"Cloud Atlas" acaba por resumir como é a minha experiência com o Cinema das Wachowski como um todo: Um maravilhamento pelo virtuosismo (tanto no uso do fundo verde, quanto no talento da linguagem mesmo, montando filmes inteiros através de recursos muito arriscados, como o próprio Cloud Atlas ou Speed Racer) técnico contido pela total falta de emoção que seus filmes provocam em mim.
É nesse filme que pude condensar de maneira mais fácil possível essa dualidade ao acessar suas obras, pois é inegável o quão interessante e funcional é este exercício de montagem que elas criam. O modo como conectam diálogos, cenas, rimas visuais e a narrativa macro em linhas de tempo tão distantes e diferentes é notável e nos deixa maravilhado. Mas por outro lado, é totalmente tedioso como nunca consigo criar a mínima relação com nenhum de seus personagens, com seus filmes e universos.
"Cloud Atlas" e "Jupiter Ascending" são exatamente a mesma experiência neste sentido: criações e propostas belíssimas, mas que não funcionam comigo porque suas histórias não comovem e não encantam. Em "Jupiter" muito fruto de atuações desconexas da unidade do filme, em "Cloud Atlas" pela própria forma do filme, talvez. Buscando entender o porquê desta incapacidade em criar personagens com apego, chego a conclusão de que justamente a necessidade em intercalar histórias, buscar um fio que permeie todas e suprimir as histórias para que se encaixem com as outras 5 ou 6 em um só filme fazem com que as diretoras abram mão de todo esse esforço de criação de emoções em troca de uma forma que seja ousada e converse com sua tese principal.
Conhecendo o Cinema de ambas é fácil entender suas principais ideias de interesse: o uso de corpos como meros instrumentos para uma consciência transitar e agir, a perspectiva de existência como algo uno e indivisível dos outros sujeitos e a transformação da existência (corpo) como mera matéria-prima para opressão das elites. Para trabalhar isso em "Cloud Atlas", apresentar histórias que se entrelaçam do começo ao fim - menos como sinal de imutabilidade, mais como sinal de existência unida - é tirar a ideia do conteúdo e adentra-la na forma. Todavia, quando realizado, deixa de ter como prioridade a real construção de sentimentos ao longo de 3 horas em prol de um esforço estético e narrativo...vazio.
Produto máximo desta escolha é que ao mesmo que me maravilhei com sua "amarração" de mundos, tive como momento de maior tensão a fuga de 4 idosos de um sanatório em um momento cômico. O que é algo sintomático do quão oco "Cloud Atlas" acaba sendo.
Não tem o apelo visual de um Speed Racer e muito menos conta com um Universo e um subtexto de interesse como Matrix.
É pouco mais do que um entre tantos filmes de Marvel, Nolan e blockbusters afim que recebemos todos os anos, porém com uma bonita negação a autoconsciências e piscadinhas pro espectador. É evidente o interesse das diretoras pelos seus mundos de uma maneira genuína e autoral, creem na ficção e abordam isso sem vergonhas ou receios.
A intenção é legítima, mas nada aqui avança rumo a dar certo. Inacreditável o modo automático como as cenas de ação são filmadas, não há resquícios da linguagem inventiva utilizada nos melhores momentos de Matrix; toda a trama política não se amarra com as tensões e impasses da narrativa, nada no jogo familiar é necessário para acompanharmos a mesma batida de salvamento da protagonista repetida a exaustão. A criação de mundo sofre dos mesmos problemas citados anteriormente, pois ao mesmo tempo que busca o deleite visual, soa genérica e mal aproveitada.
As referências são óbvias, mas o modo como Soderbergh joga com elas dentro deste cenário de vigilância tecnológica - junto de um fundo de pandemia não tão relevante assim - é muito mais surpreendente do que parecia em um primeiro momento.
O que mais me chama atenção aqui é o trato com a paranoia e com a vulnerabilidade da privacidade bem mais exploradas na segunda metade do filme; e também em como toda a sequência de perseguição leva um tom quase alucinógeno, embriagado, onde o absurdo pode tomar conta.
O grande acerto de Soderbergh é contar uma história que tinha tudo para ganhar ares megalomaníacos - com grandes corporações, invasões hackers e segredos de Estado - de uma maneira micro, focada em uma personagem invisível no seu pequeno mundinho de Seattle. É justamente essa contraposição entre poderes grandiosos e milionários sendo aplicados em alguém tão anônimo que chama a atenção para as principais possibilidades de invasão que o diretor tem interesse em expor: É mais um trabalhador em uma casa minúscula junto de sua mãe idosa que tem o poder em saber onde você está e quem você é, é saber que nada é privativo nos seus aplicativos e que os termos de licença dos seus programas roubam mais de você do que você poderia imaginar.
Manter "Kimi" como um pequeno caso, rápido e minimalista é exatamente o necessário para Soderbergh acertar (depois de tanto tempo).
Matrix Reloaded existe enquanto uma obra muito confusa para mim entre (i) a pretensão teórica e filosófica de construção de um Universo cinematográfico realmente inflado de conceitos que sustentam essa aventura e (ii) uma sequência que na impossibilidade de sustentar eternamente as regras do 1o filme, decide se assumir como filosofia barata e exercitar muito mais um cinema de corpos, movimentos, fascinação pelo digital e setpieces de ação muito bem orquestrados.
O problema de existir em ambas as propostas ao mesmo tempo é que o Reloaded fracassa um tantinho neste primeiro ponto de vista, pois esta expansão de mundo - principalmente na primeira hora de filme - é tão teórica e explicativa que não apresenta nada em termos cinematográficos. São óbvias as comparações com os prequels de George Lucas, pois além de existirem na mesma época, abraçam a mesma falha: o deleite que a tecnologia começava a proporcionar ofuscada pelo fetiche de criar um mundo de políticas e regras desinteressantes.
Porém, quando embarca nesta viagem de corporalidade e fluxo, brincando com as dualidades do humano/carnal com o digital/ascético, o Cinema das Wachowski é bem mais interessante e sabendo de suas vidas faz ainda mais sentido e ganha muito mais nuances. Desde "Bound" e pensando também em "Sense8", o Cinema delas existe nesta forma de extrapolar corpos e limites, tratá-los como algo imaterial que navega pelos humanos apenas para ganhar forma, mas assim que necessário já voltam a ser etéreos e livres. É muito bonito perceber como elas encontraram no digital o modo de expressar essa sensação, as lutas visivelmente feitas por bonecos digitais - que de repente voltam a ser humanos e assim vai - são justamente o escapismo de qualquer regra ou lei da física, permitindo que eles existam da maneira como elas desejarem. "Reloaded" é, mais do que uma expansão no Universo Matrix, uma virada na carreira dessas autoras que a partir de então vão achar sua expressão nessa produção fundamentada no tecnológico, onde as imagens habitam sem nada que as ofusquem, encarando corpos como meras cascas que permitem a existência do que é filmado, mas não se limitam a isso.
Por fim, é lindo de pensar como a ação desse filme está a todo momento puxando de nossa memória as melhores encenações de Shaw Brothers e desse cinema que atingiu o ápice do que a luta "real" pode alcançar. Entendo como um recado e uma piscadinha de olho safada, mas muito libertadora, dizendo que o que elas buscam é desbravar um outro terreno cinematográfico, que leva a Shaw Brothers como bagagem, mas não termina nele. É derrubar as impossibilidades que aquele Kong Fu encontrou no mundo real e dar um universo de possibilidades não testadas dentro da tela verde e dos códigos. Um filme que encontra a chave que abre a porta que dá liberdade a seus corpos, mas também uma porta que dá liberdade para o próprio gênero da ação buscar novas possibilidades.
Filme que busca encontrar traços de capitalismo e símbolos tão icônicos da cultura ocidental americana (as aulas de inglês, o discurso de produtividade, a fábrica têxtil) como maneira de denunciar uma certa hipocrisia na ideologia da Coreia Popular, mas faz isso com a pose de estar estudando e desvendando aquele povo e aquela cultura. Contudo, em nenhum momento o filme tenta ir além da superfície e das primeiras impressões que concebemos daquelas pessoas. É um filme que diz capturar a realidade de uma nação reclusa que pouco conhecemos, mas não se esforça nem para conhecer melhor seus personagens.
Arrisco-me a dizer que é dos filmes do Coutinho, o que encontra os anônimos mais interessantes.
Um filme que nas mãos da maioria dos diretores viraria fetiche de ver pobre sofrendo, mas nas mãos do Coutinho se torna um processo de desarme dos receios daqueles catadores até serem conquistados pelo diretor para que ele possa captar o mais doce e humano de cada um.
Por exemplo, o modo como aborda Enock com as suas fotos e faz daquilo o quebra gelo para conhecer a história daquele senhor fantástico ou a dualidade com que Jurema trata os cinegrafistas em dois momentos: primeiro com raiva e demérito, depois de peito aberto e cheia de humor. Inclusive, os receios de Jurema daquilo virar um "miséria porn" - ou algo do tipo - são legítimos e riquíssimos para o Cinema de Coutinho. Este sempre conseguiu caminhar na direção oposta, seu Cinema é TÃO respeitoso, TÃO delicado, TÃO humano e jamais como fetiche. Não tem como assistir a um filme seu e sair indiferente ao que viu.
Como último comentário, é muito poético o olhar do Coutinho em enxergar nas canções um momento de pura fragilidade e entrega de seus personagens; isso durante TODA sua filmografia. É o senhor do "My Way" no "Edifício Master", a moça ao final do "Jogo de Cena", uma passagem de "Moscou", a adolescente em "Últimas Conversas", o início de "Babilônia 2000" e, claro, todo o "As Canções". Em praticamente todos os exemplos, são momentos de muita emoção, as músicas cantadas por estas pessoas expõem uma humanidade muito única de cada um pelo modo como se expressam, sofrem junto da música e se entregam àquela catarse que a Arte provoca. Coutinho registra isso e exorciza as dificuldades de cada personagem, libertando-os para a eternidade.
Através da peça Moscou, Coutinho me parece buscar pelas imagens que cria a intersecção entre a vida dos atores e o reflexo disso nos personagens que estes elaboram. Ao dar tempo de tela e relevância a memórias e interiorizações dos atores ao redor da mesa de leitura do roteiro, o diretor dá vida e nuances a alguns dos profissionais da peça; já ao filmar pequenos fragmentos da obra de Tchekhov, espera-se que também encontremos lá o que nos foi passado naquele primeiro momento.
Entretanto, deve ser o filme de Coutinho que pior executa sua tese pela linguagem que aplica - fico com a sensação de que não sabemos o suficiente para observar estas camadas dos atores e de que os fragmentos da peça colados pela montagem não estimulam este exercício de observação, sendo apenas desinteressante e pouco conectivo.
É de se notar, porém, mais uma vez o interesse do diretor em explorar a essência do palco, da atuação, do autor por trás de cada personagem. Algo que realiza de maneira histórica em "Jogo de Cena", mas aqui deixa a desejar.
Sensacionalismo criminal e da fé, estímulo ao consumo, hiper sexualização do corpo feminino, exaltação a padrões de corpo, agenda neoliberal, notícias repetidas, humor vulgar e fake news.
Basicamente tudo que se debate sobre a manipulação do povo brasileiro exposto em nossa frente pelo seu mecanismo mais essencial de propagação: a televisão aberta brasileira.
Impressionante a ressignificação que estas imagens ganham quando tiradas do contexto e do meio em que residem originalmente. A sensação de choque ao perceber os absurdos parte muito de se estar olhando fora do estímulo provocado pela televisão. O tempo próprio da TV, seu discurso, sua proposta de público alvo (quem assiste e quando assiste) sorrateiramente entregam ideologias que ao presenciar no momento de sua exibição tendem a passar despercebidas. Agora, quando vistas neste formato cinematográfico, revelam - como um óculos de They Live - a real mensagem que escondem.
Ao final a analogia entre Carpenter e Coutinho é muito certeira, o último é tão talentoso ao construir suas teses pela montagem, pela linguagem mínima que usa do Cinema, que constrói algo digno de se comparar a uma das obras-primas do primeiro. Tirar as imagens de seu "habitat natural" é como colocar o óculos no espectador para que este enxergue os alienígenas que dominam o planeta. Não em tabloides e revistas, mas sim na tão querida tv brasileira.
Nossa, como é primoroso essa perturbação que o Coutinho causa ao escolher 1 ou 2 relatos a serem encenados com atrizes com rostos não familiares a nós, logo depois de termos entendido a dinâmica ao vermos Fernanda Torres, Marília etc. Quando nos deparamos com a dúvida real de quem é a atriz e quem é a pessoa "real" que vivenciou tudo aquilo cria-se uma explosão de sentido ao documentário. Busquei pequenos sinais que possam ter caracterizado uma atuação, mas não há nada para se apoiar, os choros são legítimos, as falas convincentes, as expressões humanas e eu me encontrei perdido, de frente para a tese de Coutinho, e maravilhado com o que ele foi capaz de produzir.
Sua montagem perde o didatismo ao decorrer do filme, o primeiro relato - atuado por Andrea - tem uma montagem que mastiga a proposta do filme (justamente para nos abrimos a proposta), entretanto com a passagem dos relatos, a distância temporal entre os pares pessoas-atrizes aumenta, os discursos não mais se intercalam e se revelam rapidamente e todo o discurso se dilui em uma película sobre o Drama e a arte de atuar/mentir ou mentir/atuar.
Coutinho nos ganha para depois nos deixar à deriva. E é neste momento que entendemos tudo.
Simplificar ao máximo o dispositivo e concentrar seu material no que o acaso vier a produzir. Cada pessoa é um universo e Coutinho é quem, sem arrogância ou egocentrismo, busca explorar o todo com as perguntas e intervenções mais simples possíveis. A grande visão dele é entender que as pessoas gostam de falar delas mesmas - e geralmente sentem um orgulho imenso nisso.
Às vezes sinto que os filmes são mais importantes para os entrevistados do que para o diretor em si, é quase que um processo terapêutico de se mostrar real e compartilhar algo que agonizava enclausurado dentro de si. Escolher tanto histórias banais quanto marcantes fazem o filme ainda mais tocante, tudo ali merece espaço e Coutinho respeita a dor de cada um.
A geografia dos apartamentos, tão padronizados e pequenos, mas modelados ao modo de cada morador(es) já nos dava um aperitivo sobre esta pessoa; ao ouvirmos a história, tudo o que vimos anterior ou concomitantemente é logo ressignificado e o todo ganha um sentido definitivo: o de conhecer mais uma vida (e isso basta).
Mesmo sem conhecer o Rio de Janeiro e Copacabana, buscar entender a decisão do local a ser filmado é necessária dentro deste universo de regras próprias que Coutinho cria a cada documentário de conversa. Entender a ironia entre estar em um dos bairros mais icônicos do Ocidente e ambientar aquele muquifo que extingue qualquer romantização sobre a cidade maravilhosa é a tese que o diretor pouco precisa articular pela forma de seu filme.
Um país e uma cidade ícones de uma cultura global que exporta tanto seus pontos turísticos e seu povo alegre encontra dentro de casa sua maior riqueza: os figurantes desse show todo.
Vim a descobrir após assistir ao filme que a ideia inicial de Coutinho era um filme apenas com músicas do Roberto, mas me saltou aos olhos durante o filme a relevância deste homem na música popular e cultura de massa brasileira. Imensurável o seu tamanho.
Outro comentário rápido é como algumas histórias fazem jus aos melhores contos de Nelson Rodrigues. Me diverti ainda mais pensando nessa relação e como o último era certeiro em seu modo de explorar o carioca.
Coutinho, ao longo de toda sua filmografia, tem a necessidade de trazer ao plano a própria realização do documentário. É comum vermos ele e sua equipe carregando os equipamentos até o local onde será a realizada a entrevista, planos abertos que enquadram toda a operação de filmagem dos relatos e, neste filme em específico, cenas do pagamentos aos entrevistados. O diretor utiliza disto como mais um dos recursos de linguagem que reforçam a veracidade, a aproximação com a realidade do que vemos em tela. Atividades cotidianas, quebra de mitificações e ações poucos "glamourosas" que evidenciam o trabalho operário da realização daquela obra sem engrandecer nada além do que os entrevistados tem para contribuir a película. Aqui, a recorrência desta decisão de Coutinho expande as vivências e crenças daquelas pessoas para o cotidiano de suas vidas, o que ouvimos é nada mais do que o dia a dia de cada pessoa que aparece em tela, sem clímax, sem grandiloquências ou exageros.
É a evidência de um sincretismo à brasileira, da relação de um povo com sua ancestralidade e pintadas de um recorte histórico que adverte o crescimento dos neopentecostais.
O principal deslumbre com o Cinema de Coutinho não é sua habilidade em tirar do anonimato pessoas comuns e adentrar um universo de vivências particulares de cada um, mas sim como seu Cinema revela a imutabilidade das relações sociais do país. Os discursos e dores que Coutinho ouve de seus personagens são dolorosamente atemporais.
A película como catalisador desta elipse ditatorial - aproximando décadas de esvaziamento e buscando entender o que aconteceu neste limbo;
A película como força revolucionária e humanitária que tenta resgatar o mínimo de dignidade e existência aos sobreviventes deste massacre chamado Brasil.
Quando Emmanuel Levaufre argumenta que o Cinema de Wes Craven oscila entre o Naturalismo e o Romantismo, é possível que ele encontre este perfeito equilíbrio em "New Nightmare". O autor define como Naturalismo primordialmente a recusa do sobrenatural, de modo que a ficção e o simbólico sejam inúteis para resolução dos perigos, mas sim o físico, o mundano e o real como forma de salvação. Algo que inclusive é definidor de como Heather Langenkamp supera Kruger no primeiro filme: trazendo-o para a realidade para que pudesse confronta-lo com toda sua força.
Em "New Nightmare", esta definição de Naturalismo que o autor também chama de Horror Literal existe da mesma maneira que Levaufre capta em "Aniversário Macabro", pois existe a conciliação deste horror natural com o "natural" de se filmar na tentativa de emular o real, sem truques, sendo transparente. Este segundo uso do "natural" - que o autor atribui a crítica de Alan Badiou - é essencial para a proposta de Craven de desmontar seu filme como ficção e traze-lo para a realidade como um registro real, sem truques. Ele faz isso com a câmera na mão, os enquadramentos próximos e o uso de luz (e atuações) natural, dando a crer que realmente aquela Heather Langenkamp é a atriz vivenciando os traumas de seu trabalho e não uma peça de ficção. O que Craven faz com seu filme é justamente o que Langenkamp fez com Kruger: Mergulha na ficção (no sonho) e o traz para a real para que possa provar o seu ponto.
Porém, ao mesmo tempo que se apoia nestes dois pilares do que o autor define como "Naturalismo", a segunda metade de "New Nightmare" define como poucas outras peças de sua filmografia a veia romântica do Cinema Craveniano. Temos aqui o ápice da fantasia em seu Cinema - comprimido em toda sua sequência final de disputa entre mãe, filho e Kruger - assim como um filme que trata, no final das contas, desse amor maternal que vai além do cotidiano e ganha tons de sonhos, justamente como Levaufre define o que seria o Romantismo neste cinema.
É então, muito mais que os primeiros passos de Craven nesta metalinguagem que culminaria em sua obra-prima, mas sim o filme definidor de suas bases enquanto autor.
Cada detalhe deste filme merecia horas e horas de discussão, é tudo primoroso. De um lado, um filme de aventura que reinventa seu espaço a cada nova cena, abrindo novas possibilidades e perigos nas diversas vielas e buracos daquele labirinto em forma de casa. Craven nunca se esgota em aproveitar desta geografia, aperta seus planos dentre paredes e filma brechas sempre potencializando a claustrofobia daqueles mini espaços seguros que o Bobo se sente a salvo. É inventivo ao nunca revelar a totalidade daquela casa e nunca tenta esclarecer de fato onde fica cada coisa e como elas se ligam, preferindo tornar aquilo imprevisível e utilizar como saída em sua próxima cena. Apesar de toda alegoria que se desenha em volta da trama, ainda é um absurdo de um filme de aventura do ponto de vista de uma criança confrontando adultos enquanto amadurece para sustentar sua família na favela americana. (Impressionante como o tom do filme me lembra Coragem, o Cão Covarde).
Do outro lado, é toda a alegoria e construção de tese que faz o filme ser o clássico que é. Das famílias armadas até os dentes, das roupas de sadomasoquismo evidenciando o fetiche da violência contra pobres, de uma riqueza guardada sob os corpos dos pobres nos cofres dos Supremacistas Brancos, da tendência em se prender para proteger a própria riqueza e da necessidade de se coletivizar para implodir a elite branca por dentro.
Quando se inspeciona a fundo a história da elite, encontra-se farsas, corpos e dinheiro estocado até o infinito.
Tobe Hooper - outro grande nome dessa geração de cineastas do Horror - tinha trabalhado sua visão sobre a Televisão alguns anos antes em "Poltergeist" e é interessante observar "Shocker" por esta ótica; ver como Wes Craven encarava esse meio de comunicação que tanto se popularizava.
Se no filme de Hooper os espíritos eram meios de Propaganda e tinha na figura dos espíritos o perigo, para Craven a televisão é vista como meio de propagação do medo e da insegurança, espalhando um serial killer por todos os cantos. O diretor filma a cena da cadeira elétrica como um espetáculo, transita sua câmera ao longo da sala e revela tudo aos poucos, evidencia a presença da plateia e o caráter de entretenimento em que tudo aquilo funciona. O diretor usa seu próprio filme como diálogo com o que entende da TV, pois é este espetáculo da violência que materializado em Pinker é disparado pelos Estados Unidos. Seu próprio filme usufrui e entretém com o espetáculo que martiriza na televisão.
Como a maioria dos seus filmes, tem um balanço muito duvidoso entre ideias excelentes e execuções totalmente indefensáveis. É evidente a maestria e a genialidade de toda a sequência envolvendo seus personagens pelos canais de TV, Craven brinca com múltiplas realidades assim como fez em Hora do Pesadelo, tensionando os dois mundos e criando ligações espetaculares entre eles. Porém, no mesmo filme, traz personagens fantasmas, objetos com "poderes" injustificáveis e sequências pouco inspiradas que dão a "Shocker" este status de ser a bomba da sua filmografia. Nem um, nem outro. Mas sem dúvidas, é Craven.
História perfeita pro Craven levando em conta tudo que o diretor já havia traçado em sua carreira na direção anteriormente. O embate entre os olhares civilizatórios do moderno versus o arcaico, a paranoia que invade os sonhos, a possibilidade de trabalhar o gore dentro desta dinâmica "ele está dormindo ou acordado?" e muitos outros de seus principais interesses como autor.
Facilmente o melhor filme do diretor comparado ao que havia feito antes, há a construção de um ambiente como nunca havia feito, pois sempre trabalhava em pequenos bairros, vilarejos e coisas do tipo, mas aqui o diretor desenvolve todo um Haiti místico e perigoso, com cenas noturnas aterrorizantes e uma eterna sensação de vulnerabilidade dentro daquele universo de mitos e crenças.
Desenvolvido de maneira bem lenta e com as assinaturas desse Craven de início de carreira, o diretor trabalha o seu repetitivo tema entre o místico/bárbaro versus o moderno: o Estados Unidos civilizado e aquele deixado para trás. Seu primeiro trabalho de direção com sobrenatural como plot por meio da simples trama de uma bruxa envolvida em uma família de subúrbio. Wes filma cenas interessantes e cria bons momentos de tensão, ora com cavalos, ora com carros.
Só não é pior porque Craven tem uma boa mão para equilibrar humor com horror, algo que viria a marca-lo como um mestre do gênero alguns filmes depois. Interessante pensar que "Starman" foi lançado dois anos antes, pois Deadly Friend tenta ser muito do que o romance do Carpenter consegue com maestria. A dinâmica é a mesma: protagonista que recusa a morte precisando esconder o seu amor "morto-vivo" enquanto recusa aceitar o trauma, sendo o pano de fundo para observar relações humanas e jogar com valores que fazem dos homens os verdadeiros monstros.
O problema é que Starman, como um road movie, transita por situações muito mais favoráveis para discutir os comportamentos humanos de interesse e cria, pela ingenuidade de seus personagens, um romance mais belo que a fixação de Paul pelo cadáver de Samantha. O filme de Craven é o Starman fora de controle, visa o amor improvável ao mesmo tempo que explora a figura descontrolada de Samantha e sua busca por vingança. Não pune Paul nem resolve seu trauma, fica no meio do caminho de ambos e reforça a dificuldade de Craven em finalizar suas histórias.
Mesmo com os limites narrativos de um filme claramente feito para televisão, Invitation to Hell é um bom achado dentro da filmografia de Wes Craven. Como um "proto" They Live místico, temos um protagonista que, ao iniciar seus trabalhos em uma empresa tecnológica, percebe pactos estranhos que são feitos em busca do sucesso. O óculos de Carpenter aqui é a viseira de uma roupa espacial que denuncia o caráter inumano dos funcionários que venderam sua alma para o diabo.
Tão político como a obra de Carpenter, Craven mexe com os valores e exigências do mundo corporativo quando este confronta valores familiares que seus filmes sempre buscam proteger. No fim, sua filmografia quase sempre volta os olhares ao esforço em proteger e salvar a família do perigo místico ou bárbaro que a ameaça.
Craven constrói a tensão e os perigos em ritmo lento e sem muitos enfrentamentos, trabalhando o que é disponível na mídia que está incluído. O diretor guarda para o clímax o uso (datado) dos efeitos fantasiosos de um submundo com raios laser, luzes neon e muita fumaça, um belo retrato de anos oitenta. Um pedaço curioso e divertido da bagunçada filmografia do diretor.
Geralmente as tosqueiras do Craven tem mais bons momentos do que ruins, ganha até um charme o amadorismo como filmava algumas cenas e o quão ruim era o material que ele tinha em mãos.
Aqui é basicamente o oposto. Mesmo não conhecendo a HQ que inspira o filme, há muito mais potencial a ser explorado do que o diretor consegue construir - independente dos problemas de orçamento ou não. A dinâmica de um vilão digno de 007 com o fantasioso da criatura é interessantíssimo, porém nenhuma ação filmada é digna deste combate. Sem criatividade e sem muito talento do Craven investido na direção, Swamp Thing é somente tosco e tem as piores características que o cinema do diretor entregava no início de carreira.
Craven muito mais cuidadoso com os planos, com os enquadramentos, um tanto mais formalista que o cinema de raízes amadores dos seus filmes anteriores. Continua fazendo o mesmo filme: o embate entre o "civilizado" e o "bárbaro", agora inserindo o sobrenatural. Tal escolha já soa como um relevante ponto de virada na sua filmografia, pois o modo como trabalha os delírios da personagem e a tensão religiosa funciona bem melhor do que o que havia feito antes. Algumas cenas, principalmente a da cobra na banheira, já lembra suas melhores construções de tensão como na franquia "Pânico". É realmente notável sua evolução como diretor de um filme para outro.
A Viagem
3.7 2,5K Assista Agora"Cloud Atlas" acaba por resumir como é a minha experiência com o Cinema das Wachowski como um todo: Um maravilhamento pelo virtuosismo (tanto no uso do fundo verde, quanto no talento da linguagem mesmo, montando filmes inteiros através de recursos muito arriscados, como o próprio Cloud Atlas ou Speed Racer) técnico contido pela total falta de emoção que seus filmes provocam em mim.
É nesse filme que pude condensar de maneira mais fácil possível essa dualidade ao acessar suas obras, pois é inegável o quão interessante e funcional é este exercício de montagem que elas criam. O modo como conectam diálogos, cenas, rimas visuais e a narrativa macro em linhas de tempo tão distantes e diferentes é notável e nos deixa maravilhado. Mas por outro lado, é totalmente tedioso como nunca consigo criar a mínima relação com nenhum de seus personagens, com seus filmes e universos.
"Cloud Atlas" e "Jupiter Ascending" são exatamente a mesma experiência neste sentido: criações e propostas belíssimas, mas que não funcionam comigo porque suas histórias não comovem e não encantam. Em "Jupiter" muito fruto de atuações desconexas da unidade do filme, em "Cloud Atlas" pela própria forma do filme, talvez. Buscando entender o porquê desta incapacidade em criar personagens com apego, chego a conclusão de que justamente a necessidade em intercalar histórias, buscar um fio que permeie todas e suprimir as histórias para que se encaixem com as outras 5 ou 6 em um só filme fazem com que as diretoras abram mão de todo esse esforço de criação de emoções em troca de uma forma que seja ousada e converse com sua tese principal.
Conhecendo o Cinema de ambas é fácil entender suas principais ideias de interesse: o uso de corpos como meros instrumentos para uma consciência transitar e agir, a perspectiva de existência como algo uno e indivisível dos outros sujeitos e a transformação da existência (corpo) como mera matéria-prima para opressão das elites. Para trabalhar isso em "Cloud Atlas", apresentar histórias que se entrelaçam do começo ao fim - menos como sinal de imutabilidade, mais como sinal de existência unida - é tirar a ideia do conteúdo e adentra-la na forma. Todavia, quando realizado, deixa de ter como prioridade a real construção de sentimentos ao longo de 3 horas em prol de um esforço estético e narrativo...vazio.
Produto máximo desta escolha é que ao mesmo que me maravilhei com sua "amarração" de mundos, tive como momento de maior tensão a fuga de 4 idosos de um sanatório em um momento cômico. O que é algo sintomático do quão oco "Cloud Atlas" acaba sendo.
O Destino de Júpiter
2.5 1,3K Assista AgoraNão tem o apelo visual de um Speed Racer e muito menos conta com um Universo e um subtexto de interesse como Matrix.
É pouco mais do que um entre tantos filmes de Marvel, Nolan e blockbusters afim que recebemos todos os anos, porém com uma bonita negação a autoconsciências e piscadinhas pro espectador. É evidente o interesse das diretoras pelos seus mundos de uma maneira genuína e autoral, creem na ficção e abordam isso sem vergonhas ou receios.
A intenção é legítima, mas nada aqui avança rumo a dar certo. Inacreditável o modo automático como as cenas de ação são filmadas, não há resquícios da linguagem inventiva utilizada nos melhores momentos de Matrix; toda a trama política não se amarra com as tensões e impasses da narrativa, nada no jogo familiar é necessário para acompanharmos a mesma batida de salvamento da protagonista repetida a exaustão. A criação de mundo sofre dos mesmos problemas citados anteriormente, pois ao mesmo tempo que busca o deleite visual, soa genérica e mal aproveitada.
Licorice Pizza
3.5 597O "Era uma vez em... Hollywood" de PTA.
Kimi: Alguém Está Escutando
2.9 117As referências são óbvias, mas o modo como Soderbergh joga com elas dentro deste cenário de vigilância tecnológica - junto de um fundo de pandemia não tão relevante assim - é muito mais surpreendente do que parecia em um primeiro momento.
O que mais me chama atenção aqui é o trato com a paranoia e com a vulnerabilidade da privacidade bem mais exploradas na segunda metade do filme; e também em como toda a sequência de perseguição leva um tom quase alucinógeno, embriagado, onde o absurdo pode tomar conta.
O grande acerto de Soderbergh é contar uma história que tinha tudo para ganhar ares megalomaníacos - com grandes corporações, invasões hackers e segredos de Estado - de uma maneira micro, focada em uma personagem invisível no seu pequeno mundinho de Seattle. É justamente essa contraposição entre poderes grandiosos e milionários sendo aplicados em alguém tão anônimo que chama a atenção para as principais possibilidades de invasão que o diretor tem interesse em expor: É mais um trabalhador em uma casa minúscula junto de sua mãe idosa que tem o poder em saber onde você está e quem você é, é saber que nada é privativo nos seus aplicativos e que os termos de licença dos seus programas roubam mais de você do que você poderia imaginar.
Manter "Kimi" como um pequeno caso, rápido e minimalista é exatamente o necessário para Soderbergh acertar (depois de tanto tempo).
Matrix Reloaded
3.7 848 Assista AgoraMatrix Reloaded existe enquanto uma obra muito confusa para mim entre (i) a pretensão teórica e filosófica de construção de um Universo cinematográfico realmente inflado de conceitos que sustentam essa aventura e (ii) uma sequência que na impossibilidade de sustentar eternamente as regras do 1o filme, decide se assumir como filosofia barata e exercitar muito mais um cinema de corpos, movimentos, fascinação pelo digital e setpieces de ação muito bem orquestrados.
O problema de existir em ambas as propostas ao mesmo tempo é que o Reloaded fracassa um tantinho neste primeiro ponto de vista, pois esta expansão de mundo - principalmente na primeira hora de filme - é tão teórica e explicativa que não apresenta nada em termos cinematográficos. São óbvias as comparações com os prequels de George Lucas, pois além de existirem na mesma época, abraçam a mesma falha: o deleite que a tecnologia começava a proporcionar ofuscada pelo fetiche de criar um mundo de políticas e regras desinteressantes.
Porém, quando embarca nesta viagem de corporalidade e fluxo, brincando com as dualidades do humano/carnal com o digital/ascético, o Cinema das Wachowski é bem mais interessante e sabendo de suas vidas faz ainda mais sentido e ganha muito mais nuances. Desde "Bound" e pensando também em "Sense8", o Cinema delas existe nesta forma de extrapolar corpos e limites, tratá-los como algo imaterial que navega pelos humanos apenas para ganhar forma, mas assim que necessário já voltam a ser etéreos e livres. É muito bonito perceber como elas encontraram no digital o modo de expressar essa sensação, as lutas visivelmente feitas por bonecos digitais - que de repente voltam a ser humanos e assim vai - são justamente o escapismo de qualquer regra ou lei da física, permitindo que eles existam da maneira como elas desejarem. "Reloaded" é, mais do que uma expansão no Universo Matrix, uma virada na carreira dessas autoras que a partir de então vão achar sua expressão nessa produção fundamentada no tecnológico, onde as imagens habitam sem nada que as ofusquem, encarando corpos como meras cascas que permitem a existência do que é filmado, mas não se limitam a isso.
Por fim, é lindo de pensar como a ação desse filme está a todo momento puxando de nossa memória as melhores encenações de Shaw Brothers e desse cinema que atingiu o ápice do que a luta "real" pode alcançar. Entendo como um recado e uma piscadinha de olho safada, mas muito libertadora, dizendo que o que elas buscam é desbravar um outro terreno cinematográfico, que leva a Shaw Brothers como bagagem, mas não termina nele. É derrubar as impossibilidades que aquele Kong Fu encontrou no mundo real e dar um universo de possibilidades não testadas dentro da tela verde e dos códigos. Um filme que encontra a chave que abre a porta que dá liberdade a seus corpos, mas também uma porta que dá liberdade para o próprio gênero da ação buscar novas possibilidades.
Um Dia na Coréia do Norte
3.5 5Filme que busca encontrar traços de capitalismo e símbolos tão icônicos da cultura ocidental americana (as aulas de inglês, o discurso de produtividade, a fábrica têxtil) como maneira de denunciar uma certa hipocrisia na ideologia da Coreia Popular, mas faz isso com a pose de estar estudando e desvendando aquele povo e aquela cultura. Contudo, em nenhum momento o filme tenta ir além da superfície e das primeiras impressões que concebemos daquelas pessoas. É um filme que diz capturar a realidade de uma nação reclusa que pouco conhecemos, mas não se esforça nem para conhecer melhor seus personagens.
Apenas uma pobre propagandinha liberal.
Boca de Lixo
4.2 17Arrisco-me a dizer que é dos filmes do Coutinho, o que encontra os anônimos mais interessantes.
Um filme que nas mãos da maioria dos diretores viraria fetiche de ver pobre sofrendo, mas nas mãos do Coutinho se torna um processo de desarme dos receios daqueles catadores até serem conquistados pelo diretor para que ele possa captar o mais doce e humano de cada um.
Por exemplo, o modo como aborda Enock com as suas fotos e faz daquilo o quebra gelo para conhecer a história daquele senhor fantástico ou a dualidade com que Jurema trata os cinegrafistas em dois momentos: primeiro com raiva e demérito, depois de peito aberto e cheia de humor. Inclusive, os receios de Jurema daquilo virar um "miséria porn" - ou algo do tipo - são legítimos e riquíssimos para o Cinema de Coutinho. Este sempre conseguiu caminhar na direção oposta, seu Cinema é TÃO respeitoso, TÃO delicado, TÃO humano e jamais como fetiche. Não tem como assistir a um filme seu e sair indiferente ao que viu.
Como último comentário, é muito poético o olhar do Coutinho em enxergar nas canções um momento de pura fragilidade e entrega de seus personagens; isso durante TODA sua filmografia. É o senhor do "My Way" no "Edifício Master", a moça ao final do "Jogo de Cena", uma passagem de "Moscou", a adolescente em "Últimas Conversas", o início de "Babilônia 2000" e, claro, todo o "As Canções". Em praticamente todos os exemplos, são momentos de muita emoção, as músicas cantadas por estas pessoas expõem uma humanidade muito única de cada um pelo modo como se expressam, sofrem junto da música e se entregam àquela catarse que a Arte provoca. Coutinho registra isso e exorciza as dificuldades de cada personagem, libertando-os para a eternidade.
Moscou
3.7 29 Assista AgoraAtravés da peça Moscou, Coutinho me parece buscar pelas imagens que cria a intersecção entre a vida dos atores e o reflexo disso nos personagens que estes elaboram. Ao dar tempo de tela e relevância a memórias e interiorizações dos atores ao redor da mesa de leitura do roteiro, o diretor dá vida e nuances a alguns dos profissionais da peça; já ao filmar pequenos fragmentos da obra de Tchekhov, espera-se que também encontremos lá o que nos foi passado naquele primeiro momento.
Entretanto, deve ser o filme de Coutinho que pior executa sua tese pela linguagem que aplica - fico com a sensação de que não sabemos o suficiente para observar estas camadas dos atores e de que os fragmentos da peça colados pela montagem não estimulam este exercício de observação, sendo apenas desinteressante e pouco conectivo.
É de se notar, porém, mais uma vez o interesse do diretor em explorar a essência do palco, da atuação, do autor por trás de cada personagem. Algo que realiza de maneira histórica em "Jogo de Cena", mas aqui deixa a desejar.
Um Dia na Vida
4.1 72Sensacionalismo criminal e da fé, estímulo ao consumo, hiper sexualização do corpo feminino, exaltação a padrões de corpo, agenda neoliberal, notícias repetidas, humor vulgar e fake news.
Basicamente tudo que se debate sobre a manipulação do povo brasileiro exposto em nossa frente pelo seu mecanismo mais essencial de propagação: a televisão aberta brasileira.
Impressionante a ressignificação que estas imagens ganham quando tiradas do contexto e do meio em que residem originalmente. A sensação de choque ao perceber os absurdos parte muito de se estar olhando fora do estímulo provocado pela televisão. O tempo próprio da TV, seu discurso, sua proposta de público alvo (quem assiste e quando assiste) sorrateiramente entregam ideologias que ao presenciar no momento de sua exibição tendem a passar despercebidas. Agora, quando vistas neste formato cinematográfico, revelam - como um óculos de They Live - a real mensagem que escondem.
Ao final a analogia entre Carpenter e Coutinho é muito certeira, o último é tão talentoso ao construir suas teses pela montagem, pela linguagem mínima que usa do Cinema, que constrói algo digno de se comparar a uma das obras-primas do primeiro. Tirar as imagens de seu "habitat natural" é como colocar o óculos no espectador para que este enxergue os alienígenas que dominam o planeta. Não em tabloides e revistas, mas sim na tão querida tv brasileira.
Jogo de Cena
4.4 336Tudo é ficção.
Nossa, como é primoroso essa perturbação que o Coutinho causa ao escolher 1 ou 2 relatos a serem encenados com atrizes com rostos não familiares a nós, logo depois de termos entendido a dinâmica ao vermos Fernanda Torres, Marília etc. Quando nos deparamos com a dúvida real de quem é a atriz e quem é a pessoa "real" que vivenciou tudo aquilo cria-se uma explosão de sentido ao documentário. Busquei pequenos sinais que possam ter caracterizado uma atuação, mas não há nada para se apoiar, os choros são legítimos, as falas convincentes, as expressões humanas e eu me encontrei perdido, de frente para a tese de Coutinho, e maravilhado com o que ele foi capaz de produzir.
Sua montagem perde o didatismo ao decorrer do filme, o primeiro relato - atuado por Andrea - tem uma montagem que mastiga a proposta do filme (justamente para nos abrimos a proposta), entretanto com a passagem dos relatos, a distância temporal entre os pares pessoas-atrizes aumenta, os discursos não mais se intercalam e se revelam rapidamente e todo o discurso se dilui em uma película sobre o Drama e a arte de atuar/mentir ou mentir/atuar.
Coutinho nos ganha para depois nos deixar à deriva. E é neste momento que entendemos tudo.
Edifício Master
4.3 372 Assista AgoraSimplificar ao máximo o dispositivo e concentrar seu material no que o acaso vier a produzir. Cada pessoa é um universo e Coutinho é quem, sem arrogância ou egocentrismo, busca explorar o todo com as perguntas e intervenções mais simples possíveis. A grande visão dele é entender que as pessoas gostam de falar delas mesmas - e geralmente sentem um orgulho imenso nisso.
Às vezes sinto que os filmes são mais importantes para os entrevistados do que para o diretor em si, é quase que um processo terapêutico de se mostrar real e compartilhar algo que agonizava enclausurado dentro de si. Escolher tanto histórias banais quanto marcantes fazem o filme ainda mais tocante, tudo ali merece espaço e Coutinho respeita a dor de cada um.
A geografia dos apartamentos, tão padronizados e pequenos, mas modelados ao modo de cada morador(es) já nos dava um aperitivo sobre esta pessoa; ao ouvirmos a história, tudo o que vimos anterior ou concomitantemente é logo ressignificado e o todo ganha um sentido definitivo: o de conhecer mais uma vida (e isso basta).
Mesmo sem conhecer o Rio de Janeiro e Copacabana, buscar entender a decisão do local a ser filmado é necessária dentro deste universo de regras próprias que Coutinho cria a cada documentário de conversa. Entender a ironia entre estar em um dos bairros mais icônicos do Ocidente e ambientar aquele muquifo que extingue qualquer romantização sobre a cidade maravilhosa é a tese que o diretor pouco precisa articular pela forma de seu filme.
Um país e uma cidade ícones de uma cultura global que exporta tanto seus pontos turísticos e seu povo alegre encontra dentro de casa sua maior riqueza: os figurantes desse show todo.
As Canções
4.2 162Vim a descobrir após assistir ao filme que a ideia inicial de Coutinho era um filme apenas com músicas do Roberto, mas me saltou aos olhos durante o filme a relevância deste homem na música popular e cultura de massa brasileira. Imensurável o seu tamanho.
Outro comentário rápido é como algumas histórias fazem jus aos melhores contos de Nelson Rodrigues. Me diverti ainda mais pensando nessa relação e como o último era certeiro em seu modo de explorar o carioca.
Santo Forte
4.1 43Coutinho, ao longo de toda sua filmografia, tem a necessidade de trazer ao plano a própria realização do documentário. É comum vermos ele e sua equipe carregando os equipamentos até o local onde será a realizada a entrevista, planos abertos que enquadram toda a operação de filmagem dos relatos e, neste filme em específico, cenas do pagamentos aos entrevistados. O diretor utiliza disto como mais um dos recursos de linguagem que reforçam a veracidade, a aproximação com a realidade do que vemos em tela. Atividades cotidianas, quebra de mitificações e ações poucos "glamourosas" que evidenciam o trabalho operário da realização daquela obra sem engrandecer nada além do que os entrevistados tem para contribuir a película. Aqui, a recorrência desta decisão de Coutinho expande as vivências e crenças daquelas pessoas para o cotidiano de suas vidas, o que ouvimos é nada mais do que o dia a dia de cada pessoa que aparece em tela, sem clímax, sem grandiloquências ou exageros.
É a evidência de um sincretismo à brasileira, da relação de um povo com sua ancestralidade e pintadas de um recorte histórico que adverte o crescimento dos neopentecostais.
Santa Marta - Duas Semanas no Morro
4.2 14O principal deslumbre com o Cinema de Coutinho não é sua habilidade em tirar do anonimato pessoas comuns e adentrar um universo de vivências particulares de cada um, mas sim como seu Cinema revela a imutabilidade das relações sociais do país. Os discursos e dores que Coutinho ouve de seus personagens são dolorosamente atemporais.
Cabra Marcado Para Morrer
4.5 253 Assista AgoraA película como um fóssil de tempos obscuros;
A película como catalisador desta elipse ditatorial - aproximando décadas de esvaziamento e buscando entender o que aconteceu neste limbo;
A película como força revolucionária e humanitária que tenta resgatar o mínimo de dignidade e existência aos sobreviventes deste massacre chamado Brasil.
O Novo Pesadelo: O Retorno de Freddy Krueger
3.4 393 Assista AgoraQuando Emmanuel Levaufre argumenta que o Cinema de Wes Craven oscila entre o Naturalismo e o Romantismo, é possível que ele encontre este perfeito equilíbrio em "New Nightmare". O autor define como Naturalismo primordialmente a recusa do sobrenatural, de modo que a ficção e o simbólico sejam inúteis para resolução dos perigos, mas sim o físico, o mundano e o real como forma de salvação. Algo que inclusive é definidor de como Heather Langenkamp supera Kruger no primeiro filme: trazendo-o para a realidade para que pudesse confronta-lo com toda sua força.
Em "New Nightmare", esta definição de Naturalismo que o autor também chama de Horror Literal existe da mesma maneira que Levaufre capta em "Aniversário Macabro", pois existe a conciliação deste horror natural com o "natural" de se filmar na tentativa de emular o real, sem truques, sendo transparente. Este segundo uso do "natural" - que o autor atribui a crítica de Alan Badiou - é essencial para a proposta de Craven de desmontar seu filme como ficção e traze-lo para a realidade como um registro real, sem truques. Ele faz isso com a câmera na mão, os enquadramentos próximos e o uso de luz (e atuações) natural, dando a crer que realmente aquela Heather Langenkamp é a atriz vivenciando os traumas de seu trabalho e não uma peça de ficção. O que Craven faz com seu filme é justamente o que Langenkamp fez com Kruger: Mergulha na ficção (no sonho) e o traz para a real para que possa provar o seu ponto.
Porém, ao mesmo tempo que se apoia nestes dois pilares do que o autor define como "Naturalismo", a segunda metade de "New Nightmare" define como poucas outras peças de sua filmografia a veia romântica do Cinema Craveniano. Temos aqui o ápice da fantasia em seu Cinema - comprimido em toda sua sequência final de disputa entre mãe, filho e Kruger - assim como um filme que trata, no final das contas, desse amor maternal que vai além do cotidiano e ganha tons de sonhos, justamente como Levaufre define o que seria o Romantismo neste cinema.
É então, muito mais que os primeiros passos de Craven nesta metalinguagem que culminaria em sua obra-prima, mas sim o filme definidor de suas bases enquanto autor.
As Criaturas Atrás das Paredes
3.3 196 Assista AgoraEugenia & Capitalismo.
Cada detalhe deste filme merecia horas e horas de discussão, é tudo primoroso. De um lado, um filme de aventura que reinventa seu espaço a cada nova cena, abrindo novas possibilidades e perigos nas diversas vielas e buracos daquele labirinto em forma de casa. Craven nunca se esgota em aproveitar desta geografia, aperta seus planos dentre paredes e filma brechas sempre potencializando a claustrofobia daqueles mini espaços seguros que o Bobo se sente a salvo. É inventivo ao nunca revelar a totalidade daquela casa e nunca tenta esclarecer de fato onde fica cada coisa e como elas se ligam, preferindo tornar aquilo imprevisível e utilizar como saída em sua próxima cena. Apesar de toda alegoria que se desenha em volta da trama, ainda é um absurdo de um filme de aventura do ponto de vista de uma criança confrontando adultos enquanto amadurece para sustentar sua família na favela americana. (Impressionante como o tom do filme me lembra Coragem, o Cão Covarde).
Do outro lado, é toda a alegoria e construção de tese que faz o filme ser o clássico que é. Das famílias armadas até os dentes, das roupas de sadomasoquismo evidenciando o fetiche da violência contra pobres, de uma riqueza guardada sob os corpos dos pobres nos cofres dos Supremacistas Brancos, da tendência em se prender para proteger a própria riqueza e da necessidade de se coletivizar para implodir a elite branca por dentro.
Quando se inspeciona a fundo a história da elite, encontra-se farsas, corpos e dinheiro estocado até o infinito.
Shocker: 100.000 Volts de Terror
2.7 112Tobe Hooper - outro grande nome dessa geração de cineastas do Horror - tinha trabalhado sua visão sobre a Televisão alguns anos antes em "Poltergeist" e é interessante observar "Shocker" por esta ótica; ver como Wes Craven encarava esse meio de comunicação que tanto se popularizava.
Se no filme de Hooper os espíritos eram meios de Propaganda e tinha na figura dos espíritos o perigo, para Craven a televisão é vista como meio de propagação do medo e da insegurança, espalhando um serial killer por todos os cantos. O diretor filma a cena da cadeira elétrica como um espetáculo, transita sua câmera ao longo da sala e revela tudo aos poucos, evidencia a presença da plateia e o caráter de entretenimento em que tudo aquilo funciona. O diretor usa seu próprio filme como diálogo com o que entende da TV, pois é este espetáculo da violência que materializado em Pinker é disparado pelos Estados Unidos. Seu próprio filme usufrui e entretém com o espetáculo que martiriza na televisão.
Como a maioria dos seus filmes, tem um balanço muito duvidoso entre ideias excelentes e execuções totalmente indefensáveis. É evidente a maestria e a genialidade de toda a sequência envolvendo seus personagens pelos canais de TV, Craven brinca com múltiplas realidades assim como fez em Hora do Pesadelo, tensionando os dois mundos e criando ligações espetaculares entre eles. Porém, no mesmo filme, traz personagens fantasmas, objetos com "poderes" injustificáveis e sequências pouco inspiradas que dão a "Shocker" este status de ser a bomba da sua filmografia. Nem um, nem outro. Mas sem dúvidas, é Craven.
A Maldição dos Mortos-Vivos
3.2 143História perfeita pro Craven levando em conta tudo que o diretor já havia traçado em sua carreira na direção anteriormente. O embate entre os olhares civilizatórios do moderno versus o arcaico, a paranoia que invade os sonhos, a possibilidade de trabalhar o gore dentro desta dinâmica "ele está dormindo ou acordado?" e muitos outros de seus principais interesses como autor.
Facilmente o melhor filme do diretor comparado ao que havia feito antes, há a construção de um ambiente como nunca havia feito, pois sempre trabalhava em pequenos bairros, vilarejos e coisas do tipo, mas aqui o diretor desenvolve todo um Haiti místico e perigoso, com cenas noturnas aterrorizantes e uma eterna sensação de vulnerabilidade dentro daquele universo de mitos e crenças.
Verão do Medo
3.0 39 Assista AgoraDesenvolvido de maneira bem lenta e com as assinaturas desse Craven de início de carreira, o diretor trabalha o seu repetitivo tema entre o místico/bárbaro versus o moderno: o Estados Unidos civilizado e aquele deixado para trás. Seu primeiro trabalho de direção com sobrenatural como plot por meio da simples trama de uma bruxa envolvida em uma família de subúrbio. Wes filma cenas interessantes e cria bons momentos de tensão, ora com cavalos, ora com carros.
A Maldição de Samantha
3.0 171Só não é pior porque Craven tem uma boa mão para equilibrar humor com horror, algo que viria a marca-lo como um mestre do gênero alguns filmes depois. Interessante pensar que "Starman" foi lançado dois anos antes, pois Deadly Friend tenta ser muito do que o romance do Carpenter consegue com maestria. A dinâmica é a mesma: protagonista que recusa a morte precisando esconder o seu amor "morto-vivo" enquanto recusa aceitar o trauma, sendo o pano de fundo para observar relações humanas e jogar com valores que fazem dos homens os verdadeiros monstros.
O problema é que Starman, como um road movie, transita por situações muito mais favoráveis para discutir os comportamentos humanos de interesse e cria, pela ingenuidade de seus personagens, um romance mais belo que a fixação de Paul pelo cadáver de Samantha. O filme de Craven é o Starman fora de controle, visa o amor improvável ao mesmo tempo que explora a figura descontrolada de Samantha e sua busca por vingança. Não pune Paul nem resolve seu trauma, fica no meio do caminho de ambos e reforça a dificuldade de Craven em finalizar suas histórias.
Convite Para o Inferno
2.8 17Mesmo com os limites narrativos de um filme claramente feito para televisão, Invitation to Hell é um bom achado dentro da filmografia de Wes Craven. Como um "proto" They Live místico, temos um protagonista que, ao iniciar seus trabalhos em uma empresa tecnológica, percebe pactos estranhos que são feitos em busca do sucesso. O óculos de Carpenter aqui é a viseira de uma roupa espacial que denuncia o caráter inumano dos funcionários que venderam sua alma para o diabo.
Tão político como a obra de Carpenter, Craven mexe com os valores e exigências do mundo corporativo quando este confronta valores familiares que seus filmes sempre buscam proteger. No fim, sua filmografia quase sempre volta os olhares ao esforço em proteger e salvar a família do perigo místico ou bárbaro que a ameaça.
Craven constrói a tensão e os perigos em ritmo lento e sem muitos enfrentamentos, trabalhando o que é disponível na mídia que está incluído. O diretor guarda para o clímax o uso (datado) dos efeitos fantasiosos de um submundo com raios laser, luzes neon e muita fumaça, um belo retrato de anos oitenta. Um pedaço curioso e divertido da bagunçada filmografia do diretor.
O Monstro do Pântano
2.4 61 Assista AgoraGeralmente as tosqueiras do Craven tem mais bons momentos do que ruins, ganha até um charme o amadorismo como filmava algumas cenas e o quão ruim era o material que ele tinha em mãos.
Aqui é basicamente o oposto. Mesmo não conhecendo a HQ que inspira o filme, há muito mais potencial a ser explorado do que o diretor consegue construir - independente dos problemas de orçamento ou não. A dinâmica de um vilão digno de 007 com o fantasioso da criatura é interessantíssimo, porém nenhuma ação filmada é digna deste combate. Sem criatividade e sem muito talento do Craven investido na direção, Swamp Thing é somente tosco e tem as piores características que o cinema do diretor entregava no início de carreira.
Benção Mortal
3.0 82Craven muito mais cuidadoso com os planos, com os enquadramentos, um tanto mais formalista que o cinema de raízes amadores dos seus filmes anteriores. Continua fazendo o mesmo filme: o embate entre o "civilizado" e o "bárbaro", agora inserindo o sobrenatural. Tal escolha já soa como um relevante ponto de virada na sua filmografia, pois o modo como trabalha os delírios da personagem e a tensão religiosa funciona bem melhor do que o que havia feito antes. Algumas cenas, principalmente a da cobra na banheira, já lembra suas melhores construções de tensão como na franquia "Pânico". É realmente notável sua evolução como diretor de um filme para outro.