Depois de o filho único de 20 e tantos anos atropelar e matar um adolescente, uma mãe não hesita em cometer atos de corrupção a fim de vê-lo livre da cadeia. Com esta premissa, um desavisado poderia pensar se tratar de um retrato da sociedade brasileira, mas o que este drama romeno tem de melhor é o misto de individualidade e universalidade. Isto porque a narrativa evidencia a parte carcomida da sociedade do país, herdada do governo comunista de Nicolae Ceauşescu, através do tráfico de influência e corrupção dos que vieram do governo e mantiveram os privilégios na democracia.
Entretanto, a ideia de duas justiças - uma para aqueles que podem comprá-la e a outra - e a relação conturbada mãe e filho reforçam o aspecto generalista da trama. Cornélia estabelece uma ideia de maternidade que não está preocupada em educar, mas em livrar a barra do seu "coitadinho" e também, de forma transversa, evitar manchar o nome de sua família. Com uma personagem forte e também imoral igual a esta, é difícil estabelecer uma identificação, embora a atuação de Luminita Gheorghiu ajude-nos ao menos a entendê-la.
Já a direção não procura esconder as corrupções, ou torná-las metafóricas ou simbólicas. Sua intenção é colocar o dedo na ferida e expô-las através de diálogos que ilustram como aquela camada mais rica não tem pudor em usar seu poder e dinheiro para fins egoístas. Ao mesmo tempo, a câmera procura conferir um ar documental à narrativa, tentando atrair o espectador a situações corriqueiras sem adoçá-las. É tudo nu e cru, como costuma ocorrer no cinema romeno, sem máscaras nem subterfúgios, somente o desejo de contar uma história autêntica e envolvente.
E também emocionante, por bem ou por mal, se considerados os 15 minutos finais.
Eu talvez apreciasse mais Paternidade se não houvesse lido acerca de pós-feminismo e maternidade. Isto porque a narrativa retrata, a partir da experiência de um homem negro recém viúvo, a difícil tarefa de conciliar vida pessoal, profissional e familiar, uma realidade com que muitas mulheres estão infelizmente familiarizadas. Assim, a dramédia com Kevin Hart pode abrir os olhos de quem minimiza a dupla, tripla jornada feminina a partir de um exemplo masculino (algo irônico, mas, ei, a sociedade em que vivemos é assim).
Além disto, Kevin Hart explora um lado longe do histrionismo habitual utilizado para criação de personagens cômicos. Aqui, apesar de haver o bom humor, existe ênfase nas dificuldades paternas em amar, criar e educar a adorável Melody Hurd. A direção de Paul Weitz, acostumado a conciliar humor e drama em medidas compatíveis (vide Um Grande Garoto), acerta em não pesar a mão no humor escrachado, somente utilizado para adoçar a narrativa.
Mas não resiste ao sentimentalismo, e cria instantes tocantes de troca de olhares entre Kevin e Melody, embora passe do ponto com a trilha sonora açucarada e os enquadramentos que romantizam em demasia a narrativa. Aí entra o que me incomoda na narrativa e dificulta minha relação emocional: o fato de a jornada de Kevin Hart ser assemelhada à do herói, quando tramas semelhantes protagonizadas por mulheres enxergam isto como obrigação.
A paternidade exitosa de Matt não deveria ser tratada como a vitória do homem - criação da filha - a partir da ênfase na ausência da figura feminina e da presença de tantas outras (as avós, a namorada). Deveria ser só o natural. Apesar de algumas sequências tocantes e as boas atuações (Alfre Woodard também emociona), o sacrifício de Matt não é heroico; é o mínimo socialmente esperado de quem coloca uma vida no mundo e, solo, deve amá-la, cuidá-la e protegê-la.
A forma como Lynne Ramsay fragmenta a estrutura da narrativa em linhas do tempo (passado utópico e distante, passado próximo e presente) guiadas pelo fluxo de pensamento de Eva torna o espectador em refém dos sentimentos internalizados por Tilda Swinton. Somos igual a Eva: prisioneiros na tragédia praticada por Kevin e sufocados por memórias indigestas, sugestivas e violentas.
Sentindo-se culpada, algo que expressa em mais de uma ocasião, Eva tropeça erraticamente na tentativa de reencontrar-se e tentar retirar o vermelho que cobre sua vida. Se antes a cor era sinônimo da liberdade, agora significa prisão, em um comportamento ambivalente. Outras cores também são respingadas, a fim de tornar a narrativa uma experiência sensorial que exige múltiplas visitas para serem obtidos todos os elementos plantados pela habilidosa diretora Lynne Ramsay.
O melhor deles está na indissociabilidade entre Eva e Kevin, aventada desde a cena inicial, como uma forma de comentar a dependência do filho à mãe e a perda da identidade desta quando gesta uma vida. É a razão de Kevin tentar destruir aquilo que afasta Eva de si - os quadros na parede que lembram de uma vida antes dele, a família, o próprio eu -, enquanto desafia o amor maternal ou a forma de Eva expressar sua penitência.
É um filme atemporal e perturbador em como, a partir do retrato de um monstro, toca em temas universais a respeito de maternidade.
Não posso debitar apenas à saída, da direção, de James Wan e entrada de seu protegido Michael Chaves (de A Maldição da Chorona) que o terceiro capítulo das aventuras demoníacas do casal Warren tenha sido assustadoramente inferior aos anteriores. O roteiro preguiçoso também tem sua culpa: a começar em como não explica a razão de Arne jamais ter tido algum acompanhamento após ser possuído ou até diante de uma investigação policial simplória levada a cabo pelo casal.
A ideia de caso da semana vem logo a mente quando se analisa o filme, algo que não cogitei nos anteriores, pela desenvolvimento casual narrativo e reduzido envolvimento do espectador. Se antes torci com todas minhas forças pela sobrevivência das famílias que eram aterrorizadas por presenças e também pelo casal Warren - a cena em que Ed dedilha Elvis Presley no antecessor criava este sentimento de que nada de mal poderia acontecer com eles -, agora, além de saber que os Warren são invulneráveis, não me preocupei com Arne e aqueles ao seu redor porque só houve um momento que me proporcionou algum investimento através do afeto que tinha com o irmão de sua namorada.
Assim, os Warren atuam como detetives, coletando pistas para auxiliar em um julgamento, contra um inimigo que é muito menos ameaçador e aterrorizante do que era a "freira" Valak, por exemplo, e cujas regras nem ficam claras na narrativa. Pareço estar diante de continuações de grandes sucessos (Psicose, A Profecia, O Exorcista), mas que não tinham nem a pálida proximidade do que os originais foram um dia. É um filme que se apoia no nosso carinho com a franquia e os personagens sem recompensar com um momento à altura do que os que James Wan proporcionou.
Se a crítica parece mais severa, é porque a série Invocação do Mal me acostumou mal e vê-la se transformando em um terror meia boca, por melhor produzido que seja, é de matar.
Não falta material de arquivo para que o diretor Thom Zimny compile uma biografia respeitosa e meticulosa a respeito de um dos maiores nomes da música norte-americana. É a razão pela qual Thom opta em utilizar os depoimentos como voz sobreposta, em privilégio ao acervo documental, ressignificando as passagens da vida e carreira de Elvis a partir do que os entrevistados têm a dizer. Esta abordagem tem uma constante: o olhar.
Elvis encara o espectador dentro dos olhos, ciente de ser a ponte para aproximar a música negra (Blues, Soul, Gospel) ao público de massa no rock 'n roll e o símbolo sexual. Encarar-nos parece também revelar um Elvis mais vulnerável e inconscientemente em busca de aprovação do público. Sua relação com a mãe origina um homem contraditório, que desafiava alguns costumes da época, enquanto os respeitava por conta de sua criação conservadora.
Assim, o documentário, acertadamente dividido em duas metades, revela também um homem dividido: um artista que tentava traduzir seus sentimentos em canções e sempre se desafiava a buscar novas influências versus um produto, cuidadosamente trabalhado por uma indústria que sempre soube sugar o que pôde até matar suas galinhas dos ovos de ouro. O documentário é simpático a Elvis e não toca nas acusações de que se apropriou do que não era seu - a música negra - para criar algo próprio, não devolvido à comunidade. Também não se aprofunda muito na personalidade autodestrutiva dos anos finais de sua vida.
A crítica é bem-vinda, embora o documentário, ao definir seu tema, também delimita a abordagem. Aqui, a narrativa se preocupou com um jovem talentoso vindo de uma família pobre, alçado ao sucesso que jamais esperou e consumido por este até o ponto de se tornar a paródia de si próprio. No caminho, interpretou mais de 700 canções, gravou seu nome na história da música e expôs um personagem que facilmente admiramos por seu talento e porque choramos por sua tragédia.
Não faltam boas ideias ao diretor Joe Talbot, que tenta reprisar o toque Barry Jenkins (ou Jonathan Demme) em como tentar criar uma unidade com base em close-ups evocativos de rostos cansados que parecem suplicar à câmera ajuda. Existe beleza no abandono, no desamparo ou somente nas fantasias construídas em torno de um ideal de sociedade jamais realizada.
No entanto, boas ideias socorrem narrativas até certo ponto, pois o que falta a este drama sócio-racial é a capacidade de costurar seus temas de uma forma consciente e reflexiva e que não pareça somente um diretor chamando atenção... igual a um homem andando nu no meio da rua.
Ciro Guerra, de O Abraço da Serpente, recupera o talento etnográfico mas agora com consequências mais óbvias do que identificar quem são os bárbaros do título. A atuação de Mark Rylance é digna e a fotografia é exuberante de um jeito sufocante que só o deserto consegue ser, porém não há tão maçante quanto não ser desafiado narrativa, visual ou mesmo tematicamente.
Fantasmas, espíritos, monstros, esqueça isto. Não há nada mais assustador do que o ser humano, mesmo quando suas ações lhe parecem ser benignas. A "santa" Maud do título é uma enfermeira particular que tenta, dentro de suas limitações, "converter" a ex-dançarina Amanda, paciente com leucemia em estágio terminal. A premissa, que homenageia Persona, clássico de Ingmar Bergman, aparenta ser superficial até enfiar um crucifixo garganta abaixo do espectador.
Morfydd Clark, a Maud, encarna um tipo interessante de religiosa, solitária o bastante no mundo dos homens a ponto de ter, como o porto seguro, somente a imagem de Jesus na cruz. Sua solidão é resultado não apenas de suas escolhas cristãs em um mundo que considera hedonista, mas na fotografia que deliberadamente a isola no centro do quadro, a sós com seus pensamentos e orações.
Devota ao cristianismo, Maud é daquelas personagens cujo fanatismo (ou fundamentalismo), materializado no princípio de ide e evangelizai, impedem-na de enxergar o livre arbítrio de Amanda, interpretado por Jennifer Ehle, parecida física e em talento com Meryl Streep. É a partir desta incapacidade de Maud, que por outro ângulo é uma enfermeira zelosa, que a narrativa retira uma forma de terror que nubla a visão de uma narradora naturalmente não confiável.
O roteiro objetivo e a direção segura de Rose Glass indicam um futuro muito promissor, tanto no terror, desde a segunda metade, quanto no drama, pelo desenvolvimento caprichado desta Maud, fascinante mas também mais aterrorizante do que Jasons e Kruegers.
Um diário é a ponte construída por Abigail para que o espectador atravessasse e entrasse em contato com sua vida, em uma fazenda estéril e esquecida no século XIX, antes de conhecer Allie, a vizinha misteriosa com quem estabeleceria uma amizade e um romance.
A narração in off toma por empréstimo o ponto de vista de Abigail, enquanto passam as estações do ano que muito se assemelham ao estado de espírito desta mulher: o inverno após a perda da filha de difteria, o verão depois de redescobrir a razão para viver. A natureza emoldura a narrativa, mas também age sobre ela, ilustrando ou até ironizando os sentimentos humanos retratados.
A natureza que se movimenta entre as quatro estações de uma forma determinística até inspira a mudança interna, mas sobretudo expõe a fragilidade humana incapaz de se mudar, reinventar-se. O romance é o trampolim para esta discussão existencial, a ponto de a diretora Mona Fastvold reservar a relação sexual entre Abigail e Allie para um momento específico, tratado com sensibilidade e astúcia narrativas.
O elenco enxuto preenche a narrativa a partir de emoções represadas e de relações genuínas, em particular aquela entre Abigail e o marido, Dyer, um homem distante da fonte de sua dor, mas de uma forma característica desta época, amável, companheiro e compreensivo. Enquanto isto, Christopher Abbot é o contrário, em como incorpora a religião como forma de repressão.
Com relação a Katherine Waterston e Vanessa Kirby, que sorte poder contar com atrizes empenhadas em evitar os lugares-comuns vistos nos romances LGBT para proporcionar, a partir do olhar que perdura, do toque breve de mãos, fricções calorosas maiores do que o frio que as cerca. É um romance dramático agridoce, cujo período em que se ambienta demarca, mas não limita, suas possibilidades emocionais.
Faço parte da turma que assistia, semanalmente, ao desenrolar da sitcom mais popular de todos os tempos e que conferia, antes do lançamento de uma temporada, a recapitulação que o Warner Channel realizava. Há mais de 15 anos, faço coro de joelhos sobre o caroço de milho por um episódio extra, um especial, uma reunião. Assim, não me faltava nostalgia para apreciar este reencontro... mais do que deveria.
É que parece haver tido mais esforço em reunir o sexteto do que em pensar em uma dinâmica além de uma entrevista com James Corden - cujo objetivo parece ser realizar perguntas óbvias ou dignas de tabloide -, ou em introduzir participações de celebridades que não possuem relação com a série, senão o fato de também serem fãs - Lady Gaga, Justin Bieber, Cara Delevingne - ao invés de convocar outros que participaram ativamente da série - Paul Rudd, Jane Sibbet, Christina Applegate, Helen Baxendale, Giovanni Ribisi - ou ao menos dar mais tempo para alguns por quem tínhamos carinho - James Michael Tyler ou Maggie Wheeler. Nem mesmo a canção tema recebe alguma forma de tributo.
Menos sobre o sexteto nos dias de hoje (já falo sobre isso) e mais sobre o sexteto do passado, os melhores momentos do episódio especial são exatamente aqueles que ou se apoiam em episódios clássicos (o game do apartamento é jogado novamente, com resultados medianos) ou nos erros de gravação. Há pouco a justificar 2 horas ou o esforço logístico de colocá-los no mesmo sofá.
E aí vamos ao hoje: se Matt, Lisa e Jennifer estão mais confortáveis em sentar no sofá, Ross e Courtney parecem desligados. E Matthew? Em razão do vício e da depressão, o ator substituiu a espontaneidade e alegria de Chandler por uma tristeza e sofrimento que contagiam. A sensação é de que o ator não queria estar presente, mas precisava estar, pela oportunidade de reencontrar antigos amigos e de como isto é importante para lutar contra a doença que o consome.
Seu relato emocionante é o momento mais sincero do episódio, que evita realizar as perguntas cujas respostas gostaríamos de ouvir, em troca de uma nostalgia que poderíamos ter revendo os episódios.
O cinema de ação mudou de muitas formas ao longo dos anos: onde havia um protagonista musculoso com o bíceps da espessura de uma anaconda, agora há o homem suburbano médio (ou "médio") de Bob Odenkirk. A ideia por detrás disto parece corresponder ao fetiche do homem comum, entediado com a rotina, não apreciado por quem é, nem pelo que faz, que se revela ser alguém mais mortal do que você presumiria pelo cartão de metrô.
Portanto, dentro do contexto de Anônimo, a perda da masculinidade decorrente do mundo contemporâneo é somente aparência ou uma fachada. Este componente ideológico é fatorado com um cinema de ação divertido, com forte influência de John Wick, em que a violência e as mortes são espetaculizadas e não problematizadas. Não existe qualquer racionalidade na quantidade de capangas, mesmo porque a meta desta narrativa parece ser respeitar a proporção de 1 morte por minuto.
Por causa disto, a narrativa assume liberdades: as músicas que tocam na trilha sonora têm apelo irônico em face às ações de seu (anti-)herói contra o pano de fundo de um subúrbio desinteressante acinzentado. Além disto, Hutch é interpretado de um jeito aborrecido e casual por Bob Odenkirk (como eu adoro o ator), conferindo à engenhosidade de suas armadilhas algo a mais do apenas um MacGyver. Além disto, é fácil apreciar a participação de Christopher Lloyd (o imortalizado Dr. Emmett Brown de De Volta para o Futuro) e a postura fria e racional do vilão vivido por Aleksey Serebryakov.
Despretensiosamente divertido e mortífero, Anônimo é também uma prova de que o cinema de ação é muito mais do que tiros e pontapés, proporcionando uma releitura da sociedade contemporânea em uma sátira do sonho de muita gente que mais ladra do que morde.
Vocês já me conhecem: eu não costumo gostar de histórias de origem. Se um personagem pôde chamar nossa atenção a ponto de se tornar icônico em um filme, por que desperdiçar o mistério que cerca o seu passado? Será mesmo se todo o vilão precisa de um pano de fundo traumático para ser mau? Não faltam exemplos: Darth Vader, Malévola, Hannibal Lecter, Coringa, Magneto e outros ganharam histórias de origem que tentaram, de uma forma ou de outra, fazer com que o espectador simpatizasse com quem antes temia.
Cruella é mais uma na lista, merecendo sua história que mistura O Diabo Veste Prada, Coringa e O Rei Leão - caso Simba tivesse desejos vingativos. Entretanto, mesmo que não caia de amores pela proposta, não posso negar que o resultado final é muito positivo em estabelecer esta versão da famosa vilã sem desperdiçar o seu charme diabólico e semi-insanidade.
A narrativa é mais sombria do que seu típico filme da Disney e, com exceção de closes no rosto dos cachorrinhos enquanto fazem caras engraçadinhas, escapa do humor pastelão em favor de um cruel. Jasper e Horace não são mais os "imbecis" do clássico 101 Dálmatas, nem servem de alívio cômico: são ladrões soturnos, habilidosos e com um senso de humanidade que apenas rivaliza com o feudo entre Cruella e A Baronesa.
Vale ressaltar que a dinâmica entre Emma Stone e Emma Thompson solta faíscas porque existem sentimentos menos óbvios em jogo: o narcisismo da última e uma vontade de ser reconhecida da primeira, largada na rua como vira-lata que não era. Além deste duo, o design de produção britânico, que se apropria dos cinzas da cidade para a criação de contrastes na paleta de cores, os figurinos exuberantes e favoritos a prêmios e a atuação do discreto Mark Strong estabelecem a narrativa como algo bem mais revigorante do que sua história de origem tradicional.
Clube da Luta é o elefante sentado na minha sala. É o filme que, por mais que eu quero, eu jamais poderei escrever a respeito.
Claro, do ponto de vista temático, é o ápice da carreira de David Fincher - isto quer dizer muito. Um filme em que o papel do homem na sociedade contemporânea é constantemente desafiado por elementos emasculantes (o vibrador de Marla, o câncer de testículo, ora, até o pinguim, uma ave que não voa), a ponto de este precisar recorrer à violência mais primitiva para sentir-se viril novamente.
A visão de David Fincher é crítica, não apologética, em como o homem médio - retratado por Edward Norton na melhor atuação da carreira - sente-se ameaçado com a entrada da mulher nos espaços antes por ele dominado. Como quem derruba ácido em nossos membros, a narrativa sempre desafia esta percepção masculina e também a sociedade que lhe serve de base: aquela tendente a procurar sentido em coisas materiais e não em relações humanas concretas, aquela disposta a seguir cegamente a visão de um lunático apenas por este empoderá-lo com falsas profecias.
Fincher é o equivalente cinematográfico de Mike Tyson: ele esmurra o olhar do espectador com uma fotografia cancerosa e podre, a fim de retratar o estado mental do protagonista, que se dissolve a olhos vistos igual à casa onde mora com Tyler: a visão idealizada que tem de si. Nesta viagem dentro da mente do Narrador - antecipada pela cena inicial -, descobrimos que o conflito é pela identidade e sanidade, no exemplar máximo da crítica à masculinidade frágil.
Enfim, cerca de 21/22 anos depois da primeira vez em que vi Clube da Luta pela primeira vez, escrevi algo a respeito.
P.S. Se você estranhar de eu não ter citado uma vírgula sobre Brad Pitt é porque eu ainda não tenho as palavras para descrevê-lo.
Durante 100 minutos, Palmer é um drama bastante real a respeito da dificuldade de um ex-detento ser reinserido na sociedade como um membro funcional e de como se enxerga em Sam, o vizinho do trailer ao lado. Filho de uma mãe dependente de drogas e em processo de descoberta da identidade. Sam afeiçoa-se por Palmar, que enxerga como uma figura paterna substituta. Assim, a relação entre ambos é construída a partir de atalhos e soluções já conhecidas, apesar de nenhuma aparentar estar artificialmente inserida no roteiro.
Isto porque o texto não tenta disfarçar como Palmer, no início, rejeita Sam, para então aceitá-lo como é, com o desejo genuíno de ser seu tutor e protegê-lo da sociedade intolerante a seu redor - de forma que até soa estranha a cena inserida em que o diretor interroga Sam sobre sua relação com Palmer. A construção do personagem é convincente porque Justin Timberlake adota um ar constrito, revelando-se intenso somente quando a circunstância exige. Já Ryder Allen, que interpreta Sam, é um achado em como atua de forma natural e espontânea.
Neste jogo de cartas mais ou menos marcadas - é possível adivinhar muito do que acontecerá, embora a previsibilidade não interfira em nossa capacidade de viver aquela realidade e relação fraterna -, Sam é como um arco-íris (literalmente) que lança suas cores em uma vida acinzentada e sombria. É uma forma de resgate mútuo, que conta com personagens coadjuvantes cativantes, como a professora Maggie ou a avó Vivian.
Mas eu disse que o filme era convincente por 100 minutos, não foi? É que os 10 minutos finais terminam por encontrar uma alternativa meio conto de fadas. É bonito? Sem dúvidas, porém longe da identidade que a narrativa havia criado para si.
Eu acredito que todo mundo deveria assistir, pelo menos uma vez, a este documentário vencedor do Oscar da categoria e que relata, com dor, violência e abundante sensibilidade e honestidade a perseguição aos judeus húngaros realizada em março de 1944, praticamente a um ano antes da rendição da Alemanha na 2ª Guerra Mundial. É um exercício de choque, ainda mais quando imagens de arquivos de corpos subnutridos são arremessados dentro de valas comuns nos campos de concentração, mas é também uma forma de desenvolver empatia e aprender com os erros do passado para evitarmos cometê-los novamente.
O documentário é contado a partir do relato de cinco judeus húngaros e residentes dos Estados Unidos. A estas pessoas, já idosas, é concedida a oportunidade de retornar aos lares onde moravam na infância, antes de terem sido hostilizados por muitos que eram seus vizinhos e empurrados a guetos, trens e campos de concentração. A narrativa impressiona não quando revela a monstruosidade nazista, mas em face a seus detalhes e ensinamentos.
É impressionante como, 50 anos depois, estas pessoas recordam detalhes pequeninos, como um maiô de banho, mas importantes dentro da jornada de sobrevivência de cada um deles. Além disto, desde a cena inicial, em que um dos sobreviventes se questiona, retoricamente, por que os alemães investiam tantos recursos no extermínio dos judeus quando poderiam deslocar isto à guerra e postergar sua derrota, o documentário é um aprendizado para que abaixemos a guarda.
O que houve com os judeus húngaros não ocorreu do dia para a noite, mas a partir de medidas sistematicamente planejadas, em uma escala de desumanidade progressivamente imperceptível. São somente 95 minutos de uma aula de vida, resiliência e história obrigatória, eu diria.
Eu tenho dificuldade em compreender como uma premissa original que mistura dois subgêneros aparentemente antagônicos - zumbi e assalto - tenha resultado em um filme que não tem um décimo da diversão que deveria proporcionar. Mas vou tentar articular.
De volta ao subgênero que lhe conferiu notoriedade em Hollywood - Madrugada dos Mortos continua sendo um de meus filmes de zumbis preferidos -, Zack Snyder se mostra indeciso acerca da abordagem narrativa: é mais filme de assalto ou de zumbi? É para ser comédia ou tragédia? É para que nos importemos com o destino dos personagens ou estamos livres para celebrar as mortes? É para ser subversivo ou reverente ou mesmo clichê?
Em 2 horas e meia - intermináveis em comparação com as 4 horas de Liga da Justiça -, Zack Snyder não me respondeu nenhuma pergunta de forma satisfatória. No lugar, o diretor não fugiu de nenhum clichê do gênero: tem o personagem mais perigoso para a sobrevivência do bando do que os zumbis? Sim. Tem personagens dispostos ao sacrifício em nome dos outros? Sim. Tem relações humanas pedestres e descartáveis para tentar amolecer os corações? Sim, aliás, é a parte que mais me exigiu reflexão, considerando que Zack perdeu uma filha.
Assim, não é um tigre zumbi ou uma metáfora não realizada de trazer os zumbis a Las Vegas e retomar os temas clássicos dos monstros - a alienação, o consumismo, o capitalismo desenfreado -, é a identidade e personalidade que faltam a este filme, cujo maior evidência é a cara de desânimo de Dave Bautista durante a narrativa. Justo ele, o mais carismático de todo o elenco.
Mortal Kombat é exatamente o que qualquer pessoa em sã consciência esperaria de Mortal Kombat, bem diferente das bobagens que foram as versões de 1995 e a sequência de 1997: divertido de um jeito violento e sangrento, com alguma personalidade na concepção dos personagens, além de um fio condutor mais claro do que apenas um conjunto de lutas uma atrás da outra.
Isto não significa que o roteiro não seja tolo quando os personagens abrem a boca e esforçam-se em explicar o que seria o tal combate mortal, em razão de atuações picaretas (no melhor dos casos, e nem vale a pena enumerá-las) e de diálogos embaraçosos (um motivo de piada para Cole, em certo momento). Além do mais, mesmo aspectos banais não parecem fazer sentido, por exemplo quando Jax pergunta a Sonya por que ela o levou ao templo de Raiden, quando a ex-militar não teve relação alguma com aqueles eventos e estava tão surpresa quanto ele ao vê-lo deitado na maca.
É uma adaptação que tenta cumprir as metas das superproduções que fascinam o público jovem adulto: ser engraçada, porém de um jeito tio do pavê de ser, e mesmo o humor politicamente incorreto Kano passa do ponto como um doce muito açucarado; levar-se a sério a ponto de estender-se por prolixos 110 minutos de duração e sem assumir a alma de filme B; e proporcionar set pieces empolgantes.
Acerta somente neste ponto final, especialmente na cena inicial e a partir de 1 hora de duração. Mas é o bastante para que, descontadas as cut-scenes típicas dos jogos de videogame, haja uma interlocução direta com o público-alvo, que sairá satisfeita em ver seus campeões combatendo até a morte.
Oxigênio é um exercício narrativo baseado no dispositivo de roteiro conhecido como "bomba relógio": o objetivo é acentuar a tensão do espectador enquanto avança o ponteiro do relógio, aqui na forma do contador de oxigênio. À medida que este decresce, o roteiro oferece obstáculos maiores à jornada existencialista e de sobrevivência da protagonista, que mal se lembra quem é ou por que está onde está.
Ao diretor Alexandre Aja, cabe manipular tempo e espaço para que a tensão do roteiro também seja expressada em imagens. E a direção já tem como ponto de partida uma situação claustrofóbica piorada pela imobilidade da protagonista, que mal consegue alcançar as alças que prendem sua perna.
A tensão é acachapante e serve como metáfora de uma crise de ansiedade e ataque de pânico, já que a protagonista, vivida com seriedade por Mélanie Laurent (Shoshana de Bastardos Inglórios), precisa tranquilizar-se para consumir menos oxigênio e também esforçar-se em compreender acerca da situação em que está e qual a melhor alternativa para sair dela. O domínio do agora é enfatizado em como a personagem precisa até se machucar para estar no momento presente ou no surgimento de alucinações que refletem um infundado medo, características com que posso me relacionar muito bem.
Já o roteiro procura desculpas para continuar esticando a duração da narrativa até 101 minutos, e introduz elementos que, talvez, não caíam bem no gosto do espectador. Mas, no final das contas, é um trabalho focado em provocar apreensão - faz isto muito bem - e retratar, cinematograficamente, uma crise de ansiedade e algumas formas para desarmar suas armadilhas. Curti.
Stan Laurel e Oliver Hardy, a dupla detrás de Laurel & Hardy, que no Brasil viria a se chamar O Gordo e o Magro (nós, brasileiros, e nosso talento para adaptação de títulos originais), é um tesouro da história cinematográfica. Sua comédia pastelão ingênua encontra reflexo em uma biografia singela, mas afetiva, que acerta em não tentar o impossível: contar toda a história da carreira em 100 minutos.
Ao invés disto, a trama encontra a dupla depois de serem demitidos dos estúdios de Hal Roach e tentando a sorte nos palcos de teatros por toda a Europa (logo depois da 2ª Guerra Mundial até o início dos anos 50), na esperança de reerguer sua carreira no cinema. A frente do elenco, Steve Coogan e John C. Reilly - escondido detrás de uma maquiagem que não limita sua atuação - estabelecem uma química a partir de um olhar doce e saudoso, que tenta inserir um conflito aqui, outro acolá, embora retorne a uma amizade o mais sólida possível.
Se a dupla se dedicava a fazer filmes simples, que tentavam apenas provocar risos e proporcionar escapismo momentâneo, a direção de Jon S. Baird é convencional e isto não é demérito. O diretor não tenta impor sua voz, senão na cena inicial em que a dupla passeia por sets de filmagens criados em tela verde, em um plano sequência cartão de visitas. No restante do tempo, permite que Coogan e Reilly penetrem no coração dos personagens com diálogos menos requintados, porém uma considerável quantidade de afeto no olhar.
Um pouco por ser fã da história do cinema e muito em face à química entre os dois atores, emocionei-me com Stan & Ollie: eu acho que há autenticidade na dupla e isto compensa qualquer limitação narrativa.
Animações podem ser usadas para dar vida a animais falantes, emoções, brinquedos dentro do guarda-roupa etc, e com resultados excepcionais. No entanto, o grande pecado dos grandes estúdios está em submeter a animação às regras do live-action, perdendo de vista que aquela é a forma mais livre de se fazer cinema e não só um recurso para "animar" o inanimado. Limitada apenas pela imaginação do criador (e do orçamento também...), a animação é uma forma de se expressar diferente: primeiro porque o espectador admite maior margem de manobra do diretor, uma concessão que não costuma acontecer no live-action; segundo, porque muitos recursos ajudam a suprimir o excesso de exposição com o uso de um meme ou de uma onomatopeia.
E por mais que este segundo argumento possa existir em live-action (vide Scott Pilgrim contra o Mundo), retornamos ao primeiro: nós, espectadores, abaixamos as guardas para animações de um modo diferente do que fazemos com live-action. Dito isto, o novo trabalho da Sony Animation é irrepreensível em como arquiteta uma linguagem visual mais comunicativa do que o roteiro, e mais coerente com a ideia de que a animação tenta reforçar a importância da tecnologia e isto exige aceitar as mudanças que esta impõe no convívio cotidiano.
Seu trunfo está em partir do nonsense em direção a elementos humanos (algo que Tá Chovendo Hambúrguer também fazia com menor êxito): a importância da família, o choque geracional, a projeção dos pais nos filhos e os consequentes afastamento e/ou supressão da personalidade dos últimos estão no coração da narrativa, apta a expressar tudo isto com algum grau de novidade a partir da ideia de uma inteligência artificial que torna o mundo refém porque abandonada por seu criador.
Reprogramar os maus hábitos e encontrar o meio termo são valores que A Família Mitchell traz bem perto de si, aceitando a tecnologia como meio de criação e integração e não de destruição e isolamento.
Homens lagarto. Monstro do lago Ness. Área 51. O mundo está cheio de teorias da conspiração para ocupar a cabeça da pessoa média desconectada da realidade e que, igual a todos nós, é ávida em explicar a dinâmica do mundo e resolver mistérios não solucionáveis. Ou "mistérios", sobretudo porque estes existem somente na fantasia de cada um. Este fetiche humano de criar mundos e respostas inusitadas para perguntas simples da vida é o tema deste filme de David Robert Mitchell (de Corrente do Mal), cujo roteiro deixa claro a futilidade no processo, na mesma proporção que instiga.
David não quer oferecer respostas - quando faz, é tão absurdo que até desconfiamos. Ele quer criticar as pessoas e os espectadores que buscam estas respostas em vez de viver o agora, igual ao personagem interpretado por Andrew Garfield. Um homem sexista e frustrado - cujo trabalho mal sabemos qual era - que caiu de para-quedas em uma espécie de narrativa neo noir: uma femme fatale entrou em sua vida e a virou de pernas para o ar, enquanto caminha por entre festas vazias de Hollywood procurando entender o mistério em torno do assassinato de um bilionário, um assassino em série de cachorros, uma mulher coruja ou algumas mensagens subliminares deixadas em músicas populares e caixas de cereal.
É, a direção não quer que você leve a trama a sério. Ela quer que você se divirta com a surrealidade do mundo que o protagonista habita, que parece saído da cabeça de David Lynch - e enxergue o vazio de uma parcela da classe artística de Los Angeles. São caricaturas que povoam esse mundo, algumas ingênuas de seu papel e outras cínicas o bastante para tentar sobreviver naquele mundo.
Sem lógica que reja a narrativa senão o ilógico, sobre ao espectador códigos - cuja explicação pode ser encontrada na internet, embora em pouco interfiram no resultado da internet - e uma atuação bem inusitada de Andrew Garfield. É um filme diferente de tudo o que você tem visto recentemente e, se fosse resumir em apenas uma palavra, uma viagem.
A verdade é que, apesar de trajar a roupa de thriller, não há muitos mistérios na adaptação do livro de A. J. Finn pelo diretor Joe Wright (de Orgulho e Preconceito e Desejo e Reparação). Desde o princípio, já percebemos que Anna Fox não é uma narradora confiável, não só em razão de seu quadro psicológico (agarofobia), como também por causa dos medicamentos. A direção também pesa a mão em como superlativa este mundo com a paleta de cores abundantemente azul ou vermelha, com ocasionais tons de amarelo. Para complicar, Joe também introduz clássicos como Janela Indiscreta, Prisioneiro do Passado e Laura como sugestões de que o roteiro jogará com muitas pistas falsas.
A direção utiliza tudo isto para tentar dar uma amostra do que é ser Anna Fox, mas que desgasta o espectador pelo excesso. São muitos os personagens que coabitam o universo da narrativa: Gary Oldman, Julianne Moore, Jennifer Jason Leigh, Wyatt Russell, Brian Tyree Henry e Anthony Mackie, todos com tempo mínimo para serem ferramentas, não personagens da narrativas, subjugados à percepção de Anna.
Em contrapartida, Amy Adams é uma atriz versátil e talentosa para que Anna seja um reflexo empático da doença. Ao lado de momentos de abertura, há a retração ao confrontar o passado. Ora é simpática com o inquilino do andar de baixo, ora é invasiva e ardilosa em como usa uma informação privilegiada a seu favor. Anna é uma mulher acuada, dentro de sua própria casa de 3 andares que estende o olhar às ruas como uma versão contemporânea de Janela Indiscreta (o clássico de Alfred Hitchcock), mal sabendo que é para dentro de si mesma que deveria olhar.
Além dessa, outras referências também surgem na televisão de Anna: Prisioneiro do Passado e Laura são alguns títulos de sua coleção, que auxiliam a ilustrar como o roteiro pode ser manipulativo em plantar pistas falsas e alucinações para manipular a experiência do público com um thriller mediano.
Sam Levinson (criador de Euphoria) abraçou como tema a juventude da geração Z para debater, a partir de seus olhares, os dilemas tipicamente norte-americanos de uma sociedade hiper-conectada nas redes sociais. Onde há néon-realismo em Euphoria, em País da Violência existe crítica social - néon também -, que apela à violência como alternativa para tirar o espectador da zona de conforto.
Por esta razão, o filme apresenta os mesmos problemas da série Them, mas de uma forma atenuada, pois a violência (física e psicológica) não chega a ser utilizada sem critério, apenas para chocar. Ela adota uma abordagem estilizada, semelhante ao que Quentin Tarantino realiza em seus filmes, e também pedagógica, mesmo quando disparam uma dúzia de gatilhos anunciados nos créditos iniciais.
A ambientação da narrativa em Salem tem o objetivo de comparar a postura social contemporânea - que julga mulheres pelo que vestem, como agem etc - com a perseguição às "bruxas" ocorrida há séculos. Além do mais, existe uma inclinação narrativa evidente em retratar os Estados Unidos de Donald Trump: hackers, rede de ódio, "cidadãos do bem" indo às ruas para praticar injustiça com as próprias mãos. E, no meio disto, o melhor que Sam Levinson faz é manter a câmera, só por alguns segundos, no olhar de personagens hesitantes, mas que agem com a multidão para não serem excluídos.
A narrativa até exibe uma parcela de excessos, sobretudo quando pesa a mão na caracterização de personagens ou comportamentos somente com o objetivo de servir a uma crítica ampla, até mesmo quando o tema parece fugir da linha narrativa central. Quem sabe, seja Sam dizendo que toda forma de iniquidade e injustiça tem um ponto em comum: a forma como cada sociedade trata as mulheres.
O espectador tem prazer em ser tapeado pelo roteiro, desde que isto seja feito de modo inteligente. A reviravolta choca, por si só, mas não modifica a realidade de alguns roteiros que, por preguiça ou desídia, evitam explorar o poder da surpresa em favor dos personagens e do contexto da narrativa.
Aí entra a confiança que temos na câmera como narradora (a imagem tem ainda o poder de conferir a ilusão de verdade a tudo que vemos) e o ponto de vista de quem está contando a história. Estes elementos são trabalhados com maior ou menor êxito neste terror / thriller simples e enxuto, que poderia funcionar melhor se retrabalhasse seu roteiro para não excluir o espectador da resolução.
Algumas peças (personagens) são colocados somente para distrair. Além do mais, mais de um personagem têm motivos para não serem confiáveis, deixando o espectador atrás do texto: ele não tem como solucionar o caso, apenas assistir à câmera fazer para si, resgatando eventos que já ocorreram apenas para oferecer uma perspectiva que não a primeira.
Divertido? Sem dúvida, embora seja frustrante a falta de iniciativa do espectador. Até dá para aceitar os personagens planos, com exceção de Helen Hunt, ou a quebra do ritmo e das regras de roteiro com a adição de personagens relevantes no segundo ato, mas acredito que seria melhor se tivéssemos a chance de poder adivinhar o resultado (mesmo que falhássemos no processo).
Instinto Materno
3.8 70Depois de o filho único de 20 e tantos anos atropelar e matar um adolescente, uma mãe não hesita em cometer atos de corrupção a fim de vê-lo livre da cadeia. Com esta premissa, um desavisado poderia pensar se tratar de um retrato da sociedade brasileira, mas o que este drama romeno tem de melhor é o misto de individualidade e universalidade. Isto porque a narrativa evidencia a parte carcomida da sociedade do país, herdada do governo comunista de Nicolae Ceauşescu, através do tráfico de influência e corrupção dos que vieram do governo e mantiveram os privilégios na democracia.
Entretanto, a ideia de duas justiças - uma para aqueles que podem comprá-la e a outra - e a relação conturbada mãe e filho reforçam o aspecto generalista da trama. Cornélia estabelece uma ideia de maternidade que não está preocupada em educar, mas em livrar a barra do seu "coitadinho" e também, de forma transversa, evitar manchar o nome de sua família. Com uma personagem forte e também imoral igual a esta, é difícil estabelecer uma identificação, embora a atuação de Luminita Gheorghiu ajude-nos ao menos a entendê-la.
Já a direção não procura esconder as corrupções, ou torná-las metafóricas ou simbólicas. Sua intenção é colocar o dedo na ferida e expô-las através de diálogos que ilustram como aquela camada mais rica não tem pudor em usar seu poder e dinheiro para fins egoístas. Ao mesmo tempo, a câmera procura conferir um ar documental à narrativa, tentando atrair o espectador a situações corriqueiras sem adoçá-las. É tudo nu e cru, como costuma ocorrer no cinema romeno, sem máscaras nem subterfúgios, somente o desejo de contar uma história autêntica e envolvente.
E também emocionante, por bem ou por mal, se considerados os 15 minutos finais.
Paternidade
3.4 169 Assista AgoraEu talvez apreciasse mais Paternidade se não houvesse lido acerca de pós-feminismo e maternidade. Isto porque a narrativa retrata, a partir da experiência de um homem negro recém viúvo, a difícil tarefa de conciliar vida pessoal, profissional e familiar, uma realidade com que muitas mulheres estão infelizmente familiarizadas. Assim, a dramédia com Kevin Hart pode abrir os olhos de quem minimiza a dupla, tripla jornada feminina a partir de um exemplo masculino (algo irônico, mas, ei, a sociedade em que vivemos é assim).
Além disto, Kevin Hart explora um lado longe do histrionismo habitual utilizado para criação de personagens cômicos. Aqui, apesar de haver o bom humor, existe ênfase nas dificuldades paternas em amar, criar e educar a adorável Melody Hurd. A direção de Paul Weitz, acostumado a conciliar humor e drama em medidas compatíveis (vide Um Grande Garoto), acerta em não pesar a mão no humor escrachado, somente utilizado para adoçar a narrativa.
Mas não resiste ao sentimentalismo, e cria instantes tocantes de troca de olhares entre Kevin e Melody, embora passe do ponto com a trilha sonora açucarada e os enquadramentos que romantizam em demasia a narrativa. Aí entra o que me incomoda na narrativa e dificulta minha relação emocional: o fato de a jornada de Kevin Hart ser assemelhada à do herói, quando tramas semelhantes protagonizadas por mulheres enxergam isto como obrigação.
A paternidade exitosa de Matt não deveria ser tratada como a vitória do homem - criação da filha - a partir da ênfase na ausência da figura feminina e da presença de tantas outras (as avós, a namorada). Deveria ser só o natural. Apesar de algumas sequências tocantes e as boas atuações (Alfre Woodard também emociona), o sacrifício de Matt não é heroico; é o mínimo socialmente esperado de quem coloca uma vida no mundo e, solo, deve amá-la, cuidá-la e protegê-la.
Precisamos Falar Sobre o Kevin
4.1 4,2K Assista AgoraA forma como Lynne Ramsay fragmenta a estrutura da narrativa em linhas do tempo (passado utópico e distante, passado próximo e presente) guiadas pelo fluxo de pensamento de Eva torna o espectador em refém dos sentimentos internalizados por Tilda Swinton. Somos igual a Eva: prisioneiros na tragédia praticada por Kevin e sufocados por memórias indigestas, sugestivas e violentas.
Sentindo-se culpada, algo que expressa em mais de uma ocasião, Eva tropeça erraticamente na tentativa de reencontrar-se e tentar retirar o vermelho que cobre sua vida. Se antes a cor era sinônimo da liberdade, agora significa prisão, em um comportamento ambivalente. Outras cores também são respingadas, a fim de tornar a narrativa uma experiência sensorial que exige múltiplas visitas para serem obtidos todos os elementos plantados pela habilidosa diretora Lynne Ramsay.
O melhor deles está na indissociabilidade entre Eva e Kevin, aventada desde a cena inicial, como uma forma de comentar a dependência do filho à mãe e a perda da identidade desta quando gesta uma vida. É a razão de Kevin tentar destruir aquilo que afasta Eva de si - os quadros na parede que lembram de uma vida antes dele, a família, o próprio eu -, enquanto desafia o amor maternal ou a forma de Eva expressar sua penitência.
É um filme atemporal e perturbador em como, a partir do retrato de um monstro, toca em temas universais a respeito de maternidade.
Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio
3.2 961 Assista AgoraNão posso debitar apenas à saída, da direção, de James Wan e entrada de seu protegido Michael Chaves (de A Maldição da Chorona) que o terceiro capítulo das aventuras demoníacas do casal Warren tenha sido assustadoramente inferior aos anteriores. O roteiro preguiçoso também tem sua culpa: a começar em como não explica a razão de Arne jamais ter tido algum acompanhamento após ser possuído ou até diante de uma investigação policial simplória levada a cabo pelo casal.
A ideia de caso da semana vem logo a mente quando se analisa o filme, algo que não cogitei nos anteriores, pela desenvolvimento casual narrativo e reduzido envolvimento do espectador. Se antes torci com todas minhas forças pela sobrevivência das famílias que eram aterrorizadas por presenças e também pelo casal Warren - a cena em que Ed dedilha Elvis Presley no antecessor criava este sentimento de que nada de mal poderia acontecer com eles -, agora, além de saber que os Warren são invulneráveis, não me preocupei com Arne e aqueles ao seu redor porque só houve um momento que me proporcionou algum investimento através do afeto que tinha com o irmão de sua namorada.
Assim, os Warren atuam como detetives, coletando pistas para auxiliar em um julgamento, contra um inimigo que é muito menos ameaçador e aterrorizante do que era a "freira" Valak, por exemplo, e cujas regras nem ficam claras na narrativa. Pareço estar diante de continuações de grandes sucessos (Psicose, A Profecia, O Exorcista), mas que não tinham nem a pálida proximidade do que os originais foram um dia. É um filme que se apoia no nosso carinho com a franquia e os personagens sem recompensar com um momento à altura do que os que James Wan proporcionou.
Se a crítica parece mais severa, é porque a série Invocação do Mal me acostumou mal e vê-la se transformando em um terror meia boca, por melhor produzido que seja, é de matar.
Elvis Presley: O Rei do Rock
4.0 17Não falta material de arquivo para que o diretor Thom Zimny compile uma biografia respeitosa e meticulosa a respeito de um dos maiores nomes da música norte-americana. É a razão pela qual Thom opta em utilizar os depoimentos como voz sobreposta, em privilégio ao acervo documental, ressignificando as passagens da vida e carreira de Elvis a partir do que os entrevistados têm a dizer. Esta abordagem tem uma constante: o olhar.
Elvis encara o espectador dentro dos olhos, ciente de ser a ponte para aproximar a música negra (Blues, Soul, Gospel) ao público de massa no rock 'n roll e o símbolo sexual. Encarar-nos parece também revelar um Elvis mais vulnerável e inconscientemente em busca de aprovação do público. Sua relação com a mãe origina um homem contraditório, que desafiava alguns costumes da época, enquanto os respeitava por conta de sua criação conservadora.
Assim, o documentário, acertadamente dividido em duas metades, revela também um homem dividido: um artista que tentava traduzir seus sentimentos em canções e sempre se desafiava a buscar novas influências versus um produto, cuidadosamente trabalhado por uma indústria que sempre soube sugar o que pôde até matar suas galinhas dos ovos de ouro. O documentário é simpático a Elvis e não toca nas acusações de que se apropriou do que não era seu - a música negra - para criar algo próprio, não devolvido à comunidade. Também não se aprofunda muito na personalidade autodestrutiva dos anos finais de sua vida.
A crítica é bem-vinda, embora o documentário, ao definir seu tema, também delimita a abordagem. Aqui, a narrativa se preocupou com um jovem talentoso vindo de uma família pobre, alçado ao sucesso que jamais esperou e consumido por este até o ponto de se tornar a paródia de si próprio. No caminho, interpretou mais de 700 canções, gravou seu nome na história da música e expôs um personagem que facilmente admiramos por seu talento e porque choramos por sua tragédia.
O Último Homem Negro em San Francisco
3.8 51Não faltam boas ideias ao diretor Joe Talbot, que tenta reprisar o toque Barry Jenkins (ou Jonathan Demme) em como tentar criar uma unidade com base em close-ups evocativos de rostos cansados que parecem suplicar à câmera ajuda. Existe beleza no abandono, no desamparo ou somente nas fantasias construídas em torno de um ideal de sociedade jamais realizada.
No entanto, boas ideias socorrem narrativas até certo ponto, pois o que falta a este drama sócio-racial é a capacidade de costurar seus temas de uma forma consciente e reflexiva e que não pareça somente um diretor chamando atenção... igual a um homem andando nu no meio da rua.
Esperando os Bárbaros
3.0 41 Assista AgoraCiro Guerra, de O Abraço da Serpente, recupera o talento etnográfico mas agora com consequências mais óbvias do que identificar quem são os bárbaros do título. A atuação de Mark Rylance é digna e a fotografia é exuberante de um jeito sufocante que só o deserto consegue ser, porém não há tão maçante quanto não ser desafiado narrativa, visual ou mesmo tematicamente.
Saint Maud
3.5 336 Assista AgoraFantasmas, espíritos, monstros, esqueça isto. Não há nada mais assustador do que o ser humano, mesmo quando suas ações lhe parecem ser benignas. A "santa" Maud do título é uma enfermeira particular que tenta, dentro de suas limitações, "converter" a ex-dançarina Amanda, paciente com leucemia em estágio terminal. A premissa, que homenageia Persona, clássico de Ingmar Bergman, aparenta ser superficial até enfiar um crucifixo garganta abaixo do espectador.
Morfydd Clark, a Maud, encarna um tipo interessante de religiosa, solitária o bastante no mundo dos homens a ponto de ter, como o porto seguro, somente a imagem de Jesus na cruz. Sua solidão é resultado não apenas de suas escolhas cristãs em um mundo que considera hedonista, mas na fotografia que deliberadamente a isola no centro do quadro, a sós com seus pensamentos e orações.
Devota ao cristianismo, Maud é daquelas personagens cujo fanatismo (ou fundamentalismo), materializado no princípio de ide e evangelizai, impedem-na de enxergar o livre arbítrio de Amanda, interpretado por Jennifer Ehle, parecida física e em talento com Meryl Streep. É a partir desta incapacidade de Maud, que por outro ângulo é uma enfermeira zelosa, que a narrativa retira uma forma de terror que nubla a visão de uma narradora naturalmente não confiável.
O roteiro objetivo e a direção segura de Rose Glass indicam um futuro muito promissor, tanto no terror, desde a segunda metade, quanto no drama, pelo desenvolvimento caprichado desta Maud, fascinante mas também mais aterrorizante do que Jasons e Kruegers.
Um Fascinante Novo Mundo
3.5 123 Assista AgoraUm diário é a ponte construída por Abigail para que o espectador atravessasse e entrasse em contato com sua vida, em uma fazenda estéril e esquecida no século XIX, antes de conhecer Allie, a vizinha misteriosa com quem estabeleceria uma amizade e um romance.
A narração in off toma por empréstimo o ponto de vista de Abigail, enquanto passam as estações do ano que muito se assemelham ao estado de espírito desta mulher: o inverno após a perda da filha de difteria, o verão depois de redescobrir a razão para viver. A natureza emoldura a narrativa, mas também age sobre ela, ilustrando ou até ironizando os sentimentos humanos retratados.
A natureza que se movimenta entre as quatro estações de uma forma determinística até inspira a mudança interna, mas sobretudo expõe a fragilidade humana incapaz de se mudar, reinventar-se. O romance é o trampolim para esta discussão existencial, a ponto de a diretora Mona Fastvold reservar a relação sexual entre Abigail e Allie para um momento específico, tratado com sensibilidade e astúcia narrativas.
O elenco enxuto preenche a narrativa a partir de emoções represadas e de relações genuínas, em particular aquela entre Abigail e o marido, Dyer, um homem distante da fonte de sua dor, mas de uma forma característica desta época, amável, companheiro e compreensivo. Enquanto isto, Christopher Abbot é o contrário, em como incorpora a religião como forma de repressão.
Com relação a Katherine Waterston e Vanessa Kirby, que sorte poder contar com atrizes empenhadas em evitar os lugares-comuns vistos nos romances LGBT para proporcionar, a partir do olhar que perdura, do toque breve de mãos, fricções calorosas maiores do que o frio que as cerca. É um romance dramático agridoce, cujo período em que se ambienta demarca, mas não limita, suas possibilidades emocionais.
Friends: A Reunião
4.2 329 Assista AgoraFaço parte da turma que assistia, semanalmente, ao desenrolar da sitcom mais popular de todos os tempos e que conferia, antes do lançamento de uma temporada, a recapitulação que o Warner Channel realizava. Há mais de 15 anos, faço coro de joelhos sobre o caroço de milho por um episódio extra, um especial, uma reunião. Assim, não me faltava nostalgia para apreciar este reencontro... mais do que deveria.
É que parece haver tido mais esforço em reunir o sexteto do que em pensar em uma dinâmica além de uma entrevista com James Corden - cujo objetivo parece ser realizar perguntas óbvias ou dignas de tabloide -, ou em introduzir participações de celebridades que não possuem relação com a série, senão o fato de também serem fãs - Lady Gaga, Justin Bieber, Cara Delevingne - ao invés de convocar outros que participaram ativamente da série - Paul Rudd, Jane Sibbet, Christina Applegate, Helen Baxendale, Giovanni Ribisi - ou ao menos dar mais tempo para alguns por quem tínhamos carinho - James Michael Tyler ou Maggie Wheeler. Nem mesmo a canção tema recebe alguma forma de tributo.
Menos sobre o sexteto nos dias de hoje (já falo sobre isso) e mais sobre o sexteto do passado, os melhores momentos do episódio especial são exatamente aqueles que ou se apoiam em episódios clássicos (o game do apartamento é jogado novamente, com resultados medianos) ou nos erros de gravação. Há pouco a justificar 2 horas ou o esforço logístico de colocá-los no mesmo sofá.
E aí vamos ao hoje: se Matt, Lisa e Jennifer estão mais confortáveis em sentar no sofá, Ross e Courtney parecem desligados. E Matthew? Em razão do vício e da depressão, o ator substituiu a espontaneidade e alegria de Chandler por uma tristeza e sofrimento que contagiam. A sensação é de que o ator não queria estar presente, mas precisava estar, pela oportunidade de reencontrar antigos amigos e de como isto é importante para lutar contra a doença que o consome.
Seu relato emocionante é o momento mais sincero do episódio, que evita realizar as perguntas cujas respostas gostaríamos de ouvir, em troca de uma nostalgia que poderíamos ter revendo os episódios.
Anônimo
3.7 746O cinema de ação mudou de muitas formas ao longo dos anos: onde havia um protagonista musculoso com o bíceps da espessura de uma anaconda, agora há o homem suburbano médio (ou "médio") de Bob Odenkirk. A ideia por detrás disto parece corresponder ao fetiche do homem comum, entediado com a rotina, não apreciado por quem é, nem pelo que faz, que se revela ser alguém mais mortal do que você presumiria pelo cartão de metrô.
Portanto, dentro do contexto de Anônimo, a perda da masculinidade decorrente do mundo contemporâneo é somente aparência ou uma fachada. Este componente ideológico é fatorado com um cinema de ação divertido, com forte influência de John Wick, em que a violência e as mortes são espetaculizadas e não problematizadas. Não existe qualquer racionalidade na quantidade de capangas, mesmo porque a meta desta narrativa parece ser respeitar a proporção de 1 morte por minuto.
Por causa disto, a narrativa assume liberdades: as músicas que tocam na trilha sonora têm apelo irônico em face às ações de seu (anti-)herói contra o pano de fundo de um subúrbio desinteressante acinzentado. Além disto, Hutch é interpretado de um jeito aborrecido e casual por Bob Odenkirk (como eu adoro o ator), conferindo à engenhosidade de suas armadilhas algo a mais do apenas um MacGyver. Além disto, é fácil apreciar a participação de Christopher Lloyd (o imortalizado Dr. Emmett Brown de De Volta para o Futuro) e a postura fria e racional do vilão vivido por Aleksey Serebryakov.
Despretensiosamente divertido e mortífero, Anônimo é também uma prova de que o cinema de ação é muito mais do que tiros e pontapés, proporcionando uma releitura da sociedade contemporânea em uma sátira do sonho de muita gente que mais ladra do que morde.
Cruella
4.0 1,4K Assista AgoraVocês já me conhecem: eu não costumo gostar de histórias de origem. Se um personagem pôde chamar nossa atenção a ponto de se tornar icônico em um filme, por que desperdiçar o mistério que cerca o seu passado? Será mesmo se todo o vilão precisa de um pano de fundo traumático para ser mau? Não faltam exemplos: Darth Vader, Malévola, Hannibal Lecter, Coringa, Magneto e outros ganharam histórias de origem que tentaram, de uma forma ou de outra, fazer com que o espectador simpatizasse com quem antes temia.
Cruella é mais uma na lista, merecendo sua história que mistura O Diabo Veste Prada, Coringa e O Rei Leão - caso Simba tivesse desejos vingativos. Entretanto, mesmo que não caia de amores pela proposta, não posso negar que o resultado final é muito positivo em estabelecer esta versão da famosa vilã sem desperdiçar o seu charme diabólico e semi-insanidade.
A narrativa é mais sombria do que seu típico filme da Disney e, com exceção de closes no rosto dos cachorrinhos enquanto fazem caras engraçadinhas, escapa do humor pastelão em favor de um cruel. Jasper e Horace não são mais os "imbecis" do clássico 101 Dálmatas, nem servem de alívio cômico: são ladrões soturnos, habilidosos e com um senso de humanidade que apenas rivaliza com o feudo entre Cruella e A Baronesa.
Vale ressaltar que a dinâmica entre Emma Stone e Emma Thompson solta faíscas porque existem sentimentos menos óbvios em jogo: o narcisismo da última e uma vontade de ser reconhecida da primeira, largada na rua como vira-lata que não era. Além deste duo, o design de produção britânico, que se apropria dos cinzas da cidade para a criação de contrastes na paleta de cores, os figurinos exuberantes e favoritos a prêmios e a atuação do discreto Mark Strong estabelecem a narrativa como algo bem mais revigorante do que sua história de origem tradicional.
Clube da Luta
4.5 4,9K Assista AgoraClube da Luta é o elefante sentado na minha sala. É o filme que, por mais que eu quero, eu jamais poderei escrever a respeito.
Claro, do ponto de vista temático, é o ápice da carreira de David Fincher - isto quer dizer muito. Um filme em que o papel do homem na sociedade contemporânea é constantemente desafiado por elementos emasculantes (o vibrador de Marla, o câncer de testículo, ora, até o pinguim, uma ave que não voa), a ponto de este precisar recorrer à violência mais primitiva para sentir-se viril novamente.
A visão de David Fincher é crítica, não apologética, em como o homem médio - retratado por Edward Norton na melhor atuação da carreira - sente-se ameaçado com a entrada da mulher nos espaços antes por ele dominado. Como quem derruba ácido em nossos membros, a narrativa sempre desafia esta percepção masculina e também a sociedade que lhe serve de base: aquela tendente a procurar sentido em coisas materiais e não em relações humanas concretas, aquela disposta a seguir cegamente a visão de um lunático apenas por este empoderá-lo com falsas profecias.
Fincher é o equivalente cinematográfico de Mike Tyson: ele esmurra o olhar do espectador com uma fotografia cancerosa e podre, a fim de retratar o estado mental do protagonista, que se dissolve a olhos vistos igual à casa onde mora com Tyler: a visão idealizada que tem de si. Nesta viagem dentro da mente do Narrador - antecipada pela cena inicial -, descobrimos que o conflito é pela identidade e sanidade, no exemplar máximo da crítica à masculinidade frágil.
Enfim, cerca de 21/22 anos depois da primeira vez em que vi Clube da Luta pela primeira vez, escrevi algo a respeito.
P.S. Se você estranhar de eu não ter citado uma vírgula sobre Brad Pitt é porque eu ainda não tenho as palavras para descrevê-lo.
Palmer
4.1 205Durante 100 minutos, Palmer é um drama bastante real a respeito da dificuldade de um ex-detento ser reinserido na sociedade como um membro funcional e de como se enxerga em Sam, o vizinho do trailer ao lado. Filho de uma mãe dependente de drogas e em processo de descoberta da identidade. Sam afeiçoa-se por Palmar, que enxerga como uma figura paterna substituta. Assim, a relação entre ambos é construída a partir de atalhos e soluções já conhecidas, apesar de nenhuma aparentar estar artificialmente inserida no roteiro.
Isto porque o texto não tenta disfarçar como Palmer, no início, rejeita Sam, para então aceitá-lo como é, com o desejo genuíno de ser seu tutor e protegê-lo da sociedade intolerante a seu redor - de forma que até soa estranha a cena inserida em que o diretor interroga Sam sobre sua relação com Palmer. A construção do personagem é convincente porque Justin Timberlake adota um ar constrito, revelando-se intenso somente quando a circunstância exige. Já Ryder Allen, que interpreta Sam, é um achado em como atua de forma natural e espontânea.
Neste jogo de cartas mais ou menos marcadas - é possível adivinhar muito do que acontecerá, embora a previsibilidade não interfira em nossa capacidade de viver aquela realidade e relação fraterna -, Sam é como um arco-íris (literalmente) que lança suas cores em uma vida acinzentada e sombria. É uma forma de resgate mútuo, que conta com personagens coadjuvantes cativantes, como a professora Maggie ou a avó Vivian.
Mas eu disse que o filme era convincente por 100 minutos, não foi? É que os 10 minutos finais terminam por encontrar uma alternativa meio conto de fadas. É bonito? Sem dúvidas, porém longe da identidade que a narrativa havia criado para si.
The Last Days
4.4 19Eu acredito que todo mundo deveria assistir, pelo menos uma vez, a este documentário vencedor do Oscar da categoria e que relata, com dor, violência e abundante sensibilidade e honestidade a perseguição aos judeus húngaros realizada em março de 1944, praticamente a um ano antes da rendição da Alemanha na 2ª Guerra Mundial. É um exercício de choque, ainda mais quando imagens de arquivos de corpos subnutridos são arremessados dentro de valas comuns nos campos de concentração, mas é também uma forma de desenvolver empatia e aprender com os erros do passado para evitarmos cometê-los novamente.
O documentário é contado a partir do relato de cinco judeus húngaros e residentes dos Estados Unidos. A estas pessoas, já idosas, é concedida a oportunidade de retornar aos lares onde moravam na infância, antes de terem sido hostilizados por muitos que eram seus vizinhos e empurrados a guetos, trens e campos de concentração. A narrativa impressiona não quando revela a monstruosidade nazista, mas em face a seus detalhes e ensinamentos.
É impressionante como, 50 anos depois, estas pessoas recordam detalhes pequeninos, como um maiô de banho, mas importantes dentro da jornada de sobrevivência de cada um deles. Além disto, desde a cena inicial, em que um dos sobreviventes se questiona, retoricamente, por que os alemães investiam tantos recursos no extermínio dos judeus quando poderiam deslocar isto à guerra e postergar sua derrota, o documentário é um aprendizado para que abaixemos a guarda.
O que houve com os judeus húngaros não ocorreu do dia para a noite, mas a partir de medidas sistematicamente planejadas, em uma escala de desumanidade progressivamente imperceptível. São somente 95 minutos de uma aula de vida, resiliência e história obrigatória, eu diria.
Army of the Dead: Invasão em Las Vegas
2.8 957Eu tenho dificuldade em compreender como uma premissa original que mistura dois subgêneros aparentemente antagônicos - zumbi e assalto - tenha resultado em um filme que não tem um décimo da diversão que deveria proporcionar. Mas vou tentar articular.
De volta ao subgênero que lhe conferiu notoriedade em Hollywood - Madrugada dos Mortos continua sendo um de meus filmes de zumbis preferidos -, Zack Snyder se mostra indeciso acerca da abordagem narrativa: é mais filme de assalto ou de zumbi? É para ser comédia ou tragédia? É para que nos importemos com o destino dos personagens ou estamos livres para celebrar as mortes? É para ser subversivo ou reverente ou mesmo clichê?
Em 2 horas e meia - intermináveis em comparação com as 4 horas de Liga da Justiça -, Zack Snyder não me respondeu nenhuma pergunta de forma satisfatória. No lugar, o diretor não fugiu de nenhum clichê do gênero: tem o personagem mais perigoso para a sobrevivência do bando do que os zumbis? Sim. Tem personagens dispostos ao sacrifício em nome dos outros? Sim. Tem relações humanas pedestres e descartáveis para tentar amolecer os corações? Sim, aliás, é a parte que mais me exigiu reflexão, considerando que Zack perdeu uma filha.
Assim, não é um tigre zumbi ou uma metáfora não realizada de trazer os zumbis a Las Vegas e retomar os temas clássicos dos monstros - a alienação, o consumismo, o capitalismo desenfreado -, é a identidade e personalidade que faltam a este filme, cujo maior evidência é a cara de desânimo de Dave Bautista durante a narrativa. Justo ele, o mais carismático de todo o elenco.
Mortal Kombat
2.7 1,0K Assista AgoraMortal Kombat é exatamente o que qualquer pessoa em sã consciência esperaria de Mortal Kombat, bem diferente das bobagens que foram as versões de 1995 e a sequência de 1997: divertido de um jeito violento e sangrento, com alguma personalidade na concepção dos personagens, além de um fio condutor mais claro do que apenas um conjunto de lutas uma atrás da outra.
Isto não significa que o roteiro não seja tolo quando os personagens abrem a boca e esforçam-se em explicar o que seria o tal combate mortal, em razão de atuações picaretas (no melhor dos casos, e nem vale a pena enumerá-las) e de diálogos embaraçosos (um motivo de piada para Cole, em certo momento). Além do mais, mesmo aspectos banais não parecem fazer sentido, por exemplo quando Jax pergunta a Sonya por que ela o levou ao templo de Raiden, quando a ex-militar não teve relação alguma com aqueles eventos e estava tão surpresa quanto ele ao vê-lo deitado na maca.
É uma adaptação que tenta cumprir as metas das superproduções que fascinam o público jovem adulto: ser engraçada, porém de um jeito tio do pavê de ser, e mesmo o humor politicamente incorreto Kano passa do ponto como um doce muito açucarado; levar-se a sério a ponto de estender-se por prolixos 110 minutos de duração e sem assumir a alma de filme B; e proporcionar set pieces empolgantes.
Acerta somente neste ponto final, especialmente na cena inicial e a partir de 1 hora de duração. Mas é o bastante para que, descontadas as cut-scenes típicas dos jogos de videogame, haja uma interlocução direta com o público-alvo, que sairá satisfeita em ver seus campeões combatendo até a morte.
Oxigênio
3.4 499 Assista AgoraOxigênio é um exercício narrativo baseado no dispositivo de roteiro conhecido como "bomba relógio": o objetivo é acentuar a tensão do espectador enquanto avança o ponteiro do relógio, aqui na forma do contador de oxigênio. À medida que este decresce, o roteiro oferece obstáculos maiores à jornada existencialista e de sobrevivência da protagonista, que mal se lembra quem é ou por que está onde está.
Ao diretor Alexandre Aja, cabe manipular tempo e espaço para que a tensão do roteiro também seja expressada em imagens. E a direção já tem como ponto de partida uma situação claustrofóbica piorada pela imobilidade da protagonista, que mal consegue alcançar as alças que prendem sua perna.
A tensão é acachapante e serve como metáfora de uma crise de ansiedade e ataque de pânico, já que a protagonista, vivida com seriedade por Mélanie Laurent (Shoshana de Bastardos Inglórios), precisa tranquilizar-se para consumir menos oxigênio e também esforçar-se em compreender acerca da situação em que está e qual a melhor alternativa para sair dela. O domínio do agora é enfatizado em como a personagem precisa até se machucar para estar no momento presente ou no surgimento de alucinações que refletem um infundado medo, características com que posso me relacionar muito bem.
Já o roteiro procura desculpas para continuar esticando a duração da narrativa até 101 minutos, e introduz elementos que, talvez, não caíam bem no gosto do espectador. Mas, no final das contas, é um trabalho focado em provocar apreensão - faz isto muito bem - e retratar, cinematograficamente, uma crise de ansiedade e algumas formas para desarmar suas armadilhas. Curti.
Stan & Ollie: O Gordo e o Magro
3.7 79 Assista AgoraStan Laurel e Oliver Hardy, a dupla detrás de Laurel & Hardy, que no Brasil viria a se chamar O Gordo e o Magro (nós, brasileiros, e nosso talento para adaptação de títulos originais), é um tesouro da história cinematográfica. Sua comédia pastelão ingênua encontra reflexo em uma biografia singela, mas afetiva, que acerta em não tentar o impossível: contar toda a história da carreira em 100 minutos.
Ao invés disto, a trama encontra a dupla depois de serem demitidos dos estúdios de Hal Roach e tentando a sorte nos palcos de teatros por toda a Europa (logo depois da 2ª Guerra Mundial até o início dos anos 50), na esperança de reerguer sua carreira no cinema. A frente do elenco, Steve Coogan e John C. Reilly - escondido detrás de uma maquiagem que não limita sua atuação - estabelecem uma química a partir de um olhar doce e saudoso, que tenta inserir um conflito aqui, outro acolá, embora retorne a uma amizade o mais sólida possível.
Se a dupla se dedicava a fazer filmes simples, que tentavam apenas provocar risos e proporcionar escapismo momentâneo, a direção de Jon S. Baird é convencional e isto não é demérito. O diretor não tenta impor sua voz, senão na cena inicial em que a dupla passeia por sets de filmagens criados em tela verde, em um plano sequência cartão de visitas. No restante do tempo, permite que Coogan e Reilly penetrem no coração dos personagens com diálogos menos requintados, porém uma considerável quantidade de afeto no olhar.
Um pouco por ser fã da história do cinema e muito em face à química entre os dois atores, emocionei-me com Stan & Ollie: eu acho que há autenticidade na dupla e isto compensa qualquer limitação narrativa.
A Família Mitchell e a Revolta das Máquinas
4.0 494Animações podem ser usadas para dar vida a animais falantes, emoções, brinquedos dentro do guarda-roupa etc, e com resultados excepcionais. No entanto, o grande pecado dos grandes estúdios está em submeter a animação às regras do live-action, perdendo de vista que aquela é a forma mais livre de se fazer cinema e não só um recurso para "animar" o inanimado. Limitada apenas pela imaginação do criador (e do orçamento também...), a animação é uma forma de se expressar diferente: primeiro porque o espectador admite maior margem de manobra do diretor, uma concessão que não costuma acontecer no live-action; segundo, porque muitos recursos ajudam a suprimir o excesso de exposição com o uso de um meme ou de uma onomatopeia.
E por mais que este segundo argumento possa existir em live-action (vide Scott Pilgrim contra o Mundo), retornamos ao primeiro: nós, espectadores, abaixamos as guardas para animações de um modo diferente do que fazemos com live-action. Dito isto, o novo trabalho da Sony Animation é irrepreensível em como arquiteta uma linguagem visual mais comunicativa do que o roteiro, e mais coerente com a ideia de que a animação tenta reforçar a importância da tecnologia e isto exige aceitar as mudanças que esta impõe no convívio cotidiano.
Seu trunfo está em partir do nonsense em direção a elementos humanos (algo que Tá Chovendo Hambúrguer também fazia com menor êxito): a importância da família, o choque geracional, a projeção dos pais nos filhos e os consequentes afastamento e/ou supressão da personalidade dos últimos estão no coração da narrativa, apta a expressar tudo isto com algum grau de novidade a partir da ideia de uma inteligência artificial que torna o mundo refém porque abandonada por seu criador.
Reprogramar os maus hábitos e encontrar o meio termo são valores que A Família Mitchell traz bem perto de si, aceitando a tecnologia como meio de criação e integração e não de destruição e isolamento.
O Mistério de Silver Lake
3.0 292 Assista AgoraHomens lagarto. Monstro do lago Ness. Área 51. O mundo está cheio de teorias da conspiração para ocupar a cabeça da pessoa média desconectada da realidade e que, igual a todos nós, é ávida em explicar a dinâmica do mundo e resolver mistérios não solucionáveis. Ou "mistérios", sobretudo porque estes existem somente na fantasia de cada um. Este fetiche humano de criar mundos e respostas inusitadas para perguntas simples da vida é o tema deste filme de David Robert Mitchell (de Corrente do Mal), cujo roteiro deixa claro a futilidade no processo, na mesma proporção que instiga.
David não quer oferecer respostas - quando faz, é tão absurdo que até desconfiamos. Ele quer criticar as pessoas e os espectadores que buscam estas respostas em vez de viver o agora, igual ao personagem interpretado por Andrew Garfield. Um homem sexista e frustrado - cujo trabalho mal sabemos qual era - que caiu de para-quedas em uma espécie de narrativa neo noir: uma femme fatale entrou em sua vida e a virou de pernas para o ar, enquanto caminha por entre festas vazias de Hollywood procurando entender o mistério em torno do assassinato de um bilionário, um assassino em série de cachorros, uma mulher coruja ou algumas mensagens subliminares deixadas em músicas populares e caixas de cereal.
É, a direção não quer que você leve a trama a sério. Ela quer que você se divirta com a surrealidade do mundo que o protagonista habita, que parece saído da cabeça de David Lynch - e enxergue o vazio de uma parcela da classe artística de Los Angeles. São caricaturas que povoam esse mundo, algumas ingênuas de seu papel e outras cínicas o bastante para tentar sobreviver naquele mundo.
Sem lógica que reja a narrativa senão o ilógico, sobre ao espectador códigos - cuja explicação pode ser encontrada na internet, embora em pouco interfiram no resultado da internet - e uma atuação bem inusitada de Andrew Garfield. É um filme diferente de tudo o que você tem visto recentemente e, se fosse resumir em apenas uma palavra, uma viagem.
A Mulher na Janela
3.0 1,1K Assista AgoraA verdade é que, apesar de trajar a roupa de thriller, não há muitos mistérios na adaptação do livro de A. J. Finn pelo diretor Joe Wright (de Orgulho e Preconceito e Desejo e Reparação). Desde o princípio, já percebemos que Anna Fox não é uma narradora confiável, não só em razão de seu quadro psicológico (agarofobia), como também por causa dos medicamentos. A direção também pesa a mão em como superlativa este mundo com a paleta de cores abundantemente azul ou vermelha, com ocasionais tons de amarelo. Para complicar, Joe também introduz clássicos como Janela Indiscreta, Prisioneiro do Passado e Laura como sugestões de que o roteiro jogará com muitas pistas falsas.
A direção utiliza tudo isto para tentar dar uma amostra do que é ser Anna Fox, mas que desgasta o espectador pelo excesso. São muitos os personagens que coabitam o universo da narrativa: Gary Oldman, Julianne Moore, Jennifer Jason Leigh, Wyatt Russell, Brian Tyree Henry e Anthony Mackie, todos com tempo mínimo para serem ferramentas, não personagens da narrativas, subjugados à percepção de Anna.
Em contrapartida, Amy Adams é uma atriz versátil e talentosa para que Anna seja um reflexo empático da doença. Ao lado de momentos de abertura, há a retração ao confrontar o passado. Ora é simpática com o inquilino do andar de baixo, ora é invasiva e ardilosa em como usa uma informação privilegiada a seu favor. Anna é uma mulher acuada, dentro de sua própria casa de 3 andares que estende o olhar às ruas como uma versão contemporânea de Janela Indiscreta (o clássico de Alfred Hitchcock), mal sabendo que é para dentro de si mesma que deveria olhar.
Além dessa, outras referências também surgem na televisão de Anna: Prisioneiro do Passado e Laura são alguns títulos de sua coleção, que auxiliam a ilustrar como o roteiro pode ser manipulativo em plantar pistas falsas e alucinações para manipular a experiência do público com um thriller mediano.
País da Violência
3.5 276 Assista AgoraSam Levinson (criador de Euphoria) abraçou como tema a juventude da geração Z para debater, a partir de seus olhares, os dilemas tipicamente norte-americanos de uma sociedade hiper-conectada nas redes sociais. Onde há néon-realismo em Euphoria, em País da Violência existe crítica social - néon também -, que apela à violência como alternativa para tirar o espectador da zona de conforto.
Por esta razão, o filme apresenta os mesmos problemas da série Them, mas de uma forma atenuada, pois a violência (física e psicológica) não chega a ser utilizada sem critério, apenas para chocar. Ela adota uma abordagem estilizada, semelhante ao que Quentin Tarantino realiza em seus filmes, e também pedagógica, mesmo quando disparam uma dúzia de gatilhos anunciados nos créditos iniciais.
A ambientação da narrativa em Salem tem o objetivo de comparar a postura social contemporânea - que julga mulheres pelo que vestem, como agem etc - com a perseguição às "bruxas" ocorrida há séculos. Além do mais, existe uma inclinação narrativa evidente em retratar os Estados Unidos de Donald Trump: hackers, rede de ódio, "cidadãos do bem" indo às ruas para praticar injustiça com as próprias mãos. E, no meio disto, o melhor que Sam Levinson faz é manter a câmera, só por alguns segundos, no olhar de personagens hesitantes, mas que agem com a multidão para não serem excluídos.
A narrativa até exibe uma parcela de excessos, sobretudo quando pesa a mão na caracterização de personagens ou comportamentos somente com o objetivo de servir a uma crítica ampla, até mesmo quando o tema parece fugir da linha narrativa central. Quem sabe, seja Sam dizendo que toda forma de iniquidade e injustiça tem um ponto em comum: a forma como cada sociedade trata as mulheres.
À Espreita do Mal
3.6 898O espectador tem prazer em ser tapeado pelo roteiro, desde que isto seja feito de modo inteligente. A reviravolta choca, por si só, mas não modifica a realidade de alguns roteiros que, por preguiça ou desídia, evitam explorar o poder da surpresa em favor dos personagens e do contexto da narrativa.
Aí entra a confiança que temos na câmera como narradora (a imagem tem ainda o poder de conferir a ilusão de verdade a tudo que vemos) e o ponto de vista de quem está contando a história. Estes elementos são trabalhados com maior ou menor êxito neste terror / thriller simples e enxuto, que poderia funcionar melhor se retrabalhasse seu roteiro para não excluir o espectador da resolução.
Algumas peças (personagens) são colocados somente para distrair. Além do mais, mais de um personagem têm motivos para não serem confiáveis, deixando o espectador atrás do texto: ele não tem como solucionar o caso, apenas assistir à câmera fazer para si, resgatando eventos que já ocorreram apenas para oferecer uma perspectiva que não a primeira.
Divertido? Sem dúvida, embora seja frustrante a falta de iniciativa do espectador. Até dá para aceitar os personagens planos, com exceção de Helen Hunt, ou a quebra do ritmo e das regras de roteiro com a adição de personagens relevantes no segundo ato, mas acredito que seria melhor se tivéssemos a chance de poder adivinhar o resultado (mesmo que falhássemos no processo).