduo, ela é parte de um todo que envolve sua família e a sociedade. Assim, os parentes têm o direito de decidir se contam ou não. Para eles, o medo é mais letal que o câncer. Desconhecer a proximidade da morte é o que nos permite viver com alegria.
A direção de Lulu Wang é extremamente competente e delicada, nunca deixando que o filme se torne um drama carregado. Ao contrário, somos tomados o tempo inteiro pelo encanto e vitalidade de Nai Nai e, só em raras cenas, acompanhamos a evolução de sua doença. A narrativa flui com sutileza, deixando-nos perceber a dor do luto antecipado apenas no semblante de Billi, no discurso que seu tio faz durante o casamento e no choro de Hao Hao.
O filme termina e fica a dúvida: Qual teria sido a melhor alternativa?
Eu encontrei minha resposta nos créditos finais.
Azul Escuro Quase Preto
3.7 84A vida real está cheia de histórias que dariam excelentes filmes. Essa parece ter sido a inspiração de Daniel Sánchez Arévalo, ao escrever o roteiro de "Azul Oscuro Casi Negro" (Azul Escuro Quase Negro), uma comédia dramática sobre o cotidiano de pessoas comuns. Num estilo que lembra o de Almodóvar, Arévalo também dirige o longa conduzindo com naturalidade várias tramas paralelas, alternando dramaticidade com um humor afinado.
Os personagens centrais são: Jorge (quim Gutiérrez), Antonio (Antonio de La Torre), Israel (Raúl Arévalo), Paula (Marta Etura) e Natalia (Eva Pallarés) e o destino de todos eles se entrelaçará em algum momento. Assim como acontece na vida de muitas pessoas, os protagonistas também irão se deparar com situações difíceis, como a descoberta e aceitação da homossexualidade, o sentimento de inferioridade causado pela diferença social, a falta de oportunidades de trabalho para quem tem origem humilde, o amor não correspondido, o peso de cuidar de um idoso e uma deturpada visão de masculinidade.
Com tantos temas relevantes espelhados na realidade humana, acredito que o roteiro, assim como buscou inspiração na vida, não precisava ter um final fechado. A maneira escolhida para o desfecho empobreceu um pouco o filme. Me pergunto por que os cineastas ainda acreditam que cinema é igual a série de TV, com um final que traz respostas ou soluções para tudo.
Dezessete
3.8 122 Assista AgoraHéctor (Biel Montoro) tem 17 anos. Sua família resume-se ao irmão Ismael (Nacho Sánchez) e sua avó Cuca (Lola Cordón), uma velhinha acamada que há 5 anos sofreu um derrame e vive numa casa de repouso.
Basicamente, Hector é um adolescente problemático que já passou inúmeras vezes pelo centro de recuperação para menores, mas sempre retorna por cometer novos delitos ou por tentar fugir. É um rapaz que quase nunca sorri, tem dificuldades para relacionar-se com as pessoas e demonstra sentir amor somente por sua avó - para os demais, reserva um semblante sempre irritado.
"Diecisiete" (Dezessete) nos mostrará 3 dias da vida de Héctor, faltando pouco tempo para que complete 18 anos. Em meio a mais uma de suas fugas, ele vai até o abrigo retirar sua avó, por acreditar que ela está prestes a falecer. Seu plano é levá-la à aldeia onde o avô está enterrado, para que ela seja sepultada junto com ele.
O roteiro traz outras subtramas, com apelo emocional: A busca por um cachorrinho que Hector cuidou e treinou enquanto estava no centro de recuperação, um imprevisto com a sepultura do avô e os motivos que levaram os irmãos a ter uma relação conturbada e distante. A narrativa vai evoluindo num ritmo lento, mas não cansativo. Junto com as bonitas paisagens da viagem são revelados detalhes importantes da vida dos irmãos; percebe-se o arco de amadurecimento de Hector e Ismael.
Pode ser um enredo batido, meio clichê, mas aquece o coração.
Cruella
4.0 1,4K Assista AgoraA Disney faz o que sabe fazer bem: entreter. Então, seus filmes vêm com essa chancela: são bons entretenimentos. Feitos para alcançar todos os tipos de público, são obras caras e caprichadas na plasticidade. Porém, não vão além disso.
"Cruella" é um bom exemplo. Um filme com o selo de qualidade Disney, sem dúvida. Mas sem grandes mensagens, sem cenas polêmicas e sem suscitar reflexões ou debates. Apenas 2 horas de distração. Conta com um elenco maravilhoso. Nomes que seriam capazes de salvar até filmes muito ruins. Emma Stone, quando lhe é exigida verve dramática, sabe dar conta do recado. Emma Thompson está totalmente divina como a Baronesa elegante e malvada; e Mark Strong, é encantador sempre que aparece em cena.
No mais, "Cruella" flerta todo tempo com 'O Diabo Veste Prada'. Aliás, a escolha do figurino está espetacular, assinado por Jenny Beavan, designer já premiada duas vezes com o Oscar. Outro ponto alto do filme é a sua trilha sonora. Aqui, a Disney não economizou nem um centavo com direitos autorais: temos Nina Simone, David Bowie, Tina Turner, The Doors, The Clash, Rolling Stones, Queen, Black Sabbath, Florence + The Machine e uma infinidade de outras estrelas da música.
Mas nem tudo brilha em "Cruella". O roteiro é enfadonho demais, previsível e reciclado, tem as mesmas piadas tolas de outras produções da casa e um CGI de qualidade questionável. Um filme mais longo do que deveria, também.
Vale pelo que é: uma boa distração...
Uma Mulher Alta
3.8 112"Dylda"(Uma Mulher Alta) é um ótimo exemplar do cinema russo contemporâneo. Um dos primeiros filmes do jovem diretor Kantemir Balagov (de apenas 28 anos), baseado no livro de Svetlana Aleksiévitc - 'A Guerra Não Tem Rosto de Mulher'. O drama contará traumas e sofrimentos que duas mulheres vivenciaram durante a Segunda Guerra; marcas que irão carregar durante a vida inteira, cada uma a seu modo.
É um filme com muita carga emotiva, cuja trama central é a amizade entre as ex-combatentes: Lya (Viktoria Miroshnichenko, que tem 1,82m - é a mulher alta a que o título se refere) e Masha (Vasilisa Perelygina). Após a guerra, as duas vão trabalhar num hospital militar para onde são levados os soldados feridos e mutilados. Lá serão desenvolvidas tramas secundárias que irão emoldurar e fundamentar, mais adiante, a narrativa principal.
A estória nos mostra que, mesmo terminada a guerra, as sequelas continuarão transformando dolorosamente a vida daquelas mulheres. Marsha traz no rosto um constante sorriso, mas pouco tem de alegria. Lya é introspectiva, silenciosa. Dela quase nada nos é revelado. Sabemos apenas que, não bastassem as dores e marcas que as duas carregam, ainda pairam sobre elas o luto, a culpa e a solidão. Masha exige de Lya uma terrível reparação pelo que aconteceu a seu filho Pashka. Lya, completamente destroçada, parece não ser capaz de enfrentar mais uma violência.
Filme delicado, sensível, belo. São excelentes a direção, o roteiro e a atuação das protagonistas. Única ressalva é que poderia ser um pouco mais curto, com uma narrativa mais fluida, porém isso não o desmerece em nada. A fotografia é de Kseniya Sereda, que com apenas 25 anos fez um trabalho lindo. As imagens parecem quadros, com predominância de sombras e das cores verde e vermelha, em tons mais fechados, sóbrios.
Arte... com certeza.
Perdi Meu Corpo
3.8 351 Assista Agora"J'ai Perdu Mon Corps" (Perdi Meu Corpo) é uma animação francesa com roteiro de Guillaume Lauran, o mesmo de 'O Fabuloso Destino de Amélie Poulain'. Temos aqui um enredo irreverente que conta a estória de dois personagens, sendo que um deles é bastante incomum: uma mão decepada!
O outro personagem é o jovem Naoufel, dono da mão.
A animação é muito bonita, mesclando técnicas de 2D e 3D e apresentando um resultado que funciona maravilhosamente. Os ilustradores preocuparam-se com detalhes como a simulação de ângulos e enquadramentos de câmera, que dão a impressão de que os personagens realmente estão sendo filmados. A direção é de Jérémy Clapin, grafista e ilustrador.
O filme parte de duas narrativas paralelas: a vida de Naoufel (seu presente e flashbacks de sua infância) e o surrealismo de uma mão decepada em busca de seu corpo. Logo de início descobrimos que a mão pertencia a Naoufel, porém, só no último ato do filme será revelado como ocorreu a separação e qual a mensagem que o filme deseja transmitir com ela.
A trama aborda questões muito relevantes: como lidamos com nossas perdas, como enfrentamos a dor e o luto de uma separação indesejada, como superamos a sensação de incompletude e, por fim, como nos libertarmos da ideia de que estamos fadados a cumprir um destino pré-determinado. O personagem Naoufel nos deixa um valioso ensinamento: para que a vida ganhe novos rumos é necessário buscar o imponderável. Atrever-se em direção ao novo pode não trazer os resultados esperados, mas certamente ampliará as possibilidades.
É um enredo rico e interessante, apenas poderia ter sido contado num filme mais curto. Contudo, adianto que vale muito a pena ir até o fim.
Blade Runner 2049
4.0 1,7K Assista Agora"Blade Runner 2049" é a sequência do filme lançado em 1982 ('Blade Runner'). Mais longo que o filme original, esta produção traz qualidades técnicas semelhantes e inovadoras (fotografia, efeitos visuais, design de produção). A competente direção é de Denis Villeneuve que, assim como Ridley Scott, também recebeu críticas, especialmente pela forma arrastada como a narrativa se desenvolve. Certamente, tal como ocorreu com seu antecessor, o tempo se encarregará de conferir à obra o seu merecido valor.
O cenário é a Los Angeles de 2049, que continua repleta de letreiros e hologramas, alagada pela chuva constante e superpopulosa. Passaram-se 30 anos e agora os replicantes estão aprimorados e convivem com os humanos, mas ainda desempenhando os trabalhos pesados. Logo nas primeiras cenas conhecemos um dos novos replicantes: K (Ryan Gosling) que trabalha para a polícia de L. A., caçando os exemplares sobreviventes daqueles antigos androides rebeldes e hostis.
Ao eliminar um desses antigos replicantes, K se depara com uma descoberta que será o início de sua jornada existencial. Um segredo guardado por 30 anos, que poderá desestabilizar completamente a convivência entre os humanos e os androides. Assim como no longa de 1982, K também viverá uma história de amor com Joi (Ana de Armas), uma criação virtual capaz de sentir emoções como um ser humano. Numa das cenas mais impressionantes feitas com CG, o holograma de Joi sincroniza-se ao corpo da prostituta Mariette (Mackenzie Davis) e faz sexo com K. Outra cena que envolveu técnicas inovadoras de substituição digital e captura de movimentos, foi o aparecimento de Rachael, com a mesma aparência que tinha no filme de 1982.
Tal como o filme anterior, esta sequência traz uma espinha dorsal que nos induz a pensar sobre os caminhos que a humanidade terá, de que forma utilizará a tecnologia, qual o verdadeiro conceito de ser humano, a importância de nossas memórias, de nossos relacionamentos e qual o legado que deixaremos às futuras gerações. O tempo nos dirá.
Blade Runner: O Caçador de Andróides
4.1 1,6K Assista AgoraInteressante relembrar que o filme "Blade Runner" (Blade Runner: O Caçador de Androides) quando lançado, em 1982, não foi bem recebido pelo público; no entanto, hoje é uma referência para inúmeros outros filmes, tendo se tornado uma obra cultuada não só pelos cinéfilos. O diretor Ridley Scott, que traz no currículo uma extensa e aclamada filmografia, é constantemente lembrado pelos seus primeiros grandes sucessos: "Alien" e "Blade Runner".
O filme tem como trama central a perseguição policial a um grupo de androides (replicantes) que se rebelou contra sua condição de escravidão numa das colônias fora da Terra. O motim faz com que os replicantes sejam considerados ameaças aos humanos, devendo ser eliminados. Essa é a missão dos caçadores de androides, um esquadrão policial do qual faz parte o agente Deckard (Harrison Ford). Seis dos replicantes conseguem voltar à Terra, mas dois deles morrem; Deckard é então convocado para executar os quatro restantes: Zhora (Joanna Cassidy), Leon (Brion James), Pris (Daryl Hannah) e o líder Roy (Rutger Hauer).
A caçada aos replicantes tem como cenário uma caótica Los Angeles ambientada no ano de 2019, com um visual cyberpunk futurista, cheio de referências à cultura japonesa. A atmosfera é soturna, com prédios antigos e deteriorados contrastando com os imensos letreiros em neon e imagens holográficas espalhadas pela cidade. As ruas são completamente tomadas pelas pessoas, que se comprimem para escapar da chuva e da névoa constantes, enquanto os veículos cruzam o céu.
Como subtrama, o filme traz o romance entre Deckard e a androide Rachael (Sean Young) adentrando na parte mais filosófica e simbólica do enredo. A capacidade de Rachael para amar e sofrer torna-se desconfortante e inexplicável, pois contraria a definição usual do que distingue uma máquina de um ser humano. Aliás, muitos outros conceitos serão abordados pelo filme, como a importância do passado e das memórias para a nossa referência existencial, e o torturante dilema entre vida e morte. Os replicantes, apesar de não envelhecerem na aparência, também estão sujeitos a uma curta existência. Inconformados, eles procuram seu criador, Eldon Tyrell (Joe Turkel), em busca de meios para prolongar sua vida, mas a morte para eles também é inexorável.
Filme esplêndido, não só pelas qualidades constantemente destacadas, como fotografia, enredo e trilha sonora (composta por Vangelis), mas principalmente pelo que ele nos instiga.
A Favorita
3.9 1,2K Assista AgoraCom um elenco estupendo e uma super produção cinematográfica, Yorgos Lanthimos alçou definitivamente o voo que o levará ao seleto rol dos grandes diretores. Com "The Favourite" (A Favorita) nota-se um outro perfil do diretor, mais agradável e acessível ao público, acrescentando um pouco de sátira à sua já conhecida crítica aos predicados humanos menos elevados, como a ganância, luxúria, inveja e traição.
O filme conta com Olívia Colman, ganhadora do Oscar de Melhor Atriz (2019) por este papel de rainha Ana da Grã-Bretanha; e com as também perfeitas Rachel Weisz (Lady Sarah de Marlborough) e Emma Stone (Abigail Hill). O filme tem uma produção tão primorosa, que concorreu ao Oscar em 10 categorias. A fotografia, assinada por Robbie Ryan, impressiona por sua distorção de imagens e giros de câmera, mostrando os detalhes e ângulos dos grandiosos e ricos cenários. O figurino ficou sob a responsabilidade de Sandy Powell, que contabiliza 14 indicações ao Oscar, tendo sido agraciada com 3 delas.
O roteiro, escrito por Deborah Davis e Tony McNamara, se inspira em um período da história do reinado de Ana da Grã-Bretanha (por volta de 1702 a 1713), enquanto ocorria a guerra da sucessão espanhola. O longa mostra os bastidores desse reinado e descrevem Ana como uma monarca frágil, manipulável e que mantinha um relacionamento amoroso secreto com Lady Sarah. Segundo historiadores, porém, Ana foi uma governante séria que soube lidar muito bem com o desafio de comandar a Inglaterra.
Com a chegada de Abigail Hill ao palácio, a moça começa a articular sua aproximação com a rainha Ana, surgindo então um secreto triângulo amoroso, baseado na disputa pelo poder. Abigail e Sarah tornam-se inimigas obstinadas e não medem esforços para ser a 'favorita' da rainha.
A trama é embalada por clássicos de Bach, Handel, Vivaldi e Schumann, mas é com "Skyline Pigeon" que Yorgos Lanthimos escolhe finalizar o longa, como se com aquela canção nos anunciasse sua liberdade e busca pelos novos horizontes.
Alpes
3.5 89 Assista Agora"Alps" (Alpes) é um filme de Yorgos Lanthimos que não tem a mesma força de outras obras que ele dirigiu e escreveu, mas também apresenta um enredo bastante excêntrico, o que já é característica do cineasta.
O longa conta a estória de 4 pessoas que fazem parte de um estranho grupo de apoio chamado de 'Alpes': uma enfermeira (Aggeliki Papoulia), um socorrista de ambulância (Aris Servetalis), uma ginasta (Ariane Labed) e seu treinador (Johnny Vekris).
Eles oferecem um tipo diferente de serviço às famílias que perderam seus entes queridos: propõem-se a fazer o papel da pessoa falecida para amenizar a dor do luto. Assim, passam a encenar situações baseadas nos gostos, características e atitudes daqueles que morreram. Sim, é tudo muito surreal, mas no contexto do filme é um trabalho aceito e contratado pelas famílias. Yorgos mostra uma ousadia meio sem propósito, ao tornar grotesca a experiência da perda.
Neste filme, novamente serão exibidas cenas desconfortáveis. Os personagens masculinos de Yorgos costumam ser misóginos e agressivos, impondo-se sobre o feminino pela força bruta, punindo, espancando e humilhando. As mulheres, em geral, aceitam ou se submetem a tais insultos, violências e desrespeito. Fica difícil compreender a insistência dele nesses arquétipos.
A enfermeira, por exemplo, quebrando uma das regras impostas pelo grupo, acaba sendo agredida e expulsa. Ela então entra em desespero. Este talvez seja o momento mais dramático e relevante da trama, quando a personagem cai num vazio existencial. De tanto viver vidas alheias, esqueceu-se da sua. Fica uma sensação estranha de que tudo poderia ser substituído de um momento para o outro...
Apesar de não ser um filme memorável, cumpre bem seu papel de criticar a humanidade e ridicularizar suas convenções.
Dente Canino
3.8 1,2KImpressionante!
Esta é a palavra que me ocorre para descrever a experiência de assistir "Kynodontas" (Dente Canino). Parece que a genialidade, a ousadia e a loucura de Yorgos Lanthimos estão separadas por fios inacreditavelmente delgados, tornando quase impossível identificarmos os limites entre elas.
O roteiro deste filme foi considerado pela crítica como uma representação do mito da caverna, porém o cineasta passou longe do óbvio e imprimiu sua visão particular, libertando-se de convenções, regras, costumes ou padrões socialmente aceitos, para colocar em cena situações que surpreendem, chocam ou causam repulsa. E ele não se preocupou com o que podiam pensar sobre isso, porque ao final sabia que estava entregando uma obra respeitavelmente única, séria e profunda. Tanto é verdade, que o filme acabou sendo indicado ao Oscar em 2011, na categoria Melhor Filme Estrangeiro.
O filme é um verdadeiro estudo sobre o comportamento humano. O enredo parte de uma questão simples e direta: o que aconteceria a um ser humano se fosse criado, desde pequeno, dentro de um mundo fechado e sem nenhum contato com o exterior, sendo-lhe inclusive ensinada uma linguagem própria, onde as palavras recebessem significados diferentes? Estas respostas estarão, sim, em "Kynodontas".
Já aviso que o filme apresentará algumas cenas violentas e até mesmo incestuosas, porém nenhuma estará ali gratuitamente. Pode ser também que outras perguntas fiquem sem resposta, como por exemplo, quais foram os motivos para que o pai (Christos Stergioglou) decidisse proceder daquela maneira com sua família? Contudo, responder a isto pareceu não ser relevante. O filme também tem um desfecho aberto, deixando-nos sem uma última resposta... mas, diante do desenvolvimento da trama, não poderia ser diferente.
Tudo que Yorgos Lanthimos parece desejar com este filme, é que seu público pense a respeito da responsabilidade que um adulto tem ao educar ou ensinar um novo ser humano. O poder das imposições e crenças familiares é capaz de manipular, moldar a forma como uma criança entenderá e reagirá ao mundo. E isso provavelmente determinará suas ações e percepções durante toda a vida.
Sim, impressionante...
O Lagosta
3.8 1,5K Assista AgoraRealmente o diretor e roteirista Yorgos Lanthimos tem um talento peculiar, com obras super originais e diferentes de tudo o que se vê ultimamente nos cinemas. Este filme, "The Lobster" (O Lagosta) é um exemplo perfeito: um misto de ficção e suspense ambientado em um futuro estranho e distópico.
O roteiro é extremamente interessante, fazendo uma crítica à necessidade que as pessoas têm de encontrar um par ideal, bem como à movimentação e energia gastas nessa constante busca. No filme, os personagens vivem numa sociedade que os proíbe terminantemente de serem solteiros. David (Colin Farrell), que perdeu sua esposa para outro homem, vai para um curioso hotel onde há outros solteiros, como ele.
O Objetivo dessa bizarra hospedagem é encontrar, dentro de 45 dias, seu parceiro ideal. Esse prazo pode ser estendido com uma condição: participar de caçadas periódicas, onde a caça são outros seres humanos solteiros, que vivem escondidos na mata. Caso falhem as tentativas, aquele que permanecer solteiro será transformado, por meio de uma estranha cirurgia, em um animal à sua escolha e será solto na floresta.
Este enredo nos induz a muitas reflexões. A sociedade realmente instituiu o casamento e a formação de um núcleo familiar como metas para tornar-se alguém mais responsável e feliz. A padronização dos relacionamentos é real e notória, basta vermos o arsenal de livros que tratam do assunto e os periódicos que oferecem fórmulas milagrosas para tornar os relacionamentos duradouros, ainda que em alguns seja questionável a existência do amor.
Este é um daqueles filmes muito bacanas, que ficam na mente mesmo depois que terminam.
O Sacrifício do Cervo Sagrado
3.7 1,2K Assista AgoraUm sentimento que me acompanhou em todos os filmes que vi de Yorgos Lanthimos, é o desconforto. E, no caso de "The Killing of a Sacred Deer" (O Sacrifício do Cervo Sagrado), esse mal estar começou quando notei a ausência de expressões vocais e faciais nos personagens.
Claro que, desde cedo, todos aprendemos a usar a comunicação não verbal para interagir com as pessoas. Existem padrões comportamentais típicos dos humanos, como gestos, posturas e expressões faciais. Todos esses 'sinais' servem para informar aos outros como nos sentimos. Pois bem... neste filme de Yorgos Lanthimos - e em alguns outros dele - não encontramos nada disso.
Tudo aqui será fora do comum, a começar pelo sexo. O casal de médicos Steven (Colin Farrell) e Anna (Nicole Kidman) nos mostram uma variante curiosa da relação sexual: a anestesia geral. A linguagem narrativa deste filme realmente cria uma atmosfera estranha para o público, o que ajuda a aumentar a tensão e a angústia da trama. Aqui os personagens não sorriem, não expressam raiva, dor ou medo. Suas vozes são sempre monocórdias, independentemente da situação.
Como se não bastasse a quebra com todos os padrões de expressão, em muitos momentos, os diálogos também são bastante constrangedores. Os humanos civilizados costumam adotar condutas sociais que restringem os assuntos íntimos de serem abordados publicamente e, somente entre pessoas e em situações específicas, eles são comentados sem gerar embaraços. Pois estas amenidades sociais também foram dispensadas neste filme e, alguns diálogos conseguem gerar acanhamento só de imaginá-los.
Como cereja do bolo - um bolo meio amargo - temos a trilha sonora do filme, se é que poderíamos classificá-la assim... São notas agudas, estridentes, incômodas e desprovidas de melodia. Acentuam a tensão e o nervosismo apenas para o espectador, pois os personagens permanecem impassíveis. Um filme diferente, cheio de singularidades.
Tão curioso que nos incentiva a procurar por outras obras do diretor.
Em Ritmo de Fuga
4.0 1,9K Assista AgoraUm título doce como "Baby Driver" (Em Ritmo de Fuga) pode estar escondendo um punhado de dinamite. Com um roteiro um pouco fraco, parecendo um romance adolescente, o que o filme tem de melhor são as cenas de ação. Essas sim, são adrenalina pura. A direção e o roteiro são de Edgar Wright, que traz para o longa a sua já conhecida habilidade para as sequências eletrizantes de perseguição e fuga. As câmeras giram e fazem percursos vertiginosos, levando-nos até a acreditar que as manobras de Baby são realmente possíveis.
Outra qualidade do filme é sua trilha sonora, recheada de músicas da melhor qualidade, como as clássicas 'Easy', 'Brighton Rock', 'Tequila' e muitas outras. Também fica difícil dizer qual foi a melhor atuação, já que Jamie Foxx (Bats) e Jon Hamm (Buddy) parecem ter nascido para o crime. O protagonista Ansel Ergot (Baby) cumpriu bem sua parte, apesar de não ter carga dramática para as cenas mais intensas, ele tem carisma e acaba brilhando nas cenas de ação.
As personagens femininas, infelizmente, estão bastante estereotipadas. Elza Gonzalez (Darling) como a menina má, Lily James (Debora) como a menina boa. Nem precisamos pensar muito para saber como será o destino de cada uma. Sky Ferreira, como a mãe de Baby, era casada com um marido violento e cedo encontrou a morte, virando uma dolorosa lembrança na vida do filho.
O roteiro também abriu mão de contar mais fatos sobre a vida de Baby, talvez por considerar irrelevantes; por exemplo, num único diálogo é explicado como Baby entrou para o crime - um motivo meio bizarro, como se coerência não importasse muito. Fato é que o arco do personagem se resumiu ao já batido romance fofo e a esperada redenção - sem mencionar o mesmo desfecho de sempre.
Então, se não exigirmos muito do roteiro e nos concentrarmos na ação, o filme é um ótimo entretenimento!
Anônimo
3.7 745"Nobody" (Anônimo) foi uma grata surpresa. Não havia lido nada sobre e o cartaz de divulgação também não me chamava a atenção. Entretanto, trata-se de um ótimo filme, com roteiro bastante simples mas eficiente, com cenas de ação bem feitas, elenco perfeito, trilha sonora magnífica! E o filme é enxuto, não fica esticando diálogos ou explicando demais - é papo reto o tempo inteiro.
O filme tem várias situações inesperadas e conta com um humor ácido e inteligente. A começar pelo velho e batido clichê dos inimigos serem sempre os russos. Porém, o toque de ironia está justamente em brincar com a célebre obsessão dos americanos, já que o diretor Ilya Naishuller é russo. Também fica difícil não achar engraçado o contraste na escolha das músicas que embalam as passagens mais sanguinárias. O filme é todo um deleite.
Logo no início, as cenas já aguçam a curiosidade, mas a narrativa volta um pouco ao passado para nos contar quem é Hutch Mansell - o protagonista. Ele é o oposto do herói: é um acanhado e incógnito pai de família que, dia após dia, ocupa-se de tarefas triviais, como: preparar o café da manhã dos filhos, cumprir sua jornada de trabalho e, à noite, colocar o lixo para fora. Mas ele tem um segredo.
Sua vida acomodada o torna uma pessoa praticamente invisível e, aqui, temos o mote para todos os acontecimentos que virão. Uma noite, dois ladrões invadem a casa de Hutch. Ele tem a oportunidade de revidar e defender sua família, mas não o faz. Esse comportamento passivo é interpretado como covardia e fraqueza, tendo um desdobramento doloroso para ele, que perde o respeito de todos e ainda passa a ser desprezado por seu filho mais velho.
O ator Bob Odenkirk é um show a parte. Ele consegue trilhar o difícil arco de seu personagem com enorme naturalidade e credibilidade. Vai transformando-se em uma pessoa completamente diferente, porém, mantendo a sua essência. Maravilhoso! E ainda tem carisma de sobra.
Apesar de tudo, é bom destacar que o filme é, sim, bastante violento. Muito tiroteio, pancadaria, facadas, sangue e dentes quebrados. A chacina acontece com gosto de vingança, ou seja, é impiedosa e com requintes de sadismo. Ah... e tem cenas pós-créditos, viu? O que me deixou com a esperança de que a saga de Hutch Mansell seja longeva.
Tomara.