Eu estou oficialmente na torcida para a indicação e vitória de Que Horas Ela Volta? no Oscar. Embora ainda não tenha visto O Filho de Saul, grande favorito para concorrer na categoria, acho difícil ele superar este novo clássico do cinema brasileiro. Sim, novo clássico. É um filme tecnicamente impecável, que usa e abusa da gramática cinematográfica para tecer simbolismos e críticas à forma como a luta de classes se desenrola no Brasil. Ao ler a expressão "luta de classes", creio que muitos irão me acusar de marxista ou algo do gênero, mas acredito que abrir os olhos para os temas abordados neste filme não é pura questão ideológica, mas sim uma simples questão de bom senso. Sem falar que seria revigorante ver o primeiro Oscar vencido pelo Brasil ser erguido por uma mulher na cadeira de direção, algo raro de se acontecer neste tipo de premiação, mostrando como o cinema ainda é um universo de predominância masculina, infelizmente. Mas graças às Annas Muylaerts da vida, existe uma perspectiva de mudança deste cenário.
Baseado no shakespeariano Macbeth, Trono Manchado de Sangue conta o relato de dois samurais que encontra uma bruxa que prevê que um deles se tornará um senhor de castelo, iniciando uma escalada pelo poder. Além da premissa interessante, um dos principais méritos do diretor Akira Kurosawa é a construção em dois sentidos: a construção de planos, alguns dos mais marcantes do ponto de vista estético de sua filmografia e a construção de atmosfera; seja nas cenas com a personagem da bruxa, que possui um clima onírico e ao mesmo tempo sobrio e nebuloso; seja nas sequências de introspecção do personagem de Toshiro Mifune, que deixam transparecer paranoia e loucura decorrentes de sua repentina ascensão ao poder. Falando em Mifune, como ele está incrível no papel. Sempre articulado em sua performance, não apenas nas expressões faciais sempre bem definidas, como nos trejeitos e gestos feitos com as mãos e os pés, que em determinadas cenas mostram a segurança do protagonista e em outros seu total descontrole. Tudo isso para contribuir para a criação de uma das muitas obras de Kurosawa que ilustram como o poder e a ganância nada mais causam do que a destruição de seus personagens e outros danos irreversíveis. Macbeth de William Shakespeare é considerada uma das obras seminais da dramaturgia. E sob a direção de Akira Kurosawa com o nome de Trono Manchado de Sangue acaba por se tornar uma das obras seminais do cinema, sendo mais um exemplar da grandiosidade de um maiores gênios da história da sétima arte.
Existem dois pontos fora da curva na filmografia de David Lynch. Um é O Homem Elefante, biografia que foi aclamada pela crítica e emocionou plateias mundo afora. Outro é justamente este filme, Uma História Real, biografia que também foi aclamada pela crítica e também emocionou plateias mundo afora. Reencenando a extravagante estória de Alvin Straight, idoso que viajou centenas de quilômetros em um cortador de grama para fazer as pazes com seu irmão enfermo. Mesmo tendo um elemento surrealista no enredo, o fato da longa viagem ser feita em um trator nada apropriado para este tipo de situação, a estrutura narrativa do filme é bem linear, com um roteiro que rende momentos de pura reflexão e ganha ainda mais força através da direção de Lynch e da atuação de Richard Farnsworth. Este último, aliás, é uma verdadeira força da natureza em sua performance, criando trejeitos únicos para seu personagem e um olhar que carrega um turbilhão de sentimentos dentro de si. Lynch aqui também cala a boca dos críticos mais conservadores que duvidam da capacidade do mesmo como cineasta, mostrando que ele além de um diretor criativo e original, consegue desenvolver uma narrativa estruturada da maneira convencional. Uma História Real é, acima de tudo, um conto de fadas sobre um homem em busca de redenção e conciliação com o passado, trazendo como principal força motriz a performance de Farnsworth, a última da carreira e uma das melhores de todos os tempos no cinema americano.
Em toda parceria entre o ator Robert De Niro e o diretor Martin Scorsese, é possível perceber uma espécie de aura que permeia o filme, como se o espectador estivesse prestigiando uma experiência cinematográfica única, que dificilmente vai sair de sua cabeça tão cedo. Em O Rei da Comédia, não seria diferente. Acompanhamos no filme a trajetória de Rupert Pupkin, interpretado por De Niro, aspirante a comediante que espelhando-se no seu ídolo, Jerry Langford, interpretado por Jerry Lewis, deseja ser coroado o mais novo rei da comédia. Esta premissa de Sessão da Tarde e a presença do comediante doutorado em pastelão Jerry Lewis engana o mais desavisado dos espectadores, O Rei da Comédia trata-se um denso estudo de personagem e um tratado sobre a obsessão. O protagonista persegue seu ídolo de maneira incansável e tem recorrentes devaneios com um futuro reluzente onde é bem-sucedido, contrastando com seu presente nublado sem qualquer real motivo para se orgulhar. Dito isso, Rupert Pupkin é um dos personagens mais insanos de toda a filmografia de Martin Scorsese, um psicopata disposto a fazer de tudo para conseguir o que quer. De Niro está impagável em sua atuação, construindo um personagem que é carismático a nível superficial, mas perturbador em sua verdadeira essência. Vale comentar também que existe um humor neste filme bastante peculiar, que é construído através de situações que ultrapassam a barreira do ridículo, criando uma atmosfera constrangedora impossível de não ser sentida pelo espectador. Mas o que mais me chamou atenção no filme é a ausência de julgamento. Em nenhum momento Scorsese julga seus personagens e suas atitudes, cabe ao público realizar tal tarefa, algo que só diretores com muita segurança no que fazem têm coragem de permitir. Mesmo não estando entre as mais famosas obras de Martin Scorsese, O Rei da Comédia certamente merecia reconhecimento por se tratar de mais um bom fruto de uma das bem sucedidas parcerias ator-diretor da história do cinema, de Scorsese com De Niro, dois dos melhores em suas posições.
A guerra dos sexos é uma constante na filmografia de Jean-Luc Godard, sendo o foco principal da trama em alguns filmes Uma Mulher é Uma Mulher e agora em Masculino Feminino. Mas não apenas isso como a dualidade em geral é bastante discutida na obra. Direita e esquerda, conservadorismo e liberalismo. Através do olhar de Paul, interpretado por Jean-Pierre Léaud, um jovem militante de esquerda, Godard faz críticas ao pensamento conversador com o auxílio das figuras femininas presentes na obra e também descendo a lenha, como sempre, na Guerra do Vetnã. Tendo isso em vista, já é possível perceber que Godard está muito mais próximo de sua fase política que da nouvelle vague, tendo poucos resquícios da mesma ainda sobreviventes, somente a fotografia ainda pode ser vinculada ao movimento, mesmo ela não tendo sido feita por Raoul Coutard, principal parceria de Godard neste campo. A cantora Chantal Goya também merece atenção, substituta digna de Anna Karina, mesmo não sendo tão bela ou com presença de tela tão marcante quanto a eterna musa godardiana. Masculino Feminino ou Os Filhos de Marx e da Coca-Cola, título alternativo sugerido pelo próprio filme, é mais uma excelente obra de Godard, com grandes atuações de Doinel e Goya e diálogos que sutilmente questionam a postura da sociedade francesa da época, sendo retrato eficiente do movimento de contracultura ainda em pleno vigor.
Um certo alguém entra numa espécie de galpão disfarçado de comércio e é recebido por uma figura peculiar de cabeça baixa, olhar desinteressado e vestimenta repleta de cores neutras. A figura então diz algo do tipo: "Sabe este cheiro que tu tá sentindo? É do ralo lá atrás." Este tipo de sequência é algo comum de se acontecer em O Cheiro do Ralo, personagens que adentram de maneira incômoda neste universo amarronzado do protagonista. Neste filme baseado na obra homônima de Lourenço Mutarelli, acompanhamos o cotidiano de Lourenço, interpretado metodicamente por Selton Mello, vendedor de objetos usados que sempre que pode tira vantagem de seus clientes, até que começa a sentir um cheiro fedorento vindo de seu ralo (simbolismo claro para seu mau caráter). Paralelo a isso, conhece uma garçonete de nome impronunciável por quem ele acaba sentindo um desejo sexual incontrolável. Lembrando que a garçonete não é a única personagem anônima na trama, nenhum outro personagem com exceção de Lourenço tem um nome, são identificados por sua posição diante do protagonista: segurança, viciada, entregador de pizza, homem da caixa de música. Este aspecto ilustra a falta de empatia que o personagem tem pela vida humana, ele não faz questão de saber o nome nem das pessoas mais próximas dele, todos são vistos como uma escada para atender suas necessidades e desejos mais egoístas. A direção de Heitor Dhalia é algo exemplar para o cinema brasileiro, fazendo dela mais do que mero espectador das situações; ela também cumpre papel ativo no enredo, mesmo Dhalia perdendo a mão em alguns momentos. A atuação de Selton Mello também é fundamental na narrativa; como eu disse acima, Lourenço está sempre desviando o olhar das pessoas e quando olha, sempre demonstra estar completamente insatisfeito com o que vê. O figurino e o design de produção também exercem grande influência utilizando de cores neutras que refletem sua personalidade anti-heroica e a forma como os objetos estão dispostos em cena sugerem um caos interior que gradualmente incomoda o meticuloso personagem. Tendo tudo isso em vista, é possível definir O Cheiro do Ralo como um grande estudo de personagem, de um dos personagens mais antipáticos e moralmente complexos da história recente do cinema nacional.
De todos os ditos clássicos da Sessão da Tarde, Conta Comigo foi o único que não tive nenhum contato durante a minha infância/adolescência. Ainda bem, pois é um filme que exige certa maturidade. Baseado em uma novela de Stephen King, Conta Comigo conta a estória de quatro amigos por volta de seus 14 anos que saem em busca do cadáver de um jovem desaparecido em busca de uma inesquecível aventura, além de reconhecimento por tal ato de heroísmo. Mesmo tendo o enredo de um filme de Sessão da Tarde oitentista, não o vejo como um filme para crianças. Não que crianças não possam vê-lo e gostar do que estão vendo, mas acredito que um adulto possa apreciar melhor esta pérola de Rob Reiner ao vê-la como uma espécie de máquina do tempo para o passado. Conta Comigo é uma obra que pode ser resumida em uma palavra: nostalgia. Nostalgia por uma época tão dourada da vida humana que uma vez acabada, dificilmente é revisitada; Nostalgia por um tipo de cinema que nunca mais será realizado nos estúdios hollywoodianos e se for, certamente não terá a mesma magia presente em Conta Comigo, filme que deixa transparecer a paixão de um cineasta por sua obra. Adaptando Stephen King, Rob Reiner pode não ter sido aclamado como gênio da sétima arte como Kubrick foi ao fazer O Iluminado, mas certamente deixou sua marca com uma grande experiência cinematográfica, sendo um grandes retratos já feitos sobre a infância e as amizades que nascem e morrem, mas nunca são esquecidas.
"Trata-se de um faroeste sobre o terceiro Mundo". Esta é uma das primeiras frases proferidas em O Bandido da Luz Vermelha por volta de um minuto de filme e o mais próximo que se tem de uma descrição em poucas palavras sobre este filme. Baseado no relato real sobre João Acácio Pereira, o Bandido da Luz Vermelha do título, nós vemos a sua trajetória invadindo residências, fugindo da polícia e se encontrado com Janete Jane, interpretada pela musa Helena Ignez. Mas isso é apenas a camada mais superficial da narrativa, uma das mais fragmentadas da história do cinema brasileiro, influência direta de Jean-Luc Godard, um dos ídolos do diretor Rogério Sganzerla. Não apenas na ausência de linearidade é perceptível esta influência como na escolha de planos e estilo de filmagem que parecem simular Acossado sempre que possível. Mas o principal fator estético é a narração feita por um casal de locutores que fazem comentários debochados e irônicos de uma acidez crítica que acaba por deixar transparecer a hipocrisia da sociedade brasileira. Por exemplo, na cena em que um homem diz ser "favorável à pena de morte e favorável à sociedade", levantando a bandeira da família paulistana em seguida. Como isso é atual. Rogério Sganzerla é um dos principais representante do chamado cinema marginal não por acaso e O Bandido da Luz Vermelha é sua derradeira obra-prima. Caótica, premonitória e vulgar obra-prima. Agora corram que o Terceiro Mundo vai explodir!
Glauber Rocha é sempre sinônimo de uma experiência de conteúdo hermético e forma caótica, desrespeitando todas as regras de uma narrativa convencional. E com Terra em Transe não seria diferente. Localizado no país fictício de Eldorado, artifício utilizado pelo diretor para criticar o Brasil em plena ditadura, vemos críticas ao populismo através da figura do político de esquerda Felipe Vieira e também ao conservadorismo através do reacionário Porfírio Diaz, figuras opostas que são colocadas no mesmo patamar, de parasitas que sugam o que podem do povo para alcançar seus interesses próprios, mostrando que o poder está nas mãos das pessoas erradas, dando a entender que o povo deveria se auto-governar. Porém, em determinado momento envolvendo o personagem Jerônimo, o próprio povo é destronado e desqualificado, mostrando que o poder também não deve estar nas mãos da massa, sem contar que o anarquista Paulo Martins também acaba por fazer parte do sistema que ele tanto ataca. Conclusão: é um filme niilista, afirmando que onde quer que esteja localizado o poder político, as consequências geradas sempre serão negativas. Tecnicamente falando, é igualmente impressionante. A fotografia de Luiz Carlos Barreto é impecável, uma das mais belas do P&B nacional, desde a sequência de abertura utilizando um plano aéreo sobrevoando "Eldorado" à ultima cena com um plano aberto mostrando Paulo Martins fazendo uma performance hipnótica com sua arma. Falando em performances, estas são essenciais para o sucesso do filme, são atuações escandalosas e exageradas, colaborando para construir a atmosfera caótica da obra; todo o elenco está de parabéns. Terra em Transe é um dos grandes filmes do nosso cinema, fruto da imaginação de um gênio louco e profético que mesmo sendo por vezes contraditório, conseguiu deixar sua marca na sétima arte com apenas "uma ideia na cabeça e uma câmera na mão".
Faz uns dois anos que li Vidas Secas de Graciliano Ramos, um dos livros que me mostrou a força da literatura brasileira. Hoje assisti Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, filme que me mostrou a força do cinema brasileiro. Uma das poucas adaptações que consegue bater de frente com o material original, Vidas Secas conta a estória de uma família que, durante uma seca, caminha pelo sertão nordestino em busca de melhores condições de vida, ou melhor dizendo, de sobrevivência. Sim, sobrevivência. Pois tirando um momento ou outro, toda ação dos personagens principais é realizada visando a sobrevivência, até mesmo sua economia em trocar palavras entre si, como se assim pudessem preservar energias e ganhar mais tempo hábil de vida. A câmera aqui não é só um instrumento de registro histórico como também mostra a direção inteligente de Nelson Pereira dos Santos, que constrói seus planos de forma minimalista, mas eficiente; sendo alguns dignos de serem emoldurados e outros angustiantes propositalmente e ainda outros com ambas características: são apavorantes por conta do contexto do filme, mas ao mesmo tempo satisfatórios de se assistir. Enquanto Glauber Rocha e Rogério Sganzerla bebiam da fonte da nouvelle vague, Nelson Pereira optou por se inspirar no neorrealismo italiano, trazendo à tona um cinema mais acessível que o de seus companheiros de movimento, não ficando atrás deles no que diz respeito à experiência cinematográfica, uma das mais ricas do nosso cinema e fundamental para o surgimento de outros nomes importantes do cinema nacional como Fernando Meirelles e Walter Salles.
Eduardo Coutinho certamente não fazia ideia do impacto que sua decisão de retomar Cabra Marcado Para Morrer iria fazer no cinema brasileiro. E não apenas no cinema brasileiro como na cultura brasileira em geral. O documentário disserta sobre o assassinato de João Pedro Teixeira, líder camponês que lutou contra o latifúndio, durante o estopim da Ditadura Militar e a repercussão que sua morte gerou mesmo 20 anos depois do ocorrido. Existe uma força narrativa em Cabra Marcado Para Morrer que vem de seus personagens. Personagens da vida real que em pouco tempo de tela ganham a simpatia do espectador. E tem uma personagem em especial que merece destaque: Elizabeth, viúva de João Pedro. Como um dos seus filhos diz: "Ela é uma verdadeira doutora, uma escola". E digo mais, Dona Elizabeth é mais do que uma escola, é uma universidade inteira de perseverança e sabedoria em forma de gente. Existe outro personagem importante na trama que é a câmera de Eduardo Coutinho; nas mãos de outro diretor, Cabra Marcado... poderia se tornar algo melodramático. Coutinho porém, opta por fazer algo naturalista, deixando a emoção nascer espontaneamente, sem usar de artifícios rasteiros como trilha sonora carregada ou ângulos que ressaltam a emoção desnecessariamente. Outro aspecto interessante a ser notado: o fato do filme ter sua produção interrompida no início do regime militar e ter seu lançamento finalmente quando o mesmo já se encontrava em seus momentos finais. É como se o cinema de Coutinho estivesse de luto pelo momento que o país passou a viver e depois se reerguesse como uma fênix após a volta da democracia. Não deve ter sido proposital, é claro, mas fica a observação. Eduardo Coutinho não é somente um dos nomes mais conhecidos do cinema nacional como um dos mais habilidosos documentaristas que o mundo já viu e Cabra Marcado Para Morrer talvez seja a maior obra-prima que este gênio do nosso cinema pode nos entregar, sendo com certeza o melhor documentário da história do cinema brasileiro.
Recentemente, Limite foi eleito pela Abraccine, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema, como o melhor filme brasileiro de todos os tempos. Se é efetivamente o melhor eu não sei, mas está entre os mais merecem ser vistos. Escrever uma sinopse sobre este filme parece-me algo imprudente de se fazer, mas acho que vale o esforço. Vemos um homem e duas mulheres à deriva em um barco, enquanto contam um para o outro como teriam chegado nesta situação. Premissa interessante que certamente dá um bom enredo, mas enredo é o aspecto menos interessante de Limite. A beleza dos planos de Peixoto e sua montagem vanguardista são o principal atrativo desta hermética obra-prima de nosso cinema, carregada de uma atmosfera lírica e onírica, sendo mais uma das obras que inquietam a humanidade sobre seu real significado. Interpretações podem ser feitas, embora a tentação de simplesmente se apreciar as imagens do que entendê-las de maneira lógica seja realmente avassaladora. Para os espectadores mais conservadores, Limite pode ser uma experiência indigesta e aborrecida; já para os mais liberais, uma experiência única no cinema, onde vida é expelida para fora da tela e Arte toma forma em seu mais puro estado. Porém uma coisa é certa: estamos diante de um filme que, sem trocadilhos, explora os limites do cinema, seja para ser aplaudido ou vaiado. Mas nunca ignorado.
Diferente de seus contemporâneos do Cinema Novo, que abordavam os problemas político-sociais envolvendo o proletariado brasileiro, Walter Hugo Khouri abordava os problemas existenciais da burguesia nacional. E Noite Vazia talvez seja o filme que melhor aborda estes problemas. Acompanhamos a trajetória de Nelson e Luisinho, dois amigos da elite paulistana, que saem em uma noitada buscando prazer e escapar de seus laços matrimoniais e familiares. Encontram então duas prostitutas, interpretadas pelas icônicas Norma Bengell e Odete Lara, que compartilham do mesmo desejo de fuga da realidade e consequentemente, um vazio existencial que permeiam suas vidas. Noite Vazia pode ser descrito como o encontro de Antonioni e Bergman em um país de terceiro mundo, onde a câmera assume papel ativo, seguindo o exemplo dos dois citados mestres do cinema europeu e construindo alguns do planos mais prazerosos de se assistir no cinema nacional. Confesso que não apreciei a forma como os atores declamam o texto de Khouri, que são riquíssimos em questionamentos, embora um pouco datados por conta do dialeto da época. Em compensação, as expressões...Que expressões faciais. O que os atores de Khouri não conseguem expressar pelos diálogos, eles expressam com suas feições, carregadas de angústias tão humanas e tão palpáveis que dificilmente vão sair do imaginário do espectador tão cedo. Walter Hugo Khouri pode não ser um dos cineastas mais conhecidos do Brasil, mas quem já teve contato com sua obra sabe que ele é um dos maiores autores que o nosso cinema já teve, utilizando-se da elite brasileira para falar sobre questões que são pertinentes a qualquer ser humano que já se encontrou angustiado com sua própria existência.
Existem certos filmes que claramente expressam o amor de um cineasta por aquilo que ele faz. Frankenweenie, de Tim Burton, é um belo exemplo disso. Refilmagem de um curta realizado pelo diretor ainda no início da carreira, Frankenweenie conta a narrativa de Victor que após perder seu amado cão de estimação, resolve fazer um experimento para ressuscitá-lo. Enredo simples, mas que acaba por ser muito bem executado. Burton volta às raízes com o uso de stop-motion e uma narrativa que remete diretamente à sua infância prestando homenagem a todos os filmes clássicos de horror da Universal, como Frankenstein, O Homem Invisível, A Noiva de Frankenstein, O Lobisomem, etc. Além de homenagear, como em muitas outras obras de sua filmografia, o expressionismo alemão, seja no jogo de sombras e luz ou no design dos personagens que mais parecem uma versão infantil dos personagens peculiares e espalhafatosos de Dr. Caligari. Como toda película do diretor, o design de produção é um show a parte, sendo parte integral da narrativa visual do filme e compensando quando o roteiro deixa a desejar, o que ocorre com frequência, acredito que por conta da curta duração, que não permite que os personagens sejam bem desenvolvidos, ocasionando situações que realmente incomodam quem aprecia uma narrativa bem construída (lembre-se da postura dos pais de Victor, muitas vezes inverossímil), mesmo Frankenweenie sendo um filme infantil; afinal, nossos pequenos têm direito de saber o que é cinema de qualidade desde cedo e acredite, eles são mais exigentes do que se imagina. Enfim, um dos filmes mais interessantes do Tim Burton, sendo um que ele visivelmente se empenhou para dar o seu melhor, mesmo deixando evidente uma certa fragilidade narrativa, mas nada que estrague a experiência de ver mais um bom filme "de cinéfilos para cinéfilos".
A Última Gargalhada talvez seja o mais cinematográfico filme do expressionismo alemão, no sentido de ser a obra onde as imagens mais falam por si só, onde o uso de legendas é completamente dispensável, exceto por um que precede uma sequência lamentável, mas eu já vou chegar lá. E sim, vão ter spoilers daqui pra frente. Dirigido por F. W. Murnau, famoso por filmes como o também alemão Nosferatu e pelo americano Aurora, A Última Gargalhada conta a estória de um idoso porteiro de um elegante hotel em Berlim, porteiro orgulhoso de sua posição, interpretado , que ostenta seu uniforme como se fosse um manto sagrado, um ideal pelo qual viver. Então, repentinamente, tudo isso é tirado dele, levando-o à auto-destruição. A interpretação de Emil Jannings como o carismático porteiro é completa, tendo ápices dramáticos na medida certa, segurando a tensão em momentos mais descontraídos e sempre expressivo, compensando a ausência de diálogos que serviriam para desenvolver o personagem, fazendo com que o espectador sinta todas as emoções que o protagonista sente. Mas acredito que o principal chamariz para o filme é a direção de Murnau, com uma câmera que não é mero espectador das situações, mas também tem um papel ativo na trama, seguindo o porteiro a todo momento e utilizando de técnicas essenciais para se moldar uma narrativa: closes que captam o ápice da intensidade tramática, ângulos baixos que indicam o clima opressivo sentido após a perda do personagem, enfim um prato cheio para quem aprecia o primor técnico de uma película. Eu mencionei uma sequência precedida por legenda no início do texto. Após vermos o porteiro sendo posto para dormir com seu próprio casaco como cobertor, ocorre um fade out e nos deparamos com o único entretítulo de toda a projeção, que diz algo como: "Aqui nossa estória deveria terminar, onde na vida real nosso velho homem mais nenhuma outra perspectiva que não a morte. O autor teve pena dele, entretanto, e providenciou um epílogo improvável". Epílogo, fruto do maldito "dedo de produtor", que desconstruiu tudo que Murnau tinha realizado até então, apelando para a covardia do final feliz. Mas é compreensível isso ter ocorrido tendo em vista o contexto da época: uma Alemanha ainda desmoralizada pela guerra, dificilmente seria receptiva quanto a uma conclusão que deixa uma impressão tão negativa no público. Compreensão, porém nada justificável. Mas este desastroso ato final não tira o brilhantismo de Murnau, um dos maiores realizadores da história da Alemanha e, junto com Fritz Lang e Robert Wiene, um dos principais representantes de um dos movimentos mais férteis do cinema mundial, o expressionismo alemão.
Em seu primeiro longa-metragem, Cláudio Assis mostra a força do cinema independente brasileiro, apresentando domínio impressionante da linguagem cinematográfica , utilizando de tracking shots, plongées e outras técnicas que não são muito usuais de se ver em filmes de estreia. Um momento fantástico da direção de Assis é quando ele filma aquele pessoal do Texas Hotel assistindo televisão com a mesma gradativamente tampando a visão que o espectador tem dos personagens, como se eles estivessem sendo engolidos por aquele "monstro eletrônico" que os aprisiona em suas existências miseráveis. Vou ver se consigo achar o minuto em que esta cena ocorre, até porque ela é bem curta e passa despercebida facilmente, mas se não me engano é antes da primeira hora de filme. Sobre a temática do filme, foi certeiro da parte do roteirista Hilton Lacerda em falar sobre o cotidiano de seus personagens sem focar em um único protagonista, mas sinto que alguns personagens não foram tão bem explorados quanto outros na narrativa, dando a sensação de que "faltou alguma coisa". É interessante notar a atmosfera densa vivida pelos personagens, cujos arquétipos podem ser facilmente encontrados em todos os níveis da sociedade brasileira, não apenas em bairros periféricos. Personagens moralmente ambíguos, uns em busca de redenção, outros se conformando com sua condição, mas todos sem uma real perspectiva de mudança. Todos sendo apenas "estômago e sexo".
A história de Aron Ralston é uma daquelas de se pensar: "Daria um filme". E deu. Um filme dirigido por Danny Boyle, um dos mais ecléticos e respeitáveis cineastas britânicos da atualidade, e estrelado por James Franco, um dos mais...hã...ah, ele é um bom ator. Filme que utiliza de recursos como edição e trilha sonora de maneira tão criativa, que dá um gostinho a mais de se apreciar a trajetória de Aron. E o James Franco dá um show de atuação neste filme, carregando o mesmo nas costas quando a direção de Boyle perde a mão e demonstrando suas limitações técnicas em momentos que a técnicas de câmera utilizadas pelo diretor (mais especificamente a câmera na mão, que dá ao filme um tom documental) ganham maior importância no storytelling. Storytelling que é permeado pelos típicos momentos alucinógenos de Danny Boyle, que renderam sequências antológicas em Trainspotting e Quem Quem Ser um Milionário?, só que desta vez fazendo algo tão artificial e melodramático, que por sorte é compensado pela boa condução do restante da obra.
Fazendo a transição entre a Nouvelle Vague e a fase política de Jean-Luc Godard, Week-End à Francesa é uma obra que transborda metalinguagem, existencialismo e discursos políticos, sofrendo forte influência dos trabalhos de Luis Buñuel, tanto que o próprio O Anjo Exterminador é mencionado de forma explícita em um dos muitos entretítulos que estão presentes em toda película. Entretítulos que pontuam as cenas e ajudam o espectador a entender as mesmas...ou apenas confundem ainda mais, o que não é raro de se acontecer. Vale notar também sua qualidade técnica, refletida no uso recorrente de planos de longa duração, tendo inclusive uma sequência maravilhosa que mostra um engarrafamento caótico, com efeitos sonoros irritantes e personagens que compõem a cena lembrando A Regra do Jogo, de Renoir, que força o espectador a sentir antipatia total por eles; culminando no plano-sequência mais infernal da história do cinema. Com esta obra hermética e hipnotizante, Godard prenuncia o fim: do cinema, das artes, da humanidade, tudo. Pode não ter acertado, pelo menos não por enquanto, em sua previsão, mas certamente acertou ao sepultar a Nouvelle Vague de maneira digna que só um verdadeiro amante do cinema assim poderia fazer.
Abril Despaçado é um filme que me causa incômodo e ao mesmo tempo prazer de assistir. Incômodo por conta de alguns diálogos que são tão artificiais e ainda por cima não combinam com o contexto apresentado para os personagens. Mas não acho que seja culpa dos atores e sim do roteiro, surpreendentemente escrito à cinco mãos, que poderia ter sido um pouco mais desenvolvido neste quesito de diálogos. E prazer pelo resto do filme, basicamente. Santoro está muito bem em uma performance discreta, mas que encaixa perfeitamente no filme. Os planos construídos por Walter Salles são realmente primorosos, alguns remetendo ao trabalho de Tarkovsky, um dos ídolos de Salles, e trazem riqueza à uma narrativa de premissa original e bem executada, mas com alguns deslizes por conta da artificialidade contida em momentos-chave do filme. Obra essencial para quem quer saber um pouco mais sobre a retomada do cinema brasileiro.
Com alusões à Espanha Franquista e alguns conceitos hitchcockianos de como se realizar um bom thriller, Carne Trêmula é mais um legítimo Almodóvar, tendo ainda, como todo bom filme do espanhol, personagens bem desenvolvidos e um enredo que foge do senso-comum, além do bom e velho plot twist característico do diretor, porém de maneira não tão impactante quanto em outras obras. Não sei se Carne Trêmula pode ser colocado entre as melhores obras de Pedro Almodóvar, mas certamente é uma obra que tem muito a oferecer, seja pelo roteiro bem escrito, pela fotografia com cores fortes que parecem pulsar para fora da tela, pelos planos bem orquestrados que contribuem para melhor entendimento da narrativa e pelo filme abortar um dos períodos mais sombrios da história da Espanha nas entrelinhas.
De maneira leve e divertida, Terry Gilliam faz seu trato fílmico contra a razão e as ciências, exaltando a emoção e as artes e como muito bem disse a coleguinha abaixo questionando: "Onde acaba a realidade e começa a ficção? No momento de criarmos narrativas, não estamos criando mundo também?" E falando em criação de mundos, que mundo fantástico foi criado aqui. Um mundo que parece mais um quadro de Dalí pintado para crianças, onde toda e qualquer simples menção à lógica é descartável, As Aventuras de Barão Munchausen é um filme que prefere ser sentido do que entendido, algo que é conseguido com êxito graças ao design de produção que possui uma vivacidade que dificilmente será vista novamente no cinema e ao desempenho dos atores, desde o carismático protagonista interpretado pelo falecido John Neville, passando pelo pythonesco Eric Idle, contando ainda com uma surpreendente Uma Thurman pré-Tarantino e um saudoso Robin Williams. Todos claramente se divertindo em suas performances em um dos filmes mais divertidos da filmografia de Terry Gilliam.
Agora entendo aqueles que criticam a divisão de Ninfomaníaca em dois volumes. Não que esta segunda parte seja dispensável, mas é nitidamente inferior a seu antecessor. O recurso do hipertexto, principal aspecto técnico da primeira parte, e os comentários sobre a condição feminina dão lugar a um enredo sobre a decadência da protagonista em virtude de seu vício. Premissa interessante que remete ao próprio estado de espírito depressivo do diretor quando concebeu sua trilogia, mas que deixa transparecer uma certa misoginia, algo que não percebi em outras obras como Anticristo e Dogville, como muitos acusam. De longe, o mais fraco da última leva de filmes do diretor.
Finalizando a trilogia de quatro filmes de Lars Von Trier, este primeiro volume de Ninfomaníaca é talvez o mais interessante dos três/quatro filmes, onde a temática característica de Von Trier de discutir questões de gênero e repressão feminina se dá de forma mais latente, como se a condição da protagonista fosse algo repugnante pelo simples fato de se tratar de uma mulher obtendo prazer e não por isso prejudicar a sua vida e a forma ela se relaciona com as pessoas. Tendo isso em vista, Ninfomaníaca: Volume 1 é mais uma das obras de Von Trier que buscam fazer críticas à hipocrisia da civilização e que fogem completamente do senso-comum do que deve ser realizado no cinema, recorrendo a um brilhante e por vezes irritante uso de hipertexto para acrescentar um humor negro que pontua o que o Lars tem a dizer com determinadas cenas. O problema principal se dá nas atuações. Tirando a Charlotte Gainsbourg, em mais uma grande colaboração com o diretor, e o empenhado Christian Slater todo o elenco compromete o filme com atuações caricatas, proferindo as linhas de diálogo escritas por Von Trier da maneira mais artificial possível. Não é o melhor do dinamarquês, mas ainda assim está longe de ser um desastre.
Embora a minha ausência de conhecimento sobre a história da Grécia tenha me deixado um pouco deslocado, Z é uma obra que consegue ultrapassar tais barreiras culturais, construindo uma obra-prima universal para todos aqueles que têm um conhecimento básico sobre política. Jean-Louis Trintignant está excelente neste bem escrito e bem montado thriller político, que influenciou não apenas outros filmes do gênero como também em trabalhos de outros cineastas, principalmente no que diz respeito ao uso de edição e trilha sonora.
Que Horas Ela Volta?
4.3 3,0K Assista AgoraEu estou oficialmente na torcida para a indicação e vitória de Que Horas Ela Volta? no Oscar. Embora ainda não tenha visto O Filho de Saul, grande favorito para concorrer na categoria, acho difícil ele superar este novo clássico do cinema brasileiro. Sim, novo clássico. É um filme tecnicamente impecável, que usa e abusa da gramática cinematográfica para tecer simbolismos e críticas à forma como a luta de classes se desenrola no Brasil. Ao ler a expressão "luta de classes", creio que muitos irão me acusar de marxista ou algo do gênero, mas acredito que abrir os olhos para os temas abordados neste filme não é pura questão ideológica, mas sim uma simples questão de bom senso.
Sem falar que seria revigorante ver o primeiro Oscar vencido pelo Brasil ser erguido por uma mulher na cadeira de direção, algo raro de se acontecer neste tipo de premiação, mostrando como o cinema ainda é um universo de predominância masculina, infelizmente. Mas graças às Annas Muylaerts da vida, existe uma perspectiva de mudança deste cenário.
Trono Manchado de Sangue
4.4 121 Assista AgoraBaseado no shakespeariano Macbeth, Trono Manchado de Sangue conta o relato de dois samurais que encontra uma bruxa que prevê que um deles se tornará um senhor de castelo, iniciando uma escalada pelo poder.
Além da premissa interessante, um dos principais méritos do diretor Akira Kurosawa é a construção em dois sentidos: a construção de planos, alguns dos mais marcantes do ponto de vista estético de sua filmografia e a construção de atmosfera; seja nas cenas com a personagem da bruxa, que possui um clima onírico e ao mesmo tempo sobrio e nebuloso; seja nas sequências de introspecção do personagem de Toshiro Mifune, que deixam transparecer paranoia e loucura decorrentes de sua repentina ascensão ao poder.
Falando em Mifune, como ele está incrível no papel. Sempre articulado em sua performance, não apenas nas expressões faciais sempre bem definidas, como nos trejeitos e gestos feitos com as mãos e os pés, que em determinadas cenas mostram a segurança do protagonista e em outros seu total descontrole. Tudo isso para contribuir para a criação de uma das muitas obras de Kurosawa que ilustram como o poder e a ganância nada mais causam do que a destruição de seus personagens e outros danos irreversíveis.
Macbeth de William Shakespeare é considerada uma das obras seminais da dramaturgia. E sob a direção de Akira Kurosawa com o nome de Trono Manchado de Sangue acaba por se tornar uma das obras seminais do cinema, sendo mais um exemplar da grandiosidade de um maiores gênios da história da sétima arte.
Uma História Real
4.2 298Existem dois pontos fora da curva na filmografia de David Lynch. Um é O Homem Elefante, biografia que foi aclamada pela crítica e emocionou plateias mundo afora. Outro é justamente este filme, Uma História Real, biografia que também foi aclamada pela crítica e também emocionou plateias mundo afora.
Reencenando a extravagante estória de Alvin Straight, idoso que viajou centenas de quilômetros em um cortador de grama para fazer as pazes com seu irmão enfermo. Mesmo tendo um elemento surrealista no enredo, o fato da longa viagem ser feita em um trator nada apropriado para este tipo de situação, a estrutura narrativa do filme é bem linear, com um roteiro que rende momentos de pura reflexão e ganha ainda mais força através da direção de Lynch e da atuação de Richard Farnsworth. Este último, aliás, é uma verdadeira força da natureza em sua performance, criando trejeitos únicos para seu personagem e um olhar que carrega um turbilhão de sentimentos dentro de si. Lynch aqui também cala a boca dos críticos mais conservadores que duvidam da capacidade do mesmo como cineasta, mostrando que ele além de um diretor criativo e original, consegue desenvolver uma narrativa estruturada da maneira convencional.
Uma História Real é, acima de tudo, um conto de fadas sobre um homem em busca de redenção e conciliação com o passado, trazendo como principal força motriz a performance de Farnsworth, a última da carreira e uma das melhores de todos os tempos no cinema americano.
O Rei da Comédia
4.0 366 Assista AgoraEm toda parceria entre o ator Robert De Niro e o diretor Martin Scorsese, é possível perceber uma espécie de aura que permeia o filme, como se o espectador estivesse prestigiando uma experiência cinematográfica única, que dificilmente vai sair de sua cabeça tão cedo. Em O Rei da Comédia, não seria diferente.
Acompanhamos no filme a trajetória de Rupert Pupkin, interpretado por De Niro, aspirante a comediante que espelhando-se no seu ídolo, Jerry Langford, interpretado por Jerry Lewis, deseja ser coroado o mais novo rei da comédia. Esta premissa de Sessão da Tarde e a presença do comediante doutorado em pastelão Jerry Lewis engana o mais desavisado dos espectadores, O Rei da Comédia trata-se um denso estudo de personagem e um tratado sobre a obsessão.
O protagonista persegue seu ídolo de maneira incansável e tem recorrentes devaneios com um futuro reluzente onde é bem-sucedido, contrastando com seu presente nublado sem qualquer real motivo para se orgulhar. Dito isso, Rupert Pupkin é um dos personagens mais insanos de toda a filmografia de Martin Scorsese, um psicopata disposto a fazer de tudo para conseguir o que quer. De Niro está impagável em sua atuação, construindo um personagem que é carismático a nível superficial, mas perturbador em sua verdadeira essência.
Vale comentar também que existe um humor neste filme bastante peculiar, que é construído através de situações que ultrapassam a barreira do ridículo, criando uma atmosfera constrangedora impossível de não ser sentida pelo espectador. Mas o que mais me chamou atenção no filme é a ausência de julgamento. Em nenhum momento Scorsese julga seus personagens e suas atitudes, cabe ao público realizar tal tarefa, algo que só diretores com muita segurança no que fazem têm coragem de permitir.
Mesmo não estando entre as mais famosas obras de Martin Scorsese, O Rei da Comédia certamente merecia reconhecimento por se tratar de mais um bom fruto de uma das bem sucedidas parcerias ator-diretor da história do cinema, de Scorsese com De Niro, dois dos melhores em suas posições.
Masculino-Feminino
3.9 159 Assista AgoraA guerra dos sexos é uma constante na filmografia de Jean-Luc Godard, sendo o foco principal da trama em alguns filmes Uma Mulher é Uma Mulher e agora em Masculino Feminino. Mas não apenas isso como a dualidade em geral é bastante discutida na obra. Direita e esquerda, conservadorismo e liberalismo.
Através do olhar de Paul, interpretado por Jean-Pierre Léaud, um jovem militante de esquerda, Godard faz críticas ao pensamento conversador com o auxílio das figuras femininas presentes na obra e também descendo a lenha, como sempre, na Guerra do Vetnã. Tendo isso em vista, já é possível perceber que Godard está muito mais próximo de sua fase política que da nouvelle vague, tendo poucos resquícios da mesma ainda sobreviventes, somente a fotografia ainda pode ser vinculada ao movimento, mesmo ela não tendo sido feita por Raoul Coutard, principal parceria de Godard neste campo.
A cantora Chantal Goya também merece atenção, substituta digna de Anna Karina, mesmo não sendo tão bela ou com presença de tela tão marcante quanto a eterna musa godardiana.
Masculino Feminino ou Os Filhos de Marx e da Coca-Cola, título alternativo sugerido pelo próprio filme, é mais uma excelente obra de Godard, com grandes atuações de Doinel e Goya e diálogos que sutilmente questionam a postura da sociedade francesa da época, sendo retrato eficiente do movimento de contracultura ainda em pleno vigor.
O Cheiro do Ralo
3.7 1,1K Assista AgoraUm certo alguém entra numa espécie de galpão disfarçado de comércio e é recebido por uma figura peculiar de cabeça baixa, olhar desinteressado e vestimenta repleta de cores neutras. A figura então diz algo do tipo: "Sabe este cheiro que tu tá sentindo? É do ralo lá atrás." Este tipo de sequência é algo comum de se acontecer em O Cheiro do Ralo, personagens que adentram de maneira incômoda neste universo amarronzado do protagonista.
Neste filme baseado na obra homônima de Lourenço Mutarelli, acompanhamos o cotidiano de Lourenço, interpretado metodicamente por Selton Mello, vendedor de objetos usados que sempre que pode tira vantagem de seus clientes, até que começa a sentir um cheiro fedorento vindo de seu ralo (simbolismo claro para seu mau caráter). Paralelo a isso, conhece uma garçonete de nome impronunciável por quem ele acaba sentindo um desejo sexual incontrolável.
Lembrando que a garçonete não é a única personagem anônima na trama, nenhum outro personagem com exceção de Lourenço tem um nome, são identificados por sua posição diante do protagonista: segurança, viciada, entregador de pizza, homem da caixa de música. Este aspecto ilustra a falta de empatia que o personagem tem pela vida humana, ele não faz questão de saber o nome nem das pessoas mais próximas dele, todos são vistos como uma escada para atender suas necessidades e desejos mais egoístas.
A direção de Heitor Dhalia é algo exemplar para o cinema brasileiro, fazendo dela mais do que mero espectador das situações; ela também cumpre papel ativo no enredo, mesmo Dhalia perdendo a mão em alguns momentos. A atuação de Selton Mello também é fundamental na narrativa; como eu disse acima, Lourenço está sempre desviando o olhar das pessoas e quando olha, sempre demonstra estar completamente insatisfeito com o que vê. O figurino e o design de produção também exercem grande influência utilizando de cores neutras que refletem sua personalidade anti-heroica e a forma como os objetos estão dispostos em cena sugerem um caos interior que gradualmente incomoda o meticuloso personagem.
Tendo tudo isso em vista, é possível definir O Cheiro do Ralo como um grande estudo de personagem, de um dos personagens mais antipáticos e moralmente complexos da história recente do cinema nacional.
Conta Comigo
4.3 1,9K Assista AgoraDe todos os ditos clássicos da Sessão da Tarde, Conta Comigo foi o único que não tive nenhum contato durante a minha infância/adolescência. Ainda bem, pois é um filme que exige certa maturidade.
Baseado em uma novela de Stephen King, Conta Comigo conta a estória de quatro amigos por volta de seus 14 anos que saem em busca do cadáver de um jovem desaparecido em busca de uma inesquecível aventura, além de reconhecimento por tal ato de heroísmo. Mesmo tendo o enredo de um filme de Sessão da Tarde oitentista, não o vejo como um filme para crianças. Não que crianças não possam vê-lo e gostar do que estão vendo, mas acredito que um adulto possa apreciar melhor esta pérola de Rob Reiner ao vê-la como uma espécie de máquina do tempo para o passado.
Conta Comigo é uma obra que pode ser resumida em uma palavra: nostalgia. Nostalgia por uma época tão dourada da vida humana que uma vez acabada, dificilmente é revisitada; Nostalgia por um tipo de cinema que nunca mais será realizado nos estúdios hollywoodianos e se for, certamente não terá a mesma magia presente em Conta Comigo, filme que deixa transparecer a paixão de um cineasta por sua obra.
Adaptando Stephen King, Rob Reiner pode não ter sido aclamado como gênio da sétima arte como Kubrick foi ao fazer O Iluminado, mas certamente deixou sua marca com uma grande experiência cinematográfica, sendo um grandes retratos já feitos sobre a infância e as amizades que nascem e morrem, mas nunca são esquecidas.
O Bandido da Luz Vermelha
3.9 268 Assista Agora"Trata-se de um faroeste sobre o terceiro Mundo". Esta é uma das primeiras frases proferidas em O Bandido da Luz Vermelha por volta de um minuto de filme e o mais próximo que se tem de uma descrição em poucas palavras sobre este filme.
Baseado no relato real sobre João Acácio Pereira, o Bandido da Luz Vermelha do título, nós vemos a sua trajetória invadindo residências, fugindo da polícia e se encontrado com Janete Jane, interpretada pela musa Helena Ignez. Mas isso é apenas a camada mais superficial da narrativa, uma das mais fragmentadas da história do cinema brasileiro, influência direta de Jean-Luc Godard, um dos ídolos do diretor Rogério Sganzerla. Não apenas na ausência de linearidade é perceptível esta influência como na escolha de planos e estilo de filmagem que parecem simular Acossado sempre que possível.
Mas o principal fator estético é a narração feita por um casal de locutores que fazem comentários debochados e irônicos de uma acidez crítica que acaba por deixar transparecer a hipocrisia da sociedade brasileira. Por exemplo, na cena em que um homem diz ser "favorável à pena de morte e favorável à sociedade", levantando a bandeira da família paulistana em seguida. Como isso é atual.
Rogério Sganzerla é um dos principais representante do chamado cinema marginal não por acaso e O Bandido da Luz Vermelha é sua derradeira obra-prima. Caótica, premonitória e vulgar obra-prima. Agora corram que o Terceiro Mundo vai explodir!
Terra em Transe
4.1 286 Assista AgoraGlauber Rocha é sempre sinônimo de uma experiência de conteúdo hermético e forma caótica, desrespeitando todas as regras de uma narrativa convencional. E com Terra em Transe não seria diferente.
Localizado no país fictício de Eldorado, artifício utilizado pelo diretor para criticar o Brasil em plena ditadura, vemos críticas ao populismo através da figura do político de esquerda Felipe Vieira e também ao conservadorismo através do reacionário Porfírio Diaz, figuras opostas que são colocadas no mesmo patamar, de parasitas que sugam o que podem do povo para alcançar seus interesses próprios, mostrando que o poder está nas mãos das pessoas erradas, dando a entender que o povo deveria se auto-governar. Porém, em determinado momento envolvendo o personagem Jerônimo, o próprio povo é destronado e desqualificado, mostrando que o poder também não deve estar nas mãos da massa, sem contar que o anarquista Paulo Martins também acaba por fazer parte do sistema que ele tanto ataca. Conclusão: é um filme niilista, afirmando que onde quer que esteja localizado o poder político, as consequências geradas sempre serão negativas.
Tecnicamente falando, é igualmente impressionante. A fotografia de Luiz Carlos Barreto é impecável, uma das mais belas do P&B nacional, desde a sequência de abertura utilizando um plano aéreo sobrevoando "Eldorado" à ultima cena com um plano aberto mostrando Paulo Martins fazendo uma performance hipnótica com sua arma. Falando em performances, estas são essenciais para o sucesso do filme, são atuações escandalosas e exageradas, colaborando para construir a atmosfera caótica da obra; todo o elenco está de parabéns.
Terra em Transe é um dos grandes filmes do nosso cinema, fruto da imaginação de um gênio louco e profético que mesmo sendo por vezes contraditório, conseguiu deixar sua marca na sétima arte com apenas "uma ideia na cabeça e uma câmera na mão".
Vidas Secas
3.9 278Faz uns dois anos que li Vidas Secas de Graciliano Ramos, um dos livros que me mostrou a força da literatura brasileira. Hoje assisti Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos, filme que me mostrou a força do cinema brasileiro.
Uma das poucas adaptações que consegue bater de frente com o material original, Vidas Secas conta a estória de uma família que, durante uma seca, caminha pelo sertão nordestino em busca de melhores condições de vida, ou melhor dizendo, de sobrevivência. Sim, sobrevivência. Pois tirando um momento ou outro, toda ação dos personagens principais é realizada visando a sobrevivência, até mesmo sua economia em trocar palavras entre si, como se assim pudessem preservar energias e ganhar mais tempo hábil de vida.
A câmera aqui não é só um instrumento de registro histórico como também mostra a direção inteligente de Nelson Pereira dos Santos, que constrói seus planos de forma minimalista, mas eficiente; sendo alguns dignos de serem emoldurados e outros angustiantes propositalmente e ainda outros com ambas características: são apavorantes por conta do contexto do filme, mas ao mesmo tempo satisfatórios de se assistir.
Enquanto Glauber Rocha e Rogério Sganzerla bebiam da fonte da nouvelle vague, Nelson Pereira optou por se inspirar no neorrealismo italiano, trazendo à tona um cinema mais acessível que o de seus companheiros de movimento, não ficando atrás deles no que diz respeito à experiência cinematográfica, uma das mais ricas do nosso cinema e fundamental para o surgimento de outros nomes importantes do cinema nacional como Fernando Meirelles e Walter Salles.
Cabra Marcado Para Morrer
4.5 253 Assista AgoraEduardo Coutinho certamente não fazia ideia do impacto que sua decisão de retomar Cabra Marcado Para Morrer iria fazer no cinema brasileiro. E não apenas no cinema brasileiro como na cultura brasileira em geral.
O documentário disserta sobre o assassinato de João Pedro Teixeira, líder camponês que lutou contra o latifúndio, durante o estopim da Ditadura Militar e a repercussão que sua morte gerou mesmo 20 anos depois do ocorrido.
Existe uma força narrativa em Cabra Marcado Para Morrer que vem de seus personagens. Personagens da vida real que em pouco tempo de tela ganham a simpatia do espectador. E tem uma personagem em especial que merece destaque: Elizabeth, viúva de João Pedro. Como um dos seus filhos diz: "Ela é uma verdadeira doutora, uma escola". E digo mais, Dona Elizabeth é mais do que uma escola, é uma universidade inteira de perseverança e sabedoria em forma de gente.
Existe outro personagem importante na trama que é a câmera de Eduardo Coutinho; nas mãos de outro diretor, Cabra Marcado... poderia se tornar algo melodramático. Coutinho porém, opta por fazer algo naturalista, deixando a emoção nascer espontaneamente, sem usar de artifícios rasteiros como trilha sonora carregada ou ângulos que ressaltam a emoção desnecessariamente.
Outro aspecto interessante a ser notado: o fato do filme ter sua produção interrompida no início do regime militar e ter seu lançamento finalmente quando o mesmo já se encontrava em seus momentos finais. É como se o cinema de Coutinho estivesse de luto pelo momento que o país passou a viver e depois se reerguesse como uma fênix após a volta da democracia. Não deve ter sido proposital, é claro, mas fica a observação.
Eduardo Coutinho não é somente um dos nomes mais conhecidos do cinema nacional como um dos mais habilidosos documentaristas que o mundo já viu e Cabra Marcado Para Morrer talvez seja a maior obra-prima que este gênio do nosso cinema pode nos entregar, sendo com certeza o melhor documentário da história do cinema brasileiro.
Limite
4.0 168 Assista AgoraRecentemente, Limite foi eleito pela Abraccine, a Associação Brasileira de Críticos de Cinema, como o melhor filme brasileiro de todos os tempos. Se é efetivamente o melhor eu não sei, mas está entre os mais merecem ser vistos.
Escrever uma sinopse sobre este filme parece-me algo imprudente de se fazer, mas acho que vale o esforço. Vemos um homem e duas mulheres à deriva em um barco, enquanto contam um para o outro como teriam chegado nesta situação. Premissa interessante que certamente dá um bom enredo, mas enredo é o aspecto menos interessante de Limite.
A beleza dos planos de Peixoto e sua montagem vanguardista são o principal atrativo desta hermética obra-prima de nosso cinema, carregada de uma atmosfera lírica e onírica, sendo mais uma das obras que inquietam a humanidade sobre seu real significado. Interpretações podem ser feitas, embora a tentação de simplesmente se apreciar as imagens do que entendê-las de maneira lógica seja realmente avassaladora.
Para os espectadores mais conservadores, Limite pode ser uma experiência indigesta e aborrecida; já para os mais liberais, uma experiência única no cinema, onde vida é expelida para fora da tela e Arte toma forma em seu mais puro estado. Porém uma coisa é certa: estamos diante de um filme que, sem trocadilhos, explora os limites do cinema, seja para ser aplaudido ou vaiado. Mas nunca ignorado.
Noite Vazia
4.1 88Diferente de seus contemporâneos do Cinema Novo, que abordavam os problemas político-sociais envolvendo o proletariado brasileiro, Walter Hugo Khouri abordava os problemas existenciais da burguesia nacional. E Noite Vazia talvez seja o filme que melhor aborda estes problemas.
Acompanhamos a trajetória de Nelson e Luisinho, dois amigos da elite paulistana, que saem em uma noitada buscando prazer e escapar de seus laços matrimoniais e familiares. Encontram então duas prostitutas, interpretadas pelas icônicas Norma Bengell e Odete Lara, que compartilham do mesmo desejo de fuga da realidade e consequentemente, um vazio existencial que permeiam suas vidas.
Noite Vazia pode ser descrito como o encontro de Antonioni e Bergman em um país de terceiro mundo, onde a câmera assume papel ativo, seguindo o exemplo dos dois citados mestres do cinema europeu e construindo alguns do planos mais prazerosos de se assistir no cinema nacional.
Confesso que não apreciei a forma como os atores declamam o texto de Khouri, que são riquíssimos em questionamentos, embora um pouco datados por conta do dialeto da época. Em compensação, as expressões...Que expressões faciais. O que os atores de Khouri não conseguem expressar pelos diálogos, eles expressam com suas feições, carregadas de angústias tão humanas e tão palpáveis que dificilmente vão sair do imaginário do espectador tão cedo.
Walter Hugo Khouri pode não ser um dos cineastas mais conhecidos do Brasil, mas quem já teve contato com sua obra sabe que ele é um dos maiores autores que o nosso cinema já teve, utilizando-se da elite brasileira para falar sobre questões que são pertinentes a qualquer ser humano que já se encontrou angustiado com sua própria existência.
Frankenweenie
3.8 1,5K Assista AgoraExistem certos filmes que claramente expressam o amor de um cineasta por aquilo que ele faz. Frankenweenie, de Tim Burton, é um belo exemplo disso. Refilmagem de um curta realizado pelo diretor ainda no início da carreira, Frankenweenie conta a narrativa de Victor que após perder seu amado cão de estimação, resolve fazer um experimento para ressuscitá-lo. Enredo simples, mas que acaba por ser muito bem executado.
Burton volta às raízes com o uso de stop-motion e uma narrativa que remete diretamente à sua infância prestando homenagem a todos os filmes clássicos de horror da Universal, como Frankenstein, O Homem Invisível, A Noiva de Frankenstein, O Lobisomem, etc. Além de homenagear, como em muitas outras obras de sua filmografia, o expressionismo alemão, seja no jogo de sombras e luz ou no design dos personagens que mais parecem uma versão infantil dos personagens peculiares e espalhafatosos de Dr. Caligari.
Como toda película do diretor, o design de produção é um show a parte, sendo parte integral da narrativa visual do filme e compensando quando o roteiro deixa a desejar, o que ocorre com frequência, acredito que por conta da curta duração, que não permite que os personagens sejam bem desenvolvidos, ocasionando situações que realmente incomodam quem aprecia uma narrativa bem construída (lembre-se da postura dos pais de Victor, muitas vezes inverossímil), mesmo Frankenweenie sendo um filme infantil; afinal, nossos pequenos têm direito de saber o que é cinema de qualidade desde cedo e acredite, eles são mais exigentes do que se imagina.
Enfim, um dos filmes mais interessantes do Tim Burton, sendo um que ele visivelmente se empenhou para dar o seu melhor, mesmo deixando evidente uma certa fragilidade narrativa, mas nada que estrague a experiência de ver mais um bom filme "de cinéfilos para cinéfilos".
A Última Gargalhada
4.2 104 Assista AgoraA Última Gargalhada talvez seja o mais cinematográfico filme do expressionismo alemão, no sentido de ser a obra onde as imagens mais falam por si só, onde o uso de legendas é completamente dispensável, exceto por um que precede uma sequência lamentável, mas eu já vou chegar lá. E sim, vão ter spoilers daqui pra frente.
Dirigido por F. W. Murnau, famoso por filmes como o também alemão Nosferatu e pelo americano Aurora, A Última Gargalhada conta a estória de um idoso porteiro de um elegante hotel em Berlim, porteiro orgulhoso de sua posição, interpretado , que ostenta seu uniforme como se fosse um manto sagrado, um ideal pelo qual viver. Então, repentinamente, tudo isso é tirado dele, levando-o à auto-destruição.
A interpretação de Emil Jannings como o carismático porteiro é completa, tendo ápices dramáticos na medida certa, segurando a tensão em momentos mais descontraídos e sempre expressivo, compensando a ausência de diálogos que serviriam para desenvolver o personagem, fazendo com que o espectador sinta todas as emoções que o protagonista sente. Mas acredito que o principal chamariz para o filme é a direção de Murnau, com uma câmera que não é mero espectador das situações, mas também tem um papel ativo na trama, seguindo o porteiro a todo momento e utilizando de técnicas essenciais para se moldar uma narrativa: closes que captam o ápice da intensidade tramática, ângulos baixos que indicam o clima opressivo sentido após a perda do personagem, enfim um prato cheio para quem aprecia o primor técnico de uma película.
Eu mencionei uma sequência precedida por legenda no início do texto. Após vermos o porteiro sendo posto para dormir com seu próprio casaco como cobertor, ocorre um fade out e nos deparamos com o único entretítulo de toda a projeção, que diz algo como: "Aqui nossa estória deveria terminar, onde na vida real nosso velho homem mais nenhuma outra perspectiva que não a morte. O autor teve pena dele, entretanto, e providenciou um epílogo improvável". Epílogo, fruto do maldito "dedo de produtor", que desconstruiu tudo que Murnau tinha realizado até então, apelando para a covardia do final feliz. Mas é compreensível isso ter ocorrido tendo em vista o contexto da época: uma Alemanha ainda desmoralizada pela guerra, dificilmente seria receptiva quanto a uma conclusão que deixa uma impressão tão negativa no público. Compreensão, porém nada justificável. Mas este desastroso ato final não tira o brilhantismo de Murnau, um dos maiores realizadores da história da Alemanha e, junto com Fritz Lang e Robert Wiene, um dos principais representantes de um dos movimentos mais férteis do cinema mundial, o expressionismo alemão.
Amarelo Manga
3.8 543 Assista AgoraEm seu primeiro longa-metragem, Cláudio Assis mostra a força do cinema independente brasileiro, apresentando domínio impressionante da linguagem cinematográfica , utilizando de tracking shots, plongées e outras técnicas que não são muito usuais de se ver em filmes de estreia. Um momento fantástico da direção de Assis é quando ele filma aquele pessoal do Texas Hotel assistindo televisão com a mesma gradativamente tampando a visão que o espectador tem dos personagens, como se eles estivessem sendo engolidos por aquele "monstro eletrônico" que os aprisiona em suas existências miseráveis. Vou ver se consigo achar o minuto em que esta cena ocorre, até porque ela é bem curta e passa despercebida facilmente, mas se não me engano é antes da primeira hora de filme.
Sobre a temática do filme, foi certeiro da parte do roteirista Hilton Lacerda em falar sobre o cotidiano de seus personagens sem focar em um único protagonista, mas sinto que alguns personagens não foram tão bem explorados quanto outros na narrativa, dando a sensação de que "faltou alguma coisa". É interessante notar a atmosfera densa vivida pelos personagens, cujos arquétipos podem ser facilmente encontrados em todos os níveis da sociedade brasileira, não apenas em bairros periféricos. Personagens moralmente ambíguos, uns em busca de redenção, outros se conformando com sua condição, mas todos sem uma real perspectiva de mudança. Todos sendo apenas "estômago e sexo".
127 Horas
3.8 3,1K Assista AgoraA história de Aron Ralston é uma daquelas de se pensar: "Daria um filme". E deu. Um filme dirigido por Danny Boyle, um dos mais ecléticos e respeitáveis cineastas britânicos da atualidade, e estrelado por James Franco, um dos mais...hã...ah, ele é um bom ator. Filme que utiliza de recursos como edição e trilha sonora de maneira tão criativa, que dá um gostinho a mais de se apreciar a trajetória de Aron. E o James Franco dá um show de atuação neste filme, carregando o mesmo nas costas quando a direção de Boyle perde a mão e demonstrando suas limitações técnicas em momentos que a técnicas de câmera utilizadas pelo diretor (mais especificamente a câmera na mão, que dá ao filme um tom documental) ganham maior importância no storytelling. Storytelling que é permeado pelos típicos momentos alucinógenos de Danny Boyle, que renderam sequências antológicas em Trainspotting e Quem Quem Ser um Milionário?, só que desta vez fazendo algo tão artificial e melodramático, que por sorte é compensado pela boa condução do restante da obra.
Week-End à Francesa
3.8 108Fazendo a transição entre a Nouvelle Vague e a fase política de Jean-Luc Godard, Week-End à Francesa é uma obra que transborda metalinguagem, existencialismo e discursos políticos, sofrendo forte influência dos trabalhos de Luis Buñuel, tanto que o próprio O Anjo Exterminador é mencionado de forma explícita em um dos muitos entretítulos que estão presentes em toda película. Entretítulos que pontuam as cenas e ajudam o espectador a entender as mesmas...ou apenas confundem ainda mais, o que não é raro de se acontecer.
Vale notar também sua qualidade técnica, refletida no uso recorrente de planos de longa duração, tendo inclusive uma sequência maravilhosa que mostra um engarrafamento caótico, com efeitos sonoros irritantes e personagens que compõem a cena lembrando A Regra do Jogo, de Renoir, que força o espectador a sentir antipatia total por eles; culminando no plano-sequência mais infernal da história do cinema.
Com esta obra hermética e hipnotizante, Godard prenuncia o fim: do cinema, das artes, da humanidade, tudo. Pode não ter acertado, pelo menos não por enquanto, em sua previsão, mas certamente acertou ao sepultar a Nouvelle Vague de maneira digna que só um verdadeiro amante do cinema assim poderia fazer.
Abril Despedaçado
4.2 673Abril Despaçado é um filme que me causa incômodo e ao mesmo tempo prazer de assistir. Incômodo por conta de alguns diálogos que são tão artificiais e ainda por cima não combinam com o contexto apresentado para os personagens. Mas não acho que seja culpa dos atores e sim do roteiro, surpreendentemente escrito à cinco mãos, que poderia ter sido um pouco mais desenvolvido neste quesito de diálogos. E prazer pelo resto do filme, basicamente. Santoro está muito bem em uma performance discreta, mas que encaixa perfeitamente no filme. Os planos construídos por Walter Salles são realmente primorosos, alguns remetendo ao trabalho de Tarkovsky, um dos ídolos de Salles, e trazem riqueza à uma narrativa de premissa original e bem executada, mas com alguns deslizes por conta da artificialidade contida em momentos-chave do filme. Obra essencial para quem quer saber um pouco mais sobre a retomada do cinema brasileiro.
Carne Trêmula
4.0 585Com alusões à Espanha Franquista e alguns conceitos hitchcockianos de como se realizar um bom thriller, Carne Trêmula é mais um legítimo Almodóvar, tendo ainda, como todo bom filme do espanhol, personagens bem desenvolvidos e um enredo que foge do senso-comum, além do bom e velho plot twist característico do diretor, porém de maneira não tão impactante quanto em outras obras. Não sei se Carne Trêmula pode ser colocado entre as melhores obras de Pedro Almodóvar, mas certamente é uma obra que tem muito a oferecer, seja pelo roteiro bem escrito, pela fotografia com cores fortes que parecem pulsar para fora da tela, pelos planos bem orquestrados que contribuem para melhor entendimento da narrativa e pelo filme abortar um dos períodos mais sombrios da história da Espanha nas entrelinhas.
As Aventuras do Barão Munchausen
3.9 111 Assista AgoraDe maneira leve e divertida, Terry Gilliam faz seu trato fílmico contra a razão e as ciências, exaltando a emoção e as artes e como muito bem disse a coleguinha abaixo questionando: "Onde acaba a realidade e começa a ficção? No momento de criarmos narrativas, não estamos criando mundo também?"
E falando em criação de mundos, que mundo fantástico foi criado aqui. Um mundo que parece mais um quadro de Dalí pintado para crianças, onde toda e qualquer simples menção à lógica é descartável, As Aventuras de Barão Munchausen é um filme que prefere ser sentido do que entendido, algo que é conseguido com êxito graças ao design de produção que possui uma vivacidade que dificilmente será vista novamente no cinema e ao desempenho dos atores, desde o carismático protagonista interpretado pelo falecido John Neville, passando pelo pythonesco Eric Idle, contando ainda com uma surpreendente Uma Thurman pré-Tarantino e um saudoso Robin Williams. Todos claramente se divertindo em suas performances em um dos filmes mais divertidos da filmografia de Terry Gilliam.
Ninfomaníaca: Volume 2
3.6 1,6K Assista AgoraAgora entendo aqueles que criticam a divisão de Ninfomaníaca em dois volumes. Não que esta segunda parte seja dispensável, mas é nitidamente inferior a seu antecessor. O recurso do hipertexto, principal aspecto técnico da primeira parte, e os comentários sobre a condição feminina dão lugar a um enredo sobre a decadência da protagonista em virtude de seu vício. Premissa interessante que remete ao próprio estado de espírito depressivo do diretor quando concebeu sua trilogia, mas que deixa transparecer uma certa misoginia, algo que não percebi em outras obras como Anticristo e Dogville, como muitos acusam. De longe, o mais fraco da última leva de filmes do diretor.
Ninfomaníaca: Volume 1
3.7 2,7K Assista AgoraFinalizando a trilogia de quatro filmes de Lars Von Trier, este primeiro volume de Ninfomaníaca é talvez o mais interessante dos três/quatro filmes, onde a temática característica de Von Trier de discutir questões de gênero e repressão feminina se dá de forma mais latente, como se a condição da protagonista fosse algo repugnante pelo simples fato de se tratar de uma mulher obtendo prazer e não por isso prejudicar a sua vida e a forma ela se relaciona com as pessoas. Tendo isso em vista, Ninfomaníaca: Volume 1 é mais uma das obras de Von Trier que buscam fazer críticas à hipocrisia da civilização e que fogem completamente do senso-comum do que deve ser realizado no cinema, recorrendo a um brilhante e por vezes irritante uso de hipertexto para acrescentar um humor negro que pontua o que o Lars tem a dizer com determinadas cenas. O problema principal se dá nas atuações. Tirando a Charlotte Gainsbourg, em mais uma grande colaboração com o diretor, e o empenhado Christian Slater todo o elenco compromete o filme com atuações caricatas, proferindo as linhas de diálogo escritas por Von Trier da maneira mais artificial possível. Não é o melhor do dinamarquês, mas ainda assim está longe de ser um desastre.
Z
4.4 122Embora a minha ausência de conhecimento sobre a história da Grécia tenha me deixado um pouco deslocado, Z é uma obra que consegue ultrapassar tais barreiras culturais, construindo uma obra-prima universal para todos aqueles que têm um conhecimento básico sobre política. Jean-Louis Trintignant está excelente neste bem escrito e bem montado thriller político, que influenciou não apenas outros filmes do gênero como também em trabalhos de outros cineastas, principalmente no que diz respeito ao uso de edição e trilha sonora.