Frenético e afiado. Bem absurdo o ritmo que o filme sustenta na segunda metade, logo quando MacNamara resolve transformar o Otto em burguês; a encenação é quase teatral e cada entra e sai dos personagens do cenário vai ritmando o que acontece em tela, sempre com Cagney falando e falando muito quase que sem respirar. Esse fluxo crescente de pessoas que entram e interagem com MacNamara para decidir um sapato, uma roupa e afins, vai gerando as situações cômicas justamente pela situação de transformar um comunista em filho de burguês, mas principalmente pelas ideias que no começo pareciam absurdas, mas vão dando sinais que funcionarão. E é nos acertos cômicos que o texto de Wilder se mostra afiado e muito sutil quando quer alfinetar e também mais direto na situação como um todo. Difícil situar a ideologia do filme em algum extremo do campo político, mesmo que a maioria das interações zombem de uma certa ideia de precariedade das nações comunistas, pois diversos pequenos detalhes e diálogos sustentam uma posição mais crítica do diretor ao funcionamento capitalista. Os funcionários que reagem quase que militarmente ao seu chefe, a visão de pessoas como moeda de troca e o endividamento de Otto logo a se tornar capitalista são pequenos pontos que Wilder aproveita para também satirizar o seu lado. É notável um certo diálogo no que o diretor trabalha em The Apartment e aqui, principalmente no que tange as relações de trabalho e a dinâmica patrão-empregado; em ambos os escritórios recheados de mesas e funcionários com ações robotizadas, a submissão deles pelo patrão e a intensa presença de um domínio de quem manda em que é mandado contextualizam bastante o que Wilder devia estar refletindo na época de Guerra Fria e que preenchem o subtexto da comédia que foca em narrar.
A melancolia da vida solitária na metrópole engolida pelos prédios, trabalho e a concorrência que gratifica o menos moral com essa falsa sensação de poder na qual se esconde os vazios com autoritarismo, machismo e necessidade de aceitação.
Lemmon é quem dita o ritmo do filme, difícil falar em transição para a comédia e para o drama porque um nunca dá lugar ao outro, estão sempre os dois lá, misturados, o ator controla qual se evidencia mais; mesmo nos seus momentos mais bem humorados sempre há sua solidão e fragilidade escondida em suas feições e em suas atitudes. Mesmo com atitudes questionáveis e uma vontade em parecer quem não é, no trabalho e no apartamento, Wilder nutre um carinho pelo protagonista; a delicadeza como encena a cena do espelho quebrado, ponto chave para o crescente drama que se nota depois desse momento, é memorável, o diretor dá o tempo necessário para Lemmon digerir todas as informações que vêm a sua mente no momento em que se vê despedaçado no espelho. A simbologia é bem direta e por si só magistral, mas o modo como o diretor permite seu protagonista receber a verdade sobre Kubelik enquanto mantém o controle da situação é mais notável ainda. Ainda mais se lembrarmos que Kubelik também tinha acabado de receber uma informação tão impactante para seus sentimentos quanto Baxter, portanto, eram os dois personagens mais fragilizados de The Apartment nessa ilusão de confiança e de felicidade. É isso que Wilder busca e, como gênio que é, acha: o diretor escancara o mais interior de seus personagens enquanto estes tentam segurar as máscaras que usam no meio em que vivem; podem até conseguir entre eles, mas nós sempre captamos o mais interiorizado sentimento de cada um.
Mais dramática que a cena citada, é a tentativa de suicídio de Kubelik montada paralelamente com a melancolia de Baxter amargurado no bar. A situação do protagonista até que melhora, encontra outra mulher e o clima fica até mais otimista, mas é só chegar à sua casa que a seriedade volta à tona e não temos ideia do que pode acontecer. Wilder não explora o sofrimento de Kubelik nem aprofunda demais nos seus pensamentos e no seu sofrimento para fazer o que fez, mais importante para o diretor é a relação entre os dois, como cada um vai entendendo as fragilidades e mentiras do outro e se conectando justamente nessa necessidade em se portarem como quem não são. O diretor não faz de Baxter um canalha, muito menos de Kubelik uma coadjuvante burra, como em outros de seus filmes, aqui o filme existe para eles, torcemos pela redenção de cada um e pelo desmonte dessa estrutura de poder e influência personificada em Sheldrake.
O patrão é a figura mais detestável do filme, quem tem o poder e sujeita os menos privilegiados a trabalhos sujos caso queiram subir na carreira. Sua relação com Baxter exige a ilusão laboral, assim como os outros funcionários que abusam do personagem de Lemmon em troca de favores; sua relação com Kubelik é a ilusão amorosa que o seu poder de patrão permite ter. Sheldrake, assim como todos em The Apartment, veste sua máscara e engana tanto sua família quanto suas amantes, a diferença é que no seu caso não há fragilidade por trás, não há a um contexto que o pressione, como há nos casos de seu empregado e sua amante. A existência de Sheldrake é justamente o que produz as fraquezas em Baxter e Kubelik. Quando estes se libertam dele, estão livres para recomeçar sem nada que os prenda; é Ano Novo.
A trama ordinária faz com que não haja algo imprevisível no que vemos, de um lado um gangster tramando assaltar um banco e do outro um policial louco por um grande roubo para desvendar; o conflito entre as partes é inevitável. O que mais desperta interesse em Bob le Flambeur é como Melville localiza e trabalha, mesmo que superficialmente, o ambiente em que sua história se passa. A Paris noturna, iluminada pelos letreiros de bares e casas de apostas, poluída pelos cigarros e frequentada pelas pessoas menos morais que se possa imaginar é o palco mais interessante possível para se desenvolver um noir. A conexão é até bem óbvia, mas a Paris do filme remete ao que Scorsese exercitaria na Nova York de Taxi Driver, observar o submundo da metrópole seguindo os passos de seu protagonista tão mergulhado naquela realidade, captando suas relações e intenções naquele meio. E por isso, achando sua história nas ruas parisienses, ponto primordial para o surgimento da Nouvelle Vague, é que Melville faz um filme que supera o genérico, seu trabalho visual é estimulante no noir e promove uma elegância bem característica dos retratos da máfia no cinema, diferente da crueza que Scorsese busca no seu, condensando a oposição mais chamativa do estilo: o glamour dos personagens e o ambiente corrompido que se inserem.
Bem mais essencial que uma certa coerência nas decisões e sentimentos das personagens, o que em "Sabrina" às vezes se confunde, é a essência de um romance cômico que Wilder estabelece entre seus protagonistas e nosso romance por eles também. Há uma série de interesses subentendidos nas atitudes de Linus e Sabrina que variam com frequência, levando a uma quantidade de reviravoltas consideráveis nos minutos finais do filme e uma conclusão para alguns inimaginável. Entretanto, "Sabrina" acaba por ser um ótimo exemplo de como a criação de um universo e uma encenação que estabelece essas regras, de um mundo ingênuo apaixonado nesse caso, é bem mais importante que outros detalhes. Chega a me lembrar "The Big Sleep" do Hawks, também com o Bogart, que estabelece uma unidade definidora do que é um noir e isso acaba sendo o suficiente para um filme memorável, independente da trama ser toda mal resolvida. Em "Sabrina", a inicial inocência da personagem de Hepburn que mesmo se tornando mais madura permanece com as mesmas idealizações de antes traz uma leveza e um jogo de incertezas sobre o que decidirá fazer que é o mais essencial no que Wilder buscava contar. A elegância de Bogart e a imaturidade de Holden fecham esse triângulo amoroso que gira em torno da personagem principal. O medo burguês de uma pobre entrar para a família e os interesses empresariais no casamento de David são mais uma fachada para que Hepburn e Bogart magnetizem todo um filme para eles e conduza um romance sutil e cômico ao mesmo tempo. Os dois na quadra de tênis, Hepburn cantando, a noite na indústria; são esses momentos que fazem "Sabrina" dos romances mais memoráveis.
Transformar um cenário desse em comédia sem precisar aliviar nazismo é tudo que Jojo Rabbit queria ser mas não consegue. Ao mesmo tempo que Stalag 17 é um respiro de otimismo ao evitar mostrar o sofrimento dos militares que acabaram na mesma situação dos protagonistas, Wilder utiliza a comédia sempre com um quê trágico por trás das situações. Ver humor em homens que salivam por uma casca de ovo, que se hipnotizam pelo amigo fantasiado de mulher e são suprimidos a não denunciar os maus tratos na pouco eficiente visita de Genebra sempre vêm carregado de uma denúncia e de uma tristeza que aquelas casernas guardavam dentro de si. Quase todas as gags que o diretor tenta conseguem ser cômicas, a dupla de amigos funciona bem demais e sempre puxam a comédia para balancear com a trama do espião. Entretanto, o mais fundamental em Stalag 17 é entender que o filme não se sustenta como esse suspense em descobrir o x-9, há um foco nas cenas de Wilder em explorar a relação e a personalidade de cada integrante da caserna protagonista. Não é nada fácil desenvolver tão bem cerca de 7 ou 8 personagens entre os que lá habitam, criando características peculiares para cada um e transmitindo isso para quem assiste sem ficar confuso. A encenação do diretor aproveita o espaço dentro do recinto de todas as maneiras possíveis, faz com que aquele pequeno espaço pareça ser imenso pelo tanto de modos que Wilder encontra para filmar. Seu uso da profundidade de campo e da movimentação dos atores gera um dinamismo quase impossível no meio daqueles beliches e do entra e sai de pessoas. A descoberta do espião e a posterior fuga é mais um pequeno ato dentro da vida daqueles militares, tanto que logo depois de concretizada, Wilder não se interessa pelo caminho que irão seguir e nem se vão ter sucesso em prolongar a fuga; sua lente já volta para dentro da caserna em clima de Natal e nos amigáveis diálogos entre seus personagens.
Filme mais político de Wilder, usando como nunca sua acidez e ironia para evidenciar as falhas e oportunismos da mídia e do capitalismo. Homem branco se aproveitando das terras e da cultura indígena para enriquecer à custa do sofrimento alheio. Após a ideia ser plantada todos ao redor de Tatum se aproveitam para lucrar com o ocorrido, a mulher de Leo, o xerife, o dono do jornal e quem mais ver nisso uma oportunidade; o sofrimento fica mesmo é para os familiares sem voz na situação. Se ainda discutimos e nos revoltamos hoje com sensacionalismo e jornalismo da desgraça, é importante que tenhamos consciência que o problema não é recente. Wilder, sempre explorando com sutileza as mais problemáticas corrupções do ser humano, revela aqui nossa sede por tragédia e nosso encanto por histórias. A posição de Tatum como jornalista querendo um peixe grande para subir na carreira não é de nenhum mal, seu entendimento em como o público funciona também não. São muito poderosas as lições que solta para os colegas do pequeno jornal, sua reflexão sobre como nós nos engajamos por uma história de uma pessoa só, mas não com a mesma história sendo sobre um conjunto de pessoas, é Wilder vasculhando o comportamento humano à fundo. Mas quando o oportunismo na situação se inicia, é o próprio capitalismo mostrando seus males. O território indígena virando palco para entretenimento, o preço para a visita dobrando com o interesse do público, a instalação de uma roda gigante no local; tudo ali vai revelando o esvaziamento da empatia e do interesse pela real vítima da situação, é um show para o público que a mídia cria e alguém lucra. Quantos casos em nosso tempo de vida não conseguimos listar que fazem a ideia de Ace in the Role parecer mais precisa ainda? É basicamente o "Caso Eloá" fictício da década de 50. Wilder não erra e o que ele chamou a atenção à 60 anos atrás continua incomodando nossas vidas, da indústria massacrante de Sunset Boulevard até a mídia e o sistema oportunista que transforma pobre em atração. Fico imaginando quão sutilmente o diretor precisava se atentar a ser para fazer o que queria nessa Hollywood em épocas de Guerra Fria e Lista Negra.
A tragédia de Norma Desmond, o mundo anacrônico que a atriz decidiu criar a sua volta para não aceitar as mudanças na indústria cinematográfica e sua consequente decadência.
A mansão em que vive é mais que seu refúgio no espaço, é também seu refúgio temporal, onde tudo ainda é regido pelos costumes e onde as glórias do passado continuam a serem cultivadas. Mas parar por aí seria limitado; Wilder constrói naquele glamour de uma mansão hollywoodiana uma própria memória do cinema mudo no qual Gloria Swanson, Von Stroheim, Buster Keaton entre outros nunca deixarão de existir. Lugar este onde os roteiristas, como Joe Gillis, devem sempre retornam para se inspirar e referenciar nos filmes em que escreve. A trama de Desmond é acima de tudo melancólica e comovente, mas a reverência que o diretor constrói a esse cinema que influencia tudo até os dias de hoje também está presente. As expressões "exageradas" da atriz são um traço de como ela parou no tempo e continua reproduzindo os maneirismos do seu tempo, mas terminam, principalmente no último plano, com a mitificação desse cinema passado; Sunset Boulevard é uma reflexão crítica da indústria que faz parte e também uma elevação desse passado a eternidade.
Narrar a história pelo ponto de vista de um cadáver, é, ironicamente, trazer o que já não existe para nos apresentar o presente. Billy Wilder nunca deixa de lado a influência do passado para seu filme e para toda a sétima arte, assim como Gillis defunto nos apresenta o que aconteceu, é o cinema hoje falecido que permite que assistamos cada cena desse filme memorável. E seria impossível homenagear o Primeiro Cinema sem trazer consigo todas as críticas possíveis a essa indústria que transforma anônimos em estrelas e estrelas em defuntos quando assim deseja. Desde a cultura da imagem imposta por Hollywood até a crueldade com seus ex-Deuses. Schaefer primeiro opera seu nariz para se adequar à beleza de uma atriz, para depois ser renegada por sua falta de talento; como sempre em Wilder, são nos diálogos mais banais que o autor insere sua ironia tão ácida e que não perdoa nada que ele mire. A sequência de processos pelos quais Norma passa para se embelezar rumo a sua volta às telas é quando o assunto se apresenta de forma mais direta possível, a transe que a atriz vive e esforça-se para se embalsamar viva, suas fotos que eternizam suas imagens passadas, os processos na tentativa de evitar que envelheça. Há a busca por uma auto eternização fundamental para continuar no auge. Porém, é inquestionável que a personalidade e a trajetória melancólica de Desmond seja o mais primoroso de Sunset Boulevard. São os trejeitos que Swanson encontra para a personagem que a coloca na história do cinema, é a compaixão de Max ao cuidar dessa redoma anacrônica para proteger a atriz da verdade, é a falsa esperança que ela nunca deixa de emanar a respeito da sua volta, é a leve crueldade com a qual Norma é tratada no estúdio e, claro, seu ato final já tomada pela loucura.
É isso, na paixão que um artista tem pela história de sua arte, Wilder com Sunset Boulevard honra o cinema que o criou, do mesmo modo como Scorsese faz questão de trazer à tona em Hugo e em toda sua carreira. É a melancolia de uma estrela que foi esquecida pelo mundo, pelos seus colegas e precisou se trancar em um mundo próprio (inclusive, como ainda é atual essa questão, a busca pela fama e a depressão de quem a perde repentinamente).
Ao voltar ao cinema de seu passado, Wilder o eterniza no presente e também se coloca tão eterno quanto suas referências. Sunset Boulevard é tão mítico quanto os mitos que busca reverenciar.
Tem uma ironia que funciona muito bem ao criticar a conduta de alguns militares, de um dos congressistas ser visivelmente comunista e criticar o imperialismo, do embate entre a moral de uma boa americana contra o corrompido militar na Alemanha. Triste o arco dramático da Phoebe ser tão fraco, ela vai de alguém objetiva e correta que parecia ser quem investigaria a conduta de Pringle para alguém totalmente cega e somente uma peça para um humor tão besta de mulher apaixonada e ingênua. Wilder monta algumas cenas altamente dramáticas e que propõem uma situação tensa por revelar um twist na trama, entretanto suas resoluções são sempre abaixo do esperado; quando Phoebe descobre a verdade sobre Pringle, o encontro dos dois com Erika pela primeira vez etc. Ainda sim, são visualmente lindas, o modo como usa os reflexos nesse filme para retratar os três personagens principais marca os principais confrontos entre eles.
Se Wilder é lembrado até hoje por ser um diretor que sempre buscava abordar o ser humano trágico, com valores questionáveis e em situações delicadas, "The Lost Weekend" é dos seus primeiros filmes, o que mais faz jus a esse resumo de ideias. Surpreende o modo como o alcoolismo é retratado e entendido nesse filme em plena década de 40, principalmente se pensarmos que até 12 anos antes a Lei Seca vigorava e se sustentava por um discurso de moral e culpa, o qual vilanizava a conduta pessoal sem um entendimento da atitude como dependência química. O texto de Wilder por vezes acaba caindo em uma exposição muito didática da relação do dependente com a bebida, quase que uma aula do Proerd, mas em sua maioria há uma abordagem quase poética e bem delicada dessa relação. O personagem de Miland esclarece para o homem do bar seus sentimentos e sua posição derrotada nessa batalha contra a bebida de um modo tão comovente que faz quem assiste se solidarizar por Don Birnam.
A proposta de Wilder é evidente em sua tentativa de esclarecer essa conexão irracional entre o protagonista e suas doses de whisky, sempre reforçando a passividade que Birnam tem nesse vincúlo, e é impossível até para o mais mal intencionado criticar a "falta de vontade" do personagem, ou algo do tipo, pois o diretor concretiza sua visão de como funciona o alcoolismo. Muito dessa efetividade vem pela maneira como aborda o vício visualmente; o modo quase onírico, embalado por uma trilha incrível que me remeteu constantemente a Star Trek pelo caráter quase sci-fi, de como é colocado a reação de Birnam ao ver um copo ou uma garrafa de álcool, a reação de suas câmeras que aumenta o frenesi quando Birnam se vê tentado a ceder mais uma vez e, claro, a atuação histórica de Milland segurando o filme quase sozinho e tendo uma potência absoluta em retratar a derrota do protagonista pelo vício.
Ainda falando da encenação de Wilder, aqui fica tão evidente a influência de Welles e Cidadão Kane para o cinema americano que é impossível não comentar. Destoa demais dos filmes anteriores do diretor o modo como ele aproveita a profundidade de campo para compor suas cenas; em "The Lost Weekend" o proveito disso é gigante. A luminária encenada no fundo do plano enquanto Birnam sofre para lembrar onde tinha escondido a garrafa é mais um dos planos que Wilder acha e que contam uma história toda em si próprio.
Enfim, continua absolutamente atual, compreensivo e sintetiza demais os efeitos do vício em uma pessoa. O modo como a história de Wilder ainda relaciona o álcool com a frustração de um escritor fracassado, a perda de resposta a estímulos, o surto surreal do viciado vendo o rato e o morcego e a importância de ajuda dos hospitais e dos familiares fazem de The Lost Weekend um filme fundamental.
Difícil dizer qualquer coisa que não seja: Noir definitivo.
Muito diferente de tudo que Wilder tinha dirigido até então, aqui há uma recusa pelo artifício que tinha usado em seus outros filmes, não há mais aquela informação entregue ao público e que precisa ser escondida durante todo o filme. Pelo contrário, inicia-se pela derrota e nos confessa os segredos aos poucos, o que potencializa a melancolia presente nesse noir, ainda mais o filme sendo basicamente uma confissão, um atestado de fracasso dessa ação passional e subversiva.
Phyllis é a femme fatale perfeita. A mistura de sexo e perigo mais icônica possível, acompanhar sua apresentação pela visão de Neff engrandece ainda mais suas características, a paixão instantânea que o protagonista desenvolve por ela e que o faz tomar todas suas atitudes é a prova de sua influência sobre todos que aparecem em sua volta. Sua faceta mais perigosa vai sendo revelada aos poucos e quando nós e Neff tomamos noção dos interesses de Phyllis não há muito a se fazer. Os últimos 20 minutos de Double Indemnity elevam tudo a um nível muito inesquecível. O diálogo entre os dois é uma trocação de movimentos na tentativa de um xeque-mate; quando o tiro vem, as esperanças vão. Ver Neff entregue a Keyes e depois se arrastando na tentativa de escapar é das maiores melancolias que um noir poderia atingir. É, de fato, definitivo.
"Five Graves to Cairo" tem uma das premissas mais interessantes que lembro de ter assistido, como é incrível a situação de um soldado inglês que precisa se passar por um garçom em um hotel para fugir dos inimigos alemães e logo descobrir que o garçom falecido que ele substitui na verdade era um espião nazista no Egito. Só consigo pensar nesse filme sendo feito hoje abusando de suspense e tensão em todas as situações possíveis. Dá pra imaginar um filme à Missão Impossível com Tom Cruise de Davos, no qual haveriam umas 5 cenas onde os nazistas por pouco não descobririam a real identidade do inglês e a tensão estaria a níveis absurdos. Só que Wilder foge diversas vezes dessa opção que poderia gerar um filme tão desgastado nesse artifício e opta por um drama, com momentos tensos é claro, mas que prioriza a relação entre as personagens dentro daquele hotel, enfatiza o subtexto da guerra e insere inúmeras situações cômicas tanto com o gerente Farid, quanto com o soldado italiano. O resultado é bem mais interessante do que um exercício de suspense e é nas pequenas pontas soltas de informação que o filme vai nos revelando durante a trama que concretizam a tensão final quando é preciso. Wilder nos entrega algumas preocupações para ficarmos de olho enquanto o filme se desenrola, é o cadáver no porão, a arma roubada, os códigos alemães e a perna manca que temos certeza que em algum momento vai se revelar para os nazistas. Mais incrível ainda é como o diretor une tudo isso ao final em uma única situação que transforma os perigos em ação de fato, onde o filme atinge seu ápice.
Vendo os filmes do diretor em sequência e já lembrando de alguns outros que vi dele, é curioso notar como Wilder escreve seus filmes com uma premissa bem similar, seja nas comédias, seja nos thrillers. Quase sempre seu protagonista esconde uma mentira de outra personagem, mentira essa que nós, espectadores, temos ciência de qual é, e é daí que o diretor tira suas situações tanto de ação, quanto de comédia. É Ginger Rogers se passando por uma garota de 12 anos e é J.J. Bramble como garçom nazista. Tal recurso faz com que quem assiste se conecte muito rápido com quem o filme acompanha, já que nosso instinto primeiro é torcer para que o protagonista consiga esconder sua informação o máximo de tempo possível. Em "Five Graves to Cairo", Wilder abusa do recurso, pois logo no início é Farid quem esconde a presença do soldado inglês do exército alemão, para depois ser Bramble que esconde sua informação dos nazistas e depois Mouche quem esconde outra informação dos inimigos. Há essa repetição de recurso sempre contra os mesmos nazistas que também funciona para construir uma figura de estrategistas muito inteligentes, no qual é preciso muito cuidado para que se possa virar a guerra contra eles. Por fim, com a guerra ainda em andamento, há um patriotismo muito controlado em "Five Graves", acaba por ser muito mais trágico do que patriótico as resoluções que encontramos. Mouche, mesmo coadjuvante na história toda, é das personagens mais emblemáticas e inteligentes da história toda. Há nela uma abordagem quase noir que serve de anúncio para o que Wilder exercitaria em sequência.
Primeira direção de Billy Wilder no cinema americano depois de diversos roteiros escritos e o sucesso alcançado por "Ninotchka". Comédia screwball em basicamente todos seus aspectos, o romance satirizado, a mulher como protagonista e pessoa inteligente dentro da situação e os homens ingênuos e manipuláveis correndo atrás de Ginger Rogers. Wilder, entre os diversos diretores que assisti cronologicamente, é dos que mais se destaca pelo domínio da linguagem cinematográfica logo em seus primeiros trabalhos de direção, pois o modo como lida com a comédia e insere as gags dentro das situações continua funcionando bem demais, mesmo com um tipo de humor tão diferente do atual. Pra quem ainda trabalharia com Monroe e Hepburn, Wilder já investe suas lentes a musas que dominam seus filmes. Aqui, Ginger Rogers é a força motriz de tudo que cerca The Major and the Minor, do seu começo femme fatale renegando as investidas masculinas até sua persona de 12 anos que ocupa grande parte do filme. Não há nada de maneirista nas câmeras de Wilder, mas seu modo convencional é o que permite que Rogers domine as situações cômicas e que seus diálogos fiquem marcados depois de assistir ao filme. Como eram bons os diálogos que esse homem escrevia. Totalmente impossível de imaginar esse filme sendo feito nos dias atuais, mas eu ainda acho o final incrível.
Primeira direção de Billy Wilder, feito na França, logo antes de se mudar para Hollywood e lá fazer história. Dos meus diretores favoritos e que logo de cara já mostra algumas das assinaturas que marcariam sua carreira. Diretor muito menos da encenação característica e autoral, mas mais da força dos diálogos, dos atores marcantes e de como transitava entre os gêneros.
Um debut bem profissional e com ótimas sequências de perseguição de carro, momentos cômicos e uma história bem interessante e bem contada. O melhor ainda estava por vir.
Revendo Far From Heaven dentro da cronologia de filmes dirigidos por Todd Haynes começa a se desenhar um mote temático primordial nos filmes do diretor e que aqui continua presente: A desmoralização e revelação do jogo de aparências da sociedade americana e do tal american way of life. Algo que pode ser visto em "Superstar" com os dramas de Karen Carpenter e a abordagem da mídia com sua imagem, os problemas internos desse tipo de família convencional em "Safe" e aqui a ruptura com a figura coletiva do sonho americano de vida dentro dessa família pequena burguesa de subúrbio e sua relação com a sociedade preconceituosa da época. As denúncias mais óbvias de homofobia e racismo já revelam diretamente os problemas da época (e que continuam), mas também pequenos trejeitos e atitudes de Cathy, que pode ser pintada como a branca conciliadora, reforçam o preconceito estrutural daquele núcleo, principalmente visto no seu temor ao ver um negro no jardim, sua escolha defensiva de se distanciar de Raymond para manter o jogo de aparências e a presença da empregada negra em sua casa símbolo de um anti racismo que não abre mão de seus privilégios de classe e etnia.
A escolha do melodrama para emular os anos 50 americanos não é a toa e serve para conversar com o cinema hollywoodiano da época, é claro. Ao observar o período, por tabela observa o cinema produzido na época e dentro desse gênero/estilo, refletindo também sobre o modo como o negro era retratado no período. Brincar com esse distanciamento temporal e escolha de gênero que tem como marca um sentimentalismo mais intenso e acima do normal funcionam para propor reflexões que funcionam do mesmo modo, mas se aproveitam de uma noção de "outros tempos" para colocar o dedo na ferida de pautas absurdamente atuais. E ao trazer de volta esse cinema clássico americano, nada mais clássico do que uma despedida na estação de trem; despedida essa que conclui a impossibilidade de conciliação em uma sociedade estruturalmente racista, enquanto o homem branco pai de família resolve seus problemas sem grandes consequências e aprendizados, o negro inocente precisa se afastar para mais longe ainda.
Gosto como toda a encenação da ação conversa com a personalidade de John Wick, a eficiência de cada movimento e o modo frio de abordar cada uma das sequências, sem nunca optar por uma agitação maior, mesmo nas cenas de explosão e correria. Um filme de ação que preze mais por colocar sua força na coreografia do que na grandiloquência de seus cenários e dos feitos do protagonista é um respiro interessante para Hollywood e que possui uma qualidade admirável em como aproveita a geografia de seus espaços para potencializar cada enfrentamento e localizar as lutas dentro do que se mostra. Todos os momentos que aprofundam e dão vida a este Universo são divertidos para convencer do background desse submundo assassino e de como John Wick está familiarizado com ele.
O investimento do filme em construir o mito John Wick bem antes dele entrar na ação de fato tem muito estilo e aumenta demais nossa expectativa para o confronto final. Infelizmente pra mim ainda existe uma hiper estilização que soa fetichista e força demais algo que já estava divertido. Os letreiros nas falas russas, pausas dramáticas para falas de efeito, fumaça nas freadas de pneu, ambientes neon e câmeras lentas. Mas o jeito que isso constantemente é reforçado termina por ser tão desnecessário...
A premissa é tão simples e o Kelly consegue tirar disso situações incrivelmente tensas que sustentam uma ameaça convincente durante todo o filme. A incerteza de até onde Steward tem o controle das pessoas e das situações aliado com pequenos medos construídos por meio de perseguições ou até mesmo de olhares macabros fazem um terror de fato. Aqui Kelly prova sua habilidade em imaginar e encenar ambientes com carga emocional muito forte e que conversam demais com quem assiste. A melancolia adolescente em Donnie Darko por si só já o sustenta como um grande filme, muito mais do que suas ideias de viagem no tempo e superpoderes. Porém, lá as ideias não são tão ruins a ponto de desmontarem toda a ambientação que tivera sido construída anteriormente. O plot da turbina de avião faz sentido dentro daquela confusão mental adolescente, mas em The Box, quando Kelly nos vai revelando as respostas para nossas incertezas, seu filme piora constantemente. É bastante frustrante os caminhos que o diretor leva sua história, continua na sua insistência por ideias científicas que justificam seu universo e ainda traz um sadismo moralista e punitivista como centro de suas intenções.
Soa-me muito contraditório o que Kelly nos revela de sua premissa, pois ao mesmo tempo que conclui uma ideia de ciclo de mortes enquanto a ganância humana não for interrompida, o diretor também coloca essas pessoas em um jogo torturante e absurdo que fica difícil de comprar. Conciliar essa ideia reacionária de colocar seu personagem que errou entre a morte e a desgraça do filho com um discurso quase cristão (inclusive situando tudo no Natal) de união sem tirar vantagem dos outros é imbecil demais.
Em Donnie Darko e The Box, o Richard Kelly consegue construir uma ambientação muito mais interessante que a história que conta e, provavelmente, essa é sua melhor qualidade. Nos outros dois filmes, ele mostra um controle bem eficiente do universo que cria e é nisso que reside a força de seus filmes. É a melancolia de Donnie Darko e a ameaça e remorso que sustentam The Box. Tais ambientes são infinitas vezes mais incríveis que suas histórias sci-fi meio sem nexo com essa necessidade de colocar conceitos de portais e viagem no tempo para tratar de emoções tão humanas e que nem se conectam tanto com o que ele traz do gênero.
Em Southland Tales, é mais complicado dizer que seu universo sustentou o filme. A história é tão perdida no meio daquela infinitude de personagens que até seu universo cômico, distópico e semi apocalíptico que às vezes soa bem curioso não consegue conversar com o que ele está querendo contar. Sua proposta de confusão não é convidativa e intrigante à primeira vista, a sensação de não conseguir se situar no que vemos não nos faz aproveitar a viagem, pelo contrário, só resulta em repúdio e desinteresse por algo que está sendo fortemente mal contado. Parece haver algumas ideias interessantes no meio disso tudo que talvez cresçam em uma revisão, entretanto, de cara só parece um filme bem ruim mesmo.
Fico me perguntando o porquê de Donnie Darko ser tão popular, especificamente com pessoas que estão começando a se interessar por Cinema. Inclusive, eu fui um deles e voltar pro filme uns 7 anos depois foi uma experiência muito forte.
E sobre os motivos de ser um filme tão abraçado, acho que eles vão além do Pipocando (risos), e podem ser resumidos em: Melancolia, narrativa e revolta adolescente. A maior qualidade de Richard Kelly como diretor e do Gyllenhaal como Donnie é como eles transformam cada imagem e cada presença do personagem em um profundo poço de abatimento, raiva, angústia e tristeza adolescente por todo o mundo que o cerca. Cada vez que o diretor opta pela câmera lenta ao filmar a vida de Donnie são segundos a mais que ele coloca seu protagonista vivenciando o momento, enquanto Donnie deseja que tudo ali passe o mais rápido possível. Fechar com "Mad World" é a cereja do bolo de um filme que transmite tanto a saturação do adolescente com as vivências padrões dessa época, algo tão representativo na letra de Gary Jules. O protagonista possui problemas psiquiátricos, tudo bem, mas seu desprezo pela família, pela escola, pelos adultos conservadores, pela fé e pelas lições moralistas que recebe de todos a sua volta é universal da idade e independe de suas condições mentais. A cabeça inclinada para baixo e o olhar cansado e impaciente de Gyllenhaal era o essencial que o ator precisava encontrar para compor D., pois sua presença apática e infeliz compõe a unidade montada por Kelly e resulta em um filme tão simbólico da adolescência e que compreende tão bem o período. Tanto esta melancolia e desencanto profundo pela realidade, quanto a revolta e ódio que esta desperta pelas atitudes tomadas pelos adultos que cercam Donnie são dos fatores que mais conversam com o público no geral. A figura de Frankie acaba por ser a mais reconhecível e gostada por ser cool e bastante gráfica, malvadinha na medida certa pra se conectar com o adolescente e ainda fazer mais sentido dentro do que o diretor está propondo. Entretanto, mesmo com essa curiosidade pelo coelho, é o próprio Donnie que mais chama a atenção destas pessoas e que mais desperta esta conexão; o filme centrado nesse personagem que molda seus ambientes com tamanha exaustão é o resumo de uma vida de quem não interage mais com as crianças, mas também não suporta os mais velhos. Se "Clube dos Cinco" compreendia estereótipos tão básicos da vida escolar e "Ferris Bueller" entregava o jovem modelo que todos queriam alcançar, Donnie Darko encena justamente o oposto, mas que conversa até melhor com a idade, é o jovem que todos já são, não quem queriam ser.
Já sua escolha narrativa confunde e provoca o suficiente para instigar o espectador a pensar sobre o que viu, não entrega quase nada do necessário para se achar as respostas, mas não suporta seu filme justamente nessa busca por entender o quebra-cabeça, havendo toda uma encenação que conecta quem vê, além de uma ficção científica que promove tentativas de resposta. Há as duas provocações em Donnie Darko: a vontade de entender os Universos Tangentes, buracos de minhoca e viagens no tempo e também a entrega emocional de um filme que capta tão bem os sentimentos juvenis em tempos de colegial. Fechando o raciocínio, ao encontrar uma obra que dialoga tão bem com o que você sente e vive todos os dias e propõe um desafio narrativo na medida para que você se debruce em tentar desmontar o mistério, é claro que a paixão pelo Cinema se constrói ali. É o entendimento do poder do cinema e uma baita porta de entrada para um universo infinito. Agora eu compreendo o que o Igor de 14 anos viu nisso aqui.
Blue Velvet + Mulholland Drive + Eyes Wide Shut + Alfred Hitchcock + Lady in the Water
Referências visíveis, mas que ao mesmo tempo não dizem muito. Inclusive contraditório ficar pensando em inspirações do Mitchell em um filme que justamente sabota e satiriza essa procura por respostas. Sempre lembrando que toda a cultura pop que nos cerca e também cerca o personagem é mero produto de uma indústria cultural dona de tudo que consumimos. A paranoia da necessidade de buscar significados obscuros em cada ícone das obras extrapolada para a última potência. A hermenêutica da burrice. Um protesto a favor das sensações e não da racionalização da arte. E nessa manipulação de emoções Mitchell é craque. Preciso lembrar de Lady in the Water, não tem como.
It Follows é dos terrores mais marcantes dos últimos anos e interessante pensar como ele se opõe a tendência de filmes do gênero que saíram nos anos após ele. Aqui há uma aceitação muito visível do gênero e o trabalho dentro dele, estabelecendo logo de cara as regras do jogo e exercitando as possibilidades dentro delas. Resgata também a iconografia oitentista do perfil de sua protagonista vítima de um slasher até a estética synth pop concentrada na cena da piscina. A moralidade de It Follows também conversa com o subgênero do terror tão popular nos anos 70 e 80, o olhar punitivista sobre os jovens que se arriscavam fazendo sexo era a justificativa no subtexto das escolhas dos assassinos slashers, enquanto aqui não só a maldição se transmite pelo ato, mas também há na forma do monstro uma conotação sexual, por ser um homem pelado, uma mulher com o peito de fora sentando na vítima etc; existe uma relação abstrata entre prazer e morte que o filme visa se aproveitar.
O filme busca na sensação de vigilância o mal estar do espectador, trazendo insegurança por onde quer que nossa protagonista andasse. Para isso, é muito visível a eficácia dos planos abertos que expandem nosso campo de visão e aumentam a incerteza de que alguém pode subitamente aparecer em direção a Annie. O uso da profundidade de campo e das panorâmicas dialogam com essa unidade, pois permitem brincar absurdamente com os espaços nos quais as personagens são colocadas: Ao percorrer todo o local e mapear diversas pessoas convencionais espalhadas pelo ambiente, o sentimento de risco se dilui e se potencializa por todos os espaços do cenário, já que qualquer um ali, que vem andando do fundo do quadro em direção a frente da tela, pode ser nosso vilão em potencial. Esta incompreensão do que devemos temer já começa na primeira cena do filme e dialoga maravilhosamente com o que iríamos descobrir da natureza dessa maldição no futuro; ao sermos introduzidos já desnorteados, só acompanhando uma vítima e temendo por ela, mas sem saber do que se tratava, já estamos sendo preparados para todo o decorrer do filme, pois embora viéssemos a compreender as possibilidades da "Coisa", continuaríamos sem poder mensurar de que forma ela viria.
Tematicamente o filme me remete muito as ideias que Rob Zombie trabalha em Halloween 2. Ambos absorvem a ideia primária de Carpenter no clássico de 1978: o horror preso dentro de um subúrbio, a interação entre os amigos e vizinhos que aproximam e aumentam a claustrofobia e um mal iminente que chega no clímax. Tanto a inevitável chegada de Myers, quanto a chegada da maldição servem para tratar problemas mais complexos e totalmente internos de cada personagem. No filme de Zombie há junto desse perigo uma análise bem gráfica dos horrores de um estresse pós traumático que a protagonista carrega e as limitações que isso gera em sua vida; enquanto em It Follows a associação com qualquer DST é óbvia, mas muito funcional. Os dois filmes usam da mesma proposta pra refletir essa presença de um problema pessoal e permanente na personagem, sem solução e que persegue as vítimas pelo resto de suas vidas, sem que nenhum amigo possa entender de fato do que se trata.
Porém, as diferenças que cada um dos filmes escolhe seguir também são muito proveitosas de se pensar sobre. Halloween 2 continua com as convenções estabelecidas no auge do Slasher e cede espaço em seu filme para mitificar a figura do vilão, criando um temor em cima de sua figura imponente, forte, máscula e mascarada, o símbolo de um poder masculino e dominante que persegue jovens que se aventuram sexualmente. É o assassino na ideia de uma moral americana que faz a vigília do subúrbio. Já em It Follows, há uma desconstrução literal da figura do matador, pois o filme não segue a "Coisa", pelo contrário, foca nos temores irremediáveis e irracionais da vítima; e também ao possibilitar o vilão se transfigurar em diversas formas, usando a que mais se adequa no momento, o que dialoga com a ideia do medo sem conseguir racionalizá-lo em algo, sem haver uma forma definida que sustente essa sensação. Assim, esse sentimento sorrateiro é angustiante e se une muito com o vivência com a DST que o filme trata, a dor ilógica e o perigo sorrateiro que todo portador carrega para o resto da vida.
Gosto de pensar em Baby Driver como um filme bem representativo dessa geração. Wright, dentro dos blockbusters, talvez seja dos diretores que mais entende a cabeça e a cultura millennial, o cara é um pouco de John Hughes pros anos 2010. Se Scott Pilgrim funciona pelo domínio que ele tem da construção de um mundo nerd fracassado que passa o dia jogando video game, lendo HQ e fantasiando com a menina bonita que ele nunca vai ter coragem de conversar, Baby Driver condensa toda aquela sensação de elevação moral e sentimental ao colocar o foninho no ouvido e sair por aí se achando o máximo, embalado pela sua música favorita. Nenhum desses dois mundos que citei são específicos dessa geração, mas o modo como Wright articula essas ideias, principalmente pelo tipo de humor que ele emprega nestas situações, são o que conectam tão bem seus filmes com os millennial ou até com gente mais nova. Ele tem o toque cool de quem já dirigiu muito clipe de banda de indie britânico (e seu filme tem a cara de videoclipe, o que prova tanto suas origens como diretor dessa mídia quanto seu entendimento de uma linguagem tão simbólica do público que ele agrada com suas obras) e que busca nas suas referências uma cultura bem pop que conversa muito com a atualidade; nesse quesito de referências e transformar tudo em um derivado popular, o Wright me lembra Tarantino, mas curiosamente acho que ele já tem Tarantino como uma dessas possíveis referências que desembocam nos filmes que ele traz.
Sobre o filme, Wright desenvolve a ideia que ele originou no clipe do Mint Royale em 2003 e faz Baby Driver todo em volta disso. O prazer em pegar o ipod, conectar o fone e escolher aquela música favorita como trilha da sua atividade é transfigurada em cinema de ação, logo, em carros a altas velocidades. O filme abraça essa sensação para potencializá-la e isso repercute na forma, musicada e editada como foi, que dá ao filme seu principal atrativo, o modo como transforma cada sequência esgotada pelos inúmeros filmes pipocas que saem ano a ano em sequências sublimes de puro entretenimento visual e auditivo. Mais do que suas qualidades técnicas, vejo que o motivo pelo qual os melhores momentos de Baby Driver chamaram tanto a atenção do público já acostumado com blockbusters é como Wright inseriu as sensações já descritas para dentro de seu filme. O jovem que se fecha no seu mundo musical para esquecer do redor e de seus pensamentos/traumas (representados pelos chiados originados na morte de sua mãe) e que possui dificuldades em se relacionar com os mais velhos é o puro acerto preciso para criar um protagonista identificável pelo público dessa idade.
Em determinado momento do longa, Baby ao passar pelos canais de TV encontra passando na tela: Os Batutinhas, Monstros SA, Clube da Luta e uma tourada. Tal sequência soou muito simbólica para mim, podemos pensar a partir daí algumas referências que o filme tira dessas obras para seu texto, do papel de Baby como um toureiro ágil que desvia dos "touros" ao estar no volante até os pequenos ideais anarquistas de Fight Club que vez ou outra aparecem nas falas das personagens do filme. Entretanto, o mais representativo para mim é como essa miscelânea, à primeira vista pouco coesa de referências, representa tão bem o cinema de Wright e o que ele traz aqui. É a mistura de diversos elementos pop, de animações infantis a filmes construtores da cinefilia de muita gente (e provavelmente da dele também) que levaram ao diretor fazer seu cinema desse jeito, é a base do cinema pulp de Edgar Wright.
E dentro desse pensamento sobre o Cinema que influenciou o diretor, é notável como seus filmes gostam de brincar com gêneros e subvertê-los em prol da comédia ou usarem de suas bases para tirar humor da convenção. Aqui, a ideia de misturar os dois gêneros mais dependentes da coreografia possui muito potencial, o musical e a ação necessitam, nos seus filmes mais formais, de um controle de mise en scene muito criativo para funcionarem, pois está no deleite visual dos movimentos em tela (e da tela) seu pilar de força. Portanto, é daí que Baby Driver tira seus melhores e seu piores momentos. As primeiras sequências de ação são arrebatadoras ao apresentarem a ideia inovadora que o filme vai trabalhar e por fazê-la tão bem; a sincronia dos sons diegéticos com a trilha dos fones de Baby e os movimentos de câmera e de atores compassados com o que ouvimos é muito estimulante. Porém, fico com a sensação de que todas as ideias que o Wright tinha para esse exercício visual e sonoro foram esgotadas ali, o que acaba por deixar a perseguição final aquém do que tinhamos visto previamente. Sinto falta de um final que faça jus a um clímax de fato, o próprio fim do filme já mostra o esgotamento do artifício e esclarece a dificuldade em sustentá-lo por tanto tempo.
A Trilogia Cornetto inteira não é algo que me empolgue, acho os dois anteriores até que interessantes, mas nada demais. Já The World's End é facilmente o menos inspirado entre eles e talvez de toda a filmografia do Wright. A premissa inicial é tão envolvente, parecia um Wright com menos flerte ao gênero e mais dedicado a tratar sobre memória, nostalgia, amizade e afins; fazia sentido se tratando de o fim de uma trilogia que propunha trabalhos tão ligados as figuras de Pegg e Frost, parecia muito potente algo mais centrado na relação de seus ótimos personagens, concentrando o humor na figura do King. Quando a virada vem, vem também aquela necessidade do espectador se adequar a nova rota que quando bem feita deixa quem assiste muito mais curioso e surpreendido pelos fatos que vão aparecendo; problema que aqui a novidade perde força muito rápido, o filme insiste em dar voltas dentro dessa nova perspectiva, cansando bem rapidamente, até porque as cenas de ação, que são fundamentais nesse novo caminho, acabam bem desinteressantes.
Acho bem fácil de associar a proposta do Wright com o que o Carpenter faz em They Live, tanto tematicamente, quanto narrativamente. A diferença é que no scifi de 1988 o tema é tão bem trabalhado dentro do gênero que o filme entra, há um trabalho tão forte de explorar esse novo mundo apresentado dentro da visão do scifi que só John Carpenter tem mão pra fazer. Wright explora tão pouco o tema que ele inventa pra essa história, até me questiono se seu filme visa de fato algum subtexto mais claro, ou usa da surpresa só como recurso non sense para a comédia. Em ambos os casos, fracassa. Essa falta de aprofundamento na questão dos robôs nos deixa sem ter no que se preocupar, não há razão para eles estarem sugando os humanos, a gente não entende as motivações e os perigos da situação, vez ou outra algum personagem entra para explicar como aquilo teria iniciado, mas soa tão artificial e raso que não funciona para validar os acontecimentos. Wright aposta em poucos diálogos e na cena dentro do último bar para colocar as intenções de seu texto, o que pra piorar acaba sendo disparado a pior cena do filme. Aquele momento no qual eles conversam com a luz whatever é constrangedor e não em um bom sentido.
Se Kill Bill fosse pensado por um nerd gamer ao invés de um cinéfilo pirado em filme de lutinha asiático.
Edgar Wright entendeu a cabeça de um nerd loser (que é basicamente a única personagem que o Michael Cera sabe fazer) e montou um universo à HQ inteiro em volta disso. Desde o 1º minuto já fica muito claro a abordagem e a construção de mundo que o Wright está tentando criar, vem com a mesma irreverência das suas outras comédias só que aqui ele se aproveita mais da forma pra acrescentar no humor (que pra mim funciona melhor que em todos seus outros filmes). Ele insere várias gags e detalhes do mundo dos games que já servem de anúncio para a narrativa gameficada que seria montada depois de alguns momentos; poderia ser tão ruim esses detalhes que vão sendo inseridos (as informações sobre os personagens, a pontuação a cada conquista, os efeitos ao tocar música), mas funciona bem demais porque dialoga com o mundo que o Wright vai propondo e aprofundando a cada cena, acaba por criar dos filmes mais divertidos com inspirações claras a mídia dos quadrinhos.
Todos os filmes do diretor abusam bastante das possibilidades da montagem para potencializar suas cenas, em Shaun of the Dead com os planos-detalhes ritmados, em Hot Fuzz para agilizar os momentos de ação e em Baby Driver é onde o recurso é mais exercitado, para conectar toda a musicalidade com as imagens em um nível bem tecnicista. Aqui, é muito fundamental como a montagem agiliza e constrói esse mundo fruto de uma imaginação muito criativa da cabeça do Pilgrim, principalmente ao ir ligando cenas sem nem deixar que a primeira termine, que uma fala seja dita até o fim; o dinamismo que isso vai dando a trama é muito estimulante para a narrativa e um traço primordial para o universo que ele propõe.
Por fim, as piadas que ele testa, das mais infames ditas pelo Gideon até as situações que se resolvem com um humor inesperado como a luta com o vegano ou o toque vitorioso atrás do joelho, me parece que funcionam para um nicho muito específico, são piadas meio nerds meio autodepreciativas com potencial de soarem toscas demais pra muita gente. Ainda assim, é legal de pensar esse cinema nerd cinéfilo que o Wright nunca escapou desde o começo da carreira.
Maior qualidade do Wright aqui é facilmente como ele concilia a agilidade da edição do Chris Dickens com a encenação proposta por ele, bem mais que suas ideias de paródia dentro do gênero. Os planos sequências que acabaram por serem os momentos do filme que mais duraram na memória da cinefilia se aproveitam, assim como tantos outros momentos, das rimas que o filme testa ao repetir o mesmo movimento só que com consequências diferentes. Os planos detalhes que agilizam a narrativa ao serem colocados em sequência e ritmados dialogam com toda a atmosfera urgente do filme devido ao apocalipse zumbi; isso acaba sendo a unidade total do filme. A urgência composta pela edição, direção, trilha e pela performance apavorada dos atores no meio daquele caos.
Uma pena que, pra mim, a veia cômica não funcione, tanto no humor mais visual e escrachado, quanto nesse humor mais inglês padrão do Wright e do Pegg. Por fim, mesmo não funcionando tão bem comigo, é de se destacar o quão difícil é fazer algo que sintetize tão bem o estilo do Wright dentro do gênero zumbi. Pensei muito no The Dead Don't Die do Jarmusch que também é uma tentativa de pegar a premissa de apocalipse zumbi, com uma abordagem cômica, e tratar nesse cenário suas características autorais. E evidente que aqui deu muito mais certo que lá.
Cupido Não Tem Bandeira
4.0 56Frenético e afiado. Bem absurdo o ritmo que o filme sustenta na segunda metade, logo quando MacNamara resolve transformar o Otto em burguês; a encenação é quase teatral e cada entra e sai dos personagens do cenário vai ritmando o que acontece em tela, sempre com Cagney falando e falando muito quase que sem respirar. Esse fluxo crescente de pessoas que entram e interagem com MacNamara para decidir um sapato, uma roupa e afins, vai gerando as situações cômicas justamente pela situação de transformar um comunista em filho de burguês, mas principalmente pelas ideias que no começo pareciam absurdas, mas vão dando sinais que funcionarão. E é nos acertos cômicos que o texto de Wilder se mostra afiado e muito sutil quando quer alfinetar e também mais direto na situação como um todo. Difícil situar a ideologia do filme em algum extremo do campo político, mesmo que a maioria das interações zombem de uma certa ideia de precariedade das nações comunistas, pois diversos pequenos detalhes e diálogos sustentam uma posição mais crítica do diretor ao funcionamento capitalista. Os funcionários que reagem quase que militarmente ao seu chefe, a visão de pessoas como moeda de troca e o endividamento de Otto logo a se tornar capitalista são pequenos pontos que Wilder aproveita para também satirizar o seu lado. É notável um certo diálogo no que o diretor trabalha em The Apartment e aqui, principalmente no que tange as relações de trabalho e a dinâmica patrão-empregado; em ambos os escritórios recheados de mesas e funcionários com ações robotizadas, a submissão deles pelo patrão e a intensa presença de um domínio de quem manda em que é mandado contextualizam bastante o que Wilder devia estar refletindo na época de Guerra Fria e que preenchem o subtexto da comédia que foca em narrar.
Se Meu Apartamento Falasse
4.3 422 Assista AgoraA melancolia da vida solitária na metrópole engolida pelos prédios, trabalho e a concorrência que gratifica o menos moral com essa falsa sensação de poder na qual se esconde os vazios com autoritarismo, machismo e necessidade de aceitação.
Lemmon é quem dita o ritmo do filme, difícil falar em transição para a comédia e para o drama porque um nunca dá lugar ao outro, estão sempre os dois lá, misturados, o ator controla qual se evidencia mais; mesmo nos seus momentos mais bem humorados sempre há sua solidão e fragilidade escondida em suas feições e em suas atitudes. Mesmo com atitudes questionáveis e uma vontade em parecer quem não é, no trabalho e no apartamento, Wilder nutre um carinho pelo protagonista; a delicadeza como encena a cena do espelho quebrado, ponto chave para o crescente drama que se nota depois desse momento, é memorável, o diretor dá o tempo necessário para Lemmon digerir todas as informações que vêm a sua mente no momento em que se vê despedaçado no espelho. A simbologia é bem direta e por si só magistral, mas o modo como o diretor permite seu protagonista receber a verdade sobre Kubelik enquanto mantém o controle da situação é mais notável ainda. Ainda mais se lembrarmos que Kubelik também tinha acabado de receber uma informação tão impactante para seus sentimentos quanto Baxter, portanto, eram os dois personagens mais fragilizados de The Apartment nessa ilusão de confiança e de felicidade. É isso que Wilder busca e, como gênio que é, acha: o diretor escancara o mais interior de seus personagens enquanto estes tentam segurar as máscaras que usam no meio em que vivem; podem até conseguir entre eles, mas nós sempre captamos o mais interiorizado sentimento de cada um.
Mais dramática que a cena citada, é a tentativa de suicídio de Kubelik montada paralelamente com a melancolia de Baxter amargurado no bar. A situação do protagonista até que melhora, encontra outra mulher e o clima fica até mais otimista, mas é só chegar à sua casa que a seriedade volta à tona e não temos ideia do que pode acontecer. Wilder não explora o sofrimento de Kubelik nem aprofunda demais nos seus pensamentos e no seu sofrimento para fazer o que fez, mais importante para o diretor é a relação entre os dois, como cada um vai entendendo as fragilidades e mentiras do outro e se conectando justamente nessa necessidade em se portarem como quem não são. O diretor não faz de Baxter um canalha, muito menos de Kubelik uma coadjuvante burra, como em outros de seus filmes, aqui o filme existe para eles, torcemos pela redenção de cada um e pelo desmonte dessa estrutura de poder e influência personificada em Sheldrake.
O patrão é a figura mais detestável do filme, quem tem o poder e sujeita os menos privilegiados a trabalhos sujos caso queiram subir na carreira. Sua relação com Baxter exige a ilusão laboral, assim como os outros funcionários que abusam do personagem de Lemmon em troca de favores; sua relação com Kubelik é a ilusão amorosa que o seu poder de patrão permite ter. Sheldrake, assim como todos em The Apartment, veste sua máscara e engana tanto sua família quanto suas amantes, a diferença é que no seu caso não há fragilidade por trás, não há a um contexto que o pressione, como há nos casos de seu empregado e sua amante. A existência de Sheldrake é justamente o que produz as fraquezas em Baxter e Kubelik. Quando estes se libertam dele, estão livres para recomeçar sem nada que os prenda; é Ano Novo.
Bob, o Jogador
3.7 16A trama ordinária faz com que não haja algo imprevisível no que vemos, de um lado um gangster tramando assaltar um banco e do outro um policial louco por um grande roubo para desvendar; o conflito entre as partes é inevitável. O que mais desperta interesse em Bob le Flambeur é como Melville localiza e trabalha, mesmo que superficialmente, o ambiente em que sua história se passa. A Paris noturna, iluminada pelos letreiros de bares e casas de apostas, poluída pelos cigarros e frequentada pelas pessoas menos morais que se possa imaginar é o palco mais interessante possível para se desenvolver um noir. A conexão é até bem óbvia, mas a Paris do filme remete ao que Scorsese exercitaria na Nova York de Taxi Driver, observar o submundo da metrópole seguindo os passos de seu protagonista tão mergulhado naquela realidade, captando suas relações e intenções naquele meio. E por isso, achando sua história nas ruas parisienses, ponto primordial para o surgimento da Nouvelle Vague, é que Melville faz um filme que supera o genérico, seu trabalho visual é estimulante no noir e promove uma elegância bem característica dos retratos da máfia no cinema, diferente da crueza que Scorsese busca no seu, condensando a oposição mais chamativa do estilo: o glamour dos personagens e o ambiente corrompido que se inserem.
Sabrina
4.1 332 Assista AgoraBem mais essencial que uma certa coerência nas decisões e sentimentos das personagens, o que em "Sabrina" às vezes se confunde, é a essência de um romance cômico que Wilder estabelece entre seus protagonistas e nosso romance por eles também. Há uma série de interesses subentendidos nas atitudes de Linus e Sabrina que variam com frequência, levando a uma quantidade de reviravoltas consideráveis nos minutos finais do filme e uma conclusão para alguns inimaginável. Entretanto, "Sabrina" acaba por ser um ótimo exemplo de como a criação de um universo e uma encenação que estabelece essas regras, de um mundo ingênuo apaixonado nesse caso, é bem mais importante que outros detalhes. Chega a me lembrar "The Big Sleep" do Hawks, também com o Bogart, que estabelece uma unidade definidora do que é um noir e isso acaba sendo o suficiente para um filme memorável, independente da trama ser toda mal resolvida. Em "Sabrina", a inicial inocência da personagem de Hepburn que mesmo se tornando mais madura permanece com as mesmas idealizações de antes traz uma leveza e um jogo de incertezas sobre o que decidirá fazer que é o mais essencial no que Wilder buscava contar. A elegância de Bogart e a imaturidade de Holden fecham esse triângulo amoroso que gira em torno da personagem principal. O medo burguês de uma pobre entrar para a família e os interesses empresariais no casamento de David são mais uma fachada para que Hepburn e Bogart magnetizem todo um filme para eles e conduza um romance sutil e cômico ao mesmo tempo. Os dois na quadra de tênis, Hepburn cantando, a noite na indústria; são esses momentos que fazem "Sabrina" dos romances mais memoráveis.
Inferno Nº 17
4.0 54 Assista AgoraTransformar um cenário desse em comédia sem precisar aliviar nazismo é tudo que Jojo Rabbit queria ser mas não consegue. Ao mesmo tempo que Stalag 17 é um respiro de otimismo ao evitar mostrar o sofrimento dos militares que acabaram na mesma situação dos protagonistas, Wilder utiliza a comédia sempre com um quê trágico por trás das situações. Ver humor em homens que salivam por uma casca de ovo, que se hipnotizam pelo amigo fantasiado de mulher e são suprimidos a não denunciar os maus tratos na pouco eficiente visita de Genebra sempre vêm carregado de uma denúncia e de uma tristeza que aquelas casernas guardavam dentro de si. Quase todas as gags que o diretor tenta conseguem ser cômicas, a dupla de amigos funciona bem demais e sempre puxam a comédia para balancear com a trama do espião. Entretanto, o mais fundamental em Stalag 17 é entender que o filme não se sustenta como esse suspense em descobrir o x-9, há um foco nas cenas de Wilder em explorar a relação e a personalidade de cada integrante da caserna protagonista. Não é nada fácil desenvolver tão bem cerca de 7 ou 8 personagens entre os que lá habitam, criando características peculiares para cada um e transmitindo isso para quem assiste sem ficar confuso. A encenação do diretor aproveita o espaço dentro do recinto de todas as maneiras possíveis, faz com que aquele pequeno espaço pareça ser imenso pelo tanto de modos que Wilder encontra para filmar. Seu uso da profundidade de campo e da movimentação dos atores gera um dinamismo quase impossível no meio daqueles beliches e do entra e sai de pessoas. A descoberta do espião e a posterior fuga é mais um pequeno ato dentro da vida daqueles militares, tanto que logo depois de concretizada, Wilder não se interessa pelo caminho que irão seguir e nem se vão ter sucesso em prolongar a fuga; sua lente já volta para dentro da caserna em clima de Natal e nos amigáveis diálogos entre seus personagens.
A Montanha dos Sete Abutres
4.4 246 Assista AgoraFilme mais político de Wilder, usando como nunca sua acidez e ironia para evidenciar as falhas e oportunismos da mídia e do capitalismo. Homem branco se aproveitando das terras e da cultura indígena para enriquecer à custa do sofrimento alheio. Após a ideia ser plantada todos ao redor de Tatum se aproveitam para lucrar com o ocorrido, a mulher de Leo, o xerife, o dono do jornal e quem mais ver nisso uma oportunidade; o sofrimento fica mesmo é para os familiares sem voz na situação. Se ainda discutimos e nos revoltamos hoje com sensacionalismo e jornalismo da desgraça, é importante que tenhamos consciência que o problema não é recente. Wilder, sempre explorando com sutileza as mais problemáticas corrupções do ser humano, revela aqui nossa sede por tragédia e nosso encanto por histórias. A posição de Tatum como jornalista querendo um peixe grande para subir na carreira não é de nenhum mal, seu entendimento em como o público funciona também não. São muito poderosas as lições que solta para os colegas do pequeno jornal, sua reflexão sobre como nós nos engajamos por uma história de uma pessoa só, mas não com a mesma história sendo sobre um conjunto de pessoas, é Wilder vasculhando o comportamento humano à fundo. Mas quando o oportunismo na situação se inicia, é o próprio capitalismo mostrando seus males. O território indígena virando palco para entretenimento, o preço para a visita dobrando com o interesse do público, a instalação de uma roda gigante no local; tudo ali vai revelando o esvaziamento da empatia e do interesse pela real vítima da situação, é um show para o público que a mídia cria e alguém lucra. Quantos casos em nosso tempo de vida não conseguimos listar que fazem a ideia de Ace in the Role parecer mais precisa ainda? É basicamente o "Caso Eloá" fictício da década de 50. Wilder não erra e o que ele chamou a atenção à 60 anos atrás continua incomodando nossas vidas, da indústria massacrante de Sunset Boulevard até a mídia e o sistema oportunista que transforma pobre em atração. Fico imaginando quão sutilmente o diretor precisava se atentar a ser para fazer o que queria nessa Hollywood em épocas de Guerra Fria e Lista Negra.
Crepúsculo dos Deuses
4.5 794 Assista AgoraA tragédia de Norma Desmond, o mundo anacrônico que a atriz decidiu criar a sua volta para não aceitar as mudanças na indústria cinematográfica e sua consequente decadência.
A mansão em que vive é mais que seu refúgio no espaço, é também seu refúgio temporal, onde tudo ainda é regido pelos costumes e onde as glórias do passado continuam a serem cultivadas. Mas parar por aí seria limitado; Wilder constrói naquele glamour de uma mansão hollywoodiana uma própria memória do cinema mudo no qual Gloria Swanson, Von Stroheim, Buster Keaton entre outros nunca deixarão de existir. Lugar este onde os roteiristas, como Joe Gillis, devem sempre retornam para se inspirar e referenciar nos filmes em que escreve. A trama de Desmond é acima de tudo melancólica e comovente, mas a reverência que o diretor constrói a esse cinema que influencia tudo até os dias de hoje também está presente. As expressões "exageradas" da atriz são um traço de como ela parou no tempo e continua reproduzindo os maneirismos do seu tempo, mas terminam, principalmente no último plano, com a mitificação desse cinema passado; Sunset Boulevard é uma reflexão crítica da indústria que faz parte e também uma elevação desse passado a eternidade.
Narrar a história pelo ponto de vista de um cadáver, é, ironicamente, trazer o que já não existe para nos apresentar o presente. Billy Wilder nunca deixa de lado a influência do passado para seu filme e para toda a sétima arte, assim como Gillis defunto nos apresenta o que aconteceu, é o cinema hoje falecido que permite que assistamos cada cena desse filme memorável. E seria impossível homenagear o Primeiro Cinema sem trazer consigo todas as críticas possíveis a essa indústria que transforma anônimos em estrelas e estrelas em defuntos quando assim deseja. Desde a cultura da imagem imposta por Hollywood até a crueldade com seus ex-Deuses. Schaefer primeiro opera seu nariz para se adequar à beleza de uma atriz, para depois ser renegada por sua falta de talento; como sempre em Wilder, são nos diálogos mais banais que o autor insere sua ironia tão ácida e que não perdoa nada que ele mire. A sequência de processos pelos quais Norma passa para se embelezar rumo a sua volta às telas é quando o assunto se apresenta de forma mais direta possível, a transe que a atriz vive e esforça-se para se embalsamar viva, suas fotos que eternizam suas imagens passadas, os processos na tentativa de evitar que envelheça. Há a busca por uma auto eternização fundamental para continuar no auge. Porém, é inquestionável que a personalidade e a trajetória melancólica de Desmond seja o mais primoroso de Sunset Boulevard. São os trejeitos que Swanson encontra para a personagem que a coloca na história do cinema, é a compaixão de Max ao cuidar dessa redoma anacrônica para proteger a atriz da verdade, é a falsa esperança que ela nunca deixa de emanar a respeito da sua volta, é a leve crueldade com a qual Norma é tratada no estúdio e, claro, seu ato final já tomada pela loucura.
É isso, na paixão que um artista tem pela história de sua arte, Wilder com Sunset Boulevard honra o cinema que o criou, do mesmo modo como Scorsese faz questão de trazer à tona em Hugo e em toda sua carreira. É a melancolia de uma estrela que foi esquecida pelo mundo, pelos seus colegas e precisou se trancar em um mundo próprio (inclusive, como ainda é atual essa questão, a busca pela fama e a depressão de quem a perde repentinamente).
Ao voltar ao cinema de seu passado, Wilder o eterniza no presente e também se coloca tão eterno quanto suas referências. Sunset Boulevard é tão mítico quanto os mitos que busca reverenciar.
A Mundana
4.1 18Tem uma ironia que funciona muito bem ao criticar a conduta de alguns militares, de um dos congressistas ser visivelmente comunista e criticar o imperialismo, do embate entre a moral de uma boa americana contra o corrompido militar na Alemanha. Triste o arco dramático da Phoebe ser tão fraco, ela vai de alguém objetiva e correta que parecia ser quem investigaria a conduta de Pringle para alguém totalmente cega e somente uma peça para um humor tão besta de mulher apaixonada e ingênua. Wilder monta algumas cenas altamente dramáticas e que propõem uma situação tensa por revelar um twist na trama, entretanto suas resoluções são sempre abaixo do esperado; quando Phoebe descobre a verdade sobre Pringle, o encontro dos dois com Erika pela primeira vez etc. Ainda sim, são visualmente lindas, o modo como usa os reflexos nesse filme para retratar os três personagens principais marca os principais confrontos entre eles.
Farrapo Humano
4.2 225 Assista AgoraSe Wilder é lembrado até hoje por ser um diretor que sempre buscava abordar o ser humano trágico, com valores questionáveis e em situações delicadas, "The Lost Weekend" é dos seus primeiros filmes, o que mais faz jus a esse resumo de ideias. Surpreende o modo como o alcoolismo é retratado e entendido nesse filme em plena década de 40, principalmente se pensarmos que até 12 anos antes a Lei Seca vigorava e se sustentava por um discurso de moral e culpa, o qual vilanizava a conduta pessoal sem um entendimento da atitude como dependência química. O texto de Wilder por vezes acaba caindo em uma exposição muito didática da relação do dependente com a bebida, quase que uma aula do Proerd, mas em sua maioria há uma abordagem quase poética e bem delicada dessa relação. O personagem de Miland esclarece para o homem do bar seus sentimentos e sua posição derrotada nessa batalha contra a bebida de um modo tão comovente que faz quem assiste se solidarizar por Don Birnam.
A proposta de Wilder é evidente em sua tentativa de esclarecer essa conexão irracional entre o protagonista e suas doses de whisky, sempre reforçando a passividade que Birnam tem nesse vincúlo, e é impossível até para o mais mal intencionado criticar a "falta de vontade" do personagem, ou algo do tipo, pois o diretor concretiza sua visão de como funciona o alcoolismo. Muito dessa efetividade vem pela maneira como aborda o vício visualmente; o modo quase onírico, embalado por uma trilha incrível que me remeteu constantemente a Star Trek pelo caráter quase sci-fi, de como é colocado a reação de Birnam ao ver um copo ou uma garrafa de álcool, a reação de suas câmeras que aumenta o frenesi quando Birnam se vê tentado a ceder mais uma vez e, claro, a atuação histórica de Milland segurando o filme quase sozinho e tendo uma potência absoluta em retratar a derrota do protagonista pelo vício.
Ainda falando da encenação de Wilder, aqui fica tão evidente a influência de Welles e Cidadão Kane para o cinema americano que é impossível não comentar. Destoa demais dos filmes anteriores do diretor o modo como ele aproveita a profundidade de campo para compor suas cenas; em "The Lost Weekend" o proveito disso é gigante. A luminária encenada no fundo do plano enquanto Birnam sofre para lembrar onde tinha escondido a garrafa é mais um dos planos que Wilder acha e que contam uma história toda em si próprio.
Enfim, continua absolutamente atual, compreensivo e sintetiza demais os efeitos do vício em uma pessoa. O modo como a história de Wilder ainda relaciona o álcool com a frustração de um escritor fracassado, a perda de resposta a estímulos, o surto surreal do viciado vendo o rato e o morcego e a importância de ajuda dos hospitais e dos familiares fazem de The Lost Weekend um filme fundamental.
Pacto de Sangue
4.3 247 Assista AgoraDifícil dizer qualquer coisa que não seja: Noir definitivo.
Muito diferente de tudo que Wilder tinha dirigido até então, aqui há uma recusa pelo artifício que tinha usado em seus outros filmes, não há mais aquela informação entregue ao público e que precisa ser escondida durante todo o filme. Pelo contrário, inicia-se pela derrota e nos confessa os segredos aos poucos, o que potencializa a melancolia presente nesse noir, ainda mais o filme sendo basicamente uma confissão, um atestado de fracasso dessa ação passional e subversiva.
Phyllis é a femme fatale perfeita. A mistura de sexo e perigo mais icônica possível, acompanhar sua apresentação pela visão de Neff engrandece ainda mais suas características, a paixão instantânea que o protagonista desenvolve por ela e que o faz tomar todas suas atitudes é a prova de sua influência sobre todos que aparecem em sua volta. Sua faceta mais perigosa vai sendo revelada aos poucos e quando nós e Neff tomamos noção dos interesses de Phyllis não há muito a se fazer. Os últimos 20 minutos de Double Indemnity elevam tudo a um nível muito inesquecível. O diálogo entre os dois é uma trocação de movimentos na tentativa de um xeque-mate; quando o tiro vem, as esperanças vão. Ver Neff entregue a Keyes e depois se arrastando na tentativa de escapar é das maiores melancolias que um noir poderia atingir. É, de fato, definitivo.
Cinco Covas no Egito
3.9 28 Assista Agora"Five Graves to Cairo" tem uma das premissas mais interessantes que lembro de ter assistido, como é incrível a situação de um soldado inglês que precisa se passar por um garçom em um hotel para fugir dos inimigos alemães e logo descobrir que o garçom falecido que ele substitui na verdade era um espião nazista no Egito. Só consigo pensar nesse filme sendo feito hoje abusando de suspense e tensão em todas as situações possíveis. Dá pra imaginar um filme à Missão Impossível com Tom Cruise de Davos, no qual haveriam umas 5 cenas onde os nazistas por pouco não descobririam a real identidade do inglês e a tensão estaria a níveis absurdos. Só que Wilder foge diversas vezes dessa opção que poderia gerar um filme tão desgastado nesse artifício e opta por um drama, com momentos tensos é claro, mas que prioriza a relação entre as personagens dentro daquele hotel, enfatiza o subtexto da guerra e insere inúmeras situações cômicas tanto com o gerente Farid, quanto com o soldado italiano. O resultado é bem mais interessante do que um exercício de suspense e é nas pequenas pontas soltas de informação que o filme vai nos revelando durante a trama que concretizam a tensão final quando é preciso. Wilder nos entrega algumas preocupações para ficarmos de olho enquanto o filme se desenrola, é o cadáver no porão, a arma roubada, os códigos alemães e a perna manca que temos certeza que em algum momento vai se revelar para os nazistas. Mais incrível ainda é como o diretor une tudo isso ao final em uma única situação que transforma os perigos em ação de fato, onde o filme atinge seu ápice.
Vendo os filmes do diretor em sequência e já lembrando de alguns outros que vi dele, é curioso notar como Wilder escreve seus filmes com uma premissa bem similar, seja nas comédias, seja nos thrillers. Quase sempre seu protagonista esconde uma mentira de outra personagem, mentira essa que nós, espectadores, temos ciência de qual é, e é daí que o diretor tira suas situações tanto de ação, quanto de comédia. É Ginger Rogers se passando por uma garota de 12 anos e é J.J. Bramble como garçom nazista. Tal recurso faz com que quem assiste se conecte muito rápido com quem o filme acompanha, já que nosso instinto primeiro é torcer para que o protagonista consiga esconder sua informação o máximo de tempo possível. Em "Five Graves to Cairo", Wilder abusa do recurso, pois logo no início é Farid quem esconde a presença do soldado inglês do exército alemão, para depois ser Bramble que esconde sua informação dos nazistas e depois Mouche quem esconde outra informação dos inimigos. Há essa repetição de recurso sempre contra os mesmos nazistas que também funciona para construir uma figura de estrategistas muito inteligentes, no qual é preciso muito cuidado para que se possa virar a guerra contra eles. Por fim, com a guerra ainda em andamento, há um patriotismo muito controlado em "Five Graves", acaba por ser muito mais trágico do que patriótico as resoluções que encontramos. Mouche, mesmo coadjuvante na história toda, é das personagens mais emblemáticas e inteligentes da história toda. Há nela uma abordagem quase noir que serve de anúncio para o que Wilder exercitaria em sequência.
A Incrível Suzana
4.2 33Primeira direção de Billy Wilder no cinema americano depois de diversos roteiros escritos e o sucesso alcançado por "Ninotchka". Comédia screwball em basicamente todos seus aspectos, o romance satirizado, a mulher como protagonista e pessoa inteligente dentro da situação e os homens ingênuos e manipuláveis correndo atrás de Ginger Rogers. Wilder, entre os diversos diretores que assisti cronologicamente, é dos que mais se destaca pelo domínio da linguagem cinematográfica logo em seus primeiros trabalhos de direção, pois o modo como lida com a comédia e insere as gags dentro das situações continua funcionando bem demais, mesmo com um tipo de humor tão diferente do atual. Pra quem ainda trabalharia com Monroe e Hepburn, Wilder já investe suas lentes a musas que dominam seus filmes. Aqui, Ginger Rogers é a força motriz de tudo que cerca The Major and the Minor, do seu começo femme fatale renegando as investidas masculinas até sua persona de 12 anos que ocupa grande parte do filme. Não há nada de maneirista nas câmeras de Wilder, mas seu modo convencional é o que permite que Rogers domine as situações cômicas e que seus diálogos fiquem marcados depois de assistir ao filme. Como eram bons os diálogos que esse homem escrevia. Totalmente impossível de imaginar esse filme sendo feito nos dias atuais, mas eu ainda acho o final incrível.
Semente do Mal
3.1 11 Assista AgoraPrimeira direção de Billy Wilder, feito na França, logo antes de se mudar para Hollywood e lá fazer história. Dos meus diretores favoritos e que logo de cara já mostra algumas das assinaturas que marcariam sua carreira. Diretor muito menos da encenação característica e autoral, mas mais da força dos diálogos, dos atores marcantes e de como transitava entre os gêneros.
Um debut bem profissional e com ótimas sequências de perseguição de carro, momentos cômicos e uma história bem interessante e bem contada. O melhor ainda estava por vir.
Longe do Paraíso
3.8 170 Assista AgoraRevendo Far From Heaven dentro da cronologia de filmes dirigidos por Todd Haynes começa a se desenhar um mote temático primordial nos filmes do diretor e que aqui continua presente: A desmoralização e revelação do jogo de aparências da sociedade americana e do tal american way of life. Algo que pode ser visto em "Superstar" com os dramas de Karen Carpenter e a abordagem da mídia com sua imagem, os problemas internos desse tipo de família convencional em "Safe" e aqui a ruptura com a figura coletiva do sonho americano de vida dentro dessa família pequena burguesa de subúrbio e sua relação com a sociedade preconceituosa da época. As denúncias mais óbvias de homofobia e racismo já revelam diretamente os problemas da época (e que continuam), mas também pequenos trejeitos e atitudes de Cathy, que pode ser pintada como a branca conciliadora, reforçam o preconceito estrutural daquele núcleo, principalmente visto no seu temor ao ver um negro no jardim, sua escolha defensiva de se distanciar de Raymond para manter o jogo de aparências e a presença da empregada negra em sua casa símbolo de um anti racismo que não abre mão de seus privilégios de classe e etnia.
A escolha do melodrama para emular os anos 50 americanos não é a toa e serve para conversar com o cinema hollywoodiano da época, é claro. Ao observar o período, por tabela observa o cinema produzido na época e dentro desse gênero/estilo, refletindo também sobre o modo como o negro era retratado no período. Brincar com esse distanciamento temporal e escolha de gênero que tem como marca um sentimentalismo mais intenso e acima do normal funcionam para propor reflexões que funcionam do mesmo modo, mas se aproveitam de uma noção de "outros tempos" para colocar o dedo na ferida de pautas absurdamente atuais. E ao trazer de volta esse cinema clássico americano, nada mais clássico do que uma despedida na estação de trem; despedida essa que conclui a impossibilidade de conciliação em uma sociedade estruturalmente racista, enquanto o homem branco pai de família resolve seus problemas sem grandes consequências e aprendizados, o negro inocente precisa se afastar para mais longe ainda.
John Wick: De Volta ao Jogo
3.8 1,8K Assista AgoraGosto como toda a encenação da ação conversa com a personalidade de John Wick, a eficiência de cada movimento e o modo frio de abordar cada uma das sequências, sem nunca optar por uma agitação maior, mesmo nas cenas de explosão e correria. Um filme de ação que preze mais por colocar sua força na coreografia do que na grandiloquência de seus cenários e dos feitos do protagonista é um respiro interessante para Hollywood e que possui uma qualidade admirável em como aproveita a geografia de seus espaços para potencializar cada enfrentamento e localizar as lutas dentro do que se mostra. Todos os momentos que aprofundam e dão vida a este Universo são divertidos para convencer do background desse submundo assassino e de como John Wick está familiarizado com ele.
O investimento do filme em construir o mito John Wick bem antes dele entrar na ação de fato tem muito estilo e aumenta demais nossa expectativa para o confronto final. Infelizmente pra mim ainda existe uma hiper estilização que soa fetichista e força demais algo que já estava divertido. Os letreiros nas falas russas, pausas dramáticas para falas de efeito, fumaça nas freadas de pneu, ambientes neon e câmeras lentas. Mas o jeito que isso constantemente é reforçado termina por ser tão desnecessário...
A Caixa
2.5 2,0KA premissa é tão simples e o Kelly consegue tirar disso situações incrivelmente tensas que sustentam uma ameaça convincente durante todo o filme. A incerteza de até onde Steward tem o controle das pessoas e das situações aliado com pequenos medos construídos por meio de perseguições ou até mesmo de olhares macabros fazem um terror de fato. Aqui Kelly prova sua habilidade em imaginar e encenar ambientes com carga emocional muito forte e que conversam demais com quem assiste. A melancolia adolescente em Donnie Darko por si só já o sustenta como um grande filme, muito mais do que suas ideias de viagem no tempo e superpoderes. Porém, lá as ideias não são tão ruins a ponto de desmontarem toda a ambientação que tivera sido construída anteriormente. O plot da turbina de avião faz sentido dentro daquela confusão mental adolescente, mas em The Box, quando Kelly nos vai revelando as respostas para nossas incertezas, seu filme piora constantemente. É bastante frustrante os caminhos que o diretor leva sua história, continua na sua insistência por ideias científicas que justificam seu universo e ainda traz um sadismo moralista e punitivista como centro de suas intenções.
Soa-me muito contraditório o que Kelly nos revela de sua premissa, pois ao mesmo tempo que conclui uma ideia de ciclo de mortes enquanto a ganância humana não for interrompida, o diretor também coloca essas pessoas em um jogo torturante e absurdo que fica difícil de comprar. Conciliar essa ideia reacionária de colocar seu personagem que errou entre a morte e a desgraça do filho com um discurso quase cristão (inclusive situando tudo no Natal) de união sem tirar vantagem dos outros é imbecil demais.
Southland Tales - O Fim do Mundo
2.2 168Em Donnie Darko e The Box, o Richard Kelly consegue construir uma ambientação muito mais interessante que a história que conta e, provavelmente, essa é sua melhor qualidade. Nos outros dois filmes, ele mostra um controle bem eficiente do universo que cria e é nisso que reside a força de seus filmes. É a melancolia de Donnie Darko e a ameaça e remorso que sustentam The Box. Tais ambientes são infinitas vezes mais incríveis que suas histórias sci-fi meio sem nexo com essa necessidade de colocar conceitos de portais e viagem no tempo para tratar de emoções tão humanas e que nem se conectam tanto com o que ele traz do gênero.
Em Southland Tales, é mais complicado dizer que seu universo sustentou o filme. A história é tão perdida no meio daquela infinitude de personagens que até seu universo cômico, distópico e semi apocalíptico que às vezes soa bem curioso não consegue conversar com o que ele está querendo contar. Sua proposta de confusão não é convidativa e intrigante à primeira vista, a sensação de não conseguir se situar no que vemos não nos faz aproveitar a viagem, pelo contrário, só resulta em repúdio e desinteresse por algo que está sendo fortemente mal contado. Parece haver algumas ideias interessantes no meio disso tudo que talvez cresçam em uma revisão, entretanto, de cara só parece um filme bem ruim mesmo.
Donnie Darko
4.2 3,8K Assista AgoraFico me perguntando o porquê de Donnie Darko ser tão popular, especificamente com pessoas que estão começando a se interessar por Cinema. Inclusive, eu fui um deles e voltar pro filme uns 7 anos depois foi uma experiência muito forte.
E sobre os motivos de ser um filme tão abraçado, acho que eles vão além do Pipocando (risos), e podem ser resumidos em: Melancolia, narrativa e revolta adolescente. A maior qualidade de Richard Kelly como diretor e do Gyllenhaal como Donnie é como eles transformam cada imagem e cada presença do personagem em um profundo poço de abatimento, raiva, angústia e tristeza adolescente por todo o mundo que o cerca. Cada vez que o diretor opta pela câmera lenta ao filmar a vida de Donnie são segundos a mais que ele coloca seu protagonista vivenciando o momento, enquanto Donnie deseja que tudo ali passe o mais rápido possível. Fechar com "Mad World" é a cereja do bolo de um filme que transmite tanto a saturação do adolescente com as vivências padrões dessa época, algo tão representativo na letra de Gary Jules. O protagonista possui problemas psiquiátricos, tudo bem, mas seu desprezo pela família, pela escola, pelos adultos conservadores, pela fé e pelas lições moralistas que recebe de todos a sua volta é universal da idade e independe de suas condições mentais. A cabeça inclinada para baixo e o olhar cansado e impaciente de Gyllenhaal era o essencial que o ator precisava encontrar para compor D., pois sua presença apática e infeliz compõe a unidade montada por Kelly e resulta em um filme tão simbólico da adolescência e que compreende tão bem o período. Tanto esta melancolia e desencanto profundo pela realidade, quanto a revolta e ódio que esta desperta pelas atitudes tomadas pelos adultos que cercam Donnie são dos fatores que mais conversam com o público no geral. A figura de Frankie acaba por ser a mais reconhecível e gostada por ser cool e bastante gráfica, malvadinha na medida certa pra se conectar com o adolescente e ainda fazer mais sentido dentro do que o diretor está propondo. Entretanto, mesmo com essa curiosidade pelo coelho, é o próprio Donnie que mais chama a atenção destas pessoas e que mais desperta esta conexão; o filme centrado nesse personagem que molda seus ambientes com tamanha exaustão é o resumo de uma vida de quem não interage mais com as crianças, mas também não suporta os mais velhos. Se "Clube dos Cinco" compreendia estereótipos tão básicos da vida escolar e "Ferris Bueller" entregava o jovem modelo que todos queriam alcançar, Donnie Darko encena justamente o oposto, mas que conversa até melhor com a idade, é o jovem que todos já são, não quem queriam ser.
Já sua escolha narrativa confunde e provoca o suficiente para instigar o espectador a pensar sobre o que viu, não entrega quase nada do necessário para se achar as respostas, mas não suporta seu filme justamente nessa busca por entender o quebra-cabeça, havendo toda uma encenação que conecta quem vê, além de uma ficção científica que promove tentativas de resposta. Há as duas provocações em Donnie Darko: a vontade de entender os Universos Tangentes, buracos de minhoca e viagens no tempo e também a entrega emocional de um filme que capta tão bem os sentimentos juvenis em tempos de colegial. Fechando o raciocínio, ao encontrar uma obra que dialoga tão bem com o que você sente e vive todos os dias e propõe um desafio narrativo na medida para que você se debruce em tentar desmontar o mistério, é claro que a paixão pelo Cinema se constrói ali. É o entendimento do poder do cinema e uma baita porta de entrada para um universo infinito. Agora eu compreendo o que o Igor de 14 anos viu nisso aqui.
O Mistério de Silver Lake
3.0 290 Assista AgoraBlue Velvet + Mulholland Drive + Eyes Wide Shut + Alfred Hitchcock + Lady in the Water
Referências visíveis, mas que ao mesmo tempo não dizem muito. Inclusive contraditório ficar pensando em inspirações do Mitchell em um filme que justamente sabota e satiriza essa procura por respostas. Sempre lembrando que toda a cultura pop que nos cerca e também cerca o personagem é mero produto de uma indústria cultural dona de tudo que consumimos. A paranoia da necessidade de buscar significados obscuros em cada ícone das obras extrapolada para a última potência. A hermenêutica da burrice. Um protesto a favor das sensações e não da racionalização da arte. E nessa manipulação de emoções Mitchell é craque. Preciso lembrar de Lady in the Water, não tem como.
Cena do Compositor é GIGANTE.
Corrente do Mal
3.2 1,8K Assista AgoraIt Follows é dos terrores mais marcantes dos últimos anos e interessante pensar como ele se opõe a tendência de filmes do gênero que saíram nos anos após ele. Aqui há uma aceitação muito visível do gênero e o trabalho dentro dele, estabelecendo logo de cara as regras do jogo e exercitando as possibilidades dentro delas. Resgata também a iconografia oitentista do perfil de sua protagonista vítima de um slasher até a estética synth pop concentrada na cena da piscina. A moralidade de It Follows também conversa com o subgênero do terror tão popular nos anos 70 e 80, o olhar punitivista sobre os jovens que se arriscavam fazendo sexo era a justificativa no subtexto das escolhas dos assassinos slashers, enquanto aqui não só a maldição se transmite pelo ato, mas também há na forma do monstro uma conotação sexual, por ser um homem pelado, uma mulher com o peito de fora sentando na vítima etc; existe uma relação abstrata entre prazer e morte que o filme visa se aproveitar.
O filme busca na sensação de vigilância o mal estar do espectador, trazendo insegurança por onde quer que nossa protagonista andasse. Para isso, é muito visível a eficácia dos planos abertos que expandem nosso campo de visão e aumentam a incerteza de que alguém pode subitamente aparecer em direção a Annie. O uso da profundidade de campo e das panorâmicas dialogam com essa unidade, pois permitem brincar absurdamente com os espaços nos quais as personagens são colocadas: Ao percorrer todo o local e mapear diversas pessoas convencionais espalhadas pelo ambiente, o sentimento de risco se dilui e se potencializa por todos os espaços do cenário, já que qualquer um ali, que vem andando do fundo do quadro em direção a frente da tela, pode ser nosso vilão em potencial. Esta incompreensão do que devemos temer já começa na primeira cena do filme e dialoga maravilhosamente com o que iríamos descobrir da natureza dessa maldição no futuro; ao sermos introduzidos já desnorteados, só acompanhando uma vítima e temendo por ela, mas sem saber do que se tratava, já estamos sendo preparados para todo o decorrer do filme, pois embora viéssemos a compreender as possibilidades da "Coisa", continuaríamos sem poder mensurar de que forma ela viria.
Tematicamente o filme me remete muito as ideias que Rob Zombie trabalha em Halloween 2. Ambos absorvem a ideia primária de Carpenter no clássico de 1978: o horror preso dentro de um subúrbio, a interação entre os amigos e vizinhos que aproximam e aumentam a claustrofobia e um mal iminente que chega no clímax. Tanto a inevitável chegada de Myers, quanto a chegada da maldição servem para tratar problemas mais complexos e totalmente internos de cada personagem. No filme de Zombie há junto desse perigo uma análise bem gráfica dos horrores de um estresse pós traumático que a protagonista carrega e as limitações que isso gera em sua vida; enquanto em It Follows a associação com qualquer DST é óbvia, mas muito funcional. Os dois filmes usam da mesma proposta pra refletir essa presença de um problema pessoal e permanente na personagem, sem solução e que persegue as vítimas pelo resto de suas vidas, sem que nenhum amigo possa entender de fato do que se trata.
Porém, as diferenças que cada um dos filmes escolhe seguir também são muito proveitosas de se pensar sobre. Halloween 2 continua com as convenções estabelecidas no auge do Slasher e cede espaço em seu filme para mitificar a figura do vilão, criando um temor em cima de sua figura imponente, forte, máscula e mascarada, o símbolo de um poder masculino e dominante que persegue jovens que se aventuram sexualmente. É o assassino na ideia de uma moral americana que faz a vigília do subúrbio. Já em It Follows, há uma desconstrução literal da figura do matador, pois o filme não segue a "Coisa", pelo contrário, foca nos temores irremediáveis e irracionais da vítima; e também ao possibilitar o vilão se transfigurar em diversas formas, usando a que mais se adequa no momento, o que dialoga com a ideia do medo sem conseguir racionalizá-lo em algo, sem haver uma forma definida que sustente essa sensação. Assim, esse sentimento sorrateiro é angustiante e se une muito com o vivência com a DST que o filme trata, a dor ilógica e o perigo sorrateiro que todo portador carrega para o resto da vida.
Em Ritmo de Fuga
4.0 1,9K Assista AgoraGosto de pensar em Baby Driver como um filme bem representativo dessa geração. Wright, dentro dos blockbusters, talvez seja dos diretores que mais entende a cabeça e a cultura millennial, o cara é um pouco de John Hughes pros anos 2010. Se Scott Pilgrim funciona pelo domínio que ele tem da construção de um mundo nerd fracassado que passa o dia jogando video game, lendo HQ e fantasiando com a menina bonita que ele nunca vai ter coragem de conversar, Baby Driver condensa toda aquela sensação de elevação moral e sentimental ao colocar o foninho no ouvido e sair por aí se achando o máximo, embalado pela sua música favorita. Nenhum desses dois mundos que citei são específicos dessa geração, mas o modo como Wright articula essas ideias, principalmente pelo tipo de humor que ele emprega nestas situações, são o que conectam tão bem seus filmes com os millennial ou até com gente mais nova. Ele tem o toque cool de quem já dirigiu muito clipe de banda de indie britânico (e seu filme tem a cara de videoclipe, o que prova tanto suas origens como diretor dessa mídia quanto seu entendimento de uma linguagem tão simbólica do público que ele agrada com suas obras) e que busca nas suas referências uma cultura bem pop que conversa muito com a atualidade; nesse quesito de referências e transformar tudo em um derivado popular, o Wright me lembra Tarantino, mas curiosamente acho que ele já tem Tarantino como uma dessas possíveis referências que desembocam nos filmes que ele traz.
Sobre o filme, Wright desenvolve a ideia que ele originou no clipe do Mint Royale em 2003 e faz Baby Driver todo em volta disso. O prazer em pegar o ipod, conectar o fone e escolher aquela música favorita como trilha da sua atividade é transfigurada em cinema de ação, logo, em carros a altas velocidades. O filme abraça essa sensação para potencializá-la e isso repercute na forma, musicada e editada como foi, que dá ao filme seu principal atrativo, o modo como transforma cada sequência esgotada pelos inúmeros filmes pipocas que saem ano a ano em sequências sublimes de puro entretenimento visual e auditivo. Mais do que suas qualidades técnicas, vejo que o motivo pelo qual os melhores momentos de Baby Driver chamaram tanto a atenção do público já acostumado com blockbusters é como Wright inseriu as sensações já descritas para dentro de seu filme. O jovem que se fecha no seu mundo musical para esquecer do redor e de seus pensamentos/traumas (representados pelos chiados originados na morte de sua mãe) e que possui dificuldades em se relacionar com os mais velhos é o puro acerto preciso para criar um protagonista identificável pelo público dessa idade.
Em determinado momento do longa, Baby ao passar pelos canais de TV encontra passando na tela: Os Batutinhas, Monstros SA, Clube da Luta e uma tourada. Tal sequência soou muito simbólica para mim, podemos pensar a partir daí algumas referências que o filme tira dessas obras para seu texto, do papel de Baby como um toureiro ágil que desvia dos "touros" ao estar no volante até os pequenos ideais anarquistas de Fight Club que vez ou outra aparecem nas falas das personagens do filme. Entretanto, o mais representativo para mim é como essa miscelânea, à primeira vista pouco coesa de referências, representa tão bem o cinema de Wright e o que ele traz aqui. É a mistura de diversos elementos pop, de animações infantis a filmes construtores da cinefilia de muita gente (e provavelmente da dele também) que levaram ao diretor fazer seu cinema desse jeito, é a base do cinema pulp de Edgar Wright.
E dentro desse pensamento sobre o Cinema que influenciou o diretor, é notável como seus filmes gostam de brincar com gêneros e subvertê-los em prol da comédia ou usarem de suas bases para tirar humor da convenção. Aqui, a ideia de misturar os dois gêneros mais dependentes da coreografia possui muito potencial, o musical e a ação necessitam, nos seus filmes mais formais, de um controle de mise en scene muito criativo para funcionarem, pois está no deleite visual dos movimentos em tela (e da tela) seu pilar de força. Portanto, é daí que Baby Driver tira seus melhores e seu piores momentos. As primeiras sequências de ação são arrebatadoras ao apresentarem a ideia inovadora que o filme vai trabalhar e por fazê-la tão bem; a sincronia dos sons diegéticos com a trilha dos fones de Baby e os movimentos de câmera e de atores compassados com o que ouvimos é muito estimulante. Porém, fico com a sensação de que todas as ideias que o Wright tinha para esse exercício visual e sonoro foram esgotadas ali, o que acaba por deixar a perseguição final aquém do que tinhamos visto previamente. Sinto falta de um final que faça jus a um clímax de fato, o próprio fim do filme já mostra o esgotamento do artifício e esclarece a dificuldade em sustentá-lo por tanto tempo.
Heróis de Ressaca
3.4 507 Assista AgoraA Trilogia Cornetto inteira não é algo que me empolgue, acho os dois anteriores até que interessantes, mas nada demais. Já The World's End é facilmente o menos inspirado entre eles e talvez de toda a filmografia do Wright. A premissa inicial é tão envolvente, parecia um Wright com menos flerte ao gênero e mais dedicado a tratar sobre memória, nostalgia, amizade e afins; fazia sentido se tratando de o fim de uma trilogia que propunha trabalhos tão ligados as figuras de Pegg e Frost, parecia muito potente algo mais centrado na relação de seus ótimos personagens, concentrando o humor na figura do King. Quando a virada vem, vem também aquela necessidade do espectador se adequar a nova rota que quando bem feita deixa quem assiste muito mais curioso e surpreendido pelos fatos que vão aparecendo; problema que aqui a novidade perde força muito rápido, o filme insiste em dar voltas dentro dessa nova perspectiva, cansando bem rapidamente, até porque as cenas de ação, que são fundamentais nesse novo caminho, acabam bem desinteressantes.
Acho bem fácil de associar a proposta do Wright com o que o Carpenter faz em They Live, tanto tematicamente, quanto narrativamente. A diferença é que no scifi de 1988 o tema é tão bem trabalhado dentro do gênero que o filme entra, há um trabalho tão forte de explorar esse novo mundo apresentado dentro da visão do scifi que só John Carpenter tem mão pra fazer. Wright explora tão pouco o tema que ele inventa pra essa história, até me questiono se seu filme visa de fato algum subtexto mais claro, ou usa da surpresa só como recurso non sense para a comédia. Em ambos os casos, fracassa. Essa falta de aprofundamento na questão dos robôs nos deixa sem ter no que se preocupar, não há razão para eles estarem sugando os humanos, a gente não entende as motivações e os perigos da situação, vez ou outra algum personagem entra para explicar como aquilo teria iniciado, mas soa tão artificial e raso que não funciona para validar os acontecimentos. Wright aposta em poucos diálogos e na cena dentro do último bar para colocar as intenções de seu texto, o que pra piorar acaba sendo disparado a pior cena do filme. Aquele momento no qual eles conversam com a luz whatever é constrangedor e não em um bom sentido.
Scott Pilgrim Contra o Mundo
3.9 3,2K Assista AgoraSe Kill Bill fosse pensado por um nerd gamer ao invés de um cinéfilo pirado em filme de lutinha asiático.
Edgar Wright entendeu a cabeça de um nerd loser (que é basicamente a única personagem que o Michael Cera sabe fazer) e montou um universo à HQ inteiro em volta disso. Desde o 1º minuto já fica muito claro a abordagem e a construção de mundo que o Wright está tentando criar, vem com a mesma irreverência das suas outras comédias só que aqui ele se aproveita mais da forma pra acrescentar no humor (que pra mim funciona melhor que em todos seus outros filmes). Ele insere várias gags e detalhes do mundo dos games que já servem de anúncio para a narrativa gameficada que seria montada depois de alguns momentos; poderia ser tão ruim esses detalhes que vão sendo inseridos (as informações sobre os personagens, a pontuação a cada conquista, os efeitos ao tocar música), mas funciona bem demais porque dialoga com o mundo que o Wright vai propondo e aprofundando a cada cena, acaba por criar dos filmes mais divertidos com inspirações claras a mídia dos quadrinhos.
Todos os filmes do diretor abusam bastante das possibilidades da montagem para potencializar suas cenas, em Shaun of the Dead com os planos-detalhes ritmados, em Hot Fuzz para agilizar os momentos de ação e em Baby Driver é onde o recurso é mais exercitado, para conectar toda a musicalidade com as imagens em um nível bem tecnicista. Aqui, é muito fundamental como a montagem agiliza e constrói esse mundo fruto de uma imaginação muito criativa da cabeça do Pilgrim, principalmente ao ir ligando cenas sem nem deixar que a primeira termine, que uma fala seja dita até o fim; o dinamismo que isso vai dando a trama é muito estimulante para a narrativa e um traço primordial para o universo que ele propõe.
Por fim, as piadas que ele testa, das mais infames ditas pelo Gideon até as situações que se resolvem com um humor inesperado como a luta com o vegano ou o toque vitorioso atrás do joelho, me parece que funcionam para um nicho muito específico, são piadas meio nerds meio autodepreciativas com potencial de soarem toscas demais pra muita gente. Ainda assim, é legal de pensar esse cinema nerd cinéfilo que o Wright nunca escapou desde o começo da carreira.
Todo Mundo Quase Morto
3.7 979 Assista AgoraMaior qualidade do Wright aqui é facilmente como ele concilia a agilidade da edição do Chris Dickens com a encenação proposta por ele, bem mais que suas ideias de paródia dentro do gênero. Os planos sequências que acabaram por serem os momentos do filme que mais duraram na memória da cinefilia se aproveitam, assim como tantos outros momentos, das rimas que o filme testa ao repetir o mesmo movimento só que com consequências diferentes. Os planos detalhes que agilizam a narrativa ao serem colocados em sequência e ritmados dialogam com toda a atmosfera urgente do filme devido ao apocalipse zumbi; isso acaba sendo a unidade total do filme. A urgência composta pela edição, direção, trilha e pela performance apavorada dos atores no meio daquele caos.
Uma pena que, pra mim, a veia cômica não funcione, tanto no humor mais visual e escrachado, quanto nesse humor mais inglês padrão do Wright e do Pegg. Por fim, mesmo não funcionando tão bem comigo, é de se destacar o quão difícil é fazer algo que sintetize tão bem o estilo do Wright dentro do gênero zumbi. Pensei muito no The Dead Don't Die do Jarmusch que também é uma tentativa de pegar a premissa de apocalipse zumbi, com uma abordagem cômica, e tratar nesse cenário suas características autorais. E evidente que aqui deu muito mais certo que lá.