O Giallo tomado pela melancolia não expressa mais aquele estilo característico, aqueles momentos catárticos e aquelas imagens inesquecíveis que uma vez Argento já foi capaz de exprimir.
Com exceção do primeiro assassinato que anuncia e localiza o espectador em um filme do gênero e do autor, todas as outras mortes parecem não interessar Argento como antes, seu foco é integralmente dedicado a vítima. De fato, como outros comentaram nas reviews, soa semelhante a uma Mea Culpa, um Argento cansado de fetichizar a violência, mas interessado em dar um destino genuíno e merecido a uma personagem que sintetiza muitas das que passaram por suas lentes.
É triste, mas parece um final. Seus filmes sempre me marcaram por se encerrarem bruscamente. Era o que era, sem rodeios. A encenação de um renascimento da protagonista, um caminho para que ela continue talvez seja o que Argento gostaria de permitir como último ato.
O pouco que vi de Kaurismaki sempre me levou ao mesmo sentimento: o de indiferença. Confesso ser difícil para mim separar o método respeitado de filmar do diretor, enxugando trejeitos e minando particularidades de seus personagens com o que faz um Lanthimos, por exemplo. Essa frontalidade para narrar ao mesmo tempo que busca uma melancolia tomando o ambiente enquanto se diverte nas quebras de expectativas e ações curiosas da protagonista, também flerta com o desinteresse pelo que conta. Neste caso em específico, diria que o desinteresse tomou as ideias de Kaurismaki por completo, nem os poucos 60 minutos foram capazes de sustentar The Match Factory Girl...
O personagem do diretor do filme pornô deixa bem evidente o que Ti West está se propondo aqui, dado o caráter cômico e satírico do discurso de "fazer mais que um filme pornô, fazer cinema etc". Mesmo trabalhando com a A24 e referenciando o filme clássico de Tobe Hooper em diversos momentos, West se interessa em fazer o seu slasher, o seu filme de cabana, sem ficar na tão desgastada retroalimentação de referências e sinalizações de conhecimento da história do cinema. "X" é um filme que tem a consciência da história do gênero e quer somente utilizar de suas regras para fazer a sua versão de slasher. Não quer se elevar a mais nada, não quer repensar o seu gênero base, somente tomar aquilo como premissa e se divertir.
Até acho forçado demais a discussão sobre o modo como West trabalha os idosos e quais as implicações no modo como ele trata aqueles corpos debilitados em contraponto com a jovialidade da protagonista.
Por mais que o cerne do filme passe por esta contraposição, vejo "X" muito mais como um desprendimento do tal horror contemporâneo, liberto das principais tensões que perturbam filmes de Eggers e Aster, e mais próximo do Cinema de Wingard (lá mais interessado nos anos 80, aqui na década anterior).
Um filme que tem pouquíssimo a se debater além da mera captura de fatos que, se forem tratados como reveladores ou de denúncia, só dizem mais sobre o espectador do que sobre a indústria pecuária em si. Digo isso, pois, em minha visão, observar a linha de produção/vida de uma vaca em pleno século XXI e sair surpreso ou chocado é uma clara confissão de ignorância do espectador, de falta de informação e consciência social mesmo. É difícil de acreditar que quem acessa esse filme não faz ideia de como um animal é tratado enquanto mercadoria, no modo como se esvazia qualquer traço de consciência, como são manipulados sem compaixão.
Confrontar essas imagens - espero eu - serão sempre tristes, angustiantes e causarão conflitos nas nossas ações futuras enquanto consumidores dessa cadeia; só que para por ai. Talvez uns 20 anos atrás, como foi Terráqueos, Cow poderia ser considerado um filme-denúncia, mas hoje não passa de redundância e obviedade.
Mais triste ainda é pensar "Cow" e encarar um grandioso nada de temas além da discussão sobre o que o filme expõe ser corajoso ou meramente expositivo. "Gunda" e tantos outros documentários também se pautam em capturar o cotidiano de animais, de buscar reconhecer ações e sentimentos que nos façam interpretar aqueles bichos com maior "humanidade". O problema é que não consigo pensar em nenhum desses documentários que fujam do óbvio de 1.abordar suas personagens de maneira impessoal e exploratória; 2.criar intimidade com os animais, antropomorfizando-os; 3.revelar como o capitalismo os transformaram em coisas; 4.chocar os espectadores alienados com a real forma do sistema que estes utilizam.
Nenhum tema é esgotável, tudo já foi filmado, mas acredito que estamos em um momento de consciência - especificamente sobre este tema - que exige algo a mais do que buscar o choque pela exposição do óbvio.
Precisamos reinventar a forma e paralelamente destruir a pecuária.
Filme que não tem começo, nem fim, sendo só um miolo para uma pretensão de fechar a trilogia daqui alguns anos. O curioso que mesmo assim consegue ser bem bom. É claro que para fazer um filme desse é preciso muito orçamento e CGI, porém Krasinski consegue passar um ar quase artesanal para seu filme, pelo simples fato de não transformar seu universo em algo megalomaníaco ou apoteótico demais; é semelhante a carreira atual do Soderbergh. Não é sobre fazer com pouco, mas se concentrar em um microcosmo e tirar dinâmicas e sensações provando que não precisa de nada além disso. Arrisco que talvez essa seja uma tendência que ainda durará bons anos como uma oposição as fórmulas atuais de Marvel, Netflix e derivados (talvez o próprio Top Gun de 2022 entre nesse balaio).
Sobre o filme em si, seus maiores acertos são quando há o casamento entre a montagem paralela e o bom esquema dramático construído com os monstros. A ideia de mundo de "Um Lugar Silencioso" tem muito a ser aproveitado. Gostando ou não, temos que aceitar que é um "dispositivo" que abre um mundo de possibilidades interessantíssimas; e é fato que Krasinski não aproveita nem metade do que poderia devido a suas limitações. Mas é justamente ao respeitar seu modus operandi básico de direção que constrói boas peças e, em seus enxutos 90 minutos, nos faz passar por 3 ou 4 grandes momentos favorecidos pela montagem e sustentados por um mundo que possibilita tensões diversas.
No fim do dia, é um exercício bem honesto e divertido de gênero, tem aquela sensação de que poderia ser muito mais criativo, mas é melhor do que a grande maioria do que vemos atualmente.
Mais um entre os filmes pouco conhecidos de Tourneur que surpreende pela sua beleza. Na segunda metade do filme, entra a neve e com ela o filme ganha um tom onírico, mítico, no qual os personagens de fato viram heróis, o que é muito belo de se acompanhar. Desde o principio o filme soa como um conto, um relato narrado sobre grandes figuras que resistiram ao Nazismo e, por isso mesmo, a parte final parece aquela ação inflada por quem a conta, dando créditos e glórias a seres humanos que representam o heroísmo da história. Daria para citar algumas cenas que Tourneur filma que são de vanguarda, realmente muito impactante, mas a minha preferida é a da "neve caindo". De uma sutileza ao mesmo tempo óbvia e delicada.
E assim encerro minha jornada pelos documentários do Coutinho, curiosamente com o que mais se relaciona com finais, morte e posteridade.
Que me desculpe Glauber, Neville, Nelson e outros que tanto interpretaram nosso país por suas câmeras e ficções, mas Coutinho talvez tenha obtido através da sua linguagem mínima a abordagem mais reveladora do nosso povo. Ironicamente, fez tudo isso sem nunca tentar revelar, investigar ou descobrir algo novo, mas somente levando sua intenção de conversar e ouvir para onde quer que fosse.
Há algo de inominável, de metafísico - que tantos já tentaram transcrever em textos e artigos - que faz seu Cinema ser tão hipnotizante, tão curioso, tão sensível. Alguns vão pontuar como a forma de seus documentários e seu método seriam o cerne de seu funcionamento, ou seja, o modo como Coutinho tira da frente qualquer mecanismo que reforce a presença do dispositivo auxiliada por uma pesquisa minuciosa para escolha dos participantes. Outros vão se interessar muito mais pelos personagens em si, pelo "conteúdo", histórias tão riquíssimas dissipadas por Brasil a fora que carregam tanta sabedoria e quase ninguém para ouvir. A própria proposta de Coutinho em dar voz a essas pessoas como suficientemente interessante.
Entretanto, tem de ter algo mais poderoso que isso, tantos já tentaram reproduzir o método e o formato, mas não chegaram perto da delicadeza dele. Acho que Coutinho tem uma sensibilidade para acessar a humanidade de cada entrevistado e transformar aquela conversa em uma terapia que liberta para a eternidade a luta de cada um deles que possui nuances difíceis de reproduzir. Além disso, acredito a dificuldade que deva ser estar aberto ao acaso, ao chegar sem pauta e sair com o que o que fosse possível obter. Ele sempre esteve disposto ao descontrole.
Coutinho era de fato um diretor à parte de todo o resto, concentrou-se em temas universais e aqui, ao confrontar a terceira idade, inevitavelmente falou muito sobre a morte. Machuca demais os novos significados que isso aqui criou com o tempo. Eu queria tantos e tantos mais filmes desse homem.
Derrickson achou que uma máscara bizarra e meia dúzia de jump scares com fantasmas de crianças seriam o suficiente para seu filme ser tenso ou assustador. Há filmes que entendem muito mal a tal ideia de "Poder da imagem" e acreditam que a mera criação de imagens por uma mise en scene tão pobre, pautadas em slow motion e trilha ascendente, seriam o suficiente para despertar qualquer sensação no espectador. Quando na realidade diretores que são marcados por essa ideia - como De Palma ou Argento - são antes de tudo geniais encenadores e somente alcançam estas sensações indescritíveis por meio de suas imagens porque dominam um estilo e uma maneira de filmar como ninguém mais faz. O bizarro, o choque, o medo que eles provocam não vem porque suas imagens são medonhas por si só, e sim porque souberam construir todo um método autoral de chegar até elas. Algo que Derrickson nem arranha aqui.
O que mais acontece em "The Black Phone" são atestados da incapacidade de Derrickson em construir estes momentos de suspense, sempre apelando para uma violência ou mal estar que não soam verdadeiros. Eu estava interessado naquele subúrbio com a violência tão presente na vida daquelas crianças, como se fosse impossível fugir daquilo em qualquer canto que elas fossem. Entretanto, é tão genérico o modo como ele filma a partir da entrada do Sequestrador que aquele mundo é substituído por um porão cinzento e um telefone vazio de simbolismos. Ainda assim consegue ser pior ao buscar o flerte com o terror setentista e as imagens granuladas na tentativa de remeter ao supracitado Massacre da Serra Elétrica, mas também indiretamente a diversos outros filmes da época, como Aniversário Macabro do Craven e derivados.
O mundo fora do porão para de pulsar aquele ímpeto violento do começo do filme e o que vemos na parte de dentro é, sem outra palavra melhor para definir, genérico. As comparações com o debut do Craven me vêm muito a mente por aquele ser um filme muito sustentado pela falta de motivações dos sequestradores - o que lá fazia todo "sentido", pois externalizava um sentimento de decadência e pessimismo em uma sociedade sucumbida a barbárie. Já aqui, eu sinto que a tentativa é parecida, mas jamais aquele ambiente ou o Sequestrador tem a potência de carregar algo que vá além da mera banalidade.
Tem quem tente elaborar algo sobre como esse filme aqui brinca com o padrão Marvel de fazer cinema ou com as novas mídias digitais, mas isso aqui tá longe de propor algo que dialogue com essas outras mídias, mas sim as usa para surfar na mesma onda mainstream pós moderninha de humor chulo e avalanche de referências, enquanto finge esconder uma ideia complexa ao fundo, mas sempre sente a necessidade de esclarece-la o suficiente para não passar como "cabeça" demais.
Daria para conversar sobre o discurso do filme, o moralismo, a ode familiar que sempre toma conta, mas nada aqui me parece mais fundamental do que a forma como os Daniels criam essa tortura visual. Na era da avalanche de informações, das referências infinitas e da pseudo subversão da forma cinematográfica, o filme nos esgota tal qual a rotina de um feed de tiktok, das dezenas de abas abertas no navegador e a miscelânea de temas complexos que encaramos na internet dia após dia sem o tempo para aprofundamento ou reflexão. Bacana seria se o filme usasse esse cenário descrito como objeto de estudo, mas o problema é esta problemática ter sido absorvida pela forma como os diretores a filmam. O filme acaba sofrendo destes mesmos males. Um fluxo de imagens tão insuportável, com planos que se reconfiguram sempre pelo mesmo modo de zoom out e sequências epiléticas de luz e movimento que nada é absorvível. De primeira, sempre é legal: A primeira luta, o primeiro uso das bizarrices como dispositivo de mudança de universo, a primeira aparição das pedras (não, as mãos de salsicha não). Entretanto, sempre é preciso torcer até a última gota cada ideia, até que ela se torne insuportável e mesclada com todas as outras até esgota-las de sentido e função.
Essa sensação que muitos estão tendo de terem visto algo épico, algo inacessível a primeira vista de tão complexo não é muito diferente de ler aquela thread no twitter sobre um tema pertinente que aparece entre dois outros tweets de meme. É um fluxo de informações tão extasiante que a sensação é de esgotamento. Da pior maneira possível.
Se a ideia é ser um Zeitgeist de seu tempo, "Under the Silver Lake" compreendeu infinitas vezes mais o nosso período do que isso aqui. É um filme que trabalha esse mesmo peso de referências, mas sem que isso arranhe sua forma enquanto filme.
Como Furtado escreveu no review da Contracampo na época - presente nesse site - Argento é antes de tudo um definitivo Maneirista, assim sendo, um filme seu inevitavelmente será sobre o Cinema que veio antes dele e, tamanha sua importância para o gênero, aqui é sobre seu próprio cinema do passado.
Sleepless existe em dois períodos do tempo não à toa, mas como modo de reforçar o interesse maior do cineasta em rememorar e trazer de volta ao mundo certos interesses oitentistas (o filme volta para 1983, ano que a carreira de giallos de Argento já era mais do que consolidada). Argento arquiteta todo seu mundo de 2001 como meio de sabotar o que terror daquele presente, tendo Pânico seu principal expoente, que não agrada tanto o diretor, trazia como inovação.
Argento, portanto, sem qualquer tipo de revisionismo, refaz um Giallo à sua maneira, como se quisesse dizer "Eu ainda sei fazer isso e do meu jeito é melhor do que qualquer coisa que vocês fazem hoje". E realmente é. É um Argento com força máxima, até mais violento e gráfico que aquele de seus primeiros filmes, e com um domínio de tensão que nem Deep Red tinha conseguido. Tudo é perfeitamente revelado nesse jogo de investigações dos detalhes do passado, cada personagem entra no momento certo para termos uma pulga a mais na orelha e a apoteose do final vai sendo gradativamente construída.
São poucos diretores que tem o domínio do horror para fazer filmes tão manipulativos com quem os vê, é de fato quem mais me faz remexer na poltrona, reagir fisicamente aos seus comandos e sofrer junto com o filme.
Há interesses temáticos do diretor que são ricos em discussão por toda sua carreira - principalmente sua sina por traumas infantis e como isso ressoa ao longo da vida - mas nada em sua filmografia é mais instigante que sua articulação desse Maneirismo. Do Argento que mata personagens sob uma pilha de VHS antigos, que refilma insistentemente Hitchcock, que provoca Antonioni e De Palma e que pensa seu próprio Cinema algumas décadas depois e conclui que ainda é maior que qualquer coisa que tenha tomado seu lugar.
Engraçado como em boa parte do filme se me dissessem que é um filme do Wes Craven eu acreditaria muito mais do que se dissessem que é do Argento.
Sendo um filme de 1993 é bem possível de se afirmar que Argento aqui se retroalimenta do Slasher americano que tanto se inspirou em seus Giallos. O contexto de subúrbio, o assassino que mesmo mantendo as principais particularidades de seu gênero de origem (a luva preta, o mistério de quem ele é, a câmera subjetiva etc.) já parece muito mais próximo de um Michael Myers do que os assassinos que Argento construiu em sua trilogia dos animais e o próprio momento do desfecho que abre mão da estilização forçada do diretor para dar espaço a um drama levemente forçado que conversa mais com o cinema americano do que com o seu próprio.
É justamente essas nuances que diferem "Trauma" dos giallos clássicos de Argento e um pouco me aproximam de Craven. Talvez seja até as contestáveis atuações de Rydell e Asia que me remetam aos filmes duvidosos de Craven - Deadly Friend em especial - ou como a trama acelerada e os desfechos pelo caminho se resolvem com uma facilidade espantosa, colocando em dúvida a qualidade de quem as filma. Mas fato é que "Trauma", oscilante como ainda não havia visto na filmografia do italiano, ainda é melhor do que muito que o Cinema Americano tentou fazer ao reproduzir a estilística que Argento consolidou nas décadas anteriores; inclusive melhor do que boa parte da filmografia de nosso querido Wes.
A cada Argento que vejo, eu penso "Esse deve ser o mais hitchcockiano de seus filmes".
Aqui talvez tenha de fato chegado a seu ápice. "The Black Cat" é quase uma releitura de Psicose se pensado por Alan Poe. Argento refilma, referencia e repensa Hitchcock a todo instante, dos planos de chuveiro, ralo, binóculos e perigos ao subir a escada até sua relação com o mistério, com não esconder o assassino e brincar com o sobrenatural. No fim, é de fato um filme de Argento - e por isso mesmo é tão hitchcockiano. Os planos subjetivos, o maneirismo para filmar mortes, o gráfico e o prazer em derramar corpos sobre uma pilha de VHS de filmes clássicos. É o mais simbólico que seu Cinema chega ao comentar sobre si mesmo.
Tom Cruise como o responsável por carregar e preservar a iconografia do cinema americano oitentista e apresenta-la a nova geração, junto do seu legado, das cafonices e valores patrióticos que o período tanto promoveu.
O ator é tão o mediador dessa era que sobrevive contra a tecnologia (dos drones, do CGI, da edição picotada e prática de filmar) que propõe a seus jovens pupilos até a execução de uma cena que vem com o carimbo "blockbuster hollywoodiano anos 80": seus homens praticando esporte na praia com corpos musculosos e um por do sol ao fundo. Cruise não está somente "montando uma equipe" como disse, mas treinando a nova geração a incorporar um outro tempo, um outro gênero desconhecido pela juventude. Seria fundamental para solucionar os problemas que enfrentariam no resto do filme.
Não é o filme mais grandioso do mundo, mas em uma infestação de filmes de ação que parecem odiar ação e suas oportunidades de encenações, o novo "Top Gun" pelo menos tem muito amor pelo que se propôs a executar - e Tom Cruise é a mitificação disso. A nostalgia aqui vai muito além de um mero flerte com o filme original que tenta resgatar os sentimentos de quem viveu o período de lançamento em 1986. O filme encara o 1º filme como o símbolo de uma expressão de Cinema que não sobreviveu as praticidades, algoritmos e otimizações da máquina Hollywoodiana, mesmo também tendo sido um filme pipoca de sua época.
Revisitar os personagens, os aviões de 4 décadas atrás e reformular momentos icônicos funcionam como uma reeducação ao público (simbolizada pelos seus alunos) de como se fazia antigamente. Justamente por ter isto em mente, o filme se permite abraçar com naturalidade toda uma breguice característica. Terminar o filme apoiado a um carro vintage e com um beijo embalado em um hard rock meloso é tudo que a nova geração de americanos precisa conhecer para contrapor as piadinhas e "cliffhangers" pós créditos do MCU.
Não à toa quando a sessão acabou, ouvi o rapaz na fileira atrás de mim dizer: "Me fez voltar aos anos 80" com uma voz emocionada.
Giallos de Argento seguem sempre esta lógica de anônimos pautados pelo racional que despretensiosamente se veem fascinados em mergulhar nessa poça de sangue saturado em busca de respostas de um crime com o qual não deveriam nem se importar. São seduzidos pela busca racional que sempre fracassa e termina no mais primitivo instinto humano.
Descrevendo assim, até se assemelha a nossa própria posição enquanto espectadores que adentram o Horror da civilização e se sentem cada vez mais estimulados a cada corpo que se ensanguenta da maneira mais criativa que o regente Argento consegue conduzir. Ao fim, estamos vendo nosso próprio reflexo na poça vermelha que anuncia nossa ruptura com o civilizado e nosso pacto com o visceral.
Além disso, o Cinema do Argento é sempre repleto de fragmentos de imagens que constantemente voltam a tona para atormentar seu protagonista, mas também para lhe dar a resposta chave no momento crucial. É a cíclica revisita a cena do crime em “Pássaro”, ou a leitura labial em “Suspiria” que só ganha som quando a personagem se encontra no mesmo momento que a foragida.
Gosto de pensar que o diretor sempre está realizando a autópsia de seu próprio filme - como um Godard em "Je vous salue, Sarajevo" - buscando cada detalhe que a cena primordial pode dar de gatilho para o próximo desfecho.
Em Deep Red, o mecanismo se altera sutilmente, pois não temos a imagem, mas somente a memória, o desconforto de saber que talvez também tenhamos visto demais, só que sem a possibilidade de dissecar o frame e confirmar o que vimos. Sem a imagem, sem poder confiar nos nossos sentidos e convicções, David Hemmings adentra sem volta nesse submundo de traumas e cicatrizes que a infância guarda dentro de todos nós. Ao vasculhar além da casca civilizada de cada um - assim como Helma era capaz de fazer - Hemmings é incapaz de voltar a normalidade sem terminar sendo ele próprio o responsável pelo sangue derramado.
Acaba sendo tão refém de uma certo tom e opacidade fortemente requisitados e excitados nesse cinema arthouse dos últimos anos que é um filme que não se permite ser nada, além de meras sugestões do que ele realmente queria ser.
Para agradar essa plateia que quer ser desafiada - pero no mucho - com filmes difíceis, o filme necessita sempre dar um passo para trás sempre que algo parece imergir da encenação para que não fique óbvio demais a sua sugestão, mas somente o suficiente para qualquer um pegar a sua analogia. "The Power of the Dog" quer ser sobre uma repressão sexual masculina e um certo homem que não existia no Mito do cinema western americano, mas ele não pode ser, ele precisa se manter sugestivo a isso - de maneira absurdamente óbvia e redundante - para que qualquer um entenda, mas ao mesmo tempo tenha a sensação de que encontrou um tesouro escondido no filme. Mesmo que sempre estivesse visível para qualquer um que olhasse com o mínimo de atenção.
Assim, acaba em uma posição muito segura, com uma pose de delicado e sutil para tratar de seus temas dentro de uma abordagem naturalista e desconfortante, quando na realidade somente pincelou propostas que pouco teve coragem de abraçar de fato, sem se arriscar a entregar "seu ouro" fácil demais e sem se arriscar a ser subjetivo à vera.
Filme definitivo da sensação de fracasso, impotência e de vazio.
Agoniante como Douglas busca as informações e geralmente sai das interações sem nada, mais perdido do que entrou, com aquela sensação de que foi enrolado pela outra pessoa. Do meio pro final soa lindo como Tourneur vai propondo as revelações ao protagonista, primeiro o 13º membro que surge de uma memória, mas não entrega mais que uma melodia (que abre o filme!!) e daí os palcos e a revelação.
Quando tudo parecia se resolver de maneira elegante e "nobre", vêm o impasse e todo aquele clímax de vingança e resolução se esvai direto em um anti-clímax como pouca vezes vi. Ainda há tempo para um epílogo pouco abaixo do que esperava, mas que ainda traz uma gota de esperança naquele universo que desmoronava em volta de Douglas.
Ao fim, da mesma maneira como Canyon Passage usa o próprio gênero para disseca-lo por dentro e revelar suas rachaduras e farsas que o cinema clássico produziu, Circle of Danger entra nos meandros do nacionalismo e desta ética militar para questiona-la e revelar seus impasses.
Quando Peter Vicent diz que perdeu o emprego porque os jovens de hoje só se interessam por assassinos matando garotas virgens e não mais por vampiros, Holland - que viria a filmar o boneco Chuck - abre o jogo em relação a suas intenções e faz um filme de vampiro que muito bebe da tendência Slasher do período oitentista. Se no cinema da época não há mais espaço para um filme tipicamente de monstros - como os que o próprio Vicent carrega nos posters presentes em sua casa, o diretor não vê problemas em casar o gore e o slasher com a temática vampiresca. Inclusive, os efeitos práticos deste gore que aparecem vez ou outra nos momentos mais marcantes do filme mereciam o mesmo lugar na memória que temos para as clássicas cenas de "The Thing" de Carpenter ou "The Fly" de Cronenberg, pois a sequência do lobo continua um primor nos dias de hoje.
É também curioso o uso da autoconsciência em relação aos filmes e a própria mitologia vampiresca que o Fright Night articula, das cenas de séries e filmes antigos passando na TV que se repetiriam mais adiante no filme até comentários diretos sobre como "tudo esta como nos filmes por enquanto" ou algo do tipo. Com certeza não foi o primeiro a fazer isso, mas é notável como já apresenta algumas das principais ideias que fizeram de Scream o marco que é até hoje.
Criar um herói nos Estados Unidos do século XXI não resulta em um cowboy dos ideais irretocáveis e nacionalistas, na verdade não garante nem que ele termine o filme solto pela lei ou receba agradecimento das forças institucionais de segurança. O máximo que um herói atual consegue é suar para provar que todos os crimes e erros que comete foram tentando sustentar sua Família na terra da (falta de) oportunidade.
Filme que sofre pela necessidade de ser acelerado demais para avançar a trama, apresentar diversas novas ideias da Terra Média e evoluir com pressa. Suas primeiras 2 horas são extremamente dedicadas a isso, sempre de maneira bem didática, Jackson nos apresenta aos Ents, aos humanos, explica a dinâmica das duas torres e como funciona a geografia do local. Neste meio tempo, Gollun é o que mais impressiona, tanto visualmente, quanto como personagem.
Quando o filme se foca em ter seu arco próprio e em ser mais um filme do que uma ponte entre Sociedade e Retorno do Rei, Jackson atinge parte do épico que seu primeiro filme faz com perfeição, trazendo de volta a elegância com que filmou o anterior. É necessário retornar a ideia de como a franquia trabalha a dicotomia digital e natural, pois novamente o diretor tem total controle no uso do CGI para extrair toda a grandiosidade da Terra Média e dos perigos daquele local, mas nunca deixa de lado as paisagens e dinâmicas naturais que consolidam o realismo e o perigo verdadeiro daqueles personagens.
Eu ainda tenho um pé atrás quando Peter Jackson filma ação, não é muito diferente das críticas que fazemos aos blockbusters 20 anos depois. A única diferença é que hoje a ação mal editada e sem nenhum apelo visual é a opção mais por muleta e economia do que aqui, onde acaba sendo culpa dos limites dele como diretor. Em poucos momentos realmente sentimos que existe um perigo, uma chance de perder e de nossos protagonistas morrerem (algo que me lembra muito o último Star Wars de JJ Abrams). Tudo é muito limpo e tranquilo, mesmo com flechas voando, escadas subindo e arpões derrubando muros. É definitivo que o limite de TLOTR é Jackson enquanto diretor de ação.
E só para não deixar passar, gosto muito como aqui Aragorn toma a dianteira da saga, acaba sendo mais relevante, mais complexo e mais protagonista que Frodo.
A primeira cena do filme condensa bem o que seria todo o resto de Belfest: A câmera começa flutuando pelo espaço daquela vila, se distraí, facilmente muda seu objeto de interesse e perde-se entre os diversos movimentos que ocorrem simultaneamente naquele local. Esse começo de cena é realmente prodígio, pois são dos poucos momentos que Branagh consegue filmar algo que soe como memória, como uma nostalgia verdadeiramente singela e honesta, remontando uma época importante para seu autor (Mid90s, por exemplo, é justamente o Belfast que dá certo. Um tom escrachadamente autobiográfico que captura uma estética de interesse do autor - lá a MTV e a cena do skate noventista, aqui uma sóbria Irlanda do fim dos anos 60 - e a utiliza para rememorar sua trajetória de maneira pura e honesta).
O problema é que logo depois deste início descrito, o diretor já esquece todo este entorno e foca seus interesses em Buddy; aqui começam suas agressões à linguagem. A própria cena de invasão/vandalismo após o 360° ao redor do protagonista é uma esquizofrenia cinematográfica. Branagh varia entre planos aéreos, closes, planos detalhes e subjetivos e nenhum sentimento sai daquilo tudo. É uma picotagem para decupar algo simples e com potencial dramático, mas que na mão dele acaba virando um momento sem relevância, sem tesão, sem visual.
O que vem depois continua nesta mesma dinâmica: são lapsos de cenas que alcançam esse senso de memória, afeto e respeito perdidas em um mar de mini situações que pouco avançam a narrativa e muito menos trazem a casualidade que a estrutura de mini causos busca montar.
O que mais me surpreende aqui é como o diretor filma uma história de guerra, de "resistência", mas em nenhum momento filma UMA cena que passe o desconforto/perigo de um período como este. As próprias invasões jogam contra o ambiente, pois o filme lida com elas mais como um pequeno causo do que como a consequência do período. As filmagens de arquivo que o diretor tanto utiliza nas televisões da casa contextualizam muito melhor do que o que o próprio diretor filma, parecem situações desconexas de tão diferentes.
Sua direção é mais interessada em encontrar planos bem organizados formalmente que encaixem atores e objetos de uma maneira visualmente bonita do que em contar uma história. Parece tudo fundo de wallpaper do Windows sobre telhados com chuva caindo, bicicletas encostadas na parede e móveis de casa que criam aquela casa idílica do passado. Se esse fetiche visual busca um diálogo com a fotografia urbana que ascendeu no século passado, como li em outro review, faltou que Branagh integrasse essa perspectiva com a unidade de seu filme, não soando apenas como um "mero" fetiche.
Tá aí o meu principal incômodo nisso tudo, a falta de unidade, de critério para as decisões desse filme. Há uma variação de tom, de interesse, uma mistureba de modos de filmar e um descontrole em tentar fazer com que os elementos soem como complementares dentro de uma ideia própria. Por fim, vejo uma inspiração muito óbvia em "A vida é Bela", só que sem emoção, sem a contextualização necessária, sem a criação de um ambiente factível e com um fetiche vazio por um cinema "arthouse" limpo e estéreo.
O mais épico que o cinema pipoca americano chegou no século? Talvez.
Embasbacantes as imagens que Peter Jackson cria nesse universo grandioso da Terra Média, dá pra falar que nenhum dos avanços tecnológicos que tomaram os blockbusters de TLOTR até aqui foram capazes de ultrapassar o que Senhor dos Anéis conseguiu fazer. Sobre isso, a maior sacada de Jackson para ambientar a Terra Média no nível de grandeza que essa epopeia merece é justamente como ele balanceia o digital com o natural em seus planos. Há duas abordagens muito perceptíveis entre planos abertos que se apoiam no CGI para captar a imensidão e o perigo que aquelas montanhas, nuvens e torres espalhadas pelo horizonte simbolizam e planos médios ambientados em naturezas reais, visualmente deslumbrantes, que são palco dos desafios dessa "quest" épica.
Talvez seja isso que faça de muitos dos blockbusters recentes o seu fracasso enquanto narrativa e construção de mundo, pois mergulhar 100% das suas dinâmicas em um digital cada vez mais masturbatório e menos funcional esvazia muito das possibilidades visuais e de mise-en-scène que as cenas "reais" são capazes de alcançar. O que poderia ter sido o maior dos legados dessa franquia pro cinema americano aparentemente se perdeu com o MCU e derivados, que fanáticos por construções gigantescas no digital e destruições em massa, renegam o quão impactante uma mera batalha coreografada e bem filmada no meio de algumas árvores consegue ser. (E olha que Jackson não demonstra tanta habilidade em filmar ação assim).
É lindo como Jackson encena essa história com os pilares de uma mitologia clássica - seus diálogos muitas vezes ingênuos, as atuações que captam muito bem o arquétipo de cada peça daquele mito e a trilha apoteótica de Howard Shore - que se interessa pelos valores e sentimentos mais brutos da existência humana e carrega consigo lições tão bem dispostas sobre ganância, instinto e, principalmente, relação com a Natureza. Ao final de todas seus mini desafios, o grupo de 9 amigos sobrevive ao contar com a ajuda das águas para espantar o mal, resistir a perigos encontrados pela ganância de cavar minas fundo demais, desejar terrenos e poderes invasivos e se sujeitar a ir além de seus territórios. Como um bom mito, encerra como um grande relato fantástico que diz mais sobre a condição humana do que sobre elfos, anões e magos.
A primeira aparição do homem morcego no filme de Matt Reeves se dá para conter um grupo de jovens que - inspirados por um vídeo no qual um jovem agride um anônimo na rua - tenta repetir o mesmo contra outro anônimo da cidade. Em um momento histórico que a história do Cinema sufoca todas as imagens criadas na atualidade, sendo impossível o olhar cinéfilo não buscar as referências e inspirações do que assistimos, esta cena me remete a algo não tão distante quanto De Palma, Scorsese, Fincher, Carpenter e o Cinema Noir como estilo/gênero.
“Vidro” de Shyamalan - o melhor filme de herói já feito? - tem um início similar, pois um também jovem se diverte ao assistir em seu celular um idoso sendo agredido na rua assim como o início de “The Batman”. O filme de 2019 segue uma lógica, mesmo que por caminhos e estilo totalmente diferentes, similar ao que vemos aqui, já que lá de maneira mais evidente vemos heróis lutando para se provarem como tal em uma sociedade que saturada de imagens já não crê no que vê e, desesperançosa com o mundo, não consegue acreditar no sobrenatural e na fantasia.
Em “The Batman” é a criminalidade - viralizada por imagens - que mina completamente a esperança das pessoas de verem no personagem de Pattinson alguém com ideais e como um símbolo de proteção. Suas ações são entendidas como vingança, um maníaco irresponsável que inspira terroristas como Charada e que faz com que Mulher Gato ache que ele o ajudará a matar um policial corrupto. A luta de Batman é a mesma de Mr.Glass: Convencer a sociedade de que os heróis ainda existem e que ele é um deles em um mundo cansado de acreditar depois de tanto ver. A sua jornada terminar com ele dando a mão à nova prefeita em meio aos escombros e socorrendo vítimas de uma enchente é o ato que consolida sua imagem como Herói - ao mesmo tempo que define Batman como um agente das instituições e não da revolução.
Acho interessante o papel das imagens nesse universo que Reeves constrói, pois são elas que inspiram os crimes, são elas que pelos telejornais repercutem os crimes, são elas que destravam as descobertas e revelações da trama e é também por meio delas que Charada se mitifica. Ao se comunicar pelos seus vídeos e suas lives, o vilão tem a possibilidade de moldar seu aspecto vilanesco, de simbolizar perigo e, principalmente, de viralizar suas ideias. O ato final de sua jornada exigir justamente a ação de seus seguidores enquanto ele mesmo encontra-se distante é a peça final desta jornada por meio da mídia.
Notinha final: Charada aparece em uma noite de Halloween, ataca após atitudes voyeurs, e quando vê o promotor saindo da boate, nós acompanhamos sua visão pela câmera subjetiva enquanto ouvimos sua respiração. Se Reeves entende seu vilão como uma entidade maligna à la Michael Myers, a personificação do mal absoluto, sinto dizer que este sempre volta.
Óculos Escuros
2.7 26O Giallo tomado pela melancolia não expressa mais aquele estilo característico, aqueles momentos catárticos e aquelas imagens inesquecíveis que uma vez Argento já foi capaz de exprimir.
Com exceção do primeiro assassinato que anuncia e localiza o espectador em um filme do gênero e do autor, todas as outras mortes parecem não interessar Argento como antes, seu foco é integralmente dedicado a vítima. De fato, como outros comentaram nas reviews, soa semelhante a uma Mea Culpa, um Argento cansado de fetichizar a violência, mas interessado em dar um destino genuíno e merecido a uma personagem que sintetiza muitas das que passaram por suas lentes.
É triste, mas parece um final. Seus filmes sempre me marcaram por se encerrarem bruscamente. Era o que era, sem rodeios. A encenação de um renascimento da protagonista, um caminho para que ela continue talvez seja o que Argento gostaria de permitir como último ato.
A Garota da Fábrica de Fósforos
3.9 161 Assista AgoraO pouco que vi de Kaurismaki sempre me levou ao mesmo sentimento: o de indiferença. Confesso ser difícil para mim separar o método respeitado de filmar do diretor, enxugando trejeitos e minando particularidades de seus personagens com o que faz um Lanthimos, por exemplo. Essa frontalidade para narrar ao mesmo tempo que busca uma melancolia tomando o ambiente enquanto se diverte nas quebras de expectativas e ações curiosas da protagonista, também flerta com o desinteresse pelo que conta. Neste caso em específico, diria que o desinteresse tomou as ideias de Kaurismaki por completo, nem os poucos 60 minutos foram capazes de sustentar The Match Factory Girl...
X: A Marca da Morte
3.4 1,2K Assista AgoraO personagem do diretor do filme pornô deixa bem evidente o que Ti West está se propondo aqui, dado o caráter cômico e satírico do discurso de "fazer mais que um filme pornô, fazer cinema etc". Mesmo trabalhando com a A24 e referenciando o filme clássico de Tobe Hooper em diversos momentos, West se interessa em fazer o seu slasher, o seu filme de cabana, sem ficar na tão desgastada retroalimentação de referências e sinalizações de conhecimento da história do cinema. "X" é um filme que tem a consciência da história do gênero e quer somente utilizar de suas regras para fazer a sua versão de slasher. Não quer se elevar a mais nada, não quer repensar o seu gênero base, somente tomar aquilo como premissa e se divertir.
Até acho forçado demais a discussão sobre o modo como West trabalha os idosos e quais as implicações no modo como ele trata aqueles corpos debilitados em contraponto com a jovialidade da protagonista.
Por mais que o cerne do filme passe por esta contraposição, vejo "X" muito mais como um desprendimento do tal horror contemporâneo, liberto das principais tensões que perturbam filmes de Eggers e Aster, e mais próximo do Cinema de Wingard (lá mais interessado nos anos 80, aqui na década anterior).
Cow
3.8 17 Assista AgoraUm filme que tem pouquíssimo a se debater além da mera captura de fatos que, se forem tratados como reveladores ou de denúncia, só dizem mais sobre o espectador do que sobre a indústria pecuária em si. Digo isso, pois, em minha visão, observar a linha de produção/vida de uma vaca em pleno século XXI e sair surpreso ou chocado é uma clara confissão de ignorância do espectador, de falta de informação e consciência social mesmo. É difícil de acreditar que quem acessa esse filme não faz ideia de como um animal é tratado enquanto mercadoria, no modo como se esvazia qualquer traço de consciência, como são manipulados sem compaixão.
Confrontar essas imagens - espero eu - serão sempre tristes, angustiantes e causarão conflitos nas nossas ações futuras enquanto consumidores dessa cadeia; só que para por ai. Talvez uns 20 anos atrás, como foi Terráqueos, Cow poderia ser considerado um filme-denúncia, mas hoje não passa de redundância e obviedade.
Mais triste ainda é pensar "Cow" e encarar um grandioso nada de temas além da discussão sobre o que o filme expõe ser corajoso ou meramente expositivo. "Gunda" e tantos outros documentários também se pautam em capturar o cotidiano de animais, de buscar reconhecer ações e sentimentos que nos façam interpretar aqueles bichos com maior "humanidade". O problema é que não consigo pensar em nenhum desses documentários que fujam do óbvio de 1.abordar suas personagens de maneira impessoal e exploratória; 2.criar intimidade com os animais, antropomorfizando-os; 3.revelar como o capitalismo os transformaram em coisas; 4.chocar os espectadores alienados com a real forma do sistema que estes utilizam.
Nenhum tema é esgotável, tudo já foi filmado, mas acredito que estamos em um momento de consciência - especificamente sobre este tema - que exige algo a mais do que buscar o choque pela exposição do óbvio.
Precisamos reinventar a forma e paralelamente destruir a pecuária.
Um Lugar Silencioso - Parte II
3.6 1,2K Assista AgoraFilme que não tem começo, nem fim, sendo só um miolo para uma pretensão de fechar a trilogia daqui alguns anos. O curioso que mesmo assim consegue ser bem bom. É claro que para fazer um filme desse é preciso muito orçamento e CGI, porém Krasinski consegue passar um ar quase artesanal para seu filme, pelo simples fato de não transformar seu universo em algo megalomaníaco ou apoteótico demais; é semelhante a carreira atual do Soderbergh. Não é sobre fazer com pouco, mas se concentrar em um microcosmo e tirar dinâmicas e sensações provando que não precisa de nada além disso. Arrisco que talvez essa seja uma tendência que ainda durará bons anos como uma oposição as fórmulas atuais de Marvel, Netflix e derivados (talvez o próprio Top Gun de 2022 entre nesse balaio).
Sobre o filme em si, seus maiores acertos são quando há o casamento entre a montagem paralela e o bom esquema dramático construído com os monstros. A ideia de mundo de "Um Lugar Silencioso" tem muito a ser aproveitado. Gostando ou não, temos que aceitar que é um "dispositivo" que abre um mundo de possibilidades interessantíssimas; e é fato que Krasinski não aproveita nem metade do que poderia devido a suas limitações. Mas é justamente ao respeitar seu modus operandi básico de direção que constrói boas peças e, em seus enxutos 90 minutos, nos faz passar por 3 ou 4 grandes momentos favorecidos pela montagem e sustentados por um mundo que possibilita tensões diversas.
No fim do dia, é um exercício bem honesto e divertido de gênero, tem aquela sensação de que poderia ser muito mais criativo, mas é melhor do que a grande maioria do que vemos atualmente.
Quando a Neve Voltar a Cair
3.7 5Mais um entre os filmes pouco conhecidos de Tourneur que surpreende pela sua beleza. Na segunda metade do filme, entra a neve e com ela o filme ganha um tom onírico, mítico, no qual os personagens de fato viram heróis, o que é muito belo de se acompanhar. Desde o principio o filme soa como um conto, um relato narrado sobre grandes figuras que resistiram ao Nazismo e, por isso mesmo, a parte final parece aquela ação inflada por quem a conta, dando créditos e glórias a seres humanos que representam o heroísmo da história. Daria para citar algumas cenas que Tourneur filma que são de vanguarda, realmente muito impactante, mas a minha preferida é a da "neve caindo". De uma sutileza ao mesmo tempo óbvia e delicada.
O Fim e o Princípio
4.3 65E assim encerro minha jornada pelos documentários do Coutinho, curiosamente com o que mais se relaciona com finais, morte e posteridade.
Que me desculpe Glauber, Neville, Nelson e outros que tanto interpretaram nosso país por suas câmeras e ficções, mas Coutinho talvez tenha obtido através da sua linguagem mínima a abordagem mais reveladora do nosso povo. Ironicamente, fez tudo isso sem nunca tentar revelar, investigar ou descobrir algo novo, mas somente levando sua intenção de conversar e ouvir para onde quer que fosse.
Há algo de inominável, de metafísico - que tantos já tentaram transcrever em textos e artigos - que faz seu Cinema ser tão hipnotizante, tão curioso, tão sensível. Alguns vão pontuar como a forma de seus documentários e seu método seriam o cerne de seu funcionamento, ou seja, o modo como Coutinho tira da frente qualquer mecanismo que reforce a presença do dispositivo auxiliada por uma pesquisa minuciosa para escolha dos participantes. Outros vão se interessar muito mais pelos personagens em si, pelo "conteúdo", histórias tão riquíssimas dissipadas por Brasil a fora que carregam tanta sabedoria e quase ninguém para ouvir. A própria proposta de Coutinho em dar voz a essas pessoas como suficientemente interessante.
Entretanto, tem de ter algo mais poderoso que isso, tantos já tentaram reproduzir o método e o formato, mas não chegaram perto da delicadeza dele. Acho que Coutinho tem uma sensibilidade para acessar a humanidade de cada entrevistado e transformar aquela conversa em uma terapia que liberta para a eternidade a luta de cada um deles que possui nuances difíceis de reproduzir. Além disso, acredito a dificuldade que deva ser estar aberto ao acaso, ao chegar sem pauta e sair com o que o que fosse possível obter. Ele sempre esteve disposto ao descontrole.
Coutinho era de fato um diretor à parte de todo o resto, concentrou-se em temas universais e aqui, ao confrontar a terceira idade, inevitavelmente falou muito sobre a morte. Machuca demais os novos significados que isso aqui criou com o tempo. Eu queria tantos e tantos mais filmes desse homem.
O Telefone Preto
3.5 1,0K Assista AgoraDerrickson achou que uma máscara bizarra e meia dúzia de jump scares com fantasmas de crianças seriam o suficiente para seu filme ser tenso ou assustador. Há filmes que entendem muito mal a tal ideia de "Poder da imagem" e acreditam que a mera criação de imagens por uma mise en scene tão pobre, pautadas em slow motion e trilha ascendente, seriam o suficiente para despertar qualquer sensação no espectador. Quando na realidade diretores que são marcados por essa ideia - como De Palma ou Argento - são antes de tudo geniais encenadores e somente alcançam estas sensações indescritíveis por meio de suas imagens porque dominam um estilo e uma maneira de filmar como ninguém mais faz. O bizarro, o choque, o medo que eles provocam não vem porque suas imagens são medonhas por si só, e sim porque souberam construir todo um método autoral de chegar até elas. Algo que Derrickson nem arranha aqui.
O que mais acontece em "The Black Phone" são atestados da incapacidade de Derrickson em construir estes momentos de suspense, sempre apelando para uma violência ou mal estar que não soam verdadeiros. Eu estava interessado naquele subúrbio com a violência tão presente na vida daquelas crianças, como se fosse impossível fugir daquilo em qualquer canto que elas fossem. Entretanto, é tão genérico o modo como ele filma a partir da entrada do Sequestrador que aquele mundo é substituído por um porão cinzento e um telefone vazio de simbolismos. Ainda assim consegue ser pior ao buscar o flerte com o terror setentista e as imagens granuladas na tentativa de remeter ao supracitado Massacre da Serra Elétrica, mas também indiretamente a diversos outros filmes da época, como Aniversário Macabro do Craven e derivados.
O mundo fora do porão para de pulsar aquele ímpeto violento do começo do filme e o que vemos na parte de dentro é, sem outra palavra melhor para definir, genérico. As comparações com o debut do Craven me vêm muito a mente por aquele ser um filme muito sustentado pela falta de motivações dos sequestradores - o que lá fazia todo "sentido", pois externalizava um sentimento de decadência e pessimismo em uma sociedade sucumbida a barbárie. Já aqui, eu sinto que a tentativa é parecida, mas jamais aquele ambiente ou o Sequestrador tem a potência de carregar algo que vá além da mera banalidade.
Tudo em Todo O Lugar ao Mesmo Tempo
4.0 2,1K Assista AgoraCada época tem o The Matrix que merece...
Tem quem tente elaborar algo sobre como esse filme aqui brinca com o padrão Marvel de fazer cinema ou com as novas mídias digitais, mas isso aqui tá longe de propor algo que dialogue com essas outras mídias, mas sim as usa para surfar na mesma onda mainstream pós moderninha de humor chulo e avalanche de referências, enquanto finge esconder uma ideia complexa ao fundo, mas sempre sente a necessidade de esclarece-la o suficiente para não passar como "cabeça" demais.
Daria para conversar sobre o discurso do filme, o moralismo, a ode familiar que sempre toma conta, mas nada aqui me parece mais fundamental do que a forma como os Daniels criam essa tortura visual. Na era da avalanche de informações, das referências infinitas e da pseudo subversão da forma cinematográfica, o filme nos esgota tal qual a rotina de um feed de tiktok, das dezenas de abas abertas no navegador e a miscelânea de temas complexos que encaramos na internet dia após dia sem o tempo para aprofundamento ou reflexão. Bacana seria se o filme usasse esse cenário descrito como objeto de estudo, mas o problema é esta problemática ter sido absorvida pela forma como os diretores a filmam. O filme acaba sofrendo destes mesmos males. Um fluxo de imagens tão insuportável, com planos que se reconfiguram sempre pelo mesmo modo de zoom out e sequências epiléticas de luz e movimento que nada é absorvível. De primeira, sempre é legal: A primeira luta, o primeiro uso das bizarrices como dispositivo de mudança de universo, a primeira aparição das pedras (não, as mãos de salsicha não). Entretanto, sempre é preciso torcer até a última gota cada ideia, até que ela se torne insuportável e mesclada com todas as outras até esgota-las de sentido e função.
Essa sensação que muitos estão tendo de terem visto algo épico, algo inacessível a primeira vista de tão complexo não é muito diferente de ler aquela thread no twitter sobre um tema pertinente que aparece entre dois outros tweets de meme. É um fluxo de informações tão extasiante que a sensação é de esgotamento. Da pior maneira possível.
Se a ideia é ser um Zeitgeist de seu tempo, "Under the Silver Lake" compreendeu infinitas vezes mais o nosso período do que isso aqui. É um filme que trabalha esse mesmo peso de referências, mas sem que isso arranhe sua forma enquanto filme.
Insônia
3.4 35Como Furtado escreveu no review da Contracampo na época - presente nesse site - Argento é antes de tudo um definitivo Maneirista, assim sendo, um filme seu inevitavelmente será sobre o Cinema que veio antes dele e, tamanha sua importância para o gênero, aqui é sobre seu próprio cinema do passado.
Sleepless existe em dois períodos do tempo não à toa, mas como modo de reforçar o interesse maior do cineasta em rememorar e trazer de volta ao mundo certos interesses oitentistas (o filme volta para 1983, ano que a carreira de giallos de Argento já era mais do que consolidada). Argento arquiteta todo seu mundo de 2001 como meio de sabotar o que terror daquele presente, tendo Pânico seu principal expoente, que não agrada tanto o diretor, trazia como inovação.
Argento, portanto, sem qualquer tipo de revisionismo, refaz um Giallo à sua maneira, como se quisesse dizer "Eu ainda sei fazer isso e do meu jeito é melhor do que qualquer coisa que vocês fazem hoje". E realmente é. É um Argento com força máxima, até mais violento e gráfico que aquele de seus primeiros filmes, e com um domínio de tensão que nem Deep Red tinha conseguido. Tudo é perfeitamente revelado nesse jogo de investigações dos detalhes do passado, cada personagem entra no momento certo para termos uma pulga a mais na orelha e a apoteose do final vai sendo gradativamente construída.
São poucos diretores que tem o domínio do horror para fazer filmes tão manipulativos com quem os vê, é de fato quem mais me faz remexer na poltrona, reagir fisicamente aos seus comandos e sofrer junto com o filme.
Há interesses temáticos do diretor que são ricos em discussão por toda sua carreira - principalmente sua sina por traumas infantis e como isso ressoa ao longo da vida - mas nada em sua filmografia é mais instigante que sua articulação desse Maneirismo. Do Argento que mata personagens sob uma pilha de VHS antigos, que refilma insistentemente Hitchcock, que provoca Antonioni e De Palma e que pensa seu próprio Cinema algumas décadas depois e conclui que ainda é maior que qualquer coisa que tenha tomado seu lugar.
Trauma
3.2 37Engraçado como em boa parte do filme se me dissessem que é um filme do Wes Craven eu acreditaria muito mais do que se dissessem que é do Argento.
Sendo um filme de 1993 é bem possível de se afirmar que Argento aqui se retroalimenta do Slasher americano que tanto se inspirou em seus Giallos. O contexto de subúrbio, o assassino que mesmo mantendo as principais particularidades de seu gênero de origem (a luva preta, o mistério de quem ele é, a câmera subjetiva etc.) já parece muito mais próximo de um Michael Myers do que os assassinos que Argento construiu em sua trilogia dos animais e o próprio momento do desfecho que abre mão da estilização forçada do diretor para dar espaço a um drama levemente forçado que conversa mais com o cinema americano do que com o seu próprio.
É justamente essas nuances que diferem "Trauma" dos giallos clássicos de Argento e um pouco me aproximam de Craven. Talvez seja até as contestáveis atuações de Rydell e Asia que me remetam aos filmes duvidosos de Craven - Deadly Friend em especial - ou como a trama acelerada e os desfechos pelo caminho se resolvem com uma facilidade espantosa, colocando em dúvida a qualidade de quem as filma. Mas fato é que "Trauma", oscilante como ainda não havia visto na filmografia do italiano, ainda é melhor do que muito que o Cinema Americano tentou fazer ao reproduzir a estilística que Argento consolidou nas décadas anteriores; inclusive melhor do que boa parte da filmografia de nosso querido Wes.
Dois Olhos Satânicos
3.5 49A cada Argento que vejo, eu penso "Esse deve ser o mais hitchcockiano de seus filmes".
Aqui talvez tenha de fato chegado a seu ápice. "The Black Cat" é quase uma releitura de Psicose se pensado por Alan Poe. Argento refilma, referencia e repensa Hitchcock a todo instante, dos planos de chuveiro, ralo, binóculos e perigos ao subir a escada até sua relação com o mistério, com não esconder o assassino e brincar com o sobrenatural. No fim, é de fato um filme de Argento - e por isso mesmo é tão hitchcockiano. Os planos subjetivos, o maneirismo para filmar mortes, o gráfico e o prazer em derramar corpos sobre uma pilha de VHS de filmes clássicos. É o mais simbólico que seu Cinema chega ao comentar sobre si mesmo.
Top Gun: Maverick
4.1 1,1K Assista AgoraTom Cruise como o responsável por carregar e preservar a iconografia do cinema americano oitentista e apresenta-la a nova geração, junto do seu legado, das cafonices e valores patrióticos que o período tanto promoveu.
O ator é tão o mediador dessa era que sobrevive contra a tecnologia (dos drones, do CGI, da edição picotada e prática de filmar) que propõe a seus jovens pupilos até a execução de uma cena que vem com o carimbo "blockbuster hollywoodiano anos 80": seus homens praticando esporte na praia com corpos musculosos e um por do sol ao fundo. Cruise não está somente "montando uma equipe" como disse, mas treinando a nova geração a incorporar um outro tempo, um outro gênero desconhecido pela juventude. Seria fundamental para solucionar os problemas que enfrentariam no resto do filme.
Não é o filme mais grandioso do mundo, mas em uma infestação de filmes de ação que parecem odiar ação e suas oportunidades de encenações, o novo "Top Gun" pelo menos tem muito amor pelo que se propôs a executar - e Tom Cruise é a mitificação disso. A nostalgia aqui vai muito além de um mero flerte com o filme original que tenta resgatar os sentimentos de quem viveu o período de lançamento em 1986. O filme encara o 1º filme como o símbolo de uma expressão de Cinema que não sobreviveu as praticidades, algoritmos e otimizações da máquina Hollywoodiana, mesmo também tendo sido um filme pipoca de sua época.
Revisitar os personagens, os aviões de 4 décadas atrás e reformular momentos icônicos funcionam como uma reeducação ao público (simbolizada pelos seus alunos) de como se fazia antigamente. Justamente por ter isto em mente, o filme se permite abraçar com naturalidade toda uma breguice característica. Terminar o filme apoiado a um carro vintage e com um beijo embalado em um hard rock meloso é tudo que a nova geração de americanos precisa conhecer para contrapor as piadinhas e "cliffhangers" pós créditos do MCU.
Não à toa quando a sessão acabou, ouvi o rapaz na fileira atrás de mim dizer: "Me fez voltar aos anos 80" com uma voz emocionada.
Prelúdio Para Matar
4.0 256 Assista AgoraGiallos de Argento seguem sempre esta lógica de anônimos pautados pelo racional que despretensiosamente se veem fascinados em mergulhar nessa poça de sangue saturado em busca de respostas de um crime com o qual não deveriam nem se importar. São seduzidos pela busca racional que sempre fracassa e termina no mais primitivo instinto humano.
Descrevendo assim, até se assemelha a nossa própria posição enquanto espectadores que adentram o Horror da civilização e se sentem cada vez mais estimulados a cada corpo que se ensanguenta da maneira mais criativa que o regente Argento consegue conduzir. Ao fim, estamos vendo nosso próprio reflexo na poça vermelha que anuncia nossa ruptura com o civilizado e nosso pacto com o visceral.
Além disso, o Cinema do Argento é sempre repleto de fragmentos de imagens que constantemente voltam a tona para atormentar seu protagonista, mas também para lhe dar a resposta chave no momento crucial. É a cíclica revisita a cena do crime em “Pássaro”, ou a leitura labial em “Suspiria” que só ganha som quando a personagem se encontra no mesmo momento que a foragida.
Gosto de pensar que o diretor sempre está realizando a autópsia de seu próprio filme - como um Godard em "Je vous salue, Sarajevo" - buscando cada detalhe que a cena primordial pode dar de gatilho para o próximo desfecho.
Em Deep Red, o mecanismo se altera sutilmente, pois não temos a imagem, mas somente a memória, o desconforto de saber que talvez também tenhamos visto demais, só que sem a possibilidade de dissecar o frame e confirmar o que vimos. Sem a imagem, sem poder confiar nos nossos sentidos e convicções, David Hemmings adentra sem volta nesse submundo de traumas e cicatrizes que a infância guarda dentro de todos nós. Ao vasculhar além da casca civilizada de cada um - assim como Helma era capaz de fazer - Hemmings é incapaz de voltar a normalidade sem terminar sendo ele próprio o responsável pelo sangue derramado.
Suspiria
3.8 981 Assista AgoraRosemary's Baby + Psycho + Cat People por Dario Argento.
Única certeza que tenho é que Cinema como esse fluxo de sensações, estímulos e maneirismos é o que eu nasci para experimentar.
Ataque dos Cães
3.7 933Acaba sendo tão refém de uma certo tom e opacidade fortemente requisitados e excitados nesse cinema arthouse dos últimos anos que é um filme que não se permite ser nada, além de meras sugestões do que ele realmente queria ser.
Para agradar essa plateia que quer ser desafiada - pero no mucho - com filmes difíceis, o filme necessita sempre dar um passo para trás sempre que algo parece imergir da encenação para que não fique óbvio demais a sua sugestão, mas somente o suficiente para qualquer um pegar a sua analogia. "The Power of the Dog" quer ser sobre uma repressão sexual masculina e um certo homem que não existia no Mito do cinema western americano, mas ele não pode ser, ele precisa se manter sugestivo a isso - de maneira absurdamente óbvia e redundante - para que qualquer um entenda, mas ao mesmo tempo tenha a sensação de que encontrou um tesouro escondido no filme. Mesmo que sempre estivesse visível para qualquer um que olhasse com o mínimo de atenção.
Assim, acaba em uma posição muito segura, com uma pose de delicado e sutil para tratar de seus temas dentro de uma abordagem naturalista e desconfortante, quando na realidade somente pincelou propostas que pouco teve coragem de abraçar de fato, sem se arriscar a entregar "seu ouro" fácil demais e sem se arriscar a ser subjetivo à vera.
O Pássaro das Plumas de Cristal
3.8 103Filme que se alimenta da própria imagem para progredir, disseca toda a anatomia de sua própria cena em busca do segredo da imagem.
O protagonista e sua purgação de sempre reviver a mesma cena (do próprio filme) enquanto se afunda nesse vórtex de memória e falta de pistas.
Circle of Danger
3.2 2Filme definitivo da sensação de fracasso, impotência e de vazio.
Agoniante como Douglas busca as informações e geralmente sai das interações sem nada, mais perdido do que entrou, com aquela sensação de que foi enrolado pela outra pessoa. Do meio pro final soa lindo como Tourneur vai propondo as revelações ao protagonista, primeiro o 13º membro que surge de uma memória, mas não entrega mais que uma melodia (que abre o filme!!) e daí os palcos e a revelação.
Quando tudo parecia se resolver de maneira elegante e "nobre", vêm o impasse e todo aquele clímax de vingança e resolução se esvai direto em um anti-clímax como pouca vezes vi. Ainda há tempo para um epílogo pouco abaixo do que esperava, mas que ainda traz uma gota de esperança naquele universo que desmoronava em volta de Douglas.
Ao fim, da mesma maneira como Canyon Passage usa o próprio gênero para disseca-lo por dentro e revelar suas rachaduras e farsas que o cinema clássico produziu, Circle of Danger entra nos meandros do nacionalismo e desta ética militar para questiona-la e revelar seus impasses.
A Hora do Espanto
3.6 588 Assista AgoraSeria um Proto Scream?
Quando Peter Vicent diz que perdeu o emprego porque os jovens de hoje só se interessam por assassinos matando garotas virgens e não mais por vampiros, Holland - que viria a filmar o boneco Chuck - abre o jogo em relação a suas intenções e faz um filme de vampiro que muito bebe da tendência Slasher do período oitentista. Se no cinema da época não há mais espaço para um filme tipicamente de monstros - como os que o próprio Vicent carrega nos posters presentes em sua casa, o diretor não vê problemas em casar o gore e o slasher com a temática vampiresca. Inclusive, os efeitos práticos deste gore que aparecem vez ou outra nos momentos mais marcantes do filme mereciam o mesmo lugar na memória que temos para as clássicas cenas de "The Thing" de Carpenter ou "The Fly" de Cronenberg, pois a sequência do lobo continua um primor nos dias de hoje.
É também curioso o uso da autoconsciência em relação aos filmes e a própria mitologia vampiresca que o Fright Night articula, das cenas de séries e filmes antigos passando na TV que se repetiriam mais adiante no filme até comentários diretos sobre como "tudo esta como nos filmes por enquanto" ou algo do tipo. Com certeza não foi o primeiro a fazer isso, mas é notável como já apresenta algumas das principais ideias que fizeram de Scream o marco que é até hoje.
Ambulância: Um Dia de Crime
2.9 200 Assista AgoraCriar um herói nos Estados Unidos do século XXI não resulta em um cowboy dos ideais irretocáveis e nacionalistas, na verdade não garante nem que ele termine o filme solto pela lei ou receba agradecimento das forças institucionais de segurança. O máximo que um herói atual consegue é suar para provar que todos os crimes e erros que comete foram tentando sustentar sua Família na terra da (falta de) oportunidade.
O Senhor dos Anéis: As Duas Torres
4.4 1,1K Assista AgoraFilme que sofre pela necessidade de ser acelerado demais para avançar a trama, apresentar diversas novas ideias da Terra Média e evoluir com pressa. Suas primeiras 2 horas são extremamente dedicadas a isso, sempre de maneira bem didática, Jackson nos apresenta aos Ents, aos humanos, explica a dinâmica das duas torres e como funciona a geografia do local. Neste meio tempo, Gollun é o que mais impressiona, tanto visualmente, quanto como personagem.
Quando o filme se foca em ter seu arco próprio e em ser mais um filme do que uma ponte entre Sociedade e Retorno do Rei, Jackson atinge parte do épico que seu primeiro filme faz com perfeição, trazendo de volta a elegância com que filmou o anterior. É necessário retornar a ideia de como a franquia trabalha a dicotomia digital e natural, pois novamente o diretor tem total controle no uso do CGI para extrair toda a grandiosidade da Terra Média e dos perigos daquele local, mas nunca deixa de lado as paisagens e dinâmicas naturais que consolidam o realismo e o perigo verdadeiro daqueles personagens.
Eu ainda tenho um pé atrás quando Peter Jackson filma ação, não é muito diferente das críticas que fazemos aos blockbusters 20 anos depois. A única diferença é que hoje a ação mal editada e sem nenhum apelo visual é a opção mais por muleta e economia do que aqui, onde acaba sendo culpa dos limites dele como diretor. Em poucos momentos realmente sentimos que existe um perigo, uma chance de perder e de nossos protagonistas morrerem (algo que me lembra muito o último Star Wars de JJ Abrams). Tudo é muito limpo e tranquilo, mesmo com flechas voando, escadas subindo e arpões derrubando muros. É definitivo que o limite de TLOTR é Jackson enquanto diretor de ação.
E só para não deixar passar, gosto muito como aqui Aragorn toma a dianteira da saga, acaba sendo mais relevante, mais complexo e mais protagonista que Frodo.
Belfast
3.5 291 Assista AgoraA primeira cena do filme condensa bem o que seria todo o resto de Belfest: A câmera começa flutuando pelo espaço daquela vila, se distraí, facilmente muda seu objeto de interesse e perde-se entre os diversos movimentos que ocorrem simultaneamente naquele local. Esse começo de cena é realmente prodígio, pois são dos poucos momentos que Branagh consegue filmar algo que soe como memória, como uma nostalgia verdadeiramente singela e honesta, remontando uma época importante para seu autor (Mid90s, por exemplo, é justamente o Belfast que dá certo. Um tom escrachadamente autobiográfico que captura uma estética de interesse do autor - lá a MTV e a cena do skate noventista, aqui uma sóbria Irlanda do fim dos anos 60 - e a utiliza para rememorar sua trajetória de maneira pura e honesta).
O problema é que logo depois deste início descrito, o diretor já esquece todo este entorno e foca seus interesses em Buddy; aqui começam suas agressões à linguagem. A própria cena de invasão/vandalismo após o 360° ao redor do protagonista é uma esquizofrenia cinematográfica. Branagh varia entre planos aéreos, closes, planos detalhes e subjetivos e nenhum sentimento sai daquilo tudo. É uma picotagem para decupar algo simples e com potencial dramático, mas que na mão dele acaba virando um momento sem relevância, sem tesão, sem visual.
O que vem depois continua nesta mesma dinâmica: são lapsos de cenas que alcançam esse senso de memória, afeto e respeito perdidas em um mar de mini situações que pouco avançam a narrativa e muito menos trazem a casualidade que a estrutura de mini causos busca montar.
O que mais me surpreende aqui é como o diretor filma uma história de guerra, de "resistência", mas em nenhum momento filma UMA cena que passe o desconforto/perigo de um período como este. As próprias invasões jogam contra o ambiente, pois o filme lida com elas mais como um pequeno causo do que como a consequência do período. As filmagens de arquivo que o diretor tanto utiliza nas televisões da casa contextualizam muito melhor do que o que o próprio diretor filma, parecem situações desconexas de tão diferentes.
Sua direção é mais interessada em encontrar planos bem organizados formalmente que encaixem atores e objetos de uma maneira visualmente bonita do que em contar uma história. Parece tudo fundo de wallpaper do Windows sobre telhados com chuva caindo, bicicletas encostadas na parede e móveis de casa que criam aquela casa idílica do passado. Se esse fetiche visual busca um diálogo com a fotografia urbana que ascendeu no século passado, como li em outro review, faltou que Branagh integrasse essa perspectiva com a unidade de seu filme, não soando apenas como um "mero" fetiche.
Tá aí o meu principal incômodo nisso tudo, a falta de unidade, de critério para as decisões desse filme. Há uma variação de tom, de interesse, uma mistureba de modos de filmar e um descontrole em tentar fazer com que os elementos soem como complementares dentro de uma ideia própria. Por fim, vejo uma inspiração muito óbvia em "A vida é Bela", só que sem emoção, sem a contextualização necessária, sem a criação de um ambiente factível e com um fetiche vazio por um cinema "arthouse" limpo e estéreo.
O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel
4.4 1,9K Assista AgoraO mais épico que o cinema pipoca americano chegou no século? Talvez.
Embasbacantes as imagens que Peter Jackson cria nesse universo grandioso da Terra Média, dá pra falar que nenhum dos avanços tecnológicos que tomaram os blockbusters de TLOTR até aqui foram capazes de ultrapassar o que Senhor dos Anéis conseguiu fazer. Sobre isso, a maior sacada de Jackson para ambientar a Terra Média no nível de grandeza que essa epopeia merece é justamente como ele balanceia o digital com o natural em seus planos. Há duas abordagens muito perceptíveis entre planos abertos que se apoiam no CGI para captar a imensidão e o perigo que aquelas montanhas, nuvens e torres espalhadas pelo horizonte simbolizam e planos médios ambientados em naturezas reais, visualmente deslumbrantes, que são palco dos desafios dessa "quest" épica.
Talvez seja isso que faça de muitos dos blockbusters recentes o seu fracasso enquanto narrativa e construção de mundo, pois mergulhar 100% das suas dinâmicas em um digital cada vez mais masturbatório e menos funcional esvazia muito das possibilidades visuais e de mise-en-scène que as cenas "reais" são capazes de alcançar. O que poderia ter sido o maior dos legados dessa franquia pro cinema americano aparentemente se perdeu com o MCU e derivados, que fanáticos por construções gigantescas no digital e destruições em massa, renegam o quão impactante uma mera batalha coreografada e bem filmada no meio de algumas árvores consegue ser. (E olha que Jackson não demonstra tanta habilidade em filmar ação assim).
É lindo como Jackson encena essa história com os pilares de uma mitologia clássica - seus diálogos muitas vezes ingênuos, as atuações que captam muito bem o arquétipo de cada peça daquele mito e a trilha apoteótica de Howard Shore - que se interessa pelos valores e sentimentos mais brutos da existência humana e carrega consigo lições tão bem dispostas sobre ganância, instinto e, principalmente, relação com a Natureza. Ao final de todas seus mini desafios, o grupo de 9 amigos sobrevive ao contar com a ajuda das águas para espantar o mal, resistir a perigos encontrados pela ganância de cavar minas fundo demais, desejar terrenos e poderes invasivos e se sujeitar a ir além de seus territórios. Como um bom mito, encerra como um grande relato fantástico que diz mais sobre a condição humana do que sobre elfos, anões e magos.
Batman
4.0 1,9K Assista AgoraA primeira aparição do homem morcego no filme de Matt Reeves se dá para conter um grupo de jovens que - inspirados por um vídeo no qual um jovem agride um anônimo na rua - tenta repetir o mesmo contra outro anônimo da cidade. Em um momento histórico que a história do Cinema sufoca todas as imagens criadas na atualidade, sendo impossível o olhar cinéfilo não buscar as referências e inspirações do que assistimos, esta cena me remete a algo não tão distante quanto De Palma, Scorsese, Fincher, Carpenter e o Cinema Noir como estilo/gênero.
“Vidro” de Shyamalan - o melhor filme de herói já feito? - tem um início similar, pois um também jovem se diverte ao assistir em seu celular um idoso sendo agredido na rua assim como o início de “The Batman”. O filme de 2019 segue uma lógica, mesmo que por caminhos e estilo totalmente diferentes, similar ao que vemos aqui, já que lá de maneira mais evidente vemos heróis lutando para se provarem como tal em uma sociedade que saturada de imagens já não crê no que vê e, desesperançosa com o mundo, não consegue acreditar no sobrenatural e na fantasia.
Em “The Batman” é a criminalidade - viralizada por imagens - que mina completamente a esperança das pessoas de verem no personagem de Pattinson alguém com ideais e como um símbolo de proteção. Suas ações são entendidas como vingança, um maníaco irresponsável que inspira terroristas como Charada e que faz com que Mulher Gato ache que ele o ajudará a matar um policial corrupto. A luta de Batman é a mesma de Mr.Glass: Convencer a sociedade de que os heróis ainda existem e que ele é um deles em um mundo cansado de acreditar depois de tanto ver. A sua jornada terminar com ele dando a mão à nova prefeita em meio aos escombros e socorrendo vítimas de uma enchente é o ato que consolida sua imagem como Herói - ao mesmo tempo que define Batman como um agente das instituições e não da revolução.
Acho interessante o papel das imagens nesse universo que Reeves constrói, pois são elas que inspiram os crimes, são elas que pelos telejornais repercutem os crimes, são elas que destravam as descobertas e revelações da trama e é também por meio delas que Charada se mitifica. Ao se comunicar pelos seus vídeos e suas lives, o vilão tem a possibilidade de moldar seu aspecto vilanesco, de simbolizar perigo e, principalmente, de viralizar suas ideias. O ato final de sua jornada exigir justamente a ação de seus seguidores enquanto ele mesmo encontra-se distante é a peça final desta jornada por meio da mídia.
Notinha final: Charada aparece em uma noite de Halloween, ataca após atitudes voyeurs, e quando vê o promotor saindo da boate, nós acompanhamos sua visão pela câmera subjetiva enquanto ouvimos sua respiração. Se Reeves entende seu vilão como uma entidade maligna à la Michael Myers, a personificação do mal absoluto, sinto dizer que este sempre volta.