Já falei da minha dificuldade em escrever sobre filmes que não me empolgam, mas também não desagradam. São filmes que existem provocando o total de zero sentimentos, mas somente preenchem tempo e entretém dentro de sua proposta. Sem Remorso é mais um destes casos, trazendo Michael B. Jordan interpretando o segundo personagem mais popular dos livros de Tom Clancy: John Kelly. O primeiro seria Jack Ryan.
No papel principal, Michael B. Jordan não tem muito a fazer senão exercitar os músculos propriamente ditos e conferir credibilidade a cenas de ação bem produzidas (em sua maioria), mas nenhuma tremendamente original, com exceção daquela que se passa dentro de um avião submerso. Já em matéria de exercício dos músculos de atuação, o ator até tenta injetar intensidade na dor, porém o próprio roteiro cuida de abreviar este instante para agilizar a vingança.
Diferente de John Wick, que parece ter sido o ponto de partida do diretor Stefano Sollima (de Sicário: Dia do Soldado), a narrativa é menos centrada nos set pieces de ação e mais na ressurreição da Guerra Fria (o conflito entre Estados Unidos e União Soviética / Rússia iniciado logo após o término da 2ª Guerra Mundial). É uma mistura do novo - com direito a cenas coreografadas para revelar a eficiência de John Kelly - e do velho com twist novo - pois a ideia de trazer os russos como antagonistas é só um subterfúgio para uma daquela reviravoltas óbvias e que podem ser previstas logo no segundo ato.
Guy Pearce e Jamie Bell têm esforço mínimo para construir seus personagens, enquanto Jodie Turner-Smith destaca-se mais do que Michael B. Jordan porque sua atuação é muito mais convincente no olhar do que a do protagonista. Mesmo assim, para quem busca 100 minutos de ação, que balança entre a velha e nova guarda, pode funcionar como passatempo. Ah, durante os créditos iniciais, há uma cena extra que sugere que este é apenas o primeiro passo de uma franquia.
Consciente de ser um exemplar do cinema de ação / crime, O Informante tem como trunfo o elenco relevante: Joel Kinnaman, Rosamund Pike, Ana de Armas, Clive Owen e Common são como chamarizes de uma narrativa limitada pelo lugar-comum. Joel é o anti-herói com imperativos éticos e morais que o obrigam a fazer a coisa certa quando a situação exigir-lhe; Ana é a esposa disposta a, em nome do amor, desobedecer o pedido do marido; Rosamund é a agente cujos valores não são ofuscados por sua ambição; Clive é o representante do Estado e age friamente como tal; e Common é o policial antissistema e disposto a encontrar a verdade, qualquer que esta seja.
Todos estes atores estão a disposição de um roteiro consciente das limitações e clichês do subgênero, mas que está disposto a cair em cada um deles mesmo assim, na esperança de que a ação brutal e violenta compense o investimento emocional em uma jornada cujo resultado é previsível.
A aposta é certeira: se não rende um grande filme, ao menos produz um passatempo divertido, com a eleição (igual Sem Remorso), de um inimigo comum: o Estado, o que atenua a visão xenofóbica que o cinema americano tem do resto do mundo. Quando não são árabes, mexicanos ou russos, são poloneses os traficantes, com direito a um personagem que gosta de sorrir com os dentes amarelados a fim de ilustrar quão malvado é.
Nada disso importará muito no final das contas: o filme é eletrizante, sobretudo quando se aproxima do final; Joel Kinnaman tem muito do estilo Tom Cruise de atuação ao traduzir na linguagem corporal as exigências físicas da ação; o roteiro tem méritos em investir tempo em alternativas inusuais, cortando fora a gordura, mesmo que a duração não pareça refletir isto em razão de haver muitas peças de xadrez no tabuleiro do filme.
É um passatempo mais ou menos eficaz para quem gosta do gênero, com a expectativa de continuações.
Existem méritos na adaptação do livro All Things Cease to Appear, de Elizabeth Brundage, que não resistem à estrutura enrolada do roteiro que não parece enxergar suas limitações. Eu até admiro a finalidade do terror como a forma de debater o abuso doméstico, praticado por um sujeito que parece inofensivo de um jeito patético de ser, até revelar quem verdadeiramente é. Lembrou-me Bela Vingança, em como os estereótipos do abusador são atualizados para o homem médio, o que obriga reanalisar nossos pré-julgamentos.
Entretanto, os problemas iniciam com James Norton e Amanda Seyfried, que não aparentam estar a vontade nos papéis, a ponto de suas atuações comprometerem o envolvimento com os personagens e o desenvolvimento deles - também previsível, assim que percebemos qual a lógica do roteiro.
Por não serem diretores habituados ao terror, Shari Springer Berman e Robert Pulcini até oferecem possibilidades incomuns, com a presença espiritual menos ameaçadora do que a das pessoas reais. Entretanto, talvez até por inexperiência, a dupla repita alguns clichês de casa mal assombrada, como aparições imprevisíveis, despertares noturnos e a sessão espírita de praxe neste tipo de filme, que nada acrescentam a exceção de estenderem a duração para inexplicáveis 2 horas.
O terror não assusta, já que não é o propósito da narrativa, mas pouco faz para explorar os trabalhos de Emanuel Swedenborg, escrito do fim do século XVIII e que explorou o espiritismo de forma científica, e nem tenta ir além da superfície da masculinidade frágil de George Claire e do abuso vivido por Catherine e a importância de sororidade, nesta e na outra vida.
Se fosse para ler um artigo do Wikipédia sobre Marie Curie, eu iria para o Wikipédia, pois esta biografia sequer se esforça em entrar na mente de uma das mais importantes cientistas de todos os tempos e se contenta em transformar sua vida em uma série de acontecimentos tratados com a superficialidade que o tempo lhes proporciona.
Rosamund Pike procura encontrar a motivação (óbvia) na composição de Marie Curie como uma mulher que desafiou as regras acadêmicas que não davam o devido valor a sua ciência somente em razão do machismo. É uma abordagem previsível, mas que poderia render bons frutos caso o roteiro se decidisse em percorrer esta linha narrativa, o que não acontece. Assim, a atuação de Rosamund, que já não está entre suas melhores, perde-se em uma narrativa que logo abre mão disto em torno de uma abordagem inconsistente.
Durante um período, o espectador testemunha o romance com Pierre Curie, que viria a se tornar seu marido, em cenas solares e bucólicas e que contrastam com o interior do laboratório onde Marie identificaria 2 elementos químicos não descobertos e a radioatividade - numa explicação visual e breve o bastante para ser decepcionante. Depois, acompanharia as dificuldades dela na docência e a utilização da radioatividade ao bem da medicina. É tudo tão apressado que Anya Taylor-Joy, que participa da narrativa, mal tem tempo de construir e desenvolver sua personagem senão através de diálogos expositivos.
Já a direção de Marjane Satrapi é desinteressante e indecisa: não sabe se quer humanizar ou mitificar Marie Curie; quando humaniza, é careta (a cena dela e Pierre correndo nus em direção ao rio antes de se deitarem na relva é das mais embaraçosas que vi no ano); quando mitifica, não alcança a grandeza de seu trabalho colocando-a como alguém insegura das próprias realizações. Tantos senões justificam por que o filme, exibido no Festival de Toronto em 2019, caiu fora da temporada de premiações daquele ano em busca de um período em que pudesse ser esquecido.
Eu não entendo o desejo obsessivo de alguns diretores em encaixotar uma porção relevante da vida de uma pessoa em algo além de 2 horas. Isto se repete mais uma vez com a biografia da cantora de jazz Billie Holiday, em que o experiente diretor Lee Daniels (Preciosa, O Mordomo da Casa Branca) abraça o período que antecede sua prisão (em 1947) e se estende até os dias de sua morte (em 1959), em uma estrutura frouxa e mal planejada, para tentar mergulhar na cabeça de uma mulher que transformou a violência sexual e racial em composições atemporais.
Se a premissa revela a superficialidade da abordagem convencional da narrativa, tudo fica evidente quando Lee Daniels divide a atenção devotada à protagonista com seus coadjuvantes, por exemplo Jimmy Fletcher, o agente negro do FBI arrependido por ter sido joguete de uma organização com víeis racista, contra sua própria comunidade. Ao menos, Jimmy teve a sorte que faltou aos demais personagens e que aparecem e desaparecem convenientemente com a trama, que, para piorar, adotar uma estrutura preguiçosa contada em retrospecto a partir de uma entrevista da cantora a Reginald Lord Devine.
Além disto, que narrativa cafona e contraditória! Lee Daniels investe em enquadramentos artificiais que se aproximam do rosto de Jimmy Fletcher demonstrando um encantamento por Billie Holiday, a fim de que este sirva como o olhar do espectador diante do ícone. Instantes iguais a este são colocados em oposição a outros intensos e brutais, para capturar os relacionamentos abusivos de Billie e ainda a política de linchamentos no sul americano. O resultado nem engrandece a biografada, cuja música é um pano de fundo tímido, nem estimula debates políticos, senão na cena em que Billie é impedida de entrar em um elevador social por causa da cor da pele por um ascensorista também negro.
Quem salva a biografia de ser um desperdício é a atuação de Andra Day, praticamente uma estreante a frente das câmeras. Vivaz, Andra revela o brilho e glamour de uma estrela autoindulgente, porém que sabia retirar as pessoas da inércia pela arte; atrás das cortinas dos palcos, a atuação é ainda melhor, com momentos de vulnerabilidade colocados ao lado de outros de força de vontade e um certo egoísmo de uma mulher contraditória, mas apaixonante, que merecia um filme muito, MUITO melhor.
Para sobreviver e ser relevante e inspiradora, a arte precisa de mais vozes, diferentes tipos de vozes, que enxergam outros empregos da linguagem e promover formas inéditas de identificação e empatia. A estreia de Radha Blank é em frente e atrás das câmeras: na direção e roteiro, Radha expõe uma crise de identidade contemporânea que se perpetua até os 40 anos e tem, em si própria, seu melhor exemplo.
Uma dramaturga teatral promissora, Radha agora está na encruzilhada de quem precisa continuar o trabalho anterior sem perder a voz autoral, quer dizer, sem precisar realizar concessões para tornar seu comentário social e racial mais palatável ao público médio - composto pela elite branca que é o alvo da crítica que tece. Parada, como quem deita e encara o teto sem saber quais serão os passos seguintes, Radha redescobre-se em uma paixão adolescente: o rap. A reinvenção está também no foco da narrativa que tenta demonstrar não ser tarde demais para uma mudança de rumo.
A forma como isto é feita é por uma comédia ao estilo de Frances Ha ou até mesmo Fleabag, respeitadas as diferenças entre Greta, Phoebe e Radha, que, como mulher negra nos 40, tem percepções diferentes da vida do que aquelas. O preto & branco é escolhido para retratar os contrastes entre a vida em uma metrópole que despersonaliza e tira o brilho dos figurinos de Radha, servindo também como mecanismo de transformação tão logo este readquira o controle do próprio caminho.
É um filme vitrine, digamos assim. Um convite para conhecermos a artista Radha de ângulos múltiplos, inclusive do alter-ego na trama; um convite também para sairmos da bolha cotidiana e conhecermos uma história que não conheceríamos sem ajuda do cinema.
Filmes podem ser aventuras sociológicas, uma janela aberta em direção a uma parte da sociedade que nem imaginávamos existir. Como este tipo de retrato, Alma de Cowboy é oportuno em exibir a comunidade negra da Filadélfia, na qual alguns moradores fugiram das estatísticas do mundo do crime e das drogas ao se dedicarem à criação equestre, revivendo uma paixão americana que vem desde o velho oeste.
Minha maior surpresa foi descobrir que, junto a atores profissionais, há não atores, pessoas que vivem aquele estilo de vida, escalados para conferir autenticidade à narrativa. A título de comparação, é um cinema semelhante a Nomadland ou Projeto Flórida, em como mistura o real e a ficção em uma retrato verossímil e repleto de autoridade.
Diferente dos filmes citados, a premissa de Alma de Cowboy merece menos elogios e recicla uma trama conhecida, como vista em Os Donos da Rua: um adolescente é enviado para amadurecer homem na companhia de um pai com quem tem mínima convivência. Na jornada, reencontra um amigo querido, mas envolvido no mundo do crime (vivido pelo ótimo Jharrel Jerome), e precisa escolher qual vida seguir - uma escolha previsível para quem já pôde conferir meia dúzia de filmes na vida.
A narrativa ainda procura construir uma metáfora óbvia de como Cole é um cavalo indomável, tropeçando no roteiro burocrático mesmo que sua fotografia naturalista seja belíssima e sua atmosfera, convincente. É um bom filme, mesmo que o clichê esteja misturado ao inesperado.
Com 83 minutos, o documentário consegue a façanha de distorcer a própria premissa do assassinato de Crystal, solucionado em razão da armadilha elaborada dentro da rede social MySpace, ou ao menos é isto que a narrativa defende. Isto porque, à medida que esta avança, a argumentação começa a dar mais e mais crédito ao trabalho policial de acareação das testemunhas, enquanto a criação do perfil falso serve só de ponto de continuidade para uma investigação que havia esbarrado em um muro.
A estrutura do roteiro do documentário, ciente de que o caso é mais simples do que parece, começa a introduzir elementos que, apesar de conferirem maior dimensão aos personagens (em particular, a mãe de Crystal), desviam o foco do argumento central sem que haja um maior aprofundamento nas questões trazidas: a produção de anfetamina, a briga de gangues ou mesmo os questionamentos morais provocados na criação do perfil de uma pessoa morta.
O artifício até serve de isca, mas a linha do documentário se arrebenta antes mesmo de qual o espectador a morda.
Atuado de forma irrepreensível - de Daniel Kaluuya a Lakeith Stanfield, de Dominique Fishback a Jesse Plemmons -, Judas e o Messias Negro é a história real que coloca uma interrogação na cabeça do público: se Fred Hampton, humana e historicamente, era muito mais interessante do que William O'Neal, então por que adotar o ponto de vista deste último em detrimento do primeiro e líder dos Panteras Negras? Se em O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford, a opção pelo elo frágil da relação servia como uma crítica à cultura da celebridade e idolatria da figura forte, neste caso evidencia um roteiro vulnerável sempre que estamos na presença de William O'Neal.
O malandro, infiltrado nos Panteras Negras pelo FBI para não ser processado pelos crimes cometidos, é até um personagem dramaticamente interessante: a alienação individualista em como aceita o papel de Judas é tanto um golpe na comunidade negra, quanto em si mesmo, já que municia os mesmos opressores que oprimem os seus. Isto é uma oportunidade para que Lakeith, ora acovardado, ora com sentimento de culpa, pareça começar um processo de transformação a partir da iluminação provocada pela palavras de Fred Hampton, antes de retornar ao mesmo restaurante onde toma ordens de Roy (outro que merecia melhor construção, já que aparenta ser um homem decente cego por J. Edgar Hoover).
Enquanto isto, o personagem vivido com intensidade por Daniel Kaluuya revela-se contraditório em como adota os discursos de Malcolm X - na parte mais conciliatória de sua trajetória - antes de entregar-se ao lado mais agudo da revolução, com a pregação da violência. A riqueza do personagem é sugerida, mas não ilustrada como mereceria, com momentos breves de conciliação com outros grupos minoritários - inclusive de brancos - oprimidos pela polícia, uma passagem no presídio, o relacionamento com Deborah.
A sensação é de que Fred merecia muito mais tempo de construção, enquanto William, bem, de Judas nós já conhecemos o bastante. Em contrapartida, a narrativa vale-se da fotografia bela, mesmo quando evidencia a feiura de uma comunidade abandonada, e da direção de Shaka King que obtém o melhor de seus intérpretes, mesmo quando o roteiro parece deixá-los na mão.
O diretor Pablo Larraín (Jackie, Ema e Spencer, a cinebiografia da Princesa Diana) realizou uma trilogia não oficial acerca da ditadura chilena iniciada com Tony Manero, e seguida de Post Mortem e No. Como instrumento de estudo de personagem, este thriller utiliza a obsessão do protagonista Raul em vencer um concurso de talentos como cover do personagem eternizado por John Travolta em Os Embalos de Sábado a Noite e a disposição dele em fazer o que for necessário - inclusive matar - para que seu sonho seja realidade.
Apesar de não enfrentar diretamente a ditadura ou somente fazê-lo em momentos esporádicos, o thriller emprega a trajetória de Raul como ilustração da negação da realidade através de um processo de alienação. Ao mesmo tempo, a ditadura autorizou o aparecimento de pessoas a/imorais iguais a Raul, com trejeitos sociopáticos em como não se importa com o sentimento alheio que se coloca diante de sua própria ambição: como artista e como homem também, já que Raul sofre de problemas de impotência.
A fotografia registrada em 16 mm e exibida em 35 mm cria o efeito de bater uma foto em média resolução e exibi-la em alta, ou seja, surgem imperfeições, asperezas e más-definições na imagem que auxiliam na ilustração do Chile daquele período: um país sujo, mal conservado e em ruínas, que vivia a mentira do milagre econômico longe da classe mais pobre. O combo opressão e desilusão vê-se presente na maneira niilista com que Raul enxerga a própria vida, como algo sem sentido, senão o concurso de talentos.
Assim, com a câmera muito perto do rosto deste homem mesquinho e cruel, pegamos carona no estudo de personagem e também o de uma sociedade mergulhada na convulsão social. O retrato não é simpático; provoca aversão e repulsa, sentimentos adequados se desejamos tirar a venda dos olhos e enxergar a realidade da forma como era, longe de um cinema escapista pela alienação. Um filme assustador sobre um homem idem.
Esta aventura com elementos apocalípticos de ficção-científica e terror é uma metáfora para o processo de amadurecimento do protagonista, um rapaz inseguro a ponto de congelar quando o instante exige que aja. Sua inércia é fruto de um momento traumático e trabalhada dentro de um contexto de criaturas mutantes e do romance por que vale a pena sair da toca e arriscar a própria vida.
Assim, é gratificante que a aventura não se resuma apenas a Joel contra criaturas criativamente desenhadas, como se saídas de um pesadelo de H. P. Lovecraft, mas enriqueça o roteiro simples, mas eficiente com apontamentos atuais sem politizá-los em demasia. A crítica à ação humana e à percepção preconceituosa com que enxerga, como se fossem monstros, animais que apenas estão em equilíbrio no habitat, está alinhada com um roteiro repleto de bons momentos, por exemplo, o bate papo com a altruísta Mav1s.
Enquanto isto, parecido com Eu sou Lenda ou Aniquilação, o design de produção transforma o cenário em uma selva em que a natureza assumiu de volta o que estava tomado por construções humanas. Ao mesmo tempo, os efeitos visuais indicados ao Oscar são funcionais e convincentes, mas nada surpreendente, já que criaturas digitais hoje em dia se tornaram mais comuns do que rapazes tentando, com um gesto de bravura, reconquistar a mulher amada.
Talvez esteja no amor o ponto que torna esta aventura bem mais do que só um compromisso divertido e escapista. Ou quem sabe seja o contexto em que vivemos hoje: pois, sem querer, Amor e Monstros é um retrato fidedigno da pandemia, em que um monstro (o Covid-19) tenta entrar nas colônias onde nós e os nossos se escondem e cuja comunicação se limita a um rádio amador. No caso de Joel, vivido com carisma por Dylan O'Brian, a solução está em corajosamente enfrentar o mundo lá fora; no nosso caso, porém, a alternativa está em esperar assistindo a aventuras iguais a esta.
E sabe de uma coisa: há MUITO tempo não torço para que um filme tenha uma continuação.
Ao desviar a atenção de Isabelle, uma paciente terminal de câncer, a Daryn, um garoto prodígio e privilegiado em uma família suburbana, o drama adolescente utiliza a doença dela como meio de transformação dele, a partir de uma inspiração pró-vida nascida da certeza de que o tempo se esgota com rapidez.
Sinto-me ofendido em como a vida de Isabelle seja coadjuvante da de Daryn: um adolescente mimado, que não reconhece o esforço de seu pai, repetindo sua pior característica ao impor uma rotina planejada e indesejada por Isabelle. Um rapaz de atos egoístas e não empáticos, mas que acredita serem altruístas, cujas ações são romantizadas pela narrativa a ponto de o símbolo maior de sua trajetória ser adotado por ela no terceiro ato.
Isso sem contar que Jaden Smith é o anti-Will Smith, pois no que seu pai é abundantemente carismático, Jaden é só aborrecido e cansativo. Um drama romântico, oposto ao que os adolescentes deveriam ter em mente nos temas propostos.
Gosto de histórias de casas mal assombradas românticas - o movimento artístico, não o gênero do cinema -, em que existe uma valorização do indivíduo, quando, para alguns, deveria haver medo e sustos. Adianto: The Little Stranger não proporcionará nem um, nem outro, mas uma discussão a respeito do egoísmo ressentido do Dr. Faraday. Isto é o que pode incomodar os espectadores: a criação de expectativas, mas também a companhia de um protagonista para lá de detestável.
Se vier de alma limpa, também adianto que o filme mantém um ritmo constante - monótono, portanto - como a personalidade de Faraday e também a vida vazia dos moradores de uma mansão que é somente a pálida memória do que um dia havia sido. É igual a um porta-retrato sujeito à depreciação, em que a fotografia se confunde com o mofo e as manchas provocadas pelo tempo. Assim são todos, exceto Faraday, que, como um Dorian Gray, opõe a aparência a uma podridão interior a partir da atuação a base de olhares amargos de Domhnall Gleeson.
O filme é valorizado pela ambientação opressiva e por um controle e calculismo demonstrados pela direção de Lenny Abrahamson (O Quarto de Jack e co-diretor de Normal People): nem mesmo os acontecimentos mais transformadores, dentre eles o clímax, são ilustrados de uma maneira destoante do todo, para assim melhor evidenciar a transformação interior de Faraday.
Afinal, o foco da narrativa não é só a deterioração da elite decadente, que tomou a frente de Faraday, em um momento que deveria ser seu, e que plantou a semente do rancor em seu coração. O que maltrata o protagonista é medir o tanto de energia negativa investiu em pessoas que não mereciam nada além do que o desprezo.
A forma como Sofia Coppola condena a futilidade da sociedade de aparências e ostentação de que os cinco jovens adultos de The Bling Ring participam é através do olhar de como a ideia de se tornaram subcelebridades, por algumas horas, é encenada a partir daquilo que consomem / furtam. Com a exceção de Marc, o protagonista que incorpora o processo de não pertencimento e isolamento, temas do cinema da diretora, todas as personagens são espécies de caricaturas (sobretudo a Nicki de Emma Watson) de tal modo que servem, por si só, como argumentos contra o meio social em que a própria Sofia Coppola está inserida.
Mesmo que seja natural desapegar-se a ponto de não se importar com aqueles personagens - cuja a rotina envolve o furto de celebridades, a postagem de fotos no Facebook e as baladas noturnas -, o trabalho de direção salta aos olhos em como Sofia Coppola cria interiores de casa despersonalizados e monotemáticos, e que contrastam com a vida de cores, iluminação e movimento que se abre diante daqueles adultos sem rumo na vida.
A diretora é também hábil em articular uma crítica social sem precisar apelar a palestra: as imagens e a montagem fazem tal papel, em como contrapõem a admiração de Marc em relação a Rebecca, com a dela diante de Lindsay Lohan. Isto fica mais evidente no momento em que ela pergunta: "Se não fôssemos mais amigos, você me roubaria", e ela lhe responde: "Eu jamais faria isso". O motivo não é pela amizade, mas porque Marc não teria nada a lhe acrescentar, como havia neste mundo de riquezas e futilidades de roupas, sapatos, bolsas, joias etc.
Assim, o filme de Sofia Coppola é um retrato da geração burguesa abandonada pelos pais (você quase não os vê, exceto Laurie, vivida por Leslie Hamm, que ensina suas filhas apenas as leis da atração do livro O Segredo) e criada a partir dos (des)valores e (a)moral vendidas por celebridades e "celebridades", para as quais a vida é totalmente diferente do que a dos meros mortais.
O diretor Jonathan Demme estabeleceu um padrão altíssimo para os thrillers policiais de assassinos em séries, raramente rivalizado (Se7en talvez), mas nunca superado. Isto porque este clássico não é somente sobre prender um criminoso, mas também sobre a estrutura sexista do meio onde Clarice se encontra: assediada através do olhar por aqueles que estranham a figura feminina dentro da polícia, humilhada por atos misóginos desde sua visita à cadeia até o aperto de mão final, não é a toa que Clarice estabelece uma relação bipolar com Hannibal Lecter: o psiquiatra é o único que parece reconhecê-la como uma mulher capaz, sem subestimá-la, nem sexualizá-la.
Em torno desse relacionamento criado por atuações memoráveis de Anthony Hopkins e Jodie Foster, a direção estabelece a dinâmica de closes que embeleza uma história que, na essência, é pútrida e feia. Com uma atenção incomum a seus personagens, Jonathan Demme coloca-os encarando a cama, penetra por detrás do olhar e alcança seus espíritos, mesmo aqueles mais escondidos como o de Lecter: a criação de Thomas Harris é um destes personagens imensos, que as páginas dos livros não poderiam conter até encontrar em Hopkins o intérprete capaz de encarnar as nuances de um gênio canibal, apto a hipnotizar (igual a uma naja) quem quer que seja antes do bote.
Mesmo que o clássico tenha envelhecido mal, ao menos em relação à questão da transfobia (em uma questão igual a de Vestida para Matar), é inegável que a construção inteligente de seus eventos, a maneira com que despista o espectador e a tensão que proporciona em seus momentos mais agudos o transformou na narrativa a ser superada em se tratando de assassinos em séries. Obrigatório!
É sempre interessante quando um suspense é nervoso o suficiente que dificulta o espectador de pensar a respeito dos buracos existentes na estrutura do roteiro. "Fuja" tem elementos em comum com "The Act" - a premissa ou a cena dentro de um cinema -, mas enquanto a minissérie era articulada em torno de uma história real e isto diminuía as críticas ao roteiro com relação aos acontecimentos narrados, o filme não tem a mesma sorte.
Então para cobrir as inconsistências, o filme aposta na tensão como válvula de escape, com cenas que impressionam pela tenacidade e criatividade de Chloé em escapar da própria mãe, nem que para isto precise por a vida em risco. (Quando a cena termina e você respira, tem a oportunidade para se perguntar por que a adolescente não procurou ajuda na vizinhança em vez de ir em direção à autoestrada, por exemplo).
Além do mais, o filme tem omissões essenciais, como não esclarecer se as cicatrizes nas costas de Diane eram decorrentes de autoflagelo ou de alguma forma de abuso, o que modificaria a percepção do espectador em relação à personagem. Mesmo assim, Sarah Paulson - que não tem culpa de haver vivido um papel parecido em "Ratched" - esforça-se em tornar Diane uma mulher com ações monstruosas, mas que não provoca a aversão instantânea. Há uma relação compassiva criada sob o roteiro que enriquece a personagem, mesmo quando é apenas plana - sobretudo se pensarmos no intervalo de 17 anos em que, bem, quem viu entende.
Em resumo? Um suspense eficiente que aproveita seus 80 minutos para mascarar, com apreensão, o roteiro superficial e, ao chegar no desfecho, despista de novo com o desfecho satisfatoriamente cruel.
No entorno dos parques temático do complexo da Disney, nos hotéis de beira de estrada, existe uma realidade produto da crise financeira americana, que empurrou as famílias ao empobrecimento e a buscar, em moradias provisórias, a ideia de lar. Nesta realidade, a "magia" que existe é fruto da criativa ociosidade de Moonee, criança de 6 anos, no auge da ingenuidade, incapaz de discernir o certo do errado e cópia carbono dos desvalores de Hally, sua jovem mãe solo.
Não duvidamos do amor de Hally por Moonee, mas de sua criação irresponsável que termina por provocar consequências invisíveis e preocupantes na formação de sua filha. Seu olhar inocente serve de ponto de vista do espectador, mascarando detrás de cores quentes aquela realidade bruta, na estética que o diretor de fotografia chamou de "sorvete de mirtilo com calda azeda". Somos privados de enxergar a realidade ante a dificuldade infantil em processar as informações ao redor: a ida à assistência social revela verdades que Moonee não absorve, embora reconheça a importância do que está ocorrendo.
Com isto, a narrativa de Sean Baker penetra na camada social mais miserável dos Estados Unidos: um cenário fértil para o aparecimento de diversos problemas sociais camuflados na fantasia por que a Flórida é conhecida. A realidade é típica de uma distopia, com a presença frequente de helicópteros que evidenciam a distância e a invisibilidade das camas sociais mais altas do mundo onde habita a Moonee e seus amigos. Além do mais, toda a sequência final, que destoa totalmente da forma do filme até então, serve como metáfora de como o desejo do oprimido é em fomentar a opressão que lhe sufoca (para quem enxerga na Disney um símbolo do capitalismo agressivo e produtor de indignidades sociais).
Municiado de uma narrativa poderosamente crítica e de um realismo admirável, capaz de conferir autenticidade e espontaneidade a todos os personagens (muitos dos quais, atores amadores ou figurantes que estavam só de passagem), Sean Baker ainda consegue extrair o que há de melhor em seu elenco infantil, sobretudo Brooklynn Prince (o maior destaque da narrativa). Já Willem Dafoe combina seriedade, doçura na permissividade e melancolia ao constatar que sabe que trabalha onde sonhos morrem precocemente (ou já morreram). Um cenário de cores vibrantes, decorações exageradas e títulos chamativos que abre as portas à pobreza norte-americana.
Steven Spielberg estabeleceu o altíssimo padrão das fantasias infanto-adolescentes para toda família que poderia ser rivalizado e dificilmente superado. A história do garotinho que tromba com um extraterrestre e tenta ajudá-lo a retornar ao seu planeta natal inspirou gerações (olha eu aqui!), porque seus valores são atemporais e universais, ainda mais hoje em dia com a crise migratória. É claro, E. T. não deseja permanecer na Terra, mas ir embora dela. Ainda assim, o contexto contemporâneo ajuda a ressignificar a importância da generosidade e aceitação que vem de uma criança, no lugar do sistema opressor e excludente.
De todo modo, o clássico de Steven Spielberg envelheceu melhor do que eu esperava: seus valores familiares são sólidos como concreto, e a dinâmica entre os três filhos apenas revela os valores passados pela mãe Mary. Em vez de perder tempo com brigas e rixas entre os irmãos, Spielberg valoriza o afeto e a cumplicidade entre eles como a mola impulsionadora da narrativa, assim também servindo de amparo para construir a dinâmica entre Elliot e E. T., conectados telepaticamente para sentir e vivenciar um ao outro, em um momento em que nem se falava em empatia.
Além do mais, o Steven Spielberg dos anos 80/90 não subestimava seu público-alvo, mas o desafiava: além de enquadrar a narrativa à altura do olhar de suas crianças, ele também utiliza sombras como alternativa para: esconder o design do alienígena até o momento oportuno (assim, disfarçando os efeitos práticos) e ainda para uma aura de mistério que separa crianças/jovens bondosos de adultos pragmáticos, culminando na cena de uma invasão de "astronautas".
É um filme atemporal que reforça valores de bondade, amizade e gentileza em um mundo carente deles, além de ser sensível sem precisar ser piegas.
Não importa o quão relevante seja o tema debatido em um filme, se a arte de contar uma história e a forma cinematográfica não forem bem trabalhadas, a narrativa evidenciará fragilidades que comprometerão o resultado final. Isto é mais verdade em um documentário denúncia que pretende revelar a indústria pesqueira pelo que é em sua relação predatória com a fauna e flora aquáticas, o aquecimento global e o empobrecimento dos povos.
O trabalho de Ali Tabrizi é apaixonado e também narcisista, de muitas maneiras. A mais óbvia está em como se enxerga como um sujeito que está realizando uma revelação bombástica, enquanto arrisca a própria vida, quando documentários passados já produziram as mesmíssimas conclusões que agora são recicladas como novidade: o vencedor do Oscar A Enseada (2009) expôs ao mundo a chacina de golfinhos no Japão; Oceanos de Plástico (2016) debateu a poluição dos oceanos, dentre elas as cordas de pesca; Em Busca dos Corais (2017) comentou sobre o embranquecimento da flora aquática para a manutenção dos ecossistemas, da temperatura dos oceanos e da própria existência.
Se Ali Tabrizi houvesse admitido a existência desses documentários antes de pegar a câmera e viajar (como um apaixonado por oceanos, deveria conhecê-los), talvez pudesse se concentrar em buscar mais evidências de estatísticas e estudos apresentados (Ali reconhece que precisaria se aprofundar mais em certo momento), em reunir mais informações de entrevistados ou em ser mais leal com o espectador (como expor em qual contexto uma CEO pediu para não ser gravada). Além desse narcisismo, que beira uma ignorância cinematográfica, Ali é ingênuo em impor o vegetarianismo como a única alternativa para solucionar os problemas da indústria pesqueira: quer acabar com a pesca, não coma peixes; ou seja, quer acabar com o capitalismo, não compre mais.
Como vegetariano e cinéfilo, o documentário me machucou: ver animais indefesos sofrendo nas mãos de homens cruéis é de virar o estômago, bem como a necessidade de apelar a este recurso a cada momento. A denúncia está a frente de nossos olhos, e concordo com muito do que Ali Tabrizi apresentou; porém, não é esta argumentação infantil e excludente que mudará o cenário em que vivemos.
Mais sinistro do que aterrorizante ou assustador, este terror brinca com teorias da conspiração relacionadas à estranha manifestação sonora da ilha remota onde mora Harry, antes de iniciar um estudo a respeito da loucura que o envolve. Com uma família rompida, depois da morte da mãe e agora do pai, restam aos 3 irmãos decidir o que fazer com a casa que herdaram e o futuro de Harry, que não tem norte na vida.
Ao mesmo tempo em que as relações fraternais começam a ficar mais frágeis e a paciência de Audry, a irmã mais velha e responsável, começa a se esgotar, incidentes misteriosos começam a acontecer ao entorno de Harry, com uma inspiração em Vampiros de Almas (que produziu as refilmagens Os Invasores de Corpos). Ao invés de sustos ou criaturas, a dupla de diretores Kevin e Matthew McManus investe na sugestão, levando o espectador a questionar se o que está acontecendo com Harry está apenas em sua cabeça ou se é influência de algo inexplicável.
Não vou entrar em detalhes, mas existem muitas decisões estilísticas inteligentes em termos de fotografia e montagem, como a associação do atropelamento de um cervo com a aceleração de um barco em alto mar. Além do mais, quando o filme entra no território de Além da Imaginação, faz isto ciente de que não poderá oferece respostas, mas ao menos sensações, e a explicação deixada do motivo por que os eventos estão acontecendo é bastante para preencher algumas lacunas deixadas.
Até porque o filme não propõe respostas, não as que queremos pelo menos e sim aquelas ao alcance daquele grupo de personagens: a dupla prefere a degradação física e psíquica do protagonista, as consequências que isto trará à família e o caráter opressivo e hostil que representa a ilha. Todo o restante fica a cargo do público (embora o diálogo resgatado de Audry seja claro em explicar o que pode estar acontecendo), mesmo porque se nem para todas as questões da vida temos resposta, por que esperar que os filmes tenham. Prefiro ficar com o sinistro incômodo e desconfortável.
Apesar do desejo de rever Gravidade, alimentava o receio de que assistir em casa exporia as fraquezas de um trabalho virtuoso e que nasceu para os cinemas, preferencialmente nas salas IMAX, 3D e áudio Dolby Atmos, uma tecnologia que manipula o som em todas as direções. Na realidade, rever Gravidade proporcionou analisar melhor as virtudes da narrativa e como a exuberância técnica está alinhada com a história simples embora poderosa de ajudar a cientista Ryan Stone a readquirir o prazer de viver.
Não é a nuvem de detritos que viaja na sua direção, nem a destruição da estação espacial com o empurrão ao hostil espaço que são os inimigos, é a incapacidade de se libertar das amarras do luto pela filha de 4 anos, morta em um acidente estúpido, como ela mesma define. A narrativa exibe esse processo de renascimento diante da tragédia com base na alegoria da sobrevivência onde a vida parece impossível. A cada dificuldade posta em seu caminho, Ryan descobre uma forma de contorná-la para seguir em frente, o que não é sinônimo de esquecer a filha, apenas aceitar a morte e firmar os pés no chão.
E falar do filme sem mencionar Sandra Bullock é um pecado, já que a atriz abraça a dor da personagem e também o desejo de renascer em vida: sua respiração ofegante, sua voz embargada, sua obstinação em sobreviver, todos estes elementos compõem a personagem cujo conflito está em aprender a se soltar. O diretor Alfonso Cuarón busca o realismo no espaço, substituindo a ausente propagação de som no vácuo pela trilha sonora de Steven Prince e transformando o set de filmagem em uma reprodução fidedigna do espaço.
Enquanto isto, promove cenas de ação espetaculares divorciadas das expectativas do espectador para apresentá-lo a algo que sempre quis ver, mas nunca teve a oportunidade: uma tensão muda, uma câmera que valseia com liberdade pelo espaço como se também desapegada da gravidade e uma personagem aterrorizada e determinada, cuja dor é acessível mesmo a milhões de quilômetros de distância.
O diretor dinamarquês Thomas Vinterberg nunca se acovardou em enfrentar temas polêmicos: em A Caça, discutia falsa acusação e o cancelamento muito antes de serem temas contemporâneos, mas tomando como base o alegado abuso sexual denunciado por uma garotinha de 6 anos. Agora, em Druk, introduz o consumo de álcool como uma alternativa para que 4 homens enfrentem a crise de meia idade e reencontrem os jovens que eram um dia. Neste processo, o diretor procura evitar apologias ao alcoolismo - demonstrando a consciência de evitar que os personagens dirijam sob influência -, porém celebra o álcool como libertação das amarras sociais.
O elenco masculino é praticamente o mesmo de A Caça, encabeçado de novo por Mads Mikkelsen: seu estado de espírito sombrio é atiçado pelo excesso de luz na sala de aula onde enrola lições de história, sem conseguir a atenção dos alunos, igualmente como não é mais visto como homem por sua esposa, mas talvez apenas um colega de casa que é o pai de seus filhos. Os problemas de seus amigos - professores também, mas de disciplinas diferentes - não são parecidos, mas têm a mesma raiz na frágil masculinidade do cachorro que precisa de ajuda para fazer xixi (para utilizar um exemplo do filme).
A solução de ingerir determinada quantidade de álcool obviamente não é nem remotamente adequada para estes homens (terapia, sim), mas se apresenta como celebração de algo perdido. No processo, Vinterberg afasta-se das consequências do excesso que não sejam tragicômicas - a busca por um bacalhau fresco no supermercado é um de meus momentos preferidos -, simpatizando com seu quarteto a partir de um jogo de planos solares contrapostos por outros mais na escuridão para revelar o que acontece quando o efeito entorpecente passa.
Ao mesmo tempo, Vinterberg não é hipócrita: ele sabe que o álcool existe, que jovens o consomem em excesso e que a Dinamarca tem uma cultura em torno disto. Retrata também as consequências do consumo desgovernado, enquanto enfatiza a moderação e aspecto celebratório na inesquecível cena final: uma dança de libertação em um momento significativo de tantas formas (alegria, tristeza, vitória) ao protagonista.
Por estar tão resoluta da eutanásia a fim de não sofrer com as sequelas de uma doença degenerativa, Lily (Susan Sarandon) apenas desabrocha na narrativa através dos olhares mais profundos da atriz que comunica uma saudade da vida diante de seus dias finais. A personagem é relativamente plana; a atriz, não. Mas nem todo mundo tem o talento de Susan no elenco desta refilmagem de Coração Mudo, drama dinamarquês de 2014.
Assim, enquanto os membros da família aceitam, inconformados ou combativos, a decisão da matriarca, começam a ser desenrolados e desenvolvidos os temas típicos conhecidos do cinema independente, quando a família começa a se revelar desfuncional: a neta Anna, vivida por Mia Wasikowska, é bipolar e tentou cometer suicídio, então sua percepção da morte da avó é misturada com a amargura da própria tentativa de tirar a própria vida; a filha Jennifer, interpretada por uma Kate Winslet estranhamente acomodada na personagem, vive um estereótipo da mulher/esposa/mãe distante dos sentimentos dos outros e de si mesma a ponto de não perceber coisas óbvias diante de si e de entender erroneamente aquilo que vê com clareza. Quanto ao restante do elenco, Sam Neill, Rainn Wilson e Lindsay Duncan não tem a fazer com seus personagens senão acompanhar o ritmo da narrativa.
A trama é açucarada sem parecer sê-la, introduzindo sentimentalismo na recusa em adotar os elementos característico do típico melodrama, ao rejeitar as lágrimas, os gritos, a expressividade emocional diante da perda de um ente querido. Falta-lhe algo, inclusive no conflito tolo e descartável introduzido no terceiro ato, que só é compensado na cena final, onde pude sentir alguma emoção.
A direção de Roger Michell é inteligente, mas fria: as composições são incômodas, como se esperaria desta reunião familiar, e os personagens estão distantes dentro do quadro ou até divididos com o recurso de anteparos. Mas o uso inteligente da forma cinematográfica não socorre a narrativa naquilo que mais lhe falta: calor humano.
Existe muito a ser debatido e reconsiderado depois de assistir a este filme. A ideia de um faroeste contemporâneo é a primeira coisa que vem em mente, quando um xerife aposentado é obrigado a reconciliar-se com a perda do filho único e a necessidade de reagrupar sua família, depois que a nora casou-se com o filho de uma família de criminosos e levou consigo seu neto. O velho oeste contemporâneo se transformou no interior, à margem das fazendas, onde a lei da força coloca de joelhos a polícia à vontade dos Weboys. A ideia do homem pacato obrigado a agir com violência permanece intacta, e denota a sociedade estanque nessas localidades.
Dentro desse faroeste, existe também um thriller de justiça encenado como se vingança fosse: um que exige do cansado e rabugento Kevin Costner tomar as rédeas do próprio destino para reunir sua família, o que o colocará em confronto direto com os Weboys, encabeçados por sua poderosa matriarca (a sempre excelente Lesley Manville).
Entretanto, a violência não é o foco; a família, sim. Como esta é criada, despedaçada e reunida a partir de uma análise que enxerga o lado dos heróis (Costner e Diane Lane) e também dos vilões (os Weboys). Igual aos primeiros, existem laços fortes que unem uma família construída em torno de valores imorais e criminosos. O grande acerto da direção de Thomas Bezucha está em reconhecer faces de uma mesma moeda, aumentando a ameaça narrativa à medida que o tempo avança e não se pode mais voltar atrás.
Deixe-o Partir não se apavora de suas consequências traumatizantes - eu mesmo me coloquei pensando em como seria a vida após o filme e a violência -, mas as insere em um retrato do faroeste contemporâneo em que o monopólio da justiça passa do Estado à família. Não porque esta assim deseja, apenas porque assim tem que ser. Aí está a beleza melancólica do filme.
Sem Remorso
3.0 283 Assista AgoraJá falei da minha dificuldade em escrever sobre filmes que não me empolgam, mas também não desagradam. São filmes que existem provocando o total de zero sentimentos, mas somente preenchem tempo e entretém dentro de sua proposta. Sem Remorso é mais um destes casos, trazendo Michael B. Jordan interpretando o segundo personagem mais popular dos livros de Tom Clancy: John Kelly. O primeiro seria Jack Ryan.
No papel principal, Michael B. Jordan não tem muito a fazer senão exercitar os músculos propriamente ditos e conferir credibilidade a cenas de ação bem produzidas (em sua maioria), mas nenhuma tremendamente original, com exceção daquela que se passa dentro de um avião submerso. Já em matéria de exercício dos músculos de atuação, o ator até tenta injetar intensidade na dor, porém o próprio roteiro cuida de abreviar este instante para agilizar a vingança.
Diferente de John Wick, que parece ter sido o ponto de partida do diretor Stefano Sollima (de Sicário: Dia do Soldado), a narrativa é menos centrada nos set pieces de ação e mais na ressurreição da Guerra Fria (o conflito entre Estados Unidos e União Soviética / Rússia iniciado logo após o término da 2ª Guerra Mundial). É uma mistura do novo - com direito a cenas coreografadas para revelar a eficiência de John Kelly - e do velho com twist novo - pois a ideia de trazer os russos como antagonistas é só um subterfúgio para uma daquela reviravoltas óbvias e que podem ser previstas logo no segundo ato.
Guy Pearce e Jamie Bell têm esforço mínimo para construir seus personagens, enquanto Jodie Turner-Smith destaca-se mais do que Michael B. Jordan porque sua atuação é muito mais convincente no olhar do que a do protagonista. Mesmo assim, para quem busca 100 minutos de ação, que balança entre a velha e nova guarda, pode funcionar como passatempo. Ah, durante os créditos iniciais, há uma cena extra que sugere que este é apenas o primeiro passo de uma franquia.
O Informante
3.3 121Consciente de ser um exemplar do cinema de ação / crime, O Informante tem como trunfo o elenco relevante: Joel Kinnaman, Rosamund Pike, Ana de Armas, Clive Owen e Common são como chamarizes de uma narrativa limitada pelo lugar-comum. Joel é o anti-herói com imperativos éticos e morais que o obrigam a fazer a coisa certa quando a situação exigir-lhe; Ana é a esposa disposta a, em nome do amor, desobedecer o pedido do marido; Rosamund é a agente cujos valores não são ofuscados por sua ambição; Clive é o representante do Estado e age friamente como tal; e Common é o policial antissistema e disposto a encontrar a verdade, qualquer que esta seja.
Todos estes atores estão a disposição de um roteiro consciente das limitações e clichês do subgênero, mas que está disposto a cair em cada um deles mesmo assim, na esperança de que a ação brutal e violenta compense o investimento emocional em uma jornada cujo resultado é previsível.
A aposta é certeira: se não rende um grande filme, ao menos produz um passatempo divertido, com a eleição (igual Sem Remorso), de um inimigo comum: o Estado, o que atenua a visão xenofóbica que o cinema americano tem do resto do mundo. Quando não são árabes, mexicanos ou russos, são poloneses os traficantes, com direito a um personagem que gosta de sorrir com os dentes amarelados a fim de ilustrar quão malvado é.
Nada disso importará muito no final das contas: o filme é eletrizante, sobretudo quando se aproxima do final; Joel Kinnaman tem muito do estilo Tom Cruise de atuação ao traduzir na linguagem corporal as exigências físicas da ação; o roteiro tem méritos em investir tempo em alternativas inusuais, cortando fora a gordura, mesmo que a duração não pareça refletir isto em razão de haver muitas peças de xadrez no tabuleiro do filme.
É um passatempo mais ou menos eficaz para quem gosta do gênero, com a expectativa de continuações.
Vozes e Vultos
2.6 408 Assista AgoraExistem méritos na adaptação do livro All Things Cease to Appear, de Elizabeth Brundage, que não resistem à estrutura enrolada do roteiro que não parece enxergar suas limitações. Eu até admiro a finalidade do terror como a forma de debater o abuso doméstico, praticado por um sujeito que parece inofensivo de um jeito patético de ser, até revelar quem verdadeiramente é. Lembrou-me Bela Vingança, em como os estereótipos do abusador são atualizados para o homem médio, o que obriga reanalisar nossos pré-julgamentos.
Entretanto, os problemas iniciam com James Norton e Amanda Seyfried, que não aparentam estar a vontade nos papéis, a ponto de suas atuações comprometerem o envolvimento com os personagens e o desenvolvimento deles - também previsível, assim que percebemos qual a lógica do roteiro.
Por não serem diretores habituados ao terror, Shari Springer Berman e Robert Pulcini até oferecem possibilidades incomuns, com a presença espiritual menos ameaçadora do que a das pessoas reais. Entretanto, talvez até por inexperiência, a dupla repita alguns clichês de casa mal assombrada, como aparições imprevisíveis, despertares noturnos e a sessão espírita de praxe neste tipo de filme, que nada acrescentam a exceção de estenderem a duração para inexplicáveis 2 horas.
O terror não assusta, já que não é o propósito da narrativa, mas pouco faz para explorar os trabalhos de Emanuel Swedenborg, escrito do fim do século XVIII e que explorou o espiritismo de forma científica, e nem tenta ir além da superfície da masculinidade frágil de George Claire e do abuso vivido por Catherine e a importância de sororidade, nesta e na outra vida.
Radioactive
3.5 223Se fosse para ler um artigo do Wikipédia sobre Marie Curie, eu iria para o Wikipédia, pois esta biografia sequer se esforça em entrar na mente de uma das mais importantes cientistas de todos os tempos e se contenta em transformar sua vida em uma série de acontecimentos tratados com a superficialidade que o tempo lhes proporciona.
Rosamund Pike procura encontrar a motivação (óbvia) na composição de Marie Curie como uma mulher que desafiou as regras acadêmicas que não davam o devido valor a sua ciência somente em razão do machismo. É uma abordagem previsível, mas que poderia render bons frutos caso o roteiro se decidisse em percorrer esta linha narrativa, o que não acontece. Assim, a atuação de Rosamund, que já não está entre suas melhores, perde-se em uma narrativa que logo abre mão disto em torno de uma abordagem inconsistente.
Durante um período, o espectador testemunha o romance com Pierre Curie, que viria a se tornar seu marido, em cenas solares e bucólicas e que contrastam com o interior do laboratório onde Marie identificaria 2 elementos químicos não descobertos e a radioatividade - numa explicação visual e breve o bastante para ser decepcionante. Depois, acompanharia as dificuldades dela na docência e a utilização da radioatividade ao bem da medicina. É tudo tão apressado que Anya Taylor-Joy, que participa da narrativa, mal tem tempo de construir e desenvolver sua personagem senão através de diálogos expositivos.
Já a direção de Marjane Satrapi é desinteressante e indecisa: não sabe se quer humanizar ou mitificar Marie Curie; quando humaniza, é careta (a cena dela e Pierre correndo nus em direção ao rio antes de se deitarem na relva é das mais embaraçosas que vi no ano); quando mitifica, não alcança a grandeza de seu trabalho colocando-a como alguém insegura das próprias realizações. Tantos senões justificam por que o filme, exibido no Festival de Toronto em 2019, caiu fora da temporada de premiações daquele ano em busca de um período em que pudesse ser esquecido.
Estados Unidos Vs Billie Holiday
3.3 150 Assista AgoraEu não entendo o desejo obsessivo de alguns diretores em encaixotar uma porção relevante da vida de uma pessoa em algo além de 2 horas. Isto se repete mais uma vez com a biografia da cantora de jazz Billie Holiday, em que o experiente diretor Lee Daniels (Preciosa, O Mordomo da Casa Branca) abraça o período que antecede sua prisão (em 1947) e se estende até os dias de sua morte (em 1959), em uma estrutura frouxa e mal planejada, para tentar mergulhar na cabeça de uma mulher que transformou a violência sexual e racial em composições atemporais.
Se a premissa revela a superficialidade da abordagem convencional da narrativa, tudo fica evidente quando Lee Daniels divide a atenção devotada à protagonista com seus coadjuvantes, por exemplo Jimmy Fletcher, o agente negro do FBI arrependido por ter sido joguete de uma organização com víeis racista, contra sua própria comunidade. Ao menos, Jimmy teve a sorte que faltou aos demais personagens e que aparecem e desaparecem convenientemente com a trama, que, para piorar, adotar uma estrutura preguiçosa contada em retrospecto a partir de uma entrevista da cantora a Reginald Lord Devine.
Além disto, que narrativa cafona e contraditória! Lee Daniels investe em enquadramentos artificiais que se aproximam do rosto de Jimmy Fletcher demonstrando um encantamento por Billie Holiday, a fim de que este sirva como o olhar do espectador diante do ícone. Instantes iguais a este são colocados em oposição a outros intensos e brutais, para capturar os relacionamentos abusivos de Billie e ainda a política de linchamentos no sul americano. O resultado nem engrandece a biografada, cuja música é um pano de fundo tímido, nem estimula debates políticos, senão na cena em que Billie é impedida de entrar em um elevador social por causa da cor da pele por um ascensorista também negro.
Quem salva a biografia de ser um desperdício é a atuação de Andra Day, praticamente uma estreante a frente das câmeras. Vivaz, Andra revela o brilho e glamour de uma estrela autoindulgente, porém que sabia retirar as pessoas da inércia pela arte; atrás das cortinas dos palcos, a atuação é ainda melhor, com momentos de vulnerabilidade colocados ao lado de outros de força de vontade e um certo egoísmo de uma mulher contraditória, mas apaixonante, que merecia um filme muito, MUITO melhor.
The Forty-Year-Old Version
4.0 31 Assista AgoraPara sobreviver e ser relevante e inspiradora, a arte precisa de mais vozes, diferentes tipos de vozes, que enxergam outros empregos da linguagem e promover formas inéditas de identificação e empatia. A estreia de Radha Blank é em frente e atrás das câmeras: na direção e roteiro, Radha expõe uma crise de identidade contemporânea que se perpetua até os 40 anos e tem, em si própria, seu melhor exemplo.
Uma dramaturga teatral promissora, Radha agora está na encruzilhada de quem precisa continuar o trabalho anterior sem perder a voz autoral, quer dizer, sem precisar realizar concessões para tornar seu comentário social e racial mais palatável ao público médio - composto pela elite branca que é o alvo da crítica que tece. Parada, como quem deita e encara o teto sem saber quais serão os passos seguintes, Radha redescobre-se em uma paixão adolescente: o rap. A reinvenção está também no foco da narrativa que tenta demonstrar não ser tarde demais para uma mudança de rumo.
A forma como isto é feita é por uma comédia ao estilo de Frances Ha ou até mesmo Fleabag, respeitadas as diferenças entre Greta, Phoebe e Radha, que, como mulher negra nos 40, tem percepções diferentes da vida do que aquelas. O preto & branco é escolhido para retratar os contrastes entre a vida em uma metrópole que despersonaliza e tira o brilho dos figurinos de Radha, servindo também como mecanismo de transformação tão logo este readquira o controle do próprio caminho.
É um filme vitrine, digamos assim. Um convite para conhecermos a artista Radha de ângulos múltiplos, inclusive do alter-ego na trama; um convite também para sairmos da bolha cotidiana e conhecermos uma história que não conheceríamos sem ajuda do cinema.
Alma de Cowboy
3.3 31 Assista AgoraFilmes podem ser aventuras sociológicas, uma janela aberta em direção a uma parte da sociedade que nem imaginávamos existir. Como este tipo de retrato, Alma de Cowboy é oportuno em exibir a comunidade negra da Filadélfia, na qual alguns moradores fugiram das estatísticas do mundo do crime e das drogas ao se dedicarem à criação equestre, revivendo uma paixão americana que vem desde o velho oeste.
Minha maior surpresa foi descobrir que, junto a atores profissionais, há não atores, pessoas que vivem aquele estilo de vida, escalados para conferir autenticidade à narrativa. A título de comparação, é um cinema semelhante a Nomadland ou Projeto Flórida, em como mistura o real e a ficção em uma retrato verossímil e repleto de autoridade.
Diferente dos filmes citados, a premissa de Alma de Cowboy merece menos elogios e recicla uma trama conhecida, como vista em Os Donos da Rua: um adolescente é enviado para amadurecer homem na companhia de um pai com quem tem mínima convivência. Na jornada, reencontra um amigo querido, mas envolvido no mundo do crime (vivido pelo ótimo Jharrel Jerome), e precisa escolher qual vida seguir - uma escolha previsível para quem já pôde conferir meia dúzia de filmes na vida.
A narrativa ainda procura construir uma metáfora óbvia de como Cole é um cavalo indomável, tropeçando no roteiro burocrático mesmo que sua fotografia naturalista seja belíssima e sua atmosfera, convincente. É um bom filme, mesmo que o clichê esteja misturado ao inesperado.
Por Que Você Me Matou?
2.9 32Com 83 minutos, o documentário consegue a façanha de distorcer a própria premissa do assassinato de Crystal, solucionado em razão da armadilha elaborada dentro da rede social MySpace, ou ao menos é isto que a narrativa defende. Isto porque, à medida que esta avança, a argumentação começa a dar mais e mais crédito ao trabalho policial de acareação das testemunhas, enquanto a criação do perfil falso serve só de ponto de continuidade para uma investigação que havia esbarrado em um muro.
A estrutura do roteiro do documentário, ciente de que o caso é mais simples do que parece, começa a introduzir elementos que, apesar de conferirem maior dimensão aos personagens (em particular, a mãe de Crystal), desviam o foco do argumento central sem que haja um maior aprofundamento nas questões trazidas: a produção de anfetamina, a briga de gangues ou mesmo os questionamentos morais provocados na criação do perfil de uma pessoa morta.
O artifício até serve de isca, mas a linha do documentário se arrebenta antes mesmo de qual o espectador a morda.
Judas e o Messias Negro
4.1 516 Assista AgoraAtuado de forma irrepreensível - de Daniel Kaluuya a Lakeith Stanfield, de Dominique Fishback a Jesse Plemmons -, Judas e o Messias Negro é a história real que coloca uma interrogação na cabeça do público: se Fred Hampton, humana e historicamente, era muito mais interessante do que William O'Neal, então por que adotar o ponto de vista deste último em detrimento do primeiro e líder dos Panteras Negras? Se em O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford, a opção pelo elo frágil da relação servia como uma crítica à cultura da celebridade e idolatria da figura forte, neste caso evidencia um roteiro vulnerável sempre que estamos na presença de William O'Neal.
O malandro, infiltrado nos Panteras Negras pelo FBI para não ser processado pelos crimes cometidos, é até um personagem dramaticamente interessante: a alienação individualista em como aceita o papel de Judas é tanto um golpe na comunidade negra, quanto em si mesmo, já que municia os mesmos opressores que oprimem os seus. Isto é uma oportunidade para que Lakeith, ora acovardado, ora com sentimento de culpa, pareça começar um processo de transformação a partir da iluminação provocada pela palavras de Fred Hampton, antes de retornar ao mesmo restaurante onde toma ordens de Roy (outro que merecia melhor construção, já que aparenta ser um homem decente cego por J. Edgar Hoover).
Enquanto isto, o personagem vivido com intensidade por Daniel Kaluuya revela-se contraditório em como adota os discursos de Malcolm X - na parte mais conciliatória de sua trajetória - antes de entregar-se ao lado mais agudo da revolução, com a pregação da violência. A riqueza do personagem é sugerida, mas não ilustrada como mereceria, com momentos breves de conciliação com outros grupos minoritários - inclusive de brancos - oprimidos pela polícia, uma passagem no presídio, o relacionamento com Deborah.
A sensação é de que Fred merecia muito mais tempo de construção, enquanto William, bem, de Judas nós já conhecemos o bastante. Em contrapartida, a narrativa vale-se da fotografia bela, mesmo quando evidencia a feiura de uma comunidade abandonada, e da direção de Shaka King que obtém o melhor de seus intérpretes, mesmo quando o roteiro parece deixá-los na mão.
Tony Manero
3.4 86 Assista AgoraO diretor Pablo Larraín (Jackie, Ema e Spencer, a cinebiografia da Princesa Diana) realizou uma trilogia não oficial acerca da ditadura chilena iniciada com Tony Manero, e seguida de Post Mortem e No. Como instrumento de estudo de personagem, este thriller utiliza a obsessão do protagonista Raul em vencer um concurso de talentos como cover do personagem eternizado por John Travolta em Os Embalos de Sábado a Noite e a disposição dele em fazer o que for necessário - inclusive matar - para que seu sonho seja realidade.
Apesar de não enfrentar diretamente a ditadura ou somente fazê-lo em momentos esporádicos, o thriller emprega a trajetória de Raul como ilustração da negação da realidade através de um processo de alienação. Ao mesmo tempo, a ditadura autorizou o aparecimento de pessoas a/imorais iguais a Raul, com trejeitos sociopáticos em como não se importa com o sentimento alheio que se coloca diante de sua própria ambição: como artista e como homem também, já que Raul sofre de problemas de impotência.
A fotografia registrada em 16 mm e exibida em 35 mm cria o efeito de bater uma foto em média resolução e exibi-la em alta, ou seja, surgem imperfeições, asperezas e más-definições na imagem que auxiliam na ilustração do Chile daquele período: um país sujo, mal conservado e em ruínas, que vivia a mentira do milagre econômico longe da classe mais pobre. O combo opressão e desilusão vê-se presente na maneira niilista com que Raul enxerga a própria vida, como algo sem sentido, senão o concurso de talentos.
Assim, com a câmera muito perto do rosto deste homem mesquinho e cruel, pegamos carona no estudo de personagem e também o de uma sociedade mergulhada na convulsão social. O retrato não é simpático; provoca aversão e repulsa, sentimentos adequados se desejamos tirar a venda dos olhos e enxergar a realidade da forma como era, longe de um cinema escapista pela alienação. Um filme assustador sobre um homem idem.
Amor e Monstros
3.5 664 Assista AgoraEsta aventura com elementos apocalípticos de ficção-científica e terror é uma metáfora para o processo de amadurecimento do protagonista, um rapaz inseguro a ponto de congelar quando o instante exige que aja. Sua inércia é fruto de um momento traumático e trabalhada dentro de um contexto de criaturas mutantes e do romance por que vale a pena sair da toca e arriscar a própria vida.
Assim, é gratificante que a aventura não se resuma apenas a Joel contra criaturas criativamente desenhadas, como se saídas de um pesadelo de H. P. Lovecraft, mas enriqueça o roteiro simples, mas eficiente com apontamentos atuais sem politizá-los em demasia. A crítica à ação humana e à percepção preconceituosa com que enxerga, como se fossem monstros, animais que apenas estão em equilíbrio no habitat, está alinhada com um roteiro repleto de bons momentos, por exemplo, o bate papo com a altruísta Mav1s.
Enquanto isto, parecido com Eu sou Lenda ou Aniquilação, o design de produção transforma o cenário em uma selva em que a natureza assumiu de volta o que estava tomado por construções humanas. Ao mesmo tempo, os efeitos visuais indicados ao Oscar são funcionais e convincentes, mas nada surpreendente, já que criaturas digitais hoje em dia se tornaram mais comuns do que rapazes tentando, com um gesto de bravura, reconquistar a mulher amada.
Talvez esteja no amor o ponto que torna esta aventura bem mais do que só um compromisso divertido e escapista. Ou quem sabe seja o contexto em que vivemos hoje: pois, sem querer, Amor e Monstros é um retrato fidedigno da pandemia, em que um monstro (o Covid-19) tenta entrar nas colônias onde nós e os nossos se escondem e cuja comunicação se limita a um rádio amador. No caso de Joel, vivido com carisma por Dylan O'Brian, a solução está em corajosamente enfrentar o mundo lá fora; no nosso caso, porém, a alternativa está em esperar assistindo a aventuras iguais a esta.
E sabe de uma coisa: há MUITO tempo não torço para que um filme tenha uma continuação.
A Vida em um Ano
3.2 73 Assista AgoraAo desviar a atenção de Isabelle, uma paciente terminal de câncer, a Daryn, um garoto prodígio e privilegiado em uma família suburbana, o drama adolescente utiliza a doença dela como meio de transformação dele, a partir de uma inspiração pró-vida nascida da certeza de que o tempo se esgota com rapidez.
Sinto-me ofendido em como a vida de Isabelle seja coadjuvante da de Daryn: um adolescente mimado, que não reconhece o esforço de seu pai, repetindo sua pior característica ao impor uma rotina planejada e indesejada por Isabelle. Um rapaz de atos egoístas e não empáticos, mas que acredita serem altruístas, cujas ações são romantizadas pela narrativa a ponto de o símbolo maior de sua trajetória ser adotado por ela no terceiro ato.
Isso sem contar que Jaden Smith é o anti-Will Smith, pois no que seu pai é abundantemente carismático, Jaden é só aborrecido e cansativo. Um drama romântico, oposto ao que os adolescentes deveriam ter em mente nos temas propostos.
Estranha Presença
2.4 62Gosto de histórias de casas mal assombradas românticas - o movimento artístico, não o gênero do cinema -, em que existe uma valorização do indivíduo, quando, para alguns, deveria haver medo e sustos. Adianto: The Little Stranger não proporcionará nem um, nem outro, mas uma discussão a respeito do egoísmo ressentido do Dr. Faraday. Isto é o que pode incomodar os espectadores: a criação de expectativas, mas também a companhia de um protagonista para lá de detestável.
Se vier de alma limpa, também adianto que o filme mantém um ritmo constante - monótono, portanto - como a personalidade de Faraday e também a vida vazia dos moradores de uma mansão que é somente a pálida memória do que um dia havia sido. É igual a um porta-retrato sujeito à depreciação, em que a fotografia se confunde com o mofo e as manchas provocadas pelo tempo. Assim são todos, exceto Faraday, que, como um Dorian Gray, opõe a aparência a uma podridão interior a partir da atuação a base de olhares amargos de Domhnall Gleeson.
O filme é valorizado pela ambientação opressiva e por um controle e calculismo demonstrados pela direção de Lenny Abrahamson (O Quarto de Jack e co-diretor de Normal People): nem mesmo os acontecimentos mais transformadores, dentre eles o clímax, são ilustrados de uma maneira destoante do todo, para assim melhor evidenciar a transformação interior de Faraday.
Afinal, o foco da narrativa não é só a deterioração da elite decadente, que tomou a frente de Faraday, em um momento que deveria ser seu, e que plantou a semente do rancor em seu coração. O que maltrata o protagonista é medir o tanto de energia negativa investiu em pessoas que não mereciam nada além do que o desprezo.
Bling Ring - A Gangue de Hollywood
3.0 1,7K Assista AgoraA forma como Sofia Coppola condena a futilidade da sociedade de aparências e ostentação de que os cinco jovens adultos de The Bling Ring participam é através do olhar de como a ideia de se tornaram subcelebridades, por algumas horas, é encenada a partir daquilo que consomem / furtam. Com a exceção de Marc, o protagonista que incorpora o processo de não pertencimento e isolamento, temas do cinema da diretora, todas as personagens são espécies de caricaturas (sobretudo a Nicki de Emma Watson) de tal modo que servem, por si só, como argumentos contra o meio social em que a própria Sofia Coppola está inserida.
Mesmo que seja natural desapegar-se a ponto de não se importar com aqueles personagens - cuja a rotina envolve o furto de celebridades, a postagem de fotos no Facebook e as baladas noturnas -, o trabalho de direção salta aos olhos em como Sofia Coppola cria interiores de casa despersonalizados e monotemáticos, e que contrastam com a vida de cores, iluminação e movimento que se abre diante daqueles adultos sem rumo na vida.
A diretora é também hábil em articular uma crítica social sem precisar apelar a palestra: as imagens e a montagem fazem tal papel, em como contrapõem a admiração de Marc em relação a Rebecca, com a dela diante de Lindsay Lohan. Isto fica mais evidente no momento em que ela pergunta: "Se não fôssemos mais amigos, você me roubaria", e ela lhe responde: "Eu jamais faria isso". O motivo não é pela amizade, mas porque Marc não teria nada a lhe acrescentar, como havia neste mundo de riquezas e futilidades de roupas, sapatos, bolsas, joias etc.
Assim, o filme de Sofia Coppola é um retrato da geração burguesa abandonada pelos pais (você quase não os vê, exceto Laurie, vivida por Leslie Hamm, que ensina suas filhas apenas as leis da atração do livro O Segredo) e criada a partir dos (des)valores e (a)moral vendidas por celebridades e "celebridades", para as quais a vida é totalmente diferente do que a dos meros mortais.
O Silêncio dos Inocentes
4.4 2,8K Assista AgoraO diretor Jonathan Demme estabeleceu um padrão altíssimo para os thrillers policiais de assassinos em séries, raramente rivalizado (Se7en talvez), mas nunca superado. Isto porque este clássico não é somente sobre prender um criminoso, mas também sobre a estrutura sexista do meio onde Clarice se encontra: assediada através do olhar por aqueles que estranham a figura feminina dentro da polícia, humilhada por atos misóginos desde sua visita à cadeia até o aperto de mão final, não é a toa que Clarice estabelece uma relação bipolar com Hannibal Lecter: o psiquiatra é o único que parece reconhecê-la como uma mulher capaz, sem subestimá-la, nem sexualizá-la.
Em torno desse relacionamento criado por atuações memoráveis de Anthony Hopkins e Jodie Foster, a direção estabelece a dinâmica de closes que embeleza uma história que, na essência, é pútrida e feia. Com uma atenção incomum a seus personagens, Jonathan Demme coloca-os encarando a cama, penetra por detrás do olhar e alcança seus espíritos, mesmo aqueles mais escondidos como o de Lecter: a criação de Thomas Harris é um destes personagens imensos, que as páginas dos livros não poderiam conter até encontrar em Hopkins o intérprete capaz de encarnar as nuances de um gênio canibal, apto a hipnotizar (igual a uma naja) quem quer que seja antes do bote.
Mesmo que o clássico tenha envelhecido mal, ao menos em relação à questão da transfobia (em uma questão igual a de Vestida para Matar), é inegável que a construção inteligente de seus eventos, a maneira com que despista o espectador e a tensão que proporciona em seus momentos mais agudos o transformou na narrativa a ser superada em se tratando de assassinos em séries. Obrigatório!
Fuja
3.4 1,1K Assista AgoraÉ sempre interessante quando um suspense é nervoso o suficiente que dificulta o espectador de pensar a respeito dos buracos existentes na estrutura do roteiro. "Fuja" tem elementos em comum com "The Act" - a premissa ou a cena dentro de um cinema -, mas enquanto a minissérie era articulada em torno de uma história real e isto diminuía as críticas ao roteiro com relação aos acontecimentos narrados, o filme não tem a mesma sorte.
Então para cobrir as inconsistências, o filme aposta na tensão como válvula de escape, com cenas que impressionam pela tenacidade e criatividade de Chloé em escapar da própria mãe, nem que para isto precise por a vida em risco. (Quando a cena termina e você respira, tem a oportunidade para se perguntar por que a adolescente não procurou ajuda na vizinhança em vez de ir em direção à autoestrada, por exemplo).
Além do mais, o filme tem omissões essenciais, como não esclarecer se as cicatrizes nas costas de Diane eram decorrentes de autoflagelo ou de alguma forma de abuso, o que modificaria a percepção do espectador em relação à personagem. Mesmo assim, Sarah Paulson - que não tem culpa de haver vivido um papel parecido em "Ratched" - esforça-se em tornar Diane uma mulher com ações monstruosas, mas que não provoca a aversão instantânea. Há uma relação compassiva criada sob o roteiro que enriquece a personagem, mesmo quando é apenas plana - sobretudo se pensarmos no intervalo de 17 anos em que, bem, quem viu entende.
Em resumo? Um suspense eficiente que aproveita seus 80 minutos para mascarar, com apreensão, o roteiro superficial e, ao chegar no desfecho, despista de novo com o desfecho satisfatoriamente cruel.
Projeto Flórida
4.1 1,0KNo entorno dos parques temático do complexo da Disney, nos hotéis de beira de estrada, existe uma realidade produto da crise financeira americana, que empurrou as famílias ao empobrecimento e a buscar, em moradias provisórias, a ideia de lar. Nesta realidade, a "magia" que existe é fruto da criativa ociosidade de Moonee, criança de 6 anos, no auge da ingenuidade, incapaz de discernir o certo do errado e cópia carbono dos desvalores de Hally, sua jovem mãe solo.
Não duvidamos do amor de Hally por Moonee, mas de sua criação irresponsável que termina por provocar consequências invisíveis e preocupantes na formação de sua filha. Seu olhar inocente serve de ponto de vista do espectador, mascarando detrás de cores quentes aquela realidade bruta, na estética que o diretor de fotografia chamou de "sorvete de mirtilo com calda azeda". Somos privados de enxergar a realidade ante a dificuldade infantil em processar as informações ao redor: a ida à assistência social revela verdades que Moonee não absorve, embora reconheça a importância do que está ocorrendo.
Com isto, a narrativa de Sean Baker penetra na camada social mais miserável dos Estados Unidos: um cenário fértil para o aparecimento de diversos problemas sociais camuflados na fantasia por que a Flórida é conhecida. A realidade é típica de uma distopia, com a presença frequente de helicópteros que evidenciam a distância e a invisibilidade das camas sociais mais altas do mundo onde habita a Moonee e seus amigos. Além do mais, toda a sequência final, que destoa totalmente da forma do filme até então, serve como metáfora de como o desejo do oprimido é em fomentar a opressão que lhe sufoca (para quem enxerga na Disney um símbolo do capitalismo agressivo e produtor de indignidades sociais).
Municiado de uma narrativa poderosamente crítica e de um realismo admirável, capaz de conferir autenticidade e espontaneidade a todos os personagens (muitos dos quais, atores amadores ou figurantes que estavam só de passagem), Sean Baker ainda consegue extrair o que há de melhor em seu elenco infantil, sobretudo Brooklynn Prince (o maior destaque da narrativa). Já Willem Dafoe combina seriedade, doçura na permissividade e melancolia ao constatar que sabe que trabalha onde sonhos morrem precocemente (ou já morreram). Um cenário de cores vibrantes, decorações exageradas e títulos chamativos que abre as portas à pobreza norte-americana.
E.T.: O Extraterrestre
3.9 1,4K Assista AgoraSteven Spielberg estabeleceu o altíssimo padrão das fantasias infanto-adolescentes para toda família que poderia ser rivalizado e dificilmente superado. A história do garotinho que tromba com um extraterrestre e tenta ajudá-lo a retornar ao seu planeta natal inspirou gerações (olha eu aqui!), porque seus valores são atemporais e universais, ainda mais hoje em dia com a crise migratória. É claro, E. T. não deseja permanecer na Terra, mas ir embora dela. Ainda assim, o contexto contemporâneo ajuda a ressignificar a importância da generosidade e aceitação que vem de uma criança, no lugar do sistema opressor e excludente.
De todo modo, o clássico de Steven Spielberg envelheceu melhor do que eu esperava: seus valores familiares são sólidos como concreto, e a dinâmica entre os três filhos apenas revela os valores passados pela mãe Mary. Em vez de perder tempo com brigas e rixas entre os irmãos, Spielberg valoriza o afeto e a cumplicidade entre eles como a mola impulsionadora da narrativa, assim também servindo de amparo para construir a dinâmica entre Elliot e E. T., conectados telepaticamente para sentir e vivenciar um ao outro, em um momento em que nem se falava em empatia.
Além do mais, o Steven Spielberg dos anos 80/90 não subestimava seu público-alvo, mas o desafiava: além de enquadrar a narrativa à altura do olhar de suas crianças, ele também utiliza sombras como alternativa para: esconder o design do alienígena até o momento oportuno (assim, disfarçando os efeitos práticos) e ainda para uma aura de mistério que separa crianças/jovens bondosos de adultos pragmáticos, culminando na cena de uma invasão de "astronautas".
É um filme atemporal que reforça valores de bondade, amizade e gentileza em um mundo carente deles, além de ser sensível sem precisar ser piegas.
Seaspiracy: Mar Vermelho
4.3 49Não importa o quão relevante seja o tema debatido em um filme, se a arte de contar uma história e a forma cinematográfica não forem bem trabalhadas, a narrativa evidenciará fragilidades que comprometerão o resultado final. Isto é mais verdade em um documentário denúncia que pretende revelar a indústria pesqueira pelo que é em sua relação predatória com a fauna e flora aquáticas, o aquecimento global e o empobrecimento dos povos.
O trabalho de Ali Tabrizi é apaixonado e também narcisista, de muitas maneiras. A mais óbvia está em como se enxerga como um sujeito que está realizando uma revelação bombástica, enquanto arrisca a própria vida, quando documentários passados já produziram as mesmíssimas conclusões que agora são recicladas como novidade: o vencedor do Oscar A Enseada (2009) expôs ao mundo a chacina de golfinhos no Japão; Oceanos de Plástico (2016) debateu a poluição dos oceanos, dentre elas as cordas de pesca; Em Busca dos Corais (2017) comentou sobre o embranquecimento da flora aquática para a manutenção dos ecossistemas, da temperatura dos oceanos e da própria existência.
Se Ali Tabrizi houvesse admitido a existência desses documentários antes de pegar a câmera e viajar (como um apaixonado por oceanos, deveria conhecê-los), talvez pudesse se concentrar em buscar mais evidências de estatísticas e estudos apresentados (Ali reconhece que precisaria se aprofundar mais em certo momento), em reunir mais informações de entrevistados ou em ser mais leal com o espectador (como expor em qual contexto uma CEO pediu para não ser gravada). Além desse narcisismo, que beira uma ignorância cinematográfica, Ali é ingênuo em impor o vegetarianismo como a única alternativa para solucionar os problemas da indústria pesqueira: quer acabar com a pesca, não coma peixes; ou seja, quer acabar com o capitalismo, não compre mais.
Como vegetariano e cinéfilo, o documentário me machucou: ver animais indefesos sofrendo nas mãos de homens cruéis é de virar o estômago, bem como a necessidade de apelar a este recurso a cada momento. A denúncia está a frente de nossos olhos, e concordo com muito do que Ali Tabrizi apresentou; porém, não é esta argumentação infantil e excludente que mudará o cenário em que vivemos.
O Mistério de Block Island
2.4 83 Assista AgoraMais sinistro do que aterrorizante ou assustador, este terror brinca com teorias da conspiração relacionadas à estranha manifestação sonora da ilha remota onde mora Harry, antes de iniciar um estudo a respeito da loucura que o envolve. Com uma família rompida, depois da morte da mãe e agora do pai, restam aos 3 irmãos decidir o que fazer com a casa que herdaram e o futuro de Harry, que não tem norte na vida.
Ao mesmo tempo em que as relações fraternais começam a ficar mais frágeis e a paciência de Audry, a irmã mais velha e responsável, começa a se esgotar, incidentes misteriosos começam a acontecer ao entorno de Harry, com uma inspiração em Vampiros de Almas (que produziu as refilmagens Os Invasores de Corpos). Ao invés de sustos ou criaturas, a dupla de diretores Kevin e Matthew McManus investe na sugestão, levando o espectador a questionar se o que está acontecendo com Harry está apenas em sua cabeça ou se é influência de algo inexplicável.
Não vou entrar em detalhes, mas existem muitas decisões estilísticas inteligentes em termos de fotografia e montagem, como a associação do atropelamento de um cervo com a aceleração de um barco em alto mar. Além do mais, quando o filme entra no território de Além da Imaginação, faz isto ciente de que não poderá oferece respostas, mas ao menos sensações, e a explicação deixada do motivo por que os eventos estão acontecendo é bastante para preencher algumas lacunas deixadas.
Até porque o filme não propõe respostas, não as que queremos pelo menos e sim aquelas ao alcance daquele grupo de personagens: a dupla prefere a degradação física e psíquica do protagonista, as consequências que isto trará à família e o caráter opressivo e hostil que representa a ilha. Todo o restante fica a cargo do público (embora o diálogo resgatado de Audry seja claro em explicar o que pode estar acontecendo), mesmo porque se nem para todas as questões da vida temos resposta, por que esperar que os filmes tenham. Prefiro ficar com o sinistro incômodo e desconfortável.
Gravidade
3.9 5,1K Assista AgoraApesar do desejo de rever Gravidade, alimentava o receio de que assistir em casa exporia as fraquezas de um trabalho virtuoso e que nasceu para os cinemas, preferencialmente nas salas IMAX, 3D e áudio Dolby Atmos, uma tecnologia que manipula o som em todas as direções. Na realidade, rever Gravidade proporcionou analisar melhor as virtudes da narrativa e como a exuberância técnica está alinhada com a história simples embora poderosa de ajudar a cientista Ryan Stone a readquirir o prazer de viver.
Não é a nuvem de detritos que viaja na sua direção, nem a destruição da estação espacial com o empurrão ao hostil espaço que são os inimigos, é a incapacidade de se libertar das amarras do luto pela filha de 4 anos, morta em um acidente estúpido, como ela mesma define. A narrativa exibe esse processo de renascimento diante da tragédia com base na alegoria da sobrevivência onde a vida parece impossível. A cada dificuldade posta em seu caminho, Ryan descobre uma forma de contorná-la para seguir em frente, o que não é sinônimo de esquecer a filha, apenas aceitar a morte e firmar os pés no chão.
E falar do filme sem mencionar Sandra Bullock é um pecado, já que a atriz abraça a dor da personagem e também o desejo de renascer em vida: sua respiração ofegante, sua voz embargada, sua obstinação em sobreviver, todos estes elementos compõem a personagem cujo conflito está em aprender a se soltar. O diretor Alfonso Cuarón busca o realismo no espaço, substituindo a ausente propagação de som no vácuo pela trilha sonora de Steven Prince e transformando o set de filmagem em uma reprodução fidedigna do espaço.
Enquanto isto, promove cenas de ação espetaculares divorciadas das expectativas do espectador para apresentá-lo a algo que sempre quis ver, mas nunca teve a oportunidade: uma tensão muda, uma câmera que valseia com liberdade pelo espaço como se também desapegada da gravidade e uma personagem aterrorizada e determinada, cuja dor é acessível mesmo a milhões de quilômetros de distância.
Druk: Mais Uma Rodada
3.9 798 Assista AgoraO diretor dinamarquês Thomas Vinterberg nunca se acovardou em enfrentar temas polêmicos: em A Caça, discutia falsa acusação e o cancelamento muito antes de serem temas contemporâneos, mas tomando como base o alegado abuso sexual denunciado por uma garotinha de 6 anos. Agora, em Druk, introduz o consumo de álcool como uma alternativa para que 4 homens enfrentem a crise de meia idade e reencontrem os jovens que eram um dia. Neste processo, o diretor procura evitar apologias ao alcoolismo - demonstrando a consciência de evitar que os personagens dirijam sob influência -, porém celebra o álcool como libertação das amarras sociais.
O elenco masculino é praticamente o mesmo de A Caça, encabeçado de novo por Mads Mikkelsen: seu estado de espírito sombrio é atiçado pelo excesso de luz na sala de aula onde enrola lições de história, sem conseguir a atenção dos alunos, igualmente como não é mais visto como homem por sua esposa, mas talvez apenas um colega de casa que é o pai de seus filhos. Os problemas de seus amigos - professores também, mas de disciplinas diferentes - não são parecidos, mas têm a mesma raiz na frágil masculinidade do cachorro que precisa de ajuda para fazer xixi (para utilizar um exemplo do filme).
A solução de ingerir determinada quantidade de álcool obviamente não é nem remotamente adequada para estes homens (terapia, sim), mas se apresenta como celebração de algo perdido. No processo, Vinterberg afasta-se das consequências do excesso que não sejam tragicômicas - a busca por um bacalhau fresco no supermercado é um de meus momentos preferidos -, simpatizando com seu quarteto a partir de um jogo de planos solares contrapostos por outros mais na escuridão para revelar o que acontece quando o efeito entorpecente passa.
Ao mesmo tempo, Vinterberg não é hipócrita: ele sabe que o álcool existe, que jovens o consomem em excesso e que a Dinamarca tem uma cultura em torno disto. Retrata também as consequências do consumo desgovernado, enquanto enfatiza a moderação e aspecto celebratório na inesquecível cena final: uma dança de libertação em um momento significativo de tantas formas (alegria, tristeza, vitória) ao protagonista.
A Despedida
3.4 33 Assista AgoraPor estar tão resoluta da eutanásia a fim de não sofrer com as sequelas de uma doença degenerativa, Lily (Susan Sarandon) apenas desabrocha na narrativa através dos olhares mais profundos da atriz que comunica uma saudade da vida diante de seus dias finais. A personagem é relativamente plana; a atriz, não. Mas nem todo mundo tem o talento de Susan no elenco desta refilmagem de Coração Mudo, drama dinamarquês de 2014.
Assim, enquanto os membros da família aceitam, inconformados ou combativos, a decisão da matriarca, começam a ser desenrolados e desenvolvidos os temas típicos conhecidos do cinema independente, quando a família começa a se revelar desfuncional: a neta Anna, vivida por Mia Wasikowska, é bipolar e tentou cometer suicídio, então sua percepção da morte da avó é misturada com a amargura da própria tentativa de tirar a própria vida; a filha Jennifer, interpretada por uma Kate Winslet estranhamente acomodada na personagem, vive um estereótipo da mulher/esposa/mãe distante dos sentimentos dos outros e de si mesma a ponto de não perceber coisas óbvias diante de si e de entender erroneamente aquilo que vê com clareza. Quanto ao restante do elenco, Sam Neill, Rainn Wilson e Lindsay Duncan não tem a fazer com seus personagens senão acompanhar o ritmo da narrativa.
A trama é açucarada sem parecer sê-la, introduzindo sentimentalismo na recusa em adotar os elementos característico do típico melodrama, ao rejeitar as lágrimas, os gritos, a expressividade emocional diante da perda de um ente querido. Falta-lhe algo, inclusive no conflito tolo e descartável introduzido no terceiro ato, que só é compensado na cena final, onde pude sentir alguma emoção.
A direção de Roger Michell é inteligente, mas fria: as composições são incômodas, como se esperaria desta reunião familiar, e os personagens estão distantes dentro do quadro ou até divididos com o recurso de anteparos. Mas o uso inteligente da forma cinematográfica não socorre a narrativa naquilo que mais lhe falta: calor humano.
Deixe-o Partir
3.3 79 Assista AgoraExiste muito a ser debatido e reconsiderado depois de assistir a este filme. A ideia de um faroeste contemporâneo é a primeira coisa que vem em mente, quando um xerife aposentado é obrigado a reconciliar-se com a perda do filho único e a necessidade de reagrupar sua família, depois que a nora casou-se com o filho de uma família de criminosos e levou consigo seu neto. O velho oeste contemporâneo se transformou no interior, à margem das fazendas, onde a lei da força coloca de joelhos a polícia à vontade dos Weboys. A ideia do homem pacato obrigado a agir com violência permanece intacta, e denota a sociedade estanque nessas localidades.
Dentro desse faroeste, existe também um thriller de justiça encenado como se vingança fosse: um que exige do cansado e rabugento Kevin Costner tomar as rédeas do próprio destino para reunir sua família, o que o colocará em confronto direto com os Weboys, encabeçados por sua poderosa matriarca (a sempre excelente Lesley Manville).
Entretanto, a violência não é o foco; a família, sim. Como esta é criada, despedaçada e reunida a partir de uma análise que enxerga o lado dos heróis (Costner e Diane Lane) e também dos vilões (os Weboys). Igual aos primeiros, existem laços fortes que unem uma família construída em torno de valores imorais e criminosos. O grande acerto da direção de Thomas Bezucha está em reconhecer faces de uma mesma moeda, aumentando a ameaça narrativa à medida que o tempo avança e não se pode mais voltar atrás.
Deixe-o Partir não se apavora de suas consequências traumatizantes - eu mesmo me coloquei pensando em como seria a vida após o filme e a violência -, mas as insere em um retrato do faroeste contemporâneo em que o monopólio da justiça passa do Estado à família. Não porque esta assim deseja, apenas porque assim tem que ser. Aí está a beleza melancólica do filme.