Eu desconhecia o evento real dramatizado pelo indicado da Bósnia ao Oscar de Melhor Internacional de 2021, mas, mesmo assim, pressentia tudo o que viria a acontecer. Conivente com a realidade, esta narrativa emprega a estética típica do cinema do leste europeu e despe-lhe de todos os elementos cinematográficos tradicionalmente associados ao cinema de mainstream. Com isto, aproxima-se do documentário, ainda que parte da fictícia história da tradutora que deseja salvar a família do exército sérvio-bósnio não muçulmano.
É um tempo carente de internet, então a humanidade não pode postar textões nas redes sociais ou hashtags PrayForBosnia como maneira de chamar atenção à catástrofe humanitária vizinha. Mesmo se houvesse, desconfio que não seria de muita utilidade, já que a ONU, mediadora do conflito, mostra-se de mãos atadas ante a aglomeração de corpos, carência de comida, impossibilidade de realizar necessidades básicas. Parece estarmos dentro de um gueto claustrofóbico, apenas porque as maiores potências do mundo talvez não vissem motivo para salvar os bósnios muçulmanos.
A atriz Jasna Đuričić fascina em como não se envergonha de utilizar a posição privilegiada de tradutora para barganhar pela própria família, enquanto não mascara o desespero em ver portas e janelas fechando detrás de si e tornando a sobrevivência cada vez menos possível. Já Boris Isaković cria um destes monstros reais - o general Ratko Mladic -, tão seguro de seu autoritarismo que convence a população frágil e desamparada com falsas promessas, ditas de modo firma mas brando.
Frio, igual a quem deseja apenas sobreviver não importa como, Quo Vadis, Aida? debate o papel do tradutor literalmente no roteiro - a partir de subversões ou omissões adotadas por Aida - e no subtexto, em como a narrativa da diretora Jasmila Žbanić também serve como tradutora deste terror histórico, em como a câmera enxerga os fatos, omite outros, mas não muda a verdade: o combustível da maldade de uns é a conivência, inação, covardia de muitos.
Um Lugar Silencioso - Parte 2 realiza o que toda continuação costuma realizar: multiplica personagens, situações e criaturas, agora sem o mistério que as cercava anteriormente, em uma trama que abandona metáforas em favor do literal. Isto costuma levar-me a mesma reflexão: por que mais se, antes, menos funcionou tão bem?
A resposta é: por mais dinheiro. O sucesso surpreendente do antecessor praticamente obrigou o retorno do elenco à continuação, que se presta a explicar a origem das criaturas antes de reencontrar os Abbott depois da morte de Lee. Entretanto, por mais que tenha perdido o elemento surpresa, a continuação não faz feio em relação ao anterior: adiciona Cillian Murphy, mais do que hábil de ocupar a lacuna deixada por John Krasinski, e desenvolve um terror aflitivo e inteligente na forma como explorar os pontos-fracos das criaturas.
O roteiro é enxuto em investir só o tempo necessário para apresentar e desenvolver Emmett antes de se repartir em subtramas, a primeira mais eficiente do que a segunda em termos de execução, mas ambas complementares dentro do tema central: o amadurecimento precoce dos filhos e a necessidade deles saíram da sombra para proteger toda a família. Isto está presente na montagem paralela de Michael P. Shawver, que revela a vulnerabilidade de Regan e Marcus ao mesmo tempo, as relações de causa e efeito entre as subtramas e o empoderamento final, ilustrado em um enquadramento memorável.
A direção de John Krasinski, assistido pela montagem, desenvolve cenas tensas e implacáveis, a ponto de perdermos a respiração igual aos personagens. Ao mesmo tempo, a direção é coerente com o desenvolvimento dos familiares depois da morte de Lee, além de pontuar a condição de protagonismo de Millicent Simmonds, que herda do pai o papel de coragem, em uma crítica ao capacitismo comum na nossa sociedade.
Então, embora mais inchado que o anterior, a continuação é muito satisfatória em complementar, ainda que com menos mistérios, o universo narrativo criado anteriormente em direção ao capítulo final.
Enquanto caminha pelas ruas da cidade eterna, o apelido de Roma, Jep assiste ao clássico coexistir com o contemporâneo, o espetáculo belo e também a ilusão do belo, o mundano ao lado do divino, a aparência e a essência. Nada escapa a seu olhar meticuloso, que é como juiz de todos que o rodeiam e até de si mesmo, e o vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2013 torna o ato de contemplar em um ato de viver, a partir de uma direção de fotografia expressiva, poética e encantadora. Uma fotografia apaixonada por Roma, embora a posicione em segundo plano para poder defender seu argumento a respeito da decadência de uma fatia social autodenominada politizada e intelectual.
O filme é um passeio existencial para o interior do eu, e faz isto sem ser inacessível, enquanto conserva a riqueza de detalhes para que o espectador absorva, de modo plural, cada cena. Isto porque caímos de amores por Jep, interpretado com bossa e melancolia por Toni Servillo, um dos maiores atores italianos em atividade. Com um jeito bonachão mas agridoce, Toni conquista o espectador em como sabe que a vida que leva é vazia e precisa de algum sentido, nem que para isto precise perambular por toda a Roma para encontrá-lo.
A resposta está na fé. Não na fé religiosa, embora a narrativa torne literal a religião como uma de suas fontes, mas a fé na nostalgia e memória como uma alternativa para se reapaixonar pela vida. É um filme de sensibilidade rara, ciente da beleza do que tem a mostrar, como também do trajeto para alcançá-la e dos obstáculos postos no caminho: hedonismo, narcisismo, materialismo. Tudo amarradinho na direção caprichada de Paolo Sorrentino, cuja visão não está preocupada em desvendar o mistério da grande beleza.
Mas em ilustrar a pessoa transformada diante dela.
À primeira vista, Jolt é o tipo de filme de ação estrelado por uma mulher que Luc Besson dirigiria, escreveria e/ou produziria em outros tempos.
No entanto, com a direção de Tania Wexler, o filme se leva menos a sério, adotando o absurdo e o exagero como moedas de troca para analogias e subversões (prefiro chamá-las de choques elétricos) que o gênero já merecia levar.
A premissa é a mesma do filme de ação clássico em que um homem parte atrás de vingança após uma mulher, que era sua chance de um recomeço, é morta pelos vilões. Agora, é Kate Beckinsale que tem o domínio dos eventos que a levarão a enfrentar a polícia, um traficante de armas e um vilão que só é intocável na cabeça dele. Soma-se a isto o aditivo a lá Adrenalina, com o eletrochoque indispensável para que a protagonista não se entregue a raiva (como se vestisse uma água viva metafórica como forma de autocontrole).
Em certo momento, Lindy entra em banheiro de um restaurante todo pintado de verde e a associação é logo à mesma raiva que transforma Bruce Banner em Hulk. Com isto, Tania Wexler introduz e reflete sobre aspectos feministas, mas com um senso de humor pervertido através do acesso às fantasias de violência da protagonista. Ela brinca muito, dirige a ação para que não a levemos a sério e nos divertamos, e ainda debate um tema bastante interessante: como a sociedade reprime as mulheres a ponto de obrigá-las a controlar impulsos e sentimentos, na forma do dispositivo que permite que Lindy "funcione normalmente".
Ainda há sacadas geniais, como a cena, no interior de um berçário, em que Lindy arremessa bebês (!) como mecanismo de fuga (parece-me a rejeição da maternidade imposta) ou a presença de uma das mulheres mais donas de tudo do cinema. Dá pra virar franquia, e eu adoraria ver aonde Lindy iria parar.
Estômago é mais do que uma fábula sobre o advento do talento onde quer que seja, é uma alegoria bastante direta da exploração da mão de obra da pessoa nordestina nas grandes cidades do eixo sul-sudeste, em como resume a existência de Raimundo Nonato apenas àqueles ambientes onde exerce sua arte, a gastronomia. Através de reduzida profundidade de campo, o mundo do protagonista surge em função de seus dois chefes e da mulher por que é obcecado, não admitindo que vejamos a cidade de São Paulo além dos contornos do mundinho onde habita.
A trama é estruturada em torno de eventos havidos no passado e presente (na cadeia), reservando surpresas para seus terceiro ato, e mascara, a olhos vistos, comentários sociais igual aos patrões que exploram, condescendentemente até, a aparente ingenuidade de Raimundo Nonato, cuja habilidade na cozinha finalmente encontrou terreno onde pode frutificar, no lugar daquele do sertão de onde veio.
Nem tudo são flores, e o filme dirigido por Marcos Jorge, ainda mais hoje e em razão de ser narrado subjetivamente por Raimundo Nonato, apresenta-se como crítica ao comportamento possessivo de homens em relação às mulheres. Algumas críticas em função da representação da mulher no filme me parecem válidas apenas se desconsiderarmos que a história é narrada pelo ponto de vista de Raimundo Nonato, cuja música tema beira a infantilidade. Entretanto, ao introduzir o sibilar de cobras na edição sonora, a direção parece concordar, ou ao menos tenta atenuar, determinado ato injustificável.
Reflexão de lado, além de montado com eficiência de modo que os dois tempos narrativos se encontrem, também emocionalmente, o filme conta com uma atuação inspiradíssima de João Miguel e as adições competentes de Fabiula Nascimento e Carlo Briani na criação de uma fábula que também é um retrato claro da sociedade brasileira.
Eu acho Kevin MacDonald um melhor diretor de documentários do que de ficções. Aqui, adota material que deixaria as mãos de Oliver Stone e Michael Moore coçando: a justiça (?) americana ávida em se vingar dos terroristas que provocaram o 11 de setembro e disposta a repetir os atos de desumanidade que finge combater. Os afogamentos, as privações do sono, as ameaças e demais formas com que os Estados Unidos tentam obter confissões ilegais para confirmar as verdades (??) que querem confirmar.
Em matéria de tema, é fácil se envolver com a narrativa: a injustiça mexe com o espectador, ainda mais quando tão evidente, embora deixe a pergunta no ar: será que, se fôssemos o americano médio, pensaríamos o mesmo de Slahi? Entretanto, a abordagem de Kevin MacDonald é careta ao extremo: permanece na mesmice ou tenta fugir dela para cair noutro clichê: a razão de aspecto 4:3 para evidenciar a claustrofobia de Slahi e a fotografia vertiginosa como ferramenta de desorientação.
A narrativa é tão burocrática que, mesmo admirando Jodie Foster, Benedict Cumberbatch e Shailene Woodley, não posso ignorar que são apenas personagens bidimensionais, no máximo. Já Tahar Rahim destaca-se, como tem feito desde que despontou em O Profeta, com uma atuação que injeta alguma ingenuidade para substituí-la pelo desespero. Ele não é mais bidimensional do que os demais, apesar de nos filiarmos a seu sofrimento por razões humanitárias.
Eu gostei, e acho difícil ter uma relação diferente: o filme mexe nos pontos certos do espectador com fórmulas conhecidas, mas, justo por isto, não consigo amar o resultado final. Não me parece ter feito jus ao tema essencial: a importância dos direitos humanos para que injustiças iguais a esta não se repitam.
Gosto de filmes que exigem minha reflexão logo após os créditos finais. Com este drama com toques de horror da diretora Katrin Gebbe, ficava questionando o que a diretora tentava comunicar a respeito de adoção, maternidade, sacrifício, e tudo isto me estimulava enquanto absorvia sua atmosfera pesada com a racionalidade característica do cinema alemão.
A atuação de Nina Hoss estabelece uma personagem forte, na metáfora do treino da cavalaria policial - "você deve mostrar quem manda" afirma -, e também afetuosa, a considerar pelo relacionamento com a filha. Esta paz é posta a prova com a adoção de Raya, que se revela uma mistura do Kevin (de Precisamos Falar sobre o Kevin) com toques de Damien (de A Profecia) mas com a aparência da Klara (de A Caça).
A construção é paciente: os indícios do comportamento anômalo de Raya aparecem em perversões e malcriações domésticas, na creche, nas reuniões de família, enquanto a mãe tenta administrar a situação e "domá-la" como faz realiza os cavalos arredios. Atitudes e consequências se desenvolvem de maneira natural, mesmo quando a narrativa pisa em território aparentemente sobrenatural (pode ser só a percepção materna da situação, mas isto é matéria de interpretação).
E talvez aí esteja o que me desagradou na narrativa: sua insegurança ao introduzir elementos de terror. Raya aparece na soleira do quarto da mãe ou desenha uma criatura assustadora na parede, como faria em filmes de terror, mas estes elementos acabam espalhados sem alguma coesão. Esta indecisão enfraqueceu o resultado final, porém nada que impedisse a reflexão dos sacrifício de uma mãe para com a filha que deseja resgatar.
É um desastre se pensado do ponto de vista de sua estrutura narrativa, pois, diferente do antecessor, 1666 não é nem um prólogo apenas, nem um grande flashback. Na realidade, este capítulo final da trilogia Rua do Medo é equivalente ao tipo de episódio que tem sido mais comum em toda série: a do flashback que se dedica a oferecer a maioria das respostas, ao público e/ou aos personagens, para resolver a trama.
O retorno a 1666 aposta em um dispositivo narrativo cuja função é promover identidade de atores em papéis diferentes: assim, Deena e Sarah Fier são interpretadas por Kian Madeira como se houvessem vivido os mesmos conflitos, a partir da solução do roteiro simples, mas ineficiente (pois incapaz de justificar a mesma identidade de Olivia Scott Welch ou Benjamin Flores). É que, como 1666 ocupa 2/3 da narrativa, o 1/3 restante precisa disfarçar-se para haver alguma forma de continuidade quando a história em 1994 encaminhar-se ao final.
Entretanto, a maneira com que a trilogia resolveu a pecha entre Shadyside e Sunnyvale está em sintonia com o que vinha sendo apresentado nos episódios anteriores, trazendo a história de Sarah Fier como uma condenação injusta por uma sociedade arcaica e de mentalidade fechada e que proporcionou a desigualdade social das cidades provocada pelo desejo de suceder, custe o que custar (tema bastante presente na sociedade capitalista e competitiva em que o importante é ter êxito, independente dos meios e de quantos sofram por isto).
Além do mais, esta parte final tem, talvez, o ápice da trilogia quando os assassinos mascarados - somente meios para um fim, igual são no gênero terror - colocam-se uns contra os outros, evidenciando como se comportam os membros de nossa sociedade que preferem se matar, ao invés de se rebelar contra quem os aliene. Apesar do caos que é a estrutura narrativa, ainda assim é uma trilogia acima da média.
Eu tenho me divertido muito com este terror contemporâneo, que tem aprendido que as mortes gráficas viraram motivo de humor ácido, não de medo. Freaky é um destes "terrir", em que a fórmula é subvertida, a partir da hibridização com a comédia: no caso, a de troca de corpos. O título em inglês acrescido com a sexta-feira 13 em que tudo acontece remete a Freaky Friday, o Sexta-Feira Muito Louca com Lindsay Lohan e Jamie Lee Curtis.
A inovação não está nos crimes cometidos pelo Carniceiro, mas nas consequências de utilizar a troca de copros como metáfora para o empoderamento de Millie, a garota virginal e inocente dos filmes de terror e que aqui é quem promove a chacina contra os adolescentes típicos e que a oprimem no colégio.
O desenvolvimento entretém e é ágil o bastante para diminuir nossa atenção para alguns tropeços narrativos: o roteiro aplica duas regras diferentes para a troca de corpos (acontece do dia para a noite ou é instantânea?), enquanto a direção de Christopher Landon subestima o espectador quando insere um flashback a fim de explicar um alarme. Além do mais, apesar de eu adorar a atuação de Vince Vaughn, o filme comete o mesmo erro de Se Eu Fosse Você: quando Mille assume o corpo do Carniceiro, e vice-versa, suas personalidades radicalmente mudam. Millie, em vez de acanhada, gesticula e se expressa mais do que antes; já o Carniceiro, revitaliza o modo de se vestir e também o propósito de seus crimes.
Mas, ei, a originalidade da premissa e a execução frenética compensam estes deslizes.
O Segredo da Cabana já brincou, dentro do absurdo, com a mesma matéria prima de Um Clássico Filme de Terror: a referência / homenagem crítica e metalinguística ao gênero. Ainda assim, existe algum ineditismo em como o filme italiano se parodia mesmo quando mais violento e o debate a respeito da relação construída entre público e os personagens que (sobre)vivem terrores.
Apesar de pontuar pistas não tão sutis no início da narrativa, o roteiro conserva-nos às cegas enquanto explora o terror folclórico (folk horror), a partir de elementos essenciais: isolamento, natureza, sacrifício. Tudo isto igual à máscara que cobre o rosto da trindade de seres sobrenaturais que aterrorizam aqueles personagens. Não falta gore, e Mathilda Lutz mais uma vez é submetida à trajetória torturante e ensanguentada de sobrevivência após o ótimo Vingança.
Por outro lado, embora curta a reviravolta da trama, a forma com que executa sua crítica é infantil: nem há ineditismo na reflexão existente na cena da praia, bem como o epílogo não promove qualquer discussão a respeito da nossa "contribuição" na dor da protagonista (além de conceder a oportunidade que todo o crítico adora: utilizar um dispositivo do filme como forme de soltar uma frase de efeito). De maneira parecida, o drama de Elisa é mal desenvolvido e fica só na imagem evocativa do final, que não fala tanto sem um contexto melhor amarrado.
Um Clássico Filme de Terror é mais pós-moderno do que clássico, mas, ironicamente, é quando é mais clássico que melhor funciona.
Apesar de Interrompemos a Programação aparentar ser uma história real em como utiliza elementos estilísticos documentais, o thriller ficcional é a típica narrativa de uma pessoa média que acredita ser capaz de alterar o sistema de dentro, a partir de um ato criminoso e desesperado. Não é diferente de Um Dia de Cão, A Negociação ou O Quarto Poder, somente para citar três, embora não chegue perto de fugir de sua crítica óbvia.
Isto porque, hoje em dia, é muito mais fácil aparecer em rede nacional e passar qualquer mensagem que seja para um público específico: basta fazer um perfil em uma rede social. Assim, a narrativa se desloca à virada do milênio, quando a relevância da televisão era significativa, e põe Sebastian na posição de um raptor inocente ao fato de que está sendo manipulado por aqueles atrás das câmeras. Seu desespero é evidente a partir da atuação de Bartosz Bielenia e do figurino com que esconde a própria expressão vulnerável, aparentemente incapaz de por adiante seu plano.
Assim, a narrativa curta se desenvolve dentro de dois cenários, em frente e atrás das câmeras, e dá umas escapulidas para fingir fazer documentário (quando entrevista os jovens poloneses que preferem fugir à Alemanha a permanecer no país). Há uma crítica política, mas mal desenvolvida para quem desconhece as circunstâncias históricas do país, senão no fato do pai que rejeita o filho (o país que rejeita os cidadãos). Isto é diluído e sobra um thriller, cujo resultado é previsível e não menos envolvente por causa disto.
Enquanto a parte anterior, 1994, estabeleceu as diretrizes narrativas e estilísticas adotadas pela direção de Leigh Janiak para a trilogia, esta segunda parte, 1978, aproveita-se para empregá-las dentro do slasher clássico, como A Hora do Pesadelo ou Sexta-Feira 13. Assim, enquanto corteja os tema e elementos do subgênero, a continuação adota forma cinematográfica contemporânea, sem que isto modifique sua essência. Se o anterior era filhote de Pânico, que ironizou o gênero slashers, este não tenta se afastar de sua origem.
Não há mais oportunidade para alívios cômicos, ou ao menos não na mesma pegada de Stranger Things ou It - A Coisa, e a continuação é mais focada no gore do assassino (não tão) mascarado que trucida adolescente durante o evento tradicional de um acampamento. Aqui, o objetivo é sobreviver e tentar descobrir como quebrar a maldição da bruxa antes de morrer. Há alusões a mais terrores (Premonição, O Abismo do Medo, apenas para citar dois), mas a proposta é de ser um slasher de ontem nos dias de hoje.
Leigh tem pulso firme para tomar as melhores decisões e bom ouvido para escolher canções que representem bem a geração rock 'n roll do final dos anos 70. O roteiro pode não se aprofundar na rixa Sunnyvale e Shadysade, mas percebemos como esta desigualdade impacta na formação adolescente e no sonho de deixar aquela cidade (que aqui, repito, pode ser interpretado como metáfora do conflito de classes), e assim possibilita a criação de personagens centrais mais interessantes do que os do anterior (refiro-me às atrizes Sadie Sink e Emily Rudd). A dinâmica das irmãs somente não é melhor construída porque a trama as separa cedo em dois objetivos diferentes.
Ao fim, é um slasher clássico feito nos dias de hoje. Os temas são os de ontem, não a forma (os movimentos de câmera, a fotografia bem mais nítida), e me divertiu porque pude reviver os tempos em que eu adorava slashers sem o sentimento de culpa que sentia depois disto.
A favor de Viúva Negra, está sua natureza de apêndice: sem necessitar prestar contas em demasia como fizeram os demais filmes da Marvel, a aventura solo de Natasha Romanoff é livre para poder encontrar a forma de narrar sua história, enquanto se mantém reverente ao cinema de ação e autoconsciente de suas limitações.
É verdade que o jeito Marvel de pensar cinema está enraizado e alguns elementos permanecem no quase somente por receio do estúdio em se afastar da fórmula de sucesso, e refiro-me à personalidade niilista de Yelena, que se transforma em subterfúgio cômico e não em um grito desesperado para ser escutada. Por outro lado, Viúva Negra acerta em como introduz o discurso feminista como parte integrante do roteiro, não como mero aceno ao público feminino (como ocorreu na reunião das heroínas em Vingadores: Ultimato).
A ideia de um vilão manipular a mente das mulheres - as viúvas negras - e obrigá-las a obedecer seus desejos e a lutar umas contras as outras sublinha contra o quê Natasha e Yelena combatem. Não é só o homem mas a ideia que este traz consigo, traduzida sem soar palestra. O mérito é da diretora australiana Cate Shortland (de Lore, Síndrome de Berlim), apta ainda a criticar a própria representação de Natasha nos filmes passados.
Enquanto isto, com exceção do conveniente e mal executado resgate em uma prisão na Rússia, as cenas de ação são eficazes, ágeis e muito reverentes: a trilogia Jason Bourne é homenageada, a série Missão: Impossível tem um dispositivo reutilizado com a mesma finalidade, 007 contra o Foguete da Morte sugere, até mesmo, a natureza canastrona do vilão e dá dicas de onde está escondida a tal da Sala Vermelha. Assim, a aventura é uma forma honrada de se despedir da primeira heroína do Universo Cinematográfico Marvel em bom tom - com a atuação saudosa de Scarlett Johansson - e abrindo a porta para o surgimento de outra, igualmente talentosa: vivida por Florence Pugh.
Depois dos créditos, há uma cena que será melhor usufruída por quem está assistindo às séries da Marvel.
Em certo momento de A Guerra do Amanhã, os personagens recorrem a um estudante do ensino médio, em vez de cientistas ou PhDs, a fim de procurar uma explicação referente a certo formação da natureza. Não é porque a proposta de um blockbusters seja o entretenimento que o roteiro ou os personagens precisem ser meras desculpas para vermos a criaturas no futuro dilacerando a indefesa humanidade. E a premissa de Zach Dean, que evita mexer no passado com a intenção de modificar o futuro, mal se sustenta quando apela ao recrutamento ilógico de pessoas (civis, sobretudo) no passado quando haveria formas práticas de usar a tecnologia de viagem no tempo a favor.
Ah, Márcio, mas as cenas de ação são boas piriri-pororó. São, mas não inovam em nada do que já não estávamos acostumados: enquanto em Tropas Estelares, para exemplificar, a carnificina era materializada de uma forma sensível, aqui você quase enxerga o fundo verde com que os cenários são criados para denotar a artificialidade de mais uma ficção-científica genérica e mais extensa do que o normal. Até mesmo Independence Day, que nem é o melhor exemplo para comparação, há uma preocupação em estabelecer a dimensão do perigo a que estão expostos os personagens. Aqui, não. Nada parece ameaçar Dan, só quem for descartável.
Além disto, os dramas dos personagens são simplórios: Dan, brigado com o pai, frustrado por não ter o emprego dos sonhos (embora viva no subúrbio em que 99% das pessoas gostariam de viver) e tentando ser um pai inspirador para sua filha, tem a chance de reatar-se com o pai, encontrar propósito e ser inspirador em um estalo de dedos que não exige nada do carisma ou talento de Chris Pratt.
Quer dizer que achei ruim? Não, e penso que, nos cinemas, o filme valeria o preço do ingresso. Mas, afora a premissa original, A Guerra do Amanhã é mais do mesmo. Sem tema, dramas ou personagens interessantes e com quem nos preocupássemos, tudo o que resta é a ação convencionalmente esperada de uma superprodução.
O cinema de Quentin Tarantino é pautado na habilidade que tem de "roubar" de todas as produções, um processo finalizado em como se propõe a ressignificar as referências da cultura popular em geral (não apenas dos filmes). Mas em Bastardos Inglórios, Quentin não roubou somente dos faroestes spaghetti ou de elementos do cinema nazista; roubou da história seu significado, ironizou e problematizou o discurso histórico a partir de uma ficção alternativa da 2ª Guerra Mundial.
A história é contada pelos vencedores, conhecemos o ditado e isto é levado as últimas consequências quando Quentin subverte a história, a fim de proporcionar uma versão cinematográfica em que o cinema é a arma do discurso: não é somente o discurso de propaganda dentro de um teatro transformado em câmera de gás contra os nazistas, mas é também a película como instrumento combustível de uma vingança que dispensa armas de fogo ou explosivos. É criada e desenvolvida no desejo de uma mulher, Shoshana, em restituir o poder perdido após a visita de Hans Landa.
Se Brad Pitt tem o charme canastrão que é uma forma de a direção critica a própria postura norte-americana no conflito, Mélanie Laurent e especialmente Christoph Waltz desenvolvem as figuras antagônicas deste pastiche. Uma forma de ridicularizar, a partir da imagem, quem eram Hitler e Goebbels, destituindo o regime nazista das versões mais famosas americanas ou europeias por uma proposta ácida e ardilosa. É um cinema de guerra em que a guerra é artifício cinematográfico e em que a arma é a linguagem cinematográfica.
Bastardos Inglórios envelheceu bem na revisitação, expôs o talento de Quentin não apenas no roubo, mas em conferir significado à violência e às varias referências assimiladas por quem ama tanto o cinema que encontrou uma maneira de reescrever a história, retirando o trauma e inserindo o entretenimento mordaz.
Passageiro Acidental não propõe nada de inédito dentro das ficções-científicas espaciais: a claustrofobia física e emocional está evidente e, mesmo que não haja a gravidade zero a que estamos habituados, percebemos os sentimentos em suspensão. A propósito, um dos entraves nesta narrativa é jogar seguro demais, já que seus personagens são reféns de suas funções: Marina precisa tomar decisões difíceis por ser líder, David amarga a perda daquilo em que investiu por tanto tempo e Zoe, médica, precisa proteger a vida a qualquer custo.
Durante 75 minutos, a narrativa se movimenta por entre os compartimentos apertados da espaçonave, sem exibir algum sinal de inspiração dramática: as interações são óbvias, ainda que a humanidade seja autêntica, e o desenvolvimento das ações que conduzem aos 30 minutos finais sugere que, talvez, a duração tenha se estendido além da conta. A convencionalidade apenas é superada no clímax, que se vale de planos abertos a fim de retratar a missão colocada diante de seus personagens antes de retornar a planos mais fechados e a constatação que sobrevirá.
A eficácia do clímax pode ser creditada ao desenvolvimento? Sim, pois não haveria uma conexão emocional com os eventos narrados, se não houvesse envolvimento no drama dos personagens, como apresentados, e também na bela defesa que a narrativa realiza da profissão médica. É válido atravessar o oceano espacial para chegarmos neste ponto, talvez em segunda marcha, não em primeira.
É um terror néon slasher muito conceitual, em como articula outros subgêneros do terror em torno de uma proposta intrigante da obra de R. L. Stine, autor da série Goosebumps. Embora não haja nenhuma revolução no subgênero, como ocorreu na década de 90 com Pânico, há um trabalho de excessos que me agrada: são muitos estímulos visuais, muitos personagens descartáveis prestes a serem mortos, muitos assassinos mascarados.
Isto sem abrir mão das convenções nostálgicas - o grupo de jovens adolescentes, os pais ausentes, a polícia inapta em ajudar na resolução do mistério -, ainda que atualize alguns de seus elementos dramáticos para os dias de hoje. Além disto, a nostalgia está presente na revisitação dos anos 90 e no resgatar da revolução tecnológica que trocou a mitologia e as histórias de terror ao redor da fogueira, em troca de um ceticismo. Estamos no limiar desta mudança, quando ser apelidado de nerd ainda era assumido como xingamento, e a diretora Leigh Janiak acerta em restaurar a sensação de reviver esta época.
Por outro lado, como na maioria dos slashers, o comportamento dos personagens não faz tanto sentido quando pensado em retrospecto - por que se arriscar por uma pessoa se isto põe em risco todos os demais? -, bem como há furos dentro da lógica dos assassinatos - a ponto de colocar a interrogação na razão de os assassinatos no hospital terem ocorrido se o objetivo do antagonista já era outro.
Não compromete a diversão oferecida por este tipo de filme, sobretudo neste domingo frio e que pede um terror igual a este antes de dormir.
Algumas histórias são tão surpreendentes e inacreditáveis que poderiam dispensar diretores de cinema e serem filmadas por um algoritmo, tamanha a potência de seu roteiro. Estou brincando somente para expressar que o roteiro deste documentário proporciona alternativas e plot twists que, dificilmente, poderiam ser arruinadas por contação de história burocrática.
Como é o caso da direção de Tim Wardle, que antecipa o elemento negativo antes dele ser necessário na narrativa desde a escolha de qual irmão apresentaria o caso, até uma ausência óbvia, mas que poderia ser remediada por um dispositivo que o documentário autoriza a partir de certo momento.
De toda forma, às vezes alguns roteiros são simplesmente imunes a decisões artísticas mais caretas.
Desde que começou a experimentar com o cinema digital, até mesmo a ponto de fotografar longas-metragens com câmeras de iPhone, o diretor, diretor de fotografia (pseudônimo Peter Andrews) e montador (como Mary Ann Bernard) Steven Soderbergh estabeleceu um processo produtivo aliado do criativo: seus filmes parecem fáceis se vistos apenas em função de sua linguagem visual, mas esta camufla os sentimentos complexos de seus personagens.
É o caso deste Let Them All Talk (não traduzido para português, mas que seria algo como "Deixem que Falem"), em que Steven emprega o talento de Meryl Streep para construir uma personagem que, a princípio, nós pensamos conhecer bem: a escritora desenganada, de forma até presunçosa, por aquela obra que teve apelo popular. Com a perspicácia de quem sabe como manipular o espectador, Soderbergh brinca com a nossa percepção de Alice, a ponto de fazê-la parecer só arrogante e pedante diante daquelas amigas que há tanto tempo não vê, nem pode ver, pois esta trabalhando em um manuscrito.
Enquanto faz isto, em paralelo, desenvolve coadjuvantes cativantes (Susan, Roberta, Tyler e Karen) que têm seus próprios objetivos como personagens dentro de uma trama que parecia ser convencional, mas se propõe a ser mais a partir dos mistérios que estabelece e de como estes podem proporcionar uma releitura de Alice ao conhecermos o panorama por completo. Nem há palavras para descrever a atuação de Meryl Streep, que mascara alguma vulnerabilidade sob o olhar de quem está no controle da situação, e a maneira com que interage com a vencedora de 2 Oscars Dianne Wiest e Candice Bergen.
E que eu não esqueça Lucas Hedges, que estabelece um personagem cujo arco seria descartável se não fosse a astúcia da roteirista Deborah Eisenberg em evitar os clichês em que poderia cair, sem retirar-lhe da condição de jovem adulto que está somente curtindo um cruzeiro ao lado de sua tia endinheirada. No fim, os filmes de Steven Soderbergh até parecem menores do que aqueles que dirigiu quando era tomado como gênio da indústria, mas quando pensamos nos sentimentos que nos proporcionam, enxergamos que esta genialidade está presente, ainda que nos manipule com discrição.
A continuação tardia da ótima animação de 2013 trabalha dentro da política da boa vizinhança, quer dizer, pretende agradar gregos e troianos a partir de uma releitura da sociedade contemporânea nos tempos pré-históricos e da quebra da polarização política de hoje. E enquanto faz isto, retrabalha elementos de animações da Disney de forma bem sucedida.
O protagonista é um jovem hipster apaixonado pela primogênita dos Croods, Eep, uma garota das cavernas, leia-se menos sofisticada e de uma realidade social originalmente diversa da sua. Sua relação é enxergada a contragosto pelo patriarca, Grug, que decide procurar um lar onde toda sua família poderá viver plenamente. É quando chega na fazenda da família Bemelhor, que criou um ambiente aparentemente sustentável e tecnológico (para os padrões da pré-história) em que pode retirar da natureza seu sustento e adotar um estilo de vida liberal, privado e individualista. Até o momento em que descobrimos que, para criar este santuário, os Bemelhor precisaram explorar uma camada social inferior a sua e roubar deles seu sustento.
Assim, a animação acumula exemplos sociais facilmente identificáveis mas sem aquele fio condutor decidido em saber o que ou como está criticando ou refletindo a respeito. Tudo serve para conduzir a ideia de que, apesar das diferenças, somos melhores unidos, assim quebrando a ideia polarizada monstrificada no terceiro ato. Por outro lado, a narrativa saí-se melhor quando brinca com o estúdio rival (a Disney) ao apresentar uma personagem (Aurora), que mais parece uma versão da Rapunzel de Enrolados (até mesmo se tratando dos traços animados), ou quando apresenta criaturas amálgamas divertidas só pelo conceito (como os lobo-aranhas).
Mais curto do que o original e mais direto onde quer chegar, a demora talvez até tenha feito melhor para a continuação por ajudá-la a se distanciar dos parâmetros do anterior e encontrar uma voz própria dentro de uma sociedade pré-histórica que mais parece os dias atuais
Eu não saberia expressar em palavras todos os sentimentos vividos durante o período de isolamento: a contraditoriedade de emoções passivo-agressivas, o desejo de dormir e acordar quando tudo tivesse resolvido contraposto com a vontade de procurar formas novas de me comunicar diante dos obstáculos do confinamento, a ansiedade generalizada etc. Mas eu me considero contemplado por Bo Burnham que, sozinho, atuou, roteirizou, compôs as músicas, dirigiu, fotografou, iluminou, editou o som e montou esta comédia dramática, por vezes hilária, noutras profundamente dolorosa.
Bo expõe os equipamentos básicos (alguns, nem tanto), como se estivéssemos nos bastidores de seu espetáculo, prestes a tropeçar nos fios ou derrubar um dos tripés onde posiciona a iluminação que opera através de um controle remoto. A ideia de mecanização da produção de conteúdo vem à cabeça, com a transformação da pessoa cultural em pessoa-máquina, cuja função nobre é alimentar os feeds dos usuários ansiosos por consumir 30 segundos de informação antes de passar a próxima.
Por detrás de apps de filtro, edição, montagem, existe uma pessoa que se martiriza enquanto questiona se o que está produzindo faz algum sentido na sociedade de hoje. E a comédia, a matéria prima do ator/diretor, é posta debaixo de holofotes mais fortes do que as luzes néon de seu cenário: como rir com mais de 500 mil mortos no Brasil, por exemplo? Como aceitar esta pretensa normalidade enclausurado em um cômodo apertado, cujo teto parece comprimir Bo e cuja porta é incompatível com sua altura?
Ao percorrer o limiar que separa entretenimento e reflexão, Bo atinge o nirvana de proporcionar o riso a partir de algumas esquetes e, logo depois, retirar a máscara de palhaço e ilustrar a tristeza de um homem que luta contra a amarga ideia de que sua vida não faz sentido, a ponto de contemplar o suicídio (temporário, afirma, apenas 18 meses). Os erros de Bo, se é que podemos denominá-los assim, humanizam esta comédia dramática que melhor definiu meu-eu durante a pandemia.
Luca é uma criança curiosa que, enquanto cuida das tarefas domésticas sob o olhar rigoroso de sua mãe superprotetora e da leniência do pai bonachão, sonha com um mundo de possibilidades além da vizinhança onde mora. O fato de ser uma criatura marinha não muda este contexto, pois crianças serão crianças, pais serão pais, verões serão verões, seja sobre ou sob o mar.
Quando emerge, Luca se metamorfoseia em um garoto e conhece Alberto, também uma criatura marinha. A amizade dos dois é testada durante um verão na costa ensolarada da Itália, enquanto fazem novos amigos e se preparam para um desafio que testará não apenas um e o outro, como também a tolerância da comunidade onde se escondem. Apesar de haver símbolos visuais que conduzem à interpretação de um relacionamento homoafetivo no subtexto da narrativa - a cena do trem é a evidência principal -, Luca está mesmo dedicado a debater a intolerância proveniente da xenofobia.
Luca e Alberto são "alienígenas" na superfície, sobretudo se considerarmos a ilha de Lampedusa como ponto de entrada de imigrantes na Europa. Embora estejam disfarçados, a rotina e os costumes que vivenciam são diferentes aos que estão acostumados, mas nem por isto demonstram menos ânimo em tentar se adaptar à comunidade e tentar auxiliá-la de alguma forma. A animação vibrante revela, a partir do brilho e saturação das cores, a beleza e maturidade em aceitar quem parece diferente como forma de engrandecimento social.
Com muita aventura, bom humor e um vilão picareta e maniqueísta que amamos detestar, além de algumas referências aos cinéfilos que conhecem o cinema italiano, Luca é uma deliciosa aula de tolerância e cordialidade.
Expõe a influência nefasta de John Tyndall, um homúnculo da extrema direita inglesa, nas mentes e nos atos de outros homúnculos, um deles responsável por cometer atentados contra vários grupos minoritários na Inglaterra dos anos 90.
Uma comédia que surfa no fenômeno de Fleabag em apresentar sua heroína imperfeita (a adorável Gillian Jacobs) em um cenário famoso dentro do cinema independente americano: o retorno à cidade de onde veio, à universidade onde se formou, aos sonhos que para trás deixou.
Quo Vadis, Aida?
4.2 177 Assista AgoraEu desconhecia o evento real dramatizado pelo indicado da Bósnia ao Oscar de Melhor Internacional de 2021, mas, mesmo assim, pressentia tudo o que viria a acontecer. Conivente com a realidade, esta narrativa emprega a estética típica do cinema do leste europeu e despe-lhe de todos os elementos cinematográficos tradicionalmente associados ao cinema de mainstream. Com isto, aproxima-se do documentário, ainda que parte da fictícia história da tradutora que deseja salvar a família do exército sérvio-bósnio não muçulmano.
É um tempo carente de internet, então a humanidade não pode postar textões nas redes sociais ou hashtags PrayForBosnia como maneira de chamar atenção à catástrofe humanitária vizinha. Mesmo se houvesse, desconfio que não seria de muita utilidade, já que a ONU, mediadora do conflito, mostra-se de mãos atadas ante a aglomeração de corpos, carência de comida, impossibilidade de realizar necessidades básicas. Parece estarmos dentro de um gueto claustrofóbico, apenas porque as maiores potências do mundo talvez não vissem motivo para salvar os bósnios muçulmanos.
A atriz Jasna Đuričić fascina em como não se envergonha de utilizar a posição privilegiada de tradutora para barganhar pela própria família, enquanto não mascara o desespero em ver portas e janelas fechando detrás de si e tornando a sobrevivência cada vez menos possível. Já Boris Isaković cria um destes monstros reais - o general Ratko Mladic -, tão seguro de seu autoritarismo que convence a população frágil e desamparada com falsas promessas, ditas de modo firma mas brando.
Frio, igual a quem deseja apenas sobreviver não importa como, Quo Vadis, Aida? debate o papel do tradutor literalmente no roteiro - a partir de subversões ou omissões adotadas por Aida - e no subtexto, em como a narrativa da diretora Jasmila Žbanić também serve como tradutora deste terror histórico, em como a câmera enxerga os fatos, omite outros, mas não muda a verdade: o combustível da maldade de uns é a conivência, inação, covardia de muitos.
Um Lugar Silencioso - Parte II
3.6 1,2K Assista AgoraUm Lugar Silencioso - Parte 2 realiza o que toda continuação costuma realizar: multiplica personagens, situações e criaturas, agora sem o mistério que as cercava anteriormente, em uma trama que abandona metáforas em favor do literal. Isto costuma levar-me a mesma reflexão: por que mais se, antes, menos funcionou tão bem?
A resposta é: por mais dinheiro. O sucesso surpreendente do antecessor praticamente obrigou o retorno do elenco à continuação, que se presta a explicar a origem das criaturas antes de reencontrar os Abbott depois da morte de Lee. Entretanto, por mais que tenha perdido o elemento surpresa, a continuação não faz feio em relação ao anterior: adiciona Cillian Murphy, mais do que hábil de ocupar a lacuna deixada por John Krasinski, e desenvolve um terror aflitivo e inteligente na forma como explorar os pontos-fracos das criaturas.
O roteiro é enxuto em investir só o tempo necessário para apresentar e desenvolver Emmett antes de se repartir em subtramas, a primeira mais eficiente do que a segunda em termos de execução, mas ambas complementares dentro do tema central: o amadurecimento precoce dos filhos e a necessidade deles saíram da sombra para proteger toda a família. Isto está presente na montagem paralela de Michael P. Shawver, que revela a vulnerabilidade de Regan e Marcus ao mesmo tempo, as relações de causa e efeito entre as subtramas e o empoderamento final, ilustrado em um enquadramento memorável.
A direção de John Krasinski, assistido pela montagem, desenvolve cenas tensas e implacáveis, a ponto de perdermos a respiração igual aos personagens. Ao mesmo tempo, a direção é coerente com o desenvolvimento dos familiares depois da morte de Lee, além de pontuar a condição de protagonismo de Millicent Simmonds, que herda do pai o papel de coragem, em uma crítica ao capacitismo comum na nossa sociedade.
Então, embora mais inchado que o anterior, a continuação é muito satisfatória em complementar, ainda que com menos mistérios, o universo narrativo criado anteriormente em direção ao capítulo final.
A Grande Beleza
3.9 463 Assista AgoraEnquanto caminha pelas ruas da cidade eterna, o apelido de Roma, Jep assiste ao clássico coexistir com o contemporâneo, o espetáculo belo e também a ilusão do belo, o mundano ao lado do divino, a aparência e a essência. Nada escapa a seu olhar meticuloso, que é como juiz de todos que o rodeiam e até de si mesmo, e o vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2013 torna o ato de contemplar em um ato de viver, a partir de uma direção de fotografia expressiva, poética e encantadora. Uma fotografia apaixonada por Roma, embora a posicione em segundo plano para poder defender seu argumento a respeito da decadência de uma fatia social autodenominada politizada e intelectual.
O filme é um passeio existencial para o interior do eu, e faz isto sem ser inacessível, enquanto conserva a riqueza de detalhes para que o espectador absorva, de modo plural, cada cena. Isto porque caímos de amores por Jep, interpretado com bossa e melancolia por Toni Servillo, um dos maiores atores italianos em atividade. Com um jeito bonachão mas agridoce, Toni conquista o espectador em como sabe que a vida que leva é vazia e precisa de algum sentido, nem que para isto precise perambular por toda a Roma para encontrá-lo.
A resposta está na fé. Não na fé religiosa, embora a narrativa torne literal a religião como uma de suas fontes, mas a fé na nostalgia e memória como uma alternativa para se reapaixonar pela vida. É um filme de sensibilidade rara, ciente da beleza do que tem a mostrar, como também do trajeto para alcançá-la e dos obstáculos postos no caminho: hedonismo, narcisismo, materialismo. Tudo amarradinho na direção caprichada de Paolo Sorrentino, cuja visão não está preocupada em desvendar o mistério da grande beleza.
Mas em ilustrar a pessoa transformada diante dela.
Jolt: Fúria Fatal
2.5 151À primeira vista, Jolt é o tipo de filme de ação estrelado por uma mulher que Luc Besson dirigiria, escreveria e/ou produziria em outros tempos.
No entanto, com a direção de Tania Wexler, o filme se leva menos a sério, adotando o absurdo e o exagero como moedas de troca para analogias e subversões (prefiro chamá-las de choques elétricos) que o gênero já merecia levar.
A premissa é a mesma do filme de ação clássico em que um homem parte atrás de vingança após uma mulher, que era sua chance de um recomeço, é morta pelos vilões. Agora, é Kate Beckinsale que tem o domínio dos eventos que a levarão a enfrentar a polícia, um traficante de armas e um vilão que só é intocável na cabeça dele. Soma-se a isto o aditivo a lá Adrenalina, com o eletrochoque indispensável para que a protagonista não se entregue a raiva (como se vestisse uma água viva metafórica como forma de autocontrole).
Em certo momento, Lindy entra em banheiro de um restaurante todo pintado de verde e a associação é logo à mesma raiva que transforma Bruce Banner em Hulk. Com isto, Tania Wexler introduz e reflete sobre aspectos feministas, mas com um senso de humor pervertido através do acesso às fantasias de violência da protagonista. Ela brinca muito, dirige a ação para que não a levemos a sério e nos divertamos, e ainda debate um tema bastante interessante: como a sociedade reprime as mulheres a ponto de obrigá-las a controlar impulsos e sentimentos, na forma do dispositivo que permite que Lindy "funcione normalmente".
Ainda há sacadas geniais, como a cena, no interior de um berçário, em que Lindy arremessa bebês (!) como mecanismo de fuga (parece-me a rejeição da maternidade imposta) ou a presença de uma das mulheres mais donas de tudo do cinema. Dá pra virar franquia, e eu adoraria ver aonde Lindy iria parar.
Estômago
4.2 1,6K Assista AgoraEstômago é mais do que uma fábula sobre o advento do talento onde quer que seja, é uma alegoria bastante direta da exploração da mão de obra da pessoa nordestina nas grandes cidades do eixo sul-sudeste, em como resume a existência de Raimundo Nonato apenas àqueles ambientes onde exerce sua arte, a gastronomia. Através de reduzida profundidade de campo, o mundo do protagonista surge em função de seus dois chefes e da mulher por que é obcecado, não admitindo que vejamos a cidade de São Paulo além dos contornos do mundinho onde habita.
A trama é estruturada em torno de eventos havidos no passado e presente (na cadeia), reservando surpresas para seus terceiro ato, e mascara, a olhos vistos, comentários sociais igual aos patrões que exploram, condescendentemente até, a aparente ingenuidade de Raimundo Nonato, cuja habilidade na cozinha finalmente encontrou terreno onde pode frutificar, no lugar daquele do sertão de onde veio.
Nem tudo são flores, e o filme dirigido por Marcos Jorge, ainda mais hoje e em razão de ser narrado subjetivamente por Raimundo Nonato, apresenta-se como crítica ao comportamento possessivo de homens em relação às mulheres. Algumas críticas em função da representação da mulher no filme me parecem válidas apenas se desconsiderarmos que a história é narrada pelo ponto de vista de Raimundo Nonato, cuja música tema beira a infantilidade. Entretanto, ao introduzir o sibilar de cobras na edição sonora, a direção parece concordar, ou ao menos tenta atenuar, determinado ato injustificável.
Reflexão de lado, além de montado com eficiência de modo que os dois tempos narrativos se encontrem, também emocionalmente, o filme conta com uma atuação inspiradíssima de João Miguel e as adições competentes de Fabiula Nascimento e Carlo Briani na criação de uma fábula que também é um retrato claro da sociedade brasileira.
O Mauritano
3.7 110Eu acho Kevin MacDonald um melhor diretor de documentários do que de ficções. Aqui, adota material que deixaria as mãos de Oliver Stone e Michael Moore coçando: a justiça (?) americana ávida em se vingar dos terroristas que provocaram o 11 de setembro e disposta a repetir os atos de desumanidade que finge combater. Os afogamentos, as privações do sono, as ameaças e demais formas com que os Estados Unidos tentam obter confissões ilegais para confirmar as verdades (??) que querem confirmar.
Em matéria de tema, é fácil se envolver com a narrativa: a injustiça mexe com o espectador, ainda mais quando tão evidente, embora deixe a pergunta no ar: será que, se fôssemos o americano médio, pensaríamos o mesmo de Slahi? Entretanto, a abordagem de Kevin MacDonald é careta ao extremo: permanece na mesmice ou tenta fugir dela para cair noutro clichê: a razão de aspecto 4:3 para evidenciar a claustrofobia de Slahi e a fotografia vertiginosa como ferramenta de desorientação.
A narrativa é tão burocrática que, mesmo admirando Jodie Foster, Benedict Cumberbatch e Shailene Woodley, não posso ignorar que são apenas personagens bidimensionais, no máximo. Já Tahar Rahim destaca-se, como tem feito desde que despontou em O Profeta, com uma atuação que injeta alguma ingenuidade para substituí-la pelo desespero. Ele não é mais bidimensional do que os demais, apesar de nos filiarmos a seu sofrimento por razões humanitárias.
Eu gostei, e acho difícil ter uma relação diferente: o filme mexe nos pontos certos do espectador com fórmulas conhecidas, mas, justo por isto, não consigo amar o resultado final. Não me parece ter feito jus ao tema essencial: a importância dos direitos humanos para que injustiças iguais a esta não se repitam.
Sangue de Pelicano
3.0 32 Assista AgoraGosto de filmes que exigem minha reflexão logo após os créditos finais. Com este drama com toques de horror da diretora Katrin Gebbe, ficava questionando o que a diretora tentava comunicar a respeito de adoção, maternidade, sacrifício, e tudo isto me estimulava enquanto absorvia sua atmosfera pesada com a racionalidade característica do cinema alemão.
A atuação de Nina Hoss estabelece uma personagem forte, na metáfora do treino da cavalaria policial - "você deve mostrar quem manda" afirma -, e também afetuosa, a considerar pelo relacionamento com a filha. Esta paz é posta a prova com a adoção de Raya, que se revela uma mistura do Kevin (de Precisamos Falar sobre o Kevin) com toques de Damien (de A Profecia) mas com a aparência da Klara (de A Caça).
A construção é paciente: os indícios do comportamento anômalo de Raya aparecem em perversões e malcriações domésticas, na creche, nas reuniões de família, enquanto a mãe tenta administrar a situação e "domá-la" como faz realiza os cavalos arredios. Atitudes e consequências se desenvolvem de maneira natural, mesmo quando a narrativa pisa em território aparentemente sobrenatural (pode ser só a percepção materna da situação, mas isto é matéria de interpretação).
E talvez aí esteja o que me desagradou na narrativa: sua insegurança ao introduzir elementos de terror. Raya aparece na soleira do quarto da mãe ou desenha uma criatura assustadora na parede, como faria em filmes de terror, mas estes elementos acabam espalhados sem alguma coesão. Esta indecisão enfraqueceu o resultado final, porém nada que impedisse a reflexão dos sacrifício de uma mãe para com a filha que deseja resgatar.
Rua do Medo: 1666 - Parte 3
3.5 513 Assista AgoraÉ um desastre se pensado do ponto de vista de sua estrutura narrativa, pois, diferente do antecessor, 1666 não é nem um prólogo apenas, nem um grande flashback. Na realidade, este capítulo final da trilogia Rua do Medo é equivalente ao tipo de episódio que tem sido mais comum em toda série: a do flashback que se dedica a oferecer a maioria das respostas, ao público e/ou aos personagens, para resolver a trama.
O retorno a 1666 aposta em um dispositivo narrativo cuja função é promover identidade de atores em papéis diferentes: assim, Deena e Sarah Fier são interpretadas por Kian Madeira como se houvessem vivido os mesmos conflitos, a partir da solução do roteiro simples, mas ineficiente (pois incapaz de justificar a mesma identidade de Olivia Scott Welch ou Benjamin Flores). É que, como 1666 ocupa 2/3 da narrativa, o 1/3 restante precisa disfarçar-se para haver alguma forma de continuidade quando a história em 1994 encaminhar-se ao final.
Entretanto, a maneira com que a trilogia resolveu a pecha entre Shadyside e Sunnyvale está em sintonia com o que vinha sendo apresentado nos episódios anteriores, trazendo a história de Sarah Fier como uma condenação injusta por uma sociedade arcaica e de mentalidade fechada e que proporcionou a desigualdade social das cidades provocada pelo desejo de suceder, custe o que custar (tema bastante presente na sociedade capitalista e competitiva em que o importante é ter êxito, independente dos meios e de quantos sofram por isto).
Além do mais, esta parte final tem, talvez, o ápice da trilogia quando os assassinos mascarados - somente meios para um fim, igual são no gênero terror - colocam-se uns contra os outros, evidenciando como se comportam os membros de nossa sociedade que preferem se matar, ao invés de se rebelar contra quem os aliene. Apesar do caos que é a estrutura narrativa, ainda assim é uma trilogia acima da média.
Freaky: No Corpo de um Assassino
3.2 464Eu tenho me divertido muito com este terror contemporâneo, que tem aprendido que as mortes gráficas viraram motivo de humor ácido, não de medo. Freaky é um destes "terrir", em que a fórmula é subvertida, a partir da hibridização com a comédia: no caso, a de troca de corpos. O título em inglês acrescido com a sexta-feira 13 em que tudo acontece remete a Freaky Friday, o Sexta-Feira Muito Louca com Lindsay Lohan e Jamie Lee Curtis.
A inovação não está nos crimes cometidos pelo Carniceiro, mas nas consequências de utilizar a troca de copros como metáfora para o empoderamento de Millie, a garota virginal e inocente dos filmes de terror e que aqui é quem promove a chacina contra os adolescentes típicos e que a oprimem no colégio.
O desenvolvimento entretém e é ágil o bastante para diminuir nossa atenção para alguns tropeços narrativos: o roteiro aplica duas regras diferentes para a troca de corpos (acontece do dia para a noite ou é instantânea?), enquanto a direção de Christopher Landon subestima o espectador quando insere um flashback a fim de explicar um alarme. Além do mais, apesar de eu adorar a atuação de Vince Vaughn, o filme comete o mesmo erro de Se Eu Fosse Você: quando Mille assume o corpo do Carniceiro, e vice-versa, suas personalidades radicalmente mudam. Millie, em vez de acanhada, gesticula e se expressa mais do que antes; já o Carniceiro, revitaliza o modo de se vestir e também o propósito de seus crimes.
Mas, ei, a originalidade da premissa e a execução frenética compensam estes deslizes.
Um Clássico Filme de Terror
2.7 423O Segredo da Cabana já brincou, dentro do absurdo, com a mesma matéria prima de Um Clássico Filme de Terror: a referência / homenagem crítica e metalinguística ao gênero. Ainda assim, existe algum ineditismo em como o filme italiano se parodia mesmo quando mais violento e o debate a respeito da relação construída entre público e os personagens que (sobre)vivem terrores.
Apesar de pontuar pistas não tão sutis no início da narrativa, o roteiro conserva-nos às cegas enquanto explora o terror folclórico (folk horror), a partir de elementos essenciais: isolamento, natureza, sacrifício. Tudo isto igual à máscara que cobre o rosto da trindade de seres sobrenaturais que aterrorizam aqueles personagens. Não falta gore, e Mathilda Lutz mais uma vez é submetida à trajetória torturante e ensanguentada de sobrevivência após o ótimo Vingança.
Por outro lado, embora curta a reviravolta da trama, a forma com que executa sua crítica é infantil: nem há ineditismo na reflexão existente na cena da praia, bem como o epílogo não promove qualquer discussão a respeito da nossa "contribuição" na dor da protagonista (além de conceder a oportunidade que todo o crítico adora: utilizar um dispositivo do filme como forme de soltar uma frase de efeito). De maneira parecida, o drama de Elisa é mal desenvolvido e fica só na imagem evocativa do final, que não fala tanto sem um contexto melhor amarrado.
Um Clássico Filme de Terror é mais pós-moderno do que clássico, mas, ironicamente, é quando é mais clássico que melhor funciona.
Interrompemos a Programação
2.0 46 Assista AgoraApesar de Interrompemos a Programação aparentar ser uma história real em como utiliza elementos estilísticos documentais, o thriller ficcional é a típica narrativa de uma pessoa média que acredita ser capaz de alterar o sistema de dentro, a partir de um ato criminoso e desesperado. Não é diferente de Um Dia de Cão, A Negociação ou O Quarto Poder, somente para citar três, embora não chegue perto de fugir de sua crítica óbvia.
Isto porque, hoje em dia, é muito mais fácil aparecer em rede nacional e passar qualquer mensagem que seja para um público específico: basta fazer um perfil em uma rede social. Assim, a narrativa se desloca à virada do milênio, quando a relevância da televisão era significativa, e põe Sebastian na posição de um raptor inocente ao fato de que está sendo manipulado por aqueles atrás das câmeras. Seu desespero é evidente a partir da atuação de Bartosz Bielenia e do figurino com que esconde a própria expressão vulnerável, aparentemente incapaz de por adiante seu plano.
Assim, a narrativa curta se desenvolve dentro de dois cenários, em frente e atrás das câmeras, e dá umas escapulidas para fingir fazer documentário (quando entrevista os jovens poloneses que preferem fugir à Alemanha a permanecer no país). Há uma crítica política, mas mal desenvolvida para quem desconhece as circunstâncias históricas do país, senão no fato do pai que rejeita o filho (o país que rejeita os cidadãos). Isto é diluído e sobra um thriller, cujo resultado é previsível e não menos envolvente por causa disto.
Rua do Medo: 1978 - Parte 2
3.5 549 Assista AgoraEnquanto a parte anterior, 1994, estabeleceu as diretrizes narrativas e estilísticas adotadas pela direção de Leigh Janiak para a trilogia, esta segunda parte, 1978, aproveita-se para empregá-las dentro do slasher clássico, como A Hora do Pesadelo ou Sexta-Feira 13. Assim, enquanto corteja os tema e elementos do subgênero, a continuação adota forma cinematográfica contemporânea, sem que isto modifique sua essência. Se o anterior era filhote de Pânico, que ironizou o gênero slashers, este não tenta se afastar de sua origem.
Não há mais oportunidade para alívios cômicos, ou ao menos não na mesma pegada de Stranger Things ou It - A Coisa, e a continuação é mais focada no gore do assassino (não tão) mascarado que trucida adolescente durante o evento tradicional de um acampamento. Aqui, o objetivo é sobreviver e tentar descobrir como quebrar a maldição da bruxa antes de morrer. Há alusões a mais terrores (Premonição, O Abismo do Medo, apenas para citar dois), mas a proposta é de ser um slasher de ontem nos dias de hoje.
Leigh tem pulso firme para tomar as melhores decisões e bom ouvido para escolher canções que representem bem a geração rock 'n roll do final dos anos 70. O roteiro pode não se aprofundar na rixa Sunnyvale e Shadysade, mas percebemos como esta desigualdade impacta na formação adolescente e no sonho de deixar aquela cidade (que aqui, repito, pode ser interpretado como metáfora do conflito de classes), e assim possibilita a criação de personagens centrais mais interessantes do que os do anterior (refiro-me às atrizes Sadie Sink e Emily Rudd). A dinâmica das irmãs somente não é melhor construída porque a trama as separa cedo em dois objetivos diferentes.
Ao fim, é um slasher clássico feito nos dias de hoje. Os temas são os de ontem, não a forma (os movimentos de câmera, a fotografia bem mais nítida), e me divertiu porque pude reviver os tempos em que eu adorava slashers sem o sentimento de culpa que sentia depois disto.
Viúva Negra
3.5 1,0K Assista AgoraA favor de Viúva Negra, está sua natureza de apêndice: sem necessitar prestar contas em demasia como fizeram os demais filmes da Marvel, a aventura solo de Natasha Romanoff é livre para poder encontrar a forma de narrar sua história, enquanto se mantém reverente ao cinema de ação e autoconsciente de suas limitações.
É verdade que o jeito Marvel de pensar cinema está enraizado e alguns elementos permanecem no quase somente por receio do estúdio em se afastar da fórmula de sucesso, e refiro-me à personalidade niilista de Yelena, que se transforma em subterfúgio cômico e não em um grito desesperado para ser escutada. Por outro lado, Viúva Negra acerta em como introduz o discurso feminista como parte integrante do roteiro, não como mero aceno ao público feminino (como ocorreu na reunião das heroínas em Vingadores: Ultimato).
A ideia de um vilão manipular a mente das mulheres - as viúvas negras - e obrigá-las a obedecer seus desejos e a lutar umas contras as outras sublinha contra o quê Natasha e Yelena combatem. Não é só o homem mas a ideia que este traz consigo, traduzida sem soar palestra. O mérito é da diretora australiana Cate Shortland (de Lore, Síndrome de Berlim), apta ainda a criticar a própria representação de Natasha nos filmes passados.
Enquanto isto, com exceção do conveniente e mal executado resgate em uma prisão na Rússia, as cenas de ação são eficazes, ágeis e muito reverentes: a trilogia Jason Bourne é homenageada, a série Missão: Impossível tem um dispositivo reutilizado com a mesma finalidade, 007 contra o Foguete da Morte sugere, até mesmo, a natureza canastrona do vilão e dá dicas de onde está escondida a tal da Sala Vermelha. Assim, a aventura é uma forma honrada de se despedir da primeira heroína do Universo Cinematográfico Marvel em bom tom - com a atuação saudosa de Scarlett Johansson - e abrindo a porta para o surgimento de outra, igualmente talentosa: vivida por Florence Pugh.
Depois dos créditos, há uma cena que será melhor usufruída por quem está assistindo às séries da Marvel.
A Guerra do Amanhã
3.2 709 Assista AgoraEm certo momento de A Guerra do Amanhã, os personagens recorrem a um estudante do ensino médio, em vez de cientistas ou PhDs, a fim de procurar uma explicação referente a certo formação da natureza. Não é porque a proposta de um blockbusters seja o entretenimento que o roteiro ou os personagens precisem ser meras desculpas para vermos a criaturas no futuro dilacerando a indefesa humanidade. E a premissa de Zach Dean, que evita mexer no passado com a intenção de modificar o futuro, mal se sustenta quando apela ao recrutamento ilógico de pessoas (civis, sobretudo) no passado quando haveria formas práticas de usar a tecnologia de viagem no tempo a favor.
Ah, Márcio, mas as cenas de ação são boas piriri-pororó. São, mas não inovam em nada do que já não estávamos acostumados: enquanto em Tropas Estelares, para exemplificar, a carnificina era materializada de uma forma sensível, aqui você quase enxerga o fundo verde com que os cenários são criados para denotar a artificialidade de mais uma ficção-científica genérica e mais extensa do que o normal. Até mesmo Independence Day, que nem é o melhor exemplo para comparação, há uma preocupação em estabelecer a dimensão do perigo a que estão expostos os personagens. Aqui, não. Nada parece ameaçar Dan, só quem for descartável.
Além disto, os dramas dos personagens são simplórios: Dan, brigado com o pai, frustrado por não ter o emprego dos sonhos (embora viva no subúrbio em que 99% das pessoas gostariam de viver) e tentando ser um pai inspirador para sua filha, tem a chance de reatar-se com o pai, encontrar propósito e ser inspirador em um estalo de dedos que não exige nada do carisma ou talento de Chris Pratt.
Quer dizer que achei ruim? Não, e penso que, nos cinemas, o filme valeria o preço do ingresso. Mas, afora a premissa original, A Guerra do Amanhã é mais do mesmo. Sem tema, dramas ou personagens interessantes e com quem nos preocupássemos, tudo o que resta é a ação convencionalmente esperada de uma superprodução.
Bastardos Inglórios
4.4 4,9K Assista AgoraO cinema de Quentin Tarantino é pautado na habilidade que tem de "roubar" de todas as produções, um processo finalizado em como se propõe a ressignificar as referências da cultura popular em geral (não apenas dos filmes). Mas em Bastardos Inglórios, Quentin não roubou somente dos faroestes spaghetti ou de elementos do cinema nazista; roubou da história seu significado, ironizou e problematizou o discurso histórico a partir de uma ficção alternativa da 2ª Guerra Mundial.
A história é contada pelos vencedores, conhecemos o ditado e isto é levado as últimas consequências quando Quentin subverte a história, a fim de proporcionar uma versão cinematográfica em que o cinema é a arma do discurso: não é somente o discurso de propaganda dentro de um teatro transformado em câmera de gás contra os nazistas, mas é também a película como instrumento combustível de uma vingança que dispensa armas de fogo ou explosivos. É criada e desenvolvida no desejo de uma mulher, Shoshana, em restituir o poder perdido após a visita de Hans Landa.
Se Brad Pitt tem o charme canastrão que é uma forma de a direção critica a própria postura norte-americana no conflito, Mélanie Laurent e especialmente Christoph Waltz desenvolvem as figuras antagônicas deste pastiche. Uma forma de ridicularizar, a partir da imagem, quem eram Hitler e Goebbels, destituindo o regime nazista das versões mais famosas americanas ou europeias por uma proposta ácida e ardilosa. É um cinema de guerra em que a guerra é artifício cinematográfico e em que a arma é a linguagem cinematográfica.
Bastardos Inglórios envelheceu bem na revisitação, expôs o talento de Quentin não apenas no roubo, mas em conferir significado à violência e às varias referências assimiladas por quem ama tanto o cinema que encontrou uma maneira de reescrever a história, retirando o trauma e inserindo o entretenimento mordaz.
Passageiro Acidental
2.7 277Passageiro Acidental não propõe nada de inédito dentro das ficções-científicas espaciais: a claustrofobia física e emocional está evidente e, mesmo que não haja a gravidade zero a que estamos habituados, percebemos os sentimentos em suspensão. A propósito, um dos entraves nesta narrativa é jogar seguro demais, já que seus personagens são reféns de suas funções: Marina precisa tomar decisões difíceis por ser líder, David amarga a perda daquilo em que investiu por tanto tempo e Zoe, médica, precisa proteger a vida a qualquer custo.
Durante 75 minutos, a narrativa se movimenta por entre os compartimentos apertados da espaçonave, sem exibir algum sinal de inspiração dramática: as interações são óbvias, ainda que a humanidade seja autêntica, e o desenvolvimento das ações que conduzem aos 30 minutos finais sugere que, talvez, a duração tenha se estendido além da conta. A convencionalidade apenas é superada no clímax, que se vale de planos abertos a fim de retratar a missão colocada diante de seus personagens antes de retornar a planos mais fechados e a constatação que sobrevirá.
A eficácia do clímax pode ser creditada ao desenvolvimento? Sim, pois não haveria uma conexão emocional com os eventos narrados, se não houvesse envolvimento no drama dos personagens, como apresentados, e também na bela defesa que a narrativa realiza da profissão médica. É válido atravessar o oceano espacial para chegarmos neste ponto, talvez em segunda marcha, não em primeira.
Rua do Medo: 1994 - Parte 1
3.1 773 Assista AgoraÉ um terror néon slasher muito conceitual, em como articula outros subgêneros do terror em torno de uma proposta intrigante da obra de R. L. Stine, autor da série Goosebumps. Embora não haja nenhuma revolução no subgênero, como ocorreu na década de 90 com Pânico, há um trabalho de excessos que me agrada: são muitos estímulos visuais, muitos personagens descartáveis prestes a serem mortos, muitos assassinos mascarados.
Isto sem abrir mão das convenções nostálgicas - o grupo de jovens adolescentes, os pais ausentes, a polícia inapta em ajudar na resolução do mistério -, ainda que atualize alguns de seus elementos dramáticos para os dias de hoje. Além disto, a nostalgia está presente na revisitação dos anos 90 e no resgatar da revolução tecnológica que trocou a mitologia e as histórias de terror ao redor da fogueira, em troca de um ceticismo. Estamos no limiar desta mudança, quando ser apelidado de nerd ainda era assumido como xingamento, e a diretora Leigh Janiak acerta em restaurar a sensação de reviver esta época.
Por outro lado, como na maioria dos slashers, o comportamento dos personagens não faz tanto sentido quando pensado em retrospecto - por que se arriscar por uma pessoa se isto põe em risco todos os demais? -, bem como há furos dentro da lógica dos assassinatos - a ponto de colocar a interrogação na razão de os assassinatos no hospital terem ocorrido se o objetivo do antagonista já era outro.
Não compromete a diversão oferecida por este tipo de filme, sobretudo neste domingo frio e que pede um terror igual a este antes de dormir.
Três Estranhos Idênticos
4.0 216 Assista AgoraAlgumas histórias são tão surpreendentes e inacreditáveis que poderiam dispensar diretores de cinema e serem filmadas por um algoritmo, tamanha a potência de seu roteiro. Estou brincando somente para expressar que o roteiro deste documentário proporciona alternativas e plot twists que, dificilmente, poderiam ser arruinadas por contação de história burocrática.
Como é o caso da direção de Tim Wardle, que antecipa o elemento negativo antes dele ser necessário na narrativa desde a escolha de qual irmão apresentaria o caso, até uma ausência óbvia, mas que poderia ser remediada por um dispositivo que o documentário autoriza a partir de certo momento.
De toda forma, às vezes alguns roteiros são simplesmente imunes a decisões artísticas mais caretas.
Let Them All Talk
3.0 45 Assista AgoraDesde que começou a experimentar com o cinema digital, até mesmo a ponto de fotografar longas-metragens com câmeras de iPhone, o diretor, diretor de fotografia (pseudônimo Peter Andrews) e montador (como Mary Ann Bernard) Steven Soderbergh estabeleceu um processo produtivo aliado do criativo: seus filmes parecem fáceis se vistos apenas em função de sua linguagem visual, mas esta camufla os sentimentos complexos de seus personagens.
É o caso deste Let Them All Talk (não traduzido para português, mas que seria algo como "Deixem que Falem"), em que Steven emprega o talento de Meryl Streep para construir uma personagem que, a princípio, nós pensamos conhecer bem: a escritora desenganada, de forma até presunçosa, por aquela obra que teve apelo popular. Com a perspicácia de quem sabe como manipular o espectador, Soderbergh brinca com a nossa percepção de Alice, a ponto de fazê-la parecer só arrogante e pedante diante daquelas amigas que há tanto tempo não vê, nem pode ver, pois esta trabalhando em um manuscrito.
Enquanto faz isto, em paralelo, desenvolve coadjuvantes cativantes (Susan, Roberta, Tyler e Karen) que têm seus próprios objetivos como personagens dentro de uma trama que parecia ser convencional, mas se propõe a ser mais a partir dos mistérios que estabelece e de como estes podem proporcionar uma releitura de Alice ao conhecermos o panorama por completo. Nem há palavras para descrever a atuação de Meryl Streep, que mascara alguma vulnerabilidade sob o olhar de quem está no controle da situação, e a maneira com que interage com a vencedora de 2 Oscars Dianne Wiest e Candice Bergen.
E que eu não esqueça Lucas Hedges, que estabelece um personagem cujo arco seria descartável se não fosse a astúcia da roteirista Deborah Eisenberg em evitar os clichês em que poderia cair, sem retirar-lhe da condição de jovem adulto que está somente curtindo um cruzeiro ao lado de sua tia endinheirada. No fim, os filmes de Steven Soderbergh até parecem menores do que aqueles que dirigiu quando era tomado como gênio da indústria, mas quando pensamos nos sentimentos que nos proporcionam, enxergamos que esta genialidade está presente, ainda que nos manipule com discrição.
Os Croods 2: Uma Nova Era
3.5 150 Assista AgoraA continuação tardia da ótima animação de 2013 trabalha dentro da política da boa vizinhança, quer dizer, pretende agradar gregos e troianos a partir de uma releitura da sociedade contemporânea nos tempos pré-históricos e da quebra da polarização política de hoje. E enquanto faz isto, retrabalha elementos de animações da Disney de forma bem sucedida.
O protagonista é um jovem hipster apaixonado pela primogênita dos Croods, Eep, uma garota das cavernas, leia-se menos sofisticada e de uma realidade social originalmente diversa da sua. Sua relação é enxergada a contragosto pelo patriarca, Grug, que decide procurar um lar onde toda sua família poderá viver plenamente. É quando chega na fazenda da família Bemelhor, que criou um ambiente aparentemente sustentável e tecnológico (para os padrões da pré-história) em que pode retirar da natureza seu sustento e adotar um estilo de vida liberal, privado e individualista. Até o momento em que descobrimos que, para criar este santuário, os Bemelhor precisaram explorar uma camada social inferior a sua e roubar deles seu sustento.
Assim, a animação acumula exemplos sociais facilmente identificáveis mas sem aquele fio condutor decidido em saber o que ou como está criticando ou refletindo a respeito. Tudo serve para conduzir a ideia de que, apesar das diferenças, somos melhores unidos, assim quebrando a ideia polarizada monstrificada no terceiro ato. Por outro lado, a narrativa saí-se melhor quando brinca com o estúdio rival (a Disney) ao apresentar uma personagem (Aurora), que mais parece uma versão da Rapunzel de Enrolados (até mesmo se tratando dos traços animados), ou quando apresenta criaturas amálgamas divertidas só pelo conceito (como os lobo-aranhas).
Mais curto do que o original e mais direto onde quer chegar, a demora talvez até tenha feito melhor para a continuação por ajudá-la a se distanciar dos parâmetros do anterior e encontrar uma voz própria dentro de uma sociedade pré-histórica que mais parece os dias atuais
Bo Burnham: Inside
4.3 109 Assista AgoraEu não saberia expressar em palavras todos os sentimentos vividos durante o período de isolamento: a contraditoriedade de emoções passivo-agressivas, o desejo de dormir e acordar quando tudo tivesse resolvido contraposto com a vontade de procurar formas novas de me comunicar diante dos obstáculos do confinamento, a ansiedade generalizada etc. Mas eu me considero contemplado por Bo Burnham que, sozinho, atuou, roteirizou, compôs as músicas, dirigiu, fotografou, iluminou, editou o som e montou esta comédia dramática, por vezes hilária, noutras profundamente dolorosa.
Bo expõe os equipamentos básicos (alguns, nem tanto), como se estivéssemos nos bastidores de seu espetáculo, prestes a tropeçar nos fios ou derrubar um dos tripés onde posiciona a iluminação que opera através de um controle remoto. A ideia de mecanização da produção de conteúdo vem à cabeça, com a transformação da pessoa cultural em pessoa-máquina, cuja função nobre é alimentar os feeds dos usuários ansiosos por consumir 30 segundos de informação antes de passar a próxima.
Por detrás de apps de filtro, edição, montagem, existe uma pessoa que se martiriza enquanto questiona se o que está produzindo faz algum sentido na sociedade de hoje. E a comédia, a matéria prima do ator/diretor, é posta debaixo de holofotes mais fortes do que as luzes néon de seu cenário: como rir com mais de 500 mil mortos no Brasil, por exemplo? Como aceitar esta pretensa normalidade enclausurado em um cômodo apertado, cujo teto parece comprimir Bo e cuja porta é incompatível com sua altura?
Ao percorrer o limiar que separa entretenimento e reflexão, Bo atinge o nirvana de proporcionar o riso a partir de algumas esquetes e, logo depois, retirar a máscara de palhaço e ilustrar a tristeza de um homem que luta contra a amarga ideia de que sua vida não faz sentido, a ponto de contemplar o suicídio (temporário, afirma, apenas 18 meses). Os erros de Bo, se é que podemos denominá-los assim, humanizam esta comédia dramática que melhor definiu meu-eu durante a pandemia.
Luca
4.1 770Luca é uma criança curiosa que, enquanto cuida das tarefas domésticas sob o olhar rigoroso de sua mãe superprotetora e da leniência do pai bonachão, sonha com um mundo de possibilidades além da vizinhança onde mora. O fato de ser uma criatura marinha não muda este contexto, pois crianças serão crianças, pais serão pais, verões serão verões, seja sobre ou sob o mar.
Quando emerge, Luca se metamorfoseia em um garoto e conhece Alberto, também uma criatura marinha. A amizade dos dois é testada durante um verão na costa ensolarada da Itália, enquanto fazem novos amigos e se preparam para um desafio que testará não apenas um e o outro, como também a tolerância da comunidade onde se escondem. Apesar de haver símbolos visuais que conduzem à interpretação de um relacionamento homoafetivo no subtexto da narrativa - a cena do trem é a evidência principal -, Luca está mesmo dedicado a debater a intolerância proveniente da xenofobia.
Luca e Alberto são "alienígenas" na superfície, sobretudo se considerarmos a ilha de Lampedusa como ponto de entrada de imigrantes na Europa. Embora estejam disfarçados, a rotina e os costumes que vivenciam são diferentes aos que estão acostumados, mas nem por isto demonstram menos ânimo em tentar se adaptar à comunidade e tentar auxiliá-la de alguma forma. A animação vibrante revela, a partir do brilho e saturação das cores, a beleza e maturidade em aceitar quem parece diferente como forma de engrandecimento social.
Com muita aventura, bom humor e um vilão picareta e maniqueísta que amamos detestar, além de algumas referências aos cinéfilos que conhecem o cinema italiano, Luca é uma deliciosa aula de tolerância e cordialidade.
Atentados em Londres
3.1 7 Assista AgoraExpõe a influência nefasta de John Tyndall, um homúnculo da extrema direita inglesa, nas mentes e nos atos de outros homúnculos, um deles responsável por cometer atentados contra vários grupos minoritários na Inglaterra dos anos 90.
O documentário poderia ser menos enxuto, porém.
Tudo de Novo
2.7 16Uma comédia que surfa no fenômeno de Fleabag em apresentar sua heroína imperfeita (a adorável Gillian Jacobs) em um cenário famoso dentro do cinema independente americano: o retorno à cidade de onde veio, à universidade onde se formou, aos sonhos que para trás deixou.