Gosto de como Joachim Trier (Oslo 31 de agosto, Mais Forte que Bombas) generosamente desenvolveu um estudo de personagem sobre Julie, mesmo correndo o risco de errar a mão. A questão do lugar de fala vem a mente, mas desde que o artista trabalhe com empatia, a chance de desandar a receita diminui consideravelmente. Aqui, a partir de capítulos subdivididos, o diretor propõe um olhar abrangente em 12 capítulos (que podem ser sugestivos dos 12 meses do ano, e assim dar esta sensação de totalidade).
O conflito dramático pode existir em função de um relacionamento, já que a crise da narrativa inicia a partir de um flerte em uma festa, mas a direção não tenta resumir Julie a isto. Existe muito do que este desejo e que se materializa em como ela enxerga a vida de modo inseguro, até ansioso, tentando decidir qual será sua profissão, com quem quer se relacionar, como se sente consigo mesmo. O sucesso de Joachim está em entender os dilemas que qualquer pessoa sente no mundo de hoje e adaptá-los à personagem, sem julgá-la, enquanto reconhecer que, por ser mulher, enfrenta desafios diferentes do que seriam caso fosse homem.
A atuação de Renate Reinsve, que venceu o prêmio no festival de Cannes do ano passado, tem uma naturalidade gravitacional, que arrasta o espectador para a sua órbita onde permanece enquanto assiste a mundanidade de sua vida como se fosse uma peça de William Shakespeare. Julie é atraente como personagem por ser um espelho a mulheres, e também homens, que correm para encontrar seu lugar no mundo. E Renate compõe a personagem com um misto da exploração do eu, similar à curiosidade de Amélie Poulain, com uma resignação de quem não tenta pedir desculpas, que lembra a Fleabag, ao perceber as escolhas que tomou como parte de quem ela é, muito mais do que um conjunto binário de certos e errados.
Como faltam comédias românticas iguais a esta, que abraçam o espectador com o desejo de ver o casal título junto diante das dificuldades apresentadas. A partir da composição de Renato Russo, cujas passagens são reproduzidas sem o alarde de parecerem um fan service (Eduardo joga futebol de botão com seu avô de um jeito bem casual, enquanto Mônica fala de Bauhaus e Nouvelle Vague dentro de uma conversa casual), temos um romance que, semelhante ao visto em Licorice Pizza, desafia o conceito de maturidade quando coloca uma mulher adulta relacionando-se com um jovem à beira de prestar vestibular.
É uma premissa que revela o estado emocional de Mônica depois da perda do pai e como este caminho sombrio a leva a conhecer um jovem de alma vibrante, cuja ingenuidade típica da idade representa aqueles mesmos valores que buscam no amor. Enquanto vemos o romance florescer a partir da osmose de cultura, conhecimento e vontade de enxergar o mundo a partir de um olhar mais simples que flui de uma parte para outra e vice-versa, o conflito que os ameaça é bem melhor elaborado do que mentiras, traições ou outros romances. Já que a imaturidade e mesmo a dureza do coração são obstáculos tratados com realismo e naturalidade por René Simões.
A direção é gostosa, por resgatar um período nostálgico do tempo inspirado pela canção, mas é também remissiva aos dias de hoje, já que tudo o que está acontecendo é em um período simultâneo ao regime militar, cujas raízes ainda podem ser enxergadas expostas na cabeça de muitos. Tudo criado a partir de um contraste que favorece a beleza dos quadros, sem esquecer a densidade e textura emocionais necessárias para que o romance de Eduardo e Mônica não seja apenas água com açúcar.
E disto não tem nada, muito por conta da atuação de Alice Braga. Difícil não se apaixonar pela composição da atriz, que mescla um inconformismo com rebeldia de quem deseja criar o caminho do sucesso rejeitando aquele estabelecido pela mãe (e pelas normas sociais e tradicionais), embora não deixe transparecer um retrato unidimensional de uma mulher forte e inabalável. Sua Mônica sente; sua tristeza machuca, seus sorrisos contagiam. Já Gabriel Leone tem um papel mais difícil porque Eduardo tem uma trajetória mais óbvia, tentando provar a Mônica (e a nós) que sua idade não é sinônimo de unidimensionalidade. Assim, Gabriel trabalha as expectativas óbvias que criamos em torno dele e não as subverte. Pelo contrário, pede que enxerguemos além delas e encontremos o jovem idealista e apaixonado que um dia podemos ter sido.
No processo, René, Alice e Gabriel transformam a canção que embalou amores e romances no filme que deveria ser, fazendo jus a Renato Russo sem deixar de ter identidade própria.
Além de já haver assistido a histórias de amadurecimento além da conta, também estou familiarizado com a ideia de escrever de si mesmo com a autocrítica em relação a seus atos e calorosidade quanto àqueles que estiveram juntos nesta caminhada. Este trabalho dirigido por George Clooney, que a cada filme perde a personalidade apresentada em Boa Noite, Boa Sorte e Tudo pelo Poder, bate nas mesmas teclas mas com atuações que cativam por nos pegarem desprevenidos: Christopher Lloyd e sobretudo Ben Affleck ajudam esta narrativa a agradar, mesmo quando se mantém no conforto do lugar comum.
O roteiro é estrutura na memória distante de JR, quando é obrigado a se mudar, com a mãe, para a residência do avô, e na memória próxima, já na faculdade, quando decide que irá escrever as memórias acerca de sua vida. Pode haver histórias de vida mais cinematográficas do que a de JR, mas não há como diminuir a trajetória individual de cada um, e George Clooney tenta manter um otimismo inabalável pela narrativa - nem que nuvens espessas cubram aquela família.
Melhor do que o texto propriamente dito é a reconstrução de época, evocada nas canções do período e nos figurinos - mas, de novo, nada que não houvéssemos visto antes e até melhor, considerando o êxito de Licorice Pizza, lançado no mesmo ano e que tem uma abordagem semelhante. De todo modo, mesmo que aquém às possibilidades de seu diretor, este drama tem o benefício do aconchego. E tem estado mais e mais infrequente encontrar filmes gentis e carinhosos com os personagens que povoam seus mundos, mesmo que este mundo não seja tão interessante quanto outros.
Depois de Laços, que era mais infantil, até pela idade dos atores que interpretavam os personagens clássicos da turminha de Maurício de Souza, este Lições parece encontrar conforto em mesclar o drama consequente da frustração da separação e a comédia divertida. São momentos articulados com zelo pela direção de Daniel Rezende, que transforma a separação forçada de Mônica e Cebolinha em uma tragédia digna de William Shakespeare. É que, para crianças e adolescentes, conflitos que parecem banais aos adultos são, na verdade, mudanças de curso que as obrigam a encarar a etapa do crescimento e amadurecimento ante a impotência de não poderem tomar as decisões de suas vidas.
Deste modo, além de introduzir novos personagens que ajudam a jogar uma leveza na história (os hilários Do Contra e Humberto, a doce Marina e os exemplares Tina e Rolo), Daniel ainda trabalha o drama atravessado pelos membros da turma de forma visual, a partir da reduzida profundidade de campo que deixa Mônica sozinha no quadro com o fundo desfocado. Afinal, como construir amizades após viver aquelas que já conhecem nossas alegrias e birras? E vem junto disto uma lição para adultos, adolescentes e crianças na sessão: crescer não significa deixar de ser criança.
Com uma fotografia calorosa, que alterna com momentos de maior introspecção, a maior surpresa de Lições está em sua envergadura dramática que não subtrai o bom humor que se espera de um filme feito para toda a família. Se os atores Giulia, Kevin, Gabriel e Laura estão crescendo, também crescem os conflitos, sinal de maturidade narrativa ausente na maioria de continuações, que só se limita a ser mais do mesmo com mais personagens. Deste modo, Lições é uma boa despedida de 2021, ensinando ao espectador a apreciar mais o cinema nacional.
Nestes anos que passaram, pude perceber duas constantes no cinema: a Marvel continuará produzindo filmes e mais filmes até saturar seu gênero de super-heróis e Olivia Colman continuará impressionando com o imenso talento em interpretar personagens complexas que não podem ser reduzidas a adjetivos. A forma com que Olivia compõe suas personagens nunca é óbvia e passeia na estrada sinuosa entre o superficial e o profundo. Aqui, a atriz interpreta uma mulher de férias que começa a revisitar a maternidade no passado a partir do convívio com uma família.
Convívio é eufemismo, já que, na maior parte do tempo, Leda apenas assiste àquelas pessoas, com um mórbido interesse mais significativo do que somente a curiosidade em assistir à discussão que acontece na mesa ao lado no restaurante. Leda parece que se perde no olhar, e seu fluxo de consciência a leva ao passado quando, vivida pela também talentosa Jessie Buckley, começa a recordar que a maternidade não é uma vocação biológica da mulher. É um desejo íntimo e espiritual que se realiza, caso a caso, de forma diferente para cada mulher. E Maggie Gyllenhaal, em sua estreia na direção, entende a importância em não julgar Leda por quem ela foi e é.
Sua narrativa é observadora, igual à protagonista, mas evita criar mais símbolos e sinapses do que aquelas já formuladas por Leda. A direção tenta se por ao lado da protagonista, como um companheiro que ouve mas não retruca. Só raramente. Existe um calor veraneio que contradiz uma mulher que é um céu nublado, enquanto atravessa esta jornada de autoconhecimento. Olivia é um arraso e, arrisco dizer, só não está na melhor atuação do ano porque eu ainda estou apaixonado pela Diana de Kristen Stewart.
Seja como for, com um domínio de linguagem admirável em como estrutura memória e agora e articula a fotografia calorosa com os interiores frios da pousada onde está, Maggie Gyllenhaal também extrai o melhor de seu trio de mulheres (composto ainda por Dakota Johnson) em uma adaptação que, conhecendo a reputação da obra original, honra cada uma de suas páginas.
Enquanto a maioria das ficções-científicas análogas a este jovem clássico está preocupada com as invasões e guerras e o heroísmo de uns para salvar a Terra, Denis Villeneuve se interessa com a chegada (veja como a conotação da palavra muda todo o significado) e o heroísmo de uma mulher que equivale ao exercício de seu ofício: a comunicação. A partir da história que embaralha o tempo como uma forma de revelar o ponto de vista da Dra. Louise, Denis Villeneuve torna incerta a maneira com que percebemos os eventos, utilizando-se de alternativas visuais que começam na decupagem, em optar por revelar a reação mais do que a ação, na iluminação, que mantém seus personagens sob sombras que obstaculizam suas intenções, e na neblina de mistério que recobre a chegada dos heptapodes.
Além disto, a direção entende como a comunicação é a arma mais importante da humanidade. Tanto pela habilidade que tem de atrair povos a partir dos canais diplomáticos, quanto pelos obstáculos que provocam guerras. Negando o militarismo convencional dos Estados Unidos e a pressa em obter soluções que não a ideal, Louise oferece a escuta paciente para decifrar os símbolos "escritos" no ar e também a própria forma de comunicação. Ela é a heroína rara da ficção-científica cuja força não se revela em intensidade, agilidade ou força física, mas no desejo de se comunicar, inclusive consigo mesma.
Isso não a torna unidimensional, pois a narrativa ainda aprofunda o desenvolvimento dela ao tornar seu drama familiar em fruto de uma falha premeditada de comunicação. Amy Adams encarna este papel sem nenhum excesso. Sua atuação é contida, expressa em reações e na inteligência com que não altera o tom de voz para provar qualquer argumento. Sua não indicação é um dos maiores pecados cometidos em tempos recentes pela Academia, e só consigo explicá-lo pelo fato de Villeneuve não ser um actor's director - termo que designa aqueles diretores que favorecem a atuação até mais do que a narrativa.
Ao manter Louise nas sombras, Villeneuve também sombreou as chances de Amy no Oscar? Talvez. Seja como for, A Chegada é, ao lado de Contatos Imediatos do Terceiro Grau e Contato, um bálsamo em se tratando de uma ficção-científica arrebatadora, apaixonante e que não resolve seus problemas com bombas ou disparos, porém na diplomacia.
Paul Thomas Anderson é o melhor cineasta norte-americano de sua geração. Ponto. Sua capacidade em convidar e atrair o espectador, em vez de puxá-lo à força, para mergulhar em uma época não tão distante da que vivemos apenas rivaliza com a meticulosidade com que pensa e articula discursos com o intermédio de imagens. Com esta comédia de época, romântica e dramaticamente afinada para revelar o processo de amadurecimento de Gary e também Alana. Enquanto ela já é adulta mas ainda imatura, ele parece mais maduro do que a idade etária do colegial.
Sem maiores dificuldades. PTA retira o elefante do centro da sala de cinema, a pedofilia sugerida na atração amorosa que existe entre os dois, e começa a discutir como o relacionamento entre ambos pode despertar o melhor neles. Não o relacionamento amoroso ou sexual, mas aquele que acentua qualidades e obscurece defeitos. Gary e Alana são inseparáveis, mesmo que a moral não permita enxergá-los como um casal. Nesta odisseia, que beira o surreal em passagens - as participações de Sean Penn e Bradley Cooper são inspiradas neste quersito - e mesmo o ofensivo - não com o intento de ofender, mas de retratar a época -, o diretor revisita uma época no tempo, os anos 70, não a partir do olhar de hoje, mas no daquela época.
Enquanto alguns filmes de época utilizam o anacronismo para tentar comentar o hoje com os cenários, figurinos e penteados de ontem, PTA faz o mais improvável: retornar àquele tempo, desatualizar nossa bússola e devolver à sociedade ao modo como pensava. Não pretende ensaiar uma crítica ao pensamento retrógrado de então, nem ilustrá-lo de forma saudosista, senão na trilha musical organizada com carinho. Os anos 70 são retratados como foram, no bom e ruim, como o palco em que duas almas vagam e correm em busca de propósito, daquele flare de luz que invade o quadro, no melhor filme do ano.
Quando o Homem-Aranha apareceu em Capitão América: Guerra Civil, era um projeto pessoal do Homem de Ferro, que fez as vezes de um tio Ben do mundo invertido, pois os valores defendidos pelo saudoso Tony Stark eram radicalmente diferentes dos que Peter Parker trazia consigo desde as HQs até as adaptações cinematográficas anteriores. Onde o Homem de Ferro era racional e narcisista, o Homem Aranha é lúdico, brincalhão, anônimo. Desse modo, é bom saber que esta parte final da trilogia do Tom Holland devolve o herói para a fantasia de onde não deveria ter ido, bem distante dos uniformes robotizados que Tony Stark desenvolveu para ele.
O Peter do filme está em processo de amadurecimento, enquanto tem que lidar com o fato de que Mysterio revelou sua identidade secreta. É o pior dos mundos, a ponto de levá-lo a desejar o anonimato (sempre integrante da construção do personagem), ao mesmo tempo em que o obriga a encarar o fato de que o modelo do Homem de Ferro talvez não fosse o melhor a seguir. Já que Tony, irresponsável durante parte do MCU, jamais repetiria o mantra "com grandes poderes vem grandes responsabilidades". O filme vem como uma libertação do personagem num arco dramático potente, que o obriga a aprender com o exemplo alheio a superar a raiva e frustração indispensáveis para a formação do Homem-Aranha.
O roteiro pode adotar conflitos mais superficiais porque Peter é jovem e não tem a mesma maturidade e conhecimento de um adulto como o Dr. Estranho. Ao mesmo tempo, é esta jovialidade e ingenuidade que fazem o personagem cogitar "curar" seus adversários daquilo que os tornou monstruosos, algo que jamais passaria na cabeça de um adulto cínico para quem ressocialização é sinônimo de defender o bandido.
Enquanto proporciona o amadurecimento à idade adulta, enfrenta dramas não superados por seus personagens e encaixa um humor eficiente e original, Sem Volta para Casa propõe algo que apenas o cinema poderia fazer: uma dimensão compatível com o legado do personagem e a ousadia de redesenhar o que não funcionava neste retorno ao Homem-Aranha que aprendi a amar quando folheava as HQs.
Não existem regras quando o assunto é adaptar fatos ou biografias de pessoais reais. Embora desejáveis, nem a verossimilhança e similitude dos fatos à trama são regras inquebráveis, e não vejo com maus olhos introduzir ficção no real (a exemplo de Spencer). E a abordagem é um elemento que entra na análise, pois nada impede o diretor de encarar figuras histórias (George W. Bush, por exemplo) qual seja a lente: seja factual, seja absurda, seja ridícula. Porém, precisamos estar no mesmo barco e enxergar esta opção para que a experiência narrativa seja a desejada pelo diretor.
Assim, o que enxerguei como maior problema de Os Olhos de Tammy Faye é a indecisão de Michael Showalter em estabelecer qual a lente escolhida na biografia: se encara Tammy como caricatura OU se esta caricatura apenas existe nos olhos de quem vê (público), enquanto a atriz Jessica Chastain perceptivelmente aborda a televangelista de um modo fiel à extravagância, à beira de se alienar ao que ocorria ao seu redor. Atravessei a biografia sem saber se deveria sentir empatia por uma mulher que acreditava que tinha um lado forte com Deus a ponto de conversar com ele e de falar línguas desde a infância, ou se estava diante de uma crítica ácida à pregação da prosperidade que esconde ambição, ganância, hipocrisia.
Ambas abordagens também podem coexistir, mas, de novo, não sinto o que o diretor desejava alcançar. Seja como for, apesar de a biografia ter o problema de se estender bastante no tempo e diluir eventos que mereciam maior escrutínio, o roteiro faz um bom trabalho em pontuar quem é Tammy e Jim, seu marido, interpretado por Andrew Garfield, e o ninho de cobras que era a emissora cristã PTL. Não é difícil perceber como as idiossincrasias de Tammy, o comportamento feminista apesar de ela não se rotular e o acolhimento LGBTQ iam de encontro aos valores defendidos pela religião.
Então não é difícil notar como a trajetória de ascensão dela terminaria em derrocada, em função dos esquemas fraudulentos de Jim. Mas, aí, a narrativa aliena o espectador de que Tammy estava cega ao fato de que vivia em um palácio, enquanto a trata como ingênua, quando em muitas ocasiões era só hipócrita. O retrato é incompleto. Tammy era vítima do comportamento machista da estrutura evangélica e também opressora daqueles fiéis que acreditavam nela. Ela é contraditória e Jessica Chastain tenta expressar isto, mas sem a direção de um bom filme, não tem sucesso.
Gosto de pensar no processo terapêutico que é revisitar a juventude e reencontrar o racismo estrutural integrado dentro do comportamento dos pais, amigos, treinadores e praticamente todos aqueles com quem Colin Kaepernick conviveu, enquanto realiza o paralelo com a exclusão da NFL depois de um gesto que objetivava, justamente, combater este racismo. Apesar de ter momentos de coach que, frequentemente, soam deslocados dentro do contexto narrativo, a minissérie Colin em Preto e Branco é feliz em ilustrar o olhar de hoje do atleta reconhecendo toda a violência que sofreu ontem e como isto o moldou para ser quem é.
Com um recorte bem definido, iniciado a partir dos testes para integrar o time de futebol americano da escola até ser selecionado por uma faculdade, Colin em Preto e Branco é um documentário (não parece, eu sei) que adota o artifício de reconstituições e de insights com figuras históricas e contemporâneas para revelar, por exemplo, como o corte de cabelo pode ser desvirtuado pelo olhar branco que não percebe, nem quer, como encena uma busca pela identidade a muitos negada.
Existe uma simplicidade em contar a história, que toma emprestados elementos que já vimos em filmes parecidos, porém envoltos em uma dimensão racial e política que questiona o sistema, enquanto vivencia a juventude. Colin, o real, enxerga isto a partir de uma janela aberta à sua vida, com uma câmera que se movimenta em sua direção a fim de revelar a grandeza do homem e a sensibilidade no olhar. Já a Jaden Michael, o Colin fictício, é confiada a parte sensível somente, pois, jovem, ainda não enxerga as nuances que apenas a maturidade e o conhecimento expõem. Até pode perceber a violência, mas não sabe quantificá-la, qualificá-la, identificá-la.
Este jogo caracterizado pelas trocas entre o Colin real, que observa até agir, e o da ficção, que sobrevive até empoderar-se, é a alma de uma minissérie cativante, pela forma como é narrada, e indispensável, pelo tema apresentado.
A partir do livro de William Lindsay Gresham, já adaptado em O Beco das Almas Perdidas (1947), Guillermo Del Toro investe no estilo noir para contar a história do homem sem rumo interpretado por Bradley Cooper, acolhido em um circo de atrações onde se transformará em mentalista e se apaixonará pela personagem de Rooney Mara. Fiel aos elementos do estilo, Del Toro investe em um personagem moralmente anguloso, uma femme fatale, vivida por Cate Blanchett, o contraste de luzes e sombras na fotografia carregada de cores expressivas e um design de produção irrepreensível.
Tudo muitíssimo bem acabado, padrão de qualidade que se repete na obra de um diretor bastante detalhista a ponto de ser obcecado com a riqueza dos valores de produção necessários para recriar o mundo com que sonha. Mas a forma se sobrepõe aos personagens. Somos envolvidos pelos intérpretes mais porque interpretados por Richard Jenkins, Willem Dafoe, Toni Collette, atores que raramente se prestam a atuações medíocres, do que pelo atrito de suas personalidades com a do protagonista.
Por falar em Bradley Cooper, apesar de gostar do ator, seu talento não aproxima o público do protagonista ambicioso. O estilo noir não exige a identificação da maneira como o cinema convencionou, mas uma forma de envolvimento na espiral decadente iniciada na figura de uma mulher sedutora, conceito sexista que a narrativa felizmente subverte. Entretanto, não sentimos piedade por Stanton; mas responsabilização, e nunca é bom agouro torcer contra o protagonista, ainda mais com a opressão que provocada nas personagens femininas que o envolvem.
É como se, em vez de contar A Forma da Água da perspectiva de Sally Hawkins, Del Toro optasse por tornar Michael Shannon o protagonista. Aqui, a humanização de Stanton se limita a flashbacks ou à vaidade de quem descobre ter um dom somente para se enxergar refém dele, tão interessado Del Toro estava em retratar a conclusão do processo de degradação - que vem de forma óbvia igual as viradas na trama - e não o processo em si. Mesmo assim, a embalagem é atraente e hipnótica o bastante para enfeitiçar o espectador por 150 minutos.
Ao encarar a própria vida no autobiográfico A Mão de Deus, Paolo Sorrentino não economiza em resgatar o mesmo olhar que possuía quando estava na juventude, nem que este olhar seja depreciativo. Dentro do cinema do diretor, a câmera não está presente para julgar quem quer que seja, mas para retratar, deslocando ao espectador a tarefa de valorar o que é posto diante de si. O ridículo pode parecer sagrado; o sagrado pode parecer imoral. Paolo apenas articula este cinema essencialmente italiano formado na base do olhar, mas não mascara nem atenua o autorretrato.
Sua inspiração é Federico Fellini, e sua obra está repleta de momentos em que existe a contemplação do belo ou feio, o toque surrealista tido na percepção e no resgate da memória. A Mão de Deus começa como uma comédia tipicamente italiana, destacando a organização familiar, a maneira com que entes relacionam-se uns com os outros, sem meias palavras, revelando o processo transformador provocado por eventos e acontecimentos específicos, que se mesclam com o pano de fundo da contratação de Diego Maradona para o Napoli.
São estes momentos que redefinem a vida das pessoas, os afetos, a culpa, a impotência, na estrutura que nasce na comédia - ao menos, até percebermos que não há nada de engraçado no contexto -, passa ao drama e conclui no autoconhecimento, no momento definidor em que adolescentes se tornam adultos. Não de forma conscientes, mas porque a vida lhes exige isto para sobreviver. Sorrentino é carinhoso consigo mesmo, mas isto não o torna menos crítico a quem foi, visto no jovem interpretado com empenho por Filippo Scotti.
Não faltam momentos emocionantes, engatilhados pela forma como Sorrentino movimenta a câmera em direção à ação ou utiliza a trilha sonora doce para marcar a contemplação. Enquanto escrevo, penso apenas no som da lanche batendo contra as ondas do mar, tuf tuf, e sinto que a vida é este movimento de colisões que, ironicamente, também traz alguma forma de paz e consolo. FILMÃO.
Adianto que não gosto da versão original de Amor, Sublime Amor. Além de ser fruto de uma época em que os musicais estavam em baixa, ainda que o filme tenha faturado 10 Oscars!, sempre torci o nariz para a forma em cima do muro que o roteiro tratava o tema. Ele transformava a luta por dignidade de um grupo de imigrantes porto-riquenhos numa versão de Romeu e Julieta, colocando-os no mesmo degrau em que os Jets, que os discriminavam, como se seus conflitos fossem semelhantes.
Eu entendo a lógica em revelar que, no bairro de West Side à beira da gentrificação e em processo de ser apropriado pela elite, as gangues revelam como lutamos uns contra os outros em vez de nos unir contra o inimigo comum e que fomenta as animosidades entre cada um. Mas não dá para colocá-los de forma igual quando a legitimidade de suas lutas é diferente: os Jets lutam contra a falta de oportunidades, os Sharks contra isto E TAMBÉM contra a sociedade que os discrimina em razão de sua origem, seu idioma, seu estilo de vida.
Qual não é a minha surpresa quando, apesar de passados 60 anos, Steven Spielberg repete os mesmos erros? Ao menos não repete a forma mais quadradona do original, homenageando-o (para quem o considera um clássico americano, eu não) e atualizando-o onde crê precisar disto além de inverter a etnia dos namorados. Percebo uma tentativa consciente de teatralização, e assim os cenários parecem frutos de uma peça. Tem um quê de artificialidade - como o exterior do condomínio onde Maria mora, o interior da delegacia de polícia - como se desejasse registrar o amor a este musical mais clássico.
Enquanto isto, há a modernização na coreografia das danças, sempre com um escopo ambicioso que exige uma montagem afinada. E gosto de como a narrativa reaproveita Rita Moreno noutra personagem. E se falta química ao casal Ansel Elgort e Rachel Zegler, ao menos a jovem atriz tem uma voz de piano que permite esquecer os momentos meio embaraçosos com o ator. Ela é ajudada por Ariana DeBose e Mike Faist que conferem intensidade e melancolia a Anita e Riff e ainda por Spielberg, que estreando em musicais, parece ter a experiência de quem os comandou a vida inteira.
Mike Mills conhece a forma de criar um drama que me toca no coração. Um que não é árido em emoção mas que não as permite transbordar a ponto de parecer um banho de açúcar que provoca enjoo. Toda Forma de Amor e Mulheres do Século 20 são filmes que sensibilizam com uma naturalidade que falta a maioria dos diretores, e C'mon C'mon repete isto.
Com o preto e branco, a narrativa anula uma parte da comunicação visual (aquela feita através de cores) a fim de se concentrar no que é importante: a relação entre tio e sobrinho, interpretados por Joaquin Phoenix - um ator hipnótico que não precisa sair por aí sorrindo para todo mundo para ser querido - e Woody Norman, que tem o gene da criança do cinema independente americano: precoce, irritadiça mas que não se afasta do que a torna criança.
A dinâmica do duo e de Johnny com a irmã Viv estruturam o filme, que viaja por cidades para proporcionar encontros reveladores da vida real dentro dos Estados Unidos (Nova York, Nova Orleans, Detroit), como a forma de contrapor o drama que exigiu que Jesse temporariamente se afastasse da mãe. Nas passagens em que é documental é espontâneo, tal como tenta ser na ficção, que se desenvolve de forma acessível, humana, simples e sem evitar cair em armadilhas do drama clássico - mais sentimental - nem o drama independente - aquele que tenta ser descolado.
É o tipo de drama caloroso que não precisa se esforçar para provocar lágrimas, quando já sabe qual é o caminho para o coração do público. O desejo de se comunicar e escutar o outro, estranhos ou o sobrinho.
Depois de vencer o Oscar por A Grande Aposta, Adam McKay criou uma fórmula bastante eficiente de comédias satíricas, pautadas no hoje e no agora, que combinam uma montagem intensa com excessos que trouxe das comédias que havia dirigido antes (O Âncora, Quase Irmãos etc). E com um talento para reunir um elenco invejável e articulá-lo em torno de sua proposta. Que, neste caso, é utilizar um cometa em rota de colisão com a Terra como uma metáfora da crise climática, do negacionismo de uma parte da população, da postura negligente das autoridades políticas (que agem quando precisam criar uma cortina de fumaça) e da imprensa mais interessada em frivolidades que dão audiência.
A comédia é certeira em revelar como a ciência é desacreditada por achismos, politicagem, notícias falsas e pretensos gurus que ocupam o escalão mais elevado do governo por indicação de quem quer que seja - para tanto, brinca com a nomeação à Suprema Corte que parece não ter nada a ver com a trama, mas tem tudo justo por escolher um não jurista para cargo jurídico. Isto vale para como os personagens de DiCaprio e Lawrence são testados de maneiras diferentes, em razão de ela ser mulher: enquanto DiCaprio acaba se tornando um símbolo sexual, Lawrence é taxada como raivosa e objeto de memes.
Mais personagens desfilam pela narrativa, todas criados na base da sátira: Meryl Streep interpreta uma presidente com pé no trumpismo, Mark Rylance, uma versão com dentadura de Elon Musk, e muito mais. São 2 horas e 30 minutos que comentam o óbvio, mas não falo isto de forma pejorativa: às vezes, o óbvio precisa ser esfregado na cara de um e de outro para revelar como podemos agir estupidamente dentro de uma situação que exige seriedade. O problema na narrativa está em Adam McKay, sempre que se aproxima da comédia genuinamente nonsense, puxa o freio de mão para introduzir um tom sentimental ou que se leva a sério.
O diretor aspira a Doutor Fantástico e Rede de Intrigas, mas somente consegue ser uma versão paralela de Marte Ataca!, desperdiçando um ou outro nome do elenco e momentos em que a seriedade colide com a sátira. Não Olhe para Cima é uma comédia necessária em tempos de crise ambiental, porque o humor é uma forma excelente de comunicar a realidade para a qual não queremos olhar. Uma pena, portanto, que Adam McKay não desbloqueie todo o potencial que a narrativa tinha e tenha se contentado em uma versão mais branda do que poderia ser memorável.
Apesar de dirigir-solo a adaptação de William Shakespeare, Joel Coen não foge da temática que norteou sua obra ao lado do irmão, Ethan: o castigo imposto a quem comete iniquidades, a exemplo de MacBeth. Depois das versões de Orson Welles, Akira Kurosawa, Roman Polanski, definitivas dentro da proposta que encenavam, cabe se indagar o que Joel Coen tem a oferecer à leitura da obra e como esta conversa com os tempos de hoje.
Como MacBeth dialoga sobre ambição, ganância, traição, trata então de temas atemporais e destacáveis dentro da sociedade capitalista e neoliberal, facilitando a adaptação aos dias de hoje. Porém, Joel Coen opta por um registro mais formal dos diálogos, tal como Shakespeare os concedeu, sem modernizá-los, o que cria um empecilho para que nos aproximemos dos personagens em uma dimensão emocional, não intelectual. O fato de serem interpretados por Denzel Washington ou Frances McDormand atenua a distância, porque ambos conseguem se desenvolver muito além do texto rígido e da prosa mais formal.
Mesmo sem esta proximidade emocional - já esperada pois estamos diante de um homem mesquinho e traiçoeiro, envenenado pela sede de poder e pelas palavras da Lady MacBeth -, o elemento intelectual associado à fotografia de Bruno Delbonnel auxilia a viver esta fábula às avessas como se fosse uma obra de horror expressionista oriunda dos primórdios do cinema. A fotografia preto e branco recorre ao alto contraste - o branco muito claro, o preto muito escuro -, acentuado pela utilização de obstáculos contornados pela luz - pórticos, frestas, neblina - e cria uma sensação de aprisionamento dentro da perversão de MacBeth.
Bruno Delbonnel produziu, para mim, as imagens mais bonitas de 2021, enquanto Joel Coen, amparado pelos sempre ótimos Denzel Washington e Frances McDormand, revitalizou Shakespeare. Se não através do texto, a partir de como o ilustrou, com o contorno de um pesadelo de que nenhum dos personagens escapará ileso.
Asghar Farhadi é mestre em, a partir de um incidente cotidiano, estruturar um conto sobre moral, mas não moralista, que funciona dentro do Irã e também em todo o restante do mundo. Foi assim em A Separação, O Passado, O Apartamento e agora em Um Herói, que conta a história de um homem, preso por dívida, que durante uma liberação do presídio encontra uma sacola de dinheiro cheia de moedas de ouro com que conseguiria se ver livre da cadeia. Mas Rahim é honesto, ao menos é isto em que acreditamos, e resolve devolver a sacola para seu dono.
Por que parece? É que a estrutura do roteiro, os acontecimentos desenvolvidos, os julgamentos realizados e as relações de causa e efeito obrigam o espectador a questionar até mesmo aquilo que parece certo: a honestidade de Rahim. Uma informação adicional modifica o juízo que fazemos do personagem e chegamos até a duvidar daquilo que acabamos de ter visto com os próprios olhos, diante das notícias falsas ou não que as redes sociais e a imprensa começam a divulgar.
O roteiro também é inteligente em abrir o campo de visão o bastante para que enxerguemos Rahim a partir do olhar de seu credor, e não é absurda a forma inconformada com que reage diante da popularidade súbita de um homem celebrado por haver agido como todos devemos agir na mesma situação. É igual ao sentimento do filho honesto bíblico que criticava o pai por receber de braços abertos o filho pródigo, que havia gastado metade de sua herança.
Um Herói é fruto de um roteiro provocador, que não oferece respostas mastigadas. Asghar deseja explorar, o máximo que pode, sua premissa e seu universo de personagens, exaurindo as possibilidades enquanto apresenta um panorama complexo para que sejamos os juízes, ou não, de Rahim. Mergulhado dentro do realismo e culturalismo iraniano, Um Herói é, fácil, um dos melhores filmes do ano.
Sou encantado com o formalismo de Paul Schrader. É como se o diretor reduzisse a narrativa ao mínimo denominador comum da linguagem cinematográfica e assim permitisse que os planos e as movimentações conversem com maior facilidade com quem os vê. Não precisa ser crítico nem cinéfilo caxias para perceber e sentir como a encenação rígida torna, paralelamente, o protagonista vivido por Osaac Isaac mais misterioso e favorece as quebras de paradigma em flashbacks bem mais estilizados.
O que é irônico, pois o jogador de Oscar parece ser quem está dando as cartas ao espectador, alimentando-o com o que deseja que este saiba a seu respeito, enquanto, dentro da trama, recebe cartas com que talvez não consiga vencer. Ao invés de um ás, recebe um coringa, na forma de Tye Sheridan que se consolida como este ator obtuso e estranhamente ameaçador. Para quem gosta de planejar e calcular, o imprevisível pode ser desafiador e até mesmo libertador. É retornar às origens de um primitivismo que ele parece haver afastado.
A narrativa se estrutura em frentes que caminham a passos pacientes e talvez não se realizam da forma como esperamos: a dinâmica mestre e aprendiz, o romance estabelecido apesar de não sugerir qualquer consumação além do campo das ideias, o regresso ao passado na forma de penitência e aclaramento. Tudo isto simultaneamente a um campeonato de pôquer, que parece ser a menor das preocupações deste homem. O pôquer é a desculpa para que a narrativa caminhe adiante e o meio de realizar seu plano.
Neste mundo, o formalismo retrata o método de direção de Paul Scharader (Fé Corrompida) e também a espécie de protagonista. Funciona em frente e atrás das câmeras, proporcionando um thriller frio e cujos thrills estão ocultados, sugeridos, implicados. É o modo encontrado por Paul (e o jogador) para manter controle. Eu adorei.
Nora Fingscheidt, a diretora de Transtorno Explosivo, traz emoções calejadas para a adaptação cinematográfica da minissérie britânica lançada em 2009. Seu objetivo é discutir escolhas, responsabilidade, culpa a partir da história de uma mulher, cujas ações parecem estar movidas pelo interesse egoísta de rever a irmã caçula logo depois de deixar a cadeia por haver assassinado um policial. Egoísta porque sua irmã foi adotada por uma família que cuida bem dela, proporciona-lhe tudo de melhor.
Pode notar que todos os personagens coadjuvantes fazem escolhas e precisam arcar com as consequências de seus atos, o que os relaciona com Ruth, interpretada por Sandra Bullock adotando o estilo taciturno de quem abaixa a cabeça em razão do crime cometido até a emoção transbordar de tão incontrolável. A atriz está impecável, tal como Viola Davis, cuja participação é pequena o bastante para levantar a questão do motivo de a atriz ter aceitado um papel cujo atrativo está somente em uma breve passagem. Mas a personagem de Viola Davis é sintoma do que segura esta narrativa para trás: o excesso de coadjuvantes.
Se na minissérie pode até fazer sentido ter meia dúzia de personagens que gravitam em torno de Ruth, em 110 minutos isto dilui suas ações e escolhas. A presença dos filhos enlutados do homem assassinado por Ruth não se justifica desde o primeiro instante, piora e desanda de vez quando se torna justificativa rasteira para o terceiro ato mais forçado. É que existe muita coisa com o que o roteiro deve se preocupar com a introdução de uma informação que muda a percepção em relação a Ruth, então não parece fazer sentido entulhar de personagens que só servem para congestionar o caminho da protagonista rumo a catarse.
Que já até havia vindo, pois Imperdoável oferece uma discussão bem interessante acerca da reintegração do condenado na sociedade após cumprir a pena atribuída. Seu direito de existir, de ser admitido como um indivíduo, que é ainda complicado dentro da sociedade americana como admite a personagem de Viola Davis ao confrontar o marido. Eu até acredito que Imperdoável discuta, com razoabilidade, a questão e o drama vivenciado por Ruth, apenas poderia fazê-lo de forma focada a Sandra Bullock que, percebe-se, tanto se dedicou ao projeto.
Vez ou outra chega um filme que, utilizando-se de uma estrutura simples, consegue proporcionar uma imersão prolongada na dor catártica indispensável para que sejam superados traumas e lutos. Durante o curso de um dia, duas famílias se reúnem na sala de uma igreja local, aconselhadas de que esta seria a forma adequada para enfrentar uma tragédia em comum. Qual? Desconfiamos, mas não sabemos a princípio.
Seu roteiro ensina como ser expositivo sem parecer estar sendo expositivo, já que os personagens jamais comentam, de maneira explícita, por que estão reunidos. Eles conversam como qualquer pessoa conversaria naquela situação, e não como papagaios de notícias para o espectador. Isto confere verossimilhança à trama e desenvolvimento do encontro a portas fechadas, para o qual fomos convidados pela direção a espiar. À medida que o tempo avança e a mágoa se torna insuportável, a verdade também sobe a superfície e começamos a costurar melhor os acontecimentos e o que levou as famílias àqueles momentos.
Após um momento introdutório e procedimental, como se preparasse o espectador ao que irá acontecer, a narrativa abre as portas a Jason Isaacs, Martha Plimpton, Ann Dowd e Reed Birney e os deixa a sós, o tempo que for, para tentarem encontrar um denominador que lhes traga algum consolo, quem sabe paz. E são atuações estupendas, a começar por Jason Isaacs, que quebra o estereótipo usualmente atribuído a ele, e Ann Dowd, que convence o espectador de tal forma de seu sofrimento que até a perdoamos por interpretar a malvada Tia Lydia de The Handmaid's Tale.
Além disso, a narrativa sabe empregar os elementos que introduziu na narrativa - como uma garrafa de água ou o ensaio do coral que está acontecendo ao mesmo tempo - como elementos que pontuam e destacam a terapia dolorosa, mas indispensável, que aquelas famílias passam.
Um dos elementos que sempre gostei nos dramas japoneses é a forma minimalista com que ilustram as emoções dos personagens. É o reflexo de uma cultura introspectiva, sem o hábito de manifestar sentimentos igual a nós, convidando o espectador a penetrar no interior da alma de seus personagens para tentar responder aos dilemas que enfrentam.
Um exemplo disso é este drama dirigido por Ryûsuke Hamaguchi, que venceu o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes. É o segundo trabalho de destaque do diretor no ano após o ótimo Roda da Fortuna e da Fantasia. Aqui, ele introduz Hidetoshi, um ator e diretor de teatro com um casamento sólido desafiado depois de surpreender a esposa com um outro homem. Já vi esta história antes, certo? Errado! Não só a esposa não notou a chegada inesperada do marido, como este não deseja confrontá-la do adultério.
Em vez disto, prefere concentrar sua atenção na carreira artística até uma tragédia sobrevir. Não entrarei em maiores detalhes, mas o filme suprime a ação e procura a contemplação nos olhares e nas verdades trocados entre Hidetoshi e Misaki, motorista contratada pela produção e que apresenta paralelos a partir de sua história de vida. A metáfora é a de soltar o voltante, o controle, e aceitar ser passageiro de sua vida, como se pudesse assisti-la de fora e, talvez, aprender com seus erros e procurar acertar.
Com 3 horas de duração, a narrativa ainda desafia a estrutura em três atos - com que todo mundo já deve estar familiarizando - introduzindo os créditos iniciais apenas com 40 minutos, como se houvéssemos deixado o prólogo em direção ao purgatório por que passa Hidetoshi até readquirir ânimo e potência para reassumir o controle. É um filme sensível, que não chora seus choros porque o japonês não é assim; ao invés, ilustra a dor com a constatação da impossibilidade de reparo e, com isto, provoca alívio a partir da máxima: se não tem como resolver resolvido está. Yasujirô Ozu ficaria orgulhoso de um trabalho igual a este.
A história de Cyrano de Bergerac já ganhou o cinema por muitas vezes, em adaptação direta (o filme com Gerard Depardieu), em comédias (o Roxanne com Steve Martin) e agora em um musical, saído da Broadway. Como clássico literário, a trama é universal introduzindo o personagem-título, um homem que se considerava indigno, em termos de aparência, para conquistar o amor de Roxanne, e que utilizava um avatar mais belo para comunicar seu amor através de suas poesias.
O narigão é substituído pelo nanismo, mas a essência permanece a mesma: Cyrano não se julga à altura de Roxanne, e Joe Wright (de Orgulho e Preconceito e Desejo e Reparação) trabalha com êxito a proposta de um filme de época mais clássico porém que respira os ares mais anacrônicos em suas canções. Ele adapta de forma direta, com subversões que conferem um ar de novidade a uma história já conhecida (para muitos, ao menos).
Poderia ter tido mais tato com Roxanne, que permanece na posição passiva de quem espera o amor para toda a vida, ou mesmo com as convenções de conto de fadas. O roteiro exige MUITO da suspensão de descrença para que aceitamos que Roxanne não confunde a letra de Cyrano com a de Christian, ou a voz de ambos. Além do mais, se você for um espectador mais cínico, a ingenuidade em ver Christian escalando uma árvore para encontrar a mulher amada pode parecer muito conto de fadas.
Seja como for, o conceito de se esconder atrás de um avatar - tão comum nos dias de hoje, que é a natureza da relação de Cyrano e Christian - e a atuação de Peter Dinklage compensam tradições e conveniências e tornam Cyrano um compromisso bem agradável.
Crítica em vídeo: https://www.youtube.com/watch?v=gBthrl5C9FQ
É difícil não se emocionar com a trajetória universal de Alex, que parece com a de muitas mulheres que precisaram adiar ou interromper os seus sonhos por causa de uma gravidez não planejada e que sobrevivem, ou às vezes não sobrevivem!, ameaças e abusos físicos, sexuais, emocionais e psicológicos de seus companheiros. Mal sabem que estão vivendo em uma situação abusiva, o que esta minissérie torna visível em imagens a partir de uma metáfora envolvendo uma floresta bem densa e um buraco de onde é difícil sair.
Maid conversa até com quem não vive situações assim, mas já ouviu um "entra no carro!" gritado a plenos pulmões ou uma notícia feliz ser recebida com desdém ou até irritação por quem deveria comemorar junto. Indispensável do ponto de vista da relevância, Maid é também uma aventura de empoderamento bem planejada em torno de eventos - igual ao caderno de histórias de Alex - e ancorada na atuação definidora de carreira de Margaret Qualley. Ao rejeitar o rótulo de ser uma abusada - no início, claro -, a atriz consegue mascarar uma ilusão de que "isto não acontece comigo" revela apenas nas entrelinhas. Sua habilidade de marejar os olhos, como se brigasse com as lágrimas, ou de encarar, apática, a "prisão" onde está são artifícios que utiliza para contrastar com a determinação e dinamismo em lidar com o problema dos outros.
A profissão de diarista é a metáfora de uma mulher que arruma a casa (e até as vidas!) de algumas mulheres, embora se sinta impedida de fazer o mesmo consigo, ante a dificuldade de reconhecer o abuso que vive enquanto há tempo. O restante do elenco compõe o mosaico de uma sociedade que não mete a colher no problema dos vizinhos, mas que enxerga envergonhada sua própria covardia e falta de agência em interceder em defesa de Alex (ou de qualquer outra mulher abusada). Ao aproximar a narrativa do mundo real, Maid também expõe como a situação de abuso pode ser transmitida de mãe para filha, caso não se corte a questão pela raiz: nunca é a culpa da vítima; mas a ausência de conscientização de que há saída, rede apoio, justiça, vida e sonhos longe do abusador.
A diretora de O Piano, Jane Campion, retorna após mais de uma década de hiato com uma narrativa sugerida como também são os sentimentos de seus personagens amargurados por máscaras que precisam vestir, a fim de permanecerem lúcidos dentro de uma sociedade cão. Enquanto Phil precisa reprimir sua sexualidade detrás da figura de um caubói que não se sente confortável com ela, de modo que se conserva "sujo" por toda a narrativa, Rose finge ser uma esposa feliz enquanto afunda sua mágoa no alcoolismo. Já George, finge administrar a família funcional.
Só Peter é sincero com quem verdadeiramente é. Suas perversões estão escondidas sob a cama e sob nossos olhos por conveniência, não porque teme revelar quem é. Sua frieza é colocada contra a autossuficiência de Phil, e logo o roteiro estruturado em 5 capítulos começa a apresentar a coesão que parecia faltar no início.
Enquanto isto, sentimentos represados continuam represados porque a diretora rejeita a catarse que seja artificial dentro daquele contexto de época e cultural. Mesmo Rose, a premiada com os momentos mais intensos (correspondidos pela atuação irrepreensível de Kirsten Dunst), deve engolir a dor a cada garrafa de bebida. Assim, a direção de Jane Campion não realiza a conexão direta do espectador com os personagens, faz isto a partir da omissão: a empatia nasce no que é negado, na amargura, no minimalismo de pessoas que mal sabem o que é expor seus sentimentos.
É o que necessitam para sobreviver ante as paisagens arrebatadoras retratadas a partir de planos bem abertos que criam o sentimento de falsa liberdade. Pois estão nada mais, nada menos do que presos, ou pela geografia do local acidentado, ou pelos instintos que escondem de si e dos outros. A partir de informações que estão diante dos olhos mas que não são gritadas para todo mundo como fazem os diretores inseguros, Ataque dos Cães desconstrói sutilmente a masculinidade e escancara a autoria de não um, mas 2 atos brutais, evidências de que aparências podem e quase sempre enganam.
A Pior Pessoa do Mundo
4.0 606 Assista AgoraGosto de como Joachim Trier (Oslo 31 de agosto, Mais Forte que Bombas) generosamente desenvolveu um estudo de personagem sobre Julie, mesmo correndo o risco de errar a mão. A questão do lugar de fala vem a mente, mas desde que o artista trabalhe com empatia, a chance de desandar a receita diminui consideravelmente. Aqui, a partir de capítulos subdivididos, o diretor propõe um olhar abrangente em 12 capítulos (que podem ser sugestivos dos 12 meses do ano, e assim dar esta sensação de totalidade).
O conflito dramático pode existir em função de um relacionamento, já que a crise da narrativa inicia a partir de um flerte em uma festa, mas a direção não tenta resumir Julie a isto. Existe muito do que este desejo e que se materializa em como ela enxerga a vida de modo inseguro, até ansioso, tentando decidir qual será sua profissão, com quem quer se relacionar, como se sente consigo mesmo. O sucesso de Joachim está em entender os dilemas que qualquer pessoa sente no mundo de hoje e adaptá-los à personagem, sem julgá-la, enquanto reconhecer que, por ser mulher, enfrenta desafios diferentes do que seriam caso fosse homem.
A atuação de Renate Reinsve, que venceu o prêmio no festival de Cannes do ano passado, tem uma naturalidade gravitacional, que arrasta o espectador para a sua órbita onde permanece enquanto assiste a mundanidade de sua vida como se fosse uma peça de William Shakespeare. Julie é atraente como personagem por ser um espelho a mulheres, e também homens, que correm para encontrar seu lugar no mundo. E Renate compõe a personagem com um misto da exploração do eu, similar à curiosidade de Amélie Poulain, com uma resignação de quem não tenta pedir desculpas, que lembra a Fleabag, ao perceber as escolhas que tomou como parte de quem ela é, muito mais do que um conjunto binário de certos e errados.
Eduardo e Mônica
3.6 369Como faltam comédias românticas iguais a esta, que abraçam o espectador com o desejo de ver o casal título junto diante das dificuldades apresentadas. A partir da composição de Renato Russo, cujas passagens são reproduzidas sem o alarde de parecerem um fan service (Eduardo joga futebol de botão com seu avô de um jeito bem casual, enquanto Mônica fala de Bauhaus e Nouvelle Vague dentro de uma conversa casual), temos um romance que, semelhante ao visto em Licorice Pizza, desafia o conceito de maturidade quando coloca uma mulher adulta relacionando-se com um jovem à beira de prestar vestibular.
É uma premissa que revela o estado emocional de Mônica depois da perda do pai e como este caminho sombrio a leva a conhecer um jovem de alma vibrante, cuja ingenuidade típica da idade representa aqueles mesmos valores que buscam no amor. Enquanto vemos o romance florescer a partir da osmose de cultura, conhecimento e vontade de enxergar o mundo a partir de um olhar mais simples que flui de uma parte para outra e vice-versa, o conflito que os ameaça é bem melhor elaborado do que mentiras, traições ou outros romances. Já que a imaturidade e mesmo a dureza do coração são obstáculos tratados com realismo e naturalidade por René Simões.
A direção é gostosa, por resgatar um período nostálgico do tempo inspirado pela canção, mas é também remissiva aos dias de hoje, já que tudo o que está acontecendo é em um período simultâneo ao regime militar, cujas raízes ainda podem ser enxergadas expostas na cabeça de muitos. Tudo criado a partir de um contraste que favorece a beleza dos quadros, sem esquecer a densidade e textura emocionais necessárias para que o romance de Eduardo e Mônica não seja apenas água com açúcar.
E disto não tem nada, muito por conta da atuação de Alice Braga. Difícil não se apaixonar pela composição da atriz, que mescla um inconformismo com rebeldia de quem deseja criar o caminho do sucesso rejeitando aquele estabelecido pela mãe (e pelas normas sociais e tradicionais), embora não deixe transparecer um retrato unidimensional de uma mulher forte e inabalável. Sua Mônica sente; sua tristeza machuca, seus sorrisos contagiam. Já Gabriel Leone tem um papel mais difícil porque Eduardo tem uma trajetória mais óbvia, tentando provar a Mônica (e a nós) que sua idade não é sinônimo de unidimensionalidade. Assim, Gabriel trabalha as expectativas óbvias que criamos em torno dele e não as subverte. Pelo contrário, pede que enxerguemos além delas e encontremos o jovem idealista e apaixonado que um dia podemos ter sido.
No processo, René, Alice e Gabriel transformam a canção que embalou amores e romances no filme que deveria ser, fazendo jus a Renato Russo sem deixar de ter identidade própria.
Bar Doce Lar
3.5 132 Assista AgoraAlém de já haver assistido a histórias de amadurecimento além da conta, também estou familiarizado com a ideia de escrever de si mesmo com a autocrítica em relação a seus atos e calorosidade quanto àqueles que estiveram juntos nesta caminhada. Este trabalho dirigido por George Clooney, que a cada filme perde a personalidade apresentada em Boa Noite, Boa Sorte e Tudo pelo Poder, bate nas mesmas teclas mas com atuações que cativam por nos pegarem desprevenidos: Christopher Lloyd e sobretudo Ben Affleck ajudam esta narrativa a agradar, mesmo quando se mantém no conforto do lugar comum.
O roteiro é estrutura na memória distante de JR, quando é obrigado a se mudar, com a mãe, para a residência do avô, e na memória próxima, já na faculdade, quando decide que irá escrever as memórias acerca de sua vida. Pode haver histórias de vida mais cinematográficas do que a de JR, mas não há como diminuir a trajetória individual de cada um, e George Clooney tenta manter um otimismo inabalável pela narrativa - nem que nuvens espessas cubram aquela família.
Melhor do que o texto propriamente dito é a reconstrução de época, evocada nas canções do período e nos figurinos - mas, de novo, nada que não houvéssemos visto antes e até melhor, considerando o êxito de Licorice Pizza, lançado no mesmo ano e que tem uma abordagem semelhante. De todo modo, mesmo que aquém às possibilidades de seu diretor, este drama tem o benefício do aconchego. E tem estado mais e mais infrequente encontrar filmes gentis e carinhosos com os personagens que povoam seus mundos, mesmo que este mundo não seja tão interessante quanto outros.
Turma da Mônica: Lições
3.9 273 Assista AgoraDepois de Laços, que era mais infantil, até pela idade dos atores que interpretavam os personagens clássicos da turminha de Maurício de Souza, este Lições parece encontrar conforto em mesclar o drama consequente da frustração da separação e a comédia divertida. São momentos articulados com zelo pela direção de Daniel Rezende, que transforma a separação forçada de Mônica e Cebolinha em uma tragédia digna de William Shakespeare. É que, para crianças e adolescentes, conflitos que parecem banais aos adultos são, na verdade, mudanças de curso que as obrigam a encarar a etapa do crescimento e amadurecimento ante a impotência de não poderem tomar as decisões de suas vidas.
Deste modo, além de introduzir novos personagens que ajudam a jogar uma leveza na história (os hilários Do Contra e Humberto, a doce Marina e os exemplares Tina e Rolo), Daniel ainda trabalha o drama atravessado pelos membros da turma de forma visual, a partir da reduzida profundidade de campo que deixa Mônica sozinha no quadro com o fundo desfocado. Afinal, como construir amizades após viver aquelas que já conhecem nossas alegrias e birras? E vem junto disto uma lição para adultos, adolescentes e crianças na sessão: crescer não significa deixar de ser criança.
Com uma fotografia calorosa, que alterna com momentos de maior introspecção, a maior surpresa de Lições está em sua envergadura dramática que não subtrai o bom humor que se espera de um filme feito para toda a família. Se os atores Giulia, Kevin, Gabriel e Laura estão crescendo, também crescem os conflitos, sinal de maturidade narrativa ausente na maioria de continuações, que só se limita a ser mais do mesmo com mais personagens. Deste modo, Lições é uma boa despedida de 2021, ensinando ao espectador a apreciar mais o cinema nacional.
A Filha Perdida
3.6 573Nestes anos que passaram, pude perceber duas constantes no cinema: a Marvel continuará produzindo filmes e mais filmes até saturar seu gênero de super-heróis e Olivia Colman continuará impressionando com o imenso talento em interpretar personagens complexas que não podem ser reduzidas a adjetivos. A forma com que Olivia compõe suas personagens nunca é óbvia e passeia na estrada sinuosa entre o superficial e o profundo. Aqui, a atriz interpreta uma mulher de férias que começa a revisitar a maternidade no passado a partir do convívio com uma família.
Convívio é eufemismo, já que, na maior parte do tempo, Leda apenas assiste àquelas pessoas, com um mórbido interesse mais significativo do que somente a curiosidade em assistir à discussão que acontece na mesa ao lado no restaurante. Leda parece que se perde no olhar, e seu fluxo de consciência a leva ao passado quando, vivida pela também talentosa Jessie Buckley, começa a recordar que a maternidade não é uma vocação biológica da mulher. É um desejo íntimo e espiritual que se realiza, caso a caso, de forma diferente para cada mulher. E Maggie Gyllenhaal, em sua estreia na direção, entende a importância em não julgar Leda por quem ela foi e é.
Sua narrativa é observadora, igual à protagonista, mas evita criar mais símbolos e sinapses do que aquelas já formuladas por Leda. A direção tenta se por ao lado da protagonista, como um companheiro que ouve mas não retruca. Só raramente. Existe um calor veraneio que contradiz uma mulher que é um céu nublado, enquanto atravessa esta jornada de autoconhecimento. Olivia é um arraso e, arrisco dizer, só não está na melhor atuação do ano porque eu ainda estou apaixonado pela Diana de Kristen Stewart.
Seja como for, com um domínio de linguagem admirável em como estrutura memória e agora e articula a fotografia calorosa com os interiores frios da pousada onde está, Maggie Gyllenhaal também extrai o melhor de seu trio de mulheres (composto ainda por Dakota Johnson) em uma adaptação que, conhecendo a reputação da obra original, honra cada uma de suas páginas.
A Chegada
4.2 3,4K Assista AgoraEnquanto a maioria das ficções-científicas análogas a este jovem clássico está preocupada com as invasões e guerras e o heroísmo de uns para salvar a Terra, Denis Villeneuve se interessa com a chegada (veja como a conotação da palavra muda todo o significado) e o heroísmo de uma mulher que equivale ao exercício de seu ofício: a comunicação. A partir da história que embaralha o tempo como uma forma de revelar o ponto de vista da Dra. Louise, Denis Villeneuve torna incerta a maneira com que percebemos os eventos, utilizando-se de alternativas visuais que começam na decupagem, em optar por revelar a reação mais do que a ação, na iluminação, que mantém seus personagens sob sombras que obstaculizam suas intenções, e na neblina de mistério que recobre a chegada dos heptapodes.
Além disto, a direção entende como a comunicação é a arma mais importante da humanidade. Tanto pela habilidade que tem de atrair povos a partir dos canais diplomáticos, quanto pelos obstáculos que provocam guerras. Negando o militarismo convencional dos Estados Unidos e a pressa em obter soluções que não a ideal, Louise oferece a escuta paciente para decifrar os símbolos "escritos" no ar e também a própria forma de comunicação. Ela é a heroína rara da ficção-científica cuja força não se revela em intensidade, agilidade ou força física, mas no desejo de se comunicar, inclusive consigo mesma.
Isso não a torna unidimensional, pois a narrativa ainda aprofunda o desenvolvimento dela ao tornar seu drama familiar em fruto de uma falha premeditada de comunicação. Amy Adams encarna este papel sem nenhum excesso. Sua atuação é contida, expressa em reações e na inteligência com que não altera o tom de voz para provar qualquer argumento. Sua não indicação é um dos maiores pecados cometidos em tempos recentes pela Academia, e só consigo explicá-lo pelo fato de Villeneuve não ser um actor's director - termo que designa aqueles diretores que favorecem a atuação até mais do que a narrativa.
Ao manter Louise nas sombras, Villeneuve também sombreou as chances de Amy no Oscar? Talvez. Seja como for, A Chegada é, ao lado de Contatos Imediatos do Terceiro Grau e Contato, um bálsamo em se tratando de uma ficção-científica arrebatadora, apaixonante e que não resolve seus problemas com bombas ou disparos, porém na diplomacia.
Licorice Pizza
3.5 598Paul Thomas Anderson é o melhor cineasta norte-americano de sua geração. Ponto. Sua capacidade em convidar e atrair o espectador, em vez de puxá-lo à força, para mergulhar em uma época não tão distante da que vivemos apenas rivaliza com a meticulosidade com que pensa e articula discursos com o intermédio de imagens. Com esta comédia de época, romântica e dramaticamente afinada para revelar o processo de amadurecimento de Gary e também Alana. Enquanto ela já é adulta mas ainda imatura, ele parece mais maduro do que a idade etária do colegial.
Sem maiores dificuldades. PTA retira o elefante do centro da sala de cinema, a pedofilia sugerida na atração amorosa que existe entre os dois, e começa a discutir como o relacionamento entre ambos pode despertar o melhor neles. Não o relacionamento amoroso ou sexual, mas aquele que acentua qualidades e obscurece defeitos. Gary e Alana são inseparáveis, mesmo que a moral não permita enxergá-los como um casal. Nesta odisseia, que beira o surreal em passagens - as participações de Sean Penn e Bradley Cooper são inspiradas neste quersito - e mesmo o ofensivo - não com o intento de ofender, mas de retratar a época -, o diretor revisita uma época no tempo, os anos 70, não a partir do olhar de hoje, mas no daquela época.
Enquanto alguns filmes de época utilizam o anacronismo para tentar comentar o hoje com os cenários, figurinos e penteados de ontem, PTA faz o mais improvável: retornar àquele tempo, desatualizar nossa bússola e devolver à sociedade ao modo como pensava. Não pretende ensaiar uma crítica ao pensamento retrógrado de então, nem ilustrá-lo de forma saudosista, senão na trilha musical organizada com carinho. Os anos 70 são retratados como foram, no bom e ruim, como o palco em que duas almas vagam e correm em busca de propósito, daquele flare de luz que invade o quadro, no melhor filme do ano.
Homem-Aranha: Sem Volta Para Casa
4.2 1,8K Assista AgoraQuando o Homem-Aranha apareceu em Capitão América: Guerra Civil, era um projeto pessoal do Homem de Ferro, que fez as vezes de um tio Ben do mundo invertido, pois os valores defendidos pelo saudoso Tony Stark eram radicalmente diferentes dos que Peter Parker trazia consigo desde as HQs até as adaptações cinematográficas anteriores. Onde o Homem de Ferro era racional e narcisista, o Homem Aranha é lúdico, brincalhão, anônimo. Desse modo, é bom saber que esta parte final da trilogia do Tom Holland devolve o herói para a fantasia de onde não deveria ter ido, bem distante dos uniformes robotizados que Tony Stark desenvolveu para ele.
O Peter do filme está em processo de amadurecimento, enquanto tem que lidar com o fato de que Mysterio revelou sua identidade secreta. É o pior dos mundos, a ponto de levá-lo a desejar o anonimato (sempre integrante da construção do personagem), ao mesmo tempo em que o obriga a encarar o fato de que o modelo do Homem de Ferro talvez não fosse o melhor a seguir. Já que Tony, irresponsável durante parte do MCU, jamais repetiria o mantra "com grandes poderes vem grandes responsabilidades". O filme vem como uma libertação do personagem num arco dramático potente, que o obriga a aprender com o exemplo alheio a superar a raiva e frustração indispensáveis para a formação do Homem-Aranha.
O roteiro pode adotar conflitos mais superficiais porque Peter é jovem e não tem a mesma maturidade e conhecimento de um adulto como o Dr. Estranho. Ao mesmo tempo, é esta jovialidade e ingenuidade que fazem o personagem cogitar "curar" seus adversários daquilo que os tornou monstruosos, algo que jamais passaria na cabeça de um adulto cínico para quem ressocialização é sinônimo de defender o bandido.
Enquanto proporciona o amadurecimento à idade adulta, enfrenta dramas não superados por seus personagens e encaixa um humor eficiente e original, Sem Volta para Casa propõe algo que apenas o cinema poderia fazer: uma dimensão compatível com o legado do personagem e a ousadia de redesenhar o que não funcionava neste retorno ao Homem-Aranha que aprendi a amar quando folheava as HQs.
Os Olhos de Tammy Faye
3.3 177 Assista AgoraNão existem regras quando o assunto é adaptar fatos ou biografias de pessoais reais. Embora desejáveis, nem a verossimilhança e similitude dos fatos à trama são regras inquebráveis, e não vejo com maus olhos introduzir ficção no real (a exemplo de Spencer). E a abordagem é um elemento que entra na análise, pois nada impede o diretor de encarar figuras histórias (George W. Bush, por exemplo) qual seja a lente: seja factual, seja absurda, seja ridícula. Porém, precisamos estar no mesmo barco e enxergar esta opção para que a experiência narrativa seja a desejada pelo diretor.
Assim, o que enxerguei como maior problema de Os Olhos de Tammy Faye é a indecisão de Michael Showalter em estabelecer qual a lente escolhida na biografia: se encara Tammy como caricatura OU se esta caricatura apenas existe nos olhos de quem vê (público), enquanto a atriz Jessica Chastain perceptivelmente aborda a televangelista de um modo fiel à extravagância, à beira de se alienar ao que ocorria ao seu redor. Atravessei a biografia sem saber se deveria sentir empatia por uma mulher que acreditava que tinha um lado forte com Deus a ponto de conversar com ele e de falar línguas desde a infância, ou se estava diante de uma crítica ácida à pregação da prosperidade que esconde ambição, ganância, hipocrisia.
Ambas abordagens também podem coexistir, mas, de novo, não sinto o que o diretor desejava alcançar. Seja como for, apesar de a biografia ter o problema de se estender bastante no tempo e diluir eventos que mereciam maior escrutínio, o roteiro faz um bom trabalho em pontuar quem é Tammy e Jim, seu marido, interpretado por Andrew Garfield, e o ninho de cobras que era a emissora cristã PTL. Não é difícil perceber como as idiossincrasias de Tammy, o comportamento feminista apesar de ela não se rotular e o acolhimento LGBTQ iam de encontro aos valores defendidos pela religião.
Então não é difícil notar como a trajetória de ascensão dela terminaria em derrocada, em função dos esquemas fraudulentos de Jim. Mas, aí, a narrativa aliena o espectador de que Tammy estava cega ao fato de que vivia em um palácio, enquanto a trata como ingênua, quando em muitas ocasiões era só hipócrita. O retrato é incompleto. Tammy era vítima do comportamento machista da estrutura evangélica e também opressora daqueles fiéis que acreditavam nela. Ela é contraditória e Jessica Chastain tenta expressar isto, mas sem a direção de um bom filme, não tem sucesso.
Colin em Preto e Branco
4.5 35 Assista AgoraGosto de pensar no processo terapêutico que é revisitar a juventude e reencontrar o racismo estrutural integrado dentro do comportamento dos pais, amigos, treinadores e praticamente todos aqueles com quem Colin Kaepernick conviveu, enquanto realiza o paralelo com a exclusão da NFL depois de um gesto que objetivava, justamente, combater este racismo. Apesar de ter momentos de coach que, frequentemente, soam deslocados dentro do contexto narrativo, a minissérie Colin em Preto e Branco é feliz em ilustrar o olhar de hoje do atleta reconhecendo toda a violência que sofreu ontem e como isto o moldou para ser quem é.
Com um recorte bem definido, iniciado a partir dos testes para integrar o time de futebol americano da escola até ser selecionado por uma faculdade, Colin em Preto e Branco é um documentário (não parece, eu sei) que adota o artifício de reconstituições e de insights com figuras históricas e contemporâneas para revelar, por exemplo, como o corte de cabelo pode ser desvirtuado pelo olhar branco que não percebe, nem quer, como encena uma busca pela identidade a muitos negada.
Existe uma simplicidade em contar a história, que toma emprestados elementos que já vimos em filmes parecidos, porém envoltos em uma dimensão racial e política que questiona o sistema, enquanto vivencia a juventude. Colin, o real, enxerga isto a partir de uma janela aberta à sua vida, com uma câmera que se movimenta em sua direção a fim de revelar a grandeza do homem e a sensibilidade no olhar. Já a Jaden Michael, o Colin fictício, é confiada a parte sensível somente, pois, jovem, ainda não enxerga as nuances que apenas a maturidade e o conhecimento expõem. Até pode perceber a violência, mas não sabe quantificá-la, qualificá-la, identificá-la.
Este jogo caracterizado pelas trocas entre o Colin real, que observa até agir, e o da ficção, que sobrevive até empoderar-se, é a alma de uma minissérie cativante, pela forma como é narrada, e indispensável, pelo tema apresentado.
O Beco do Pesadelo
3.5 496 Assista AgoraA partir do livro de William Lindsay Gresham, já adaptado em O Beco das Almas Perdidas (1947), Guillermo Del Toro investe no estilo noir para contar a história do homem sem rumo interpretado por Bradley Cooper, acolhido em um circo de atrações onde se transformará em mentalista e se apaixonará pela personagem de Rooney Mara. Fiel aos elementos do estilo, Del Toro investe em um personagem moralmente anguloso, uma femme fatale, vivida por Cate Blanchett, o contraste de luzes e sombras na fotografia carregada de cores expressivas e um design de produção irrepreensível.
Tudo muitíssimo bem acabado, padrão de qualidade que se repete na obra de um diretor bastante detalhista a ponto de ser obcecado com a riqueza dos valores de produção necessários para recriar o mundo com que sonha. Mas a forma se sobrepõe aos personagens. Somos envolvidos pelos intérpretes mais porque interpretados por Richard Jenkins, Willem Dafoe, Toni Collette, atores que raramente se prestam a atuações medíocres, do que pelo atrito de suas personalidades com a do protagonista.
Por falar em Bradley Cooper, apesar de gostar do ator, seu talento não aproxima o público do protagonista ambicioso. O estilo noir não exige a identificação da maneira como o cinema convencionou, mas uma forma de envolvimento na espiral decadente iniciada na figura de uma mulher sedutora, conceito sexista que a narrativa felizmente subverte. Entretanto, não sentimos piedade por Stanton; mas responsabilização, e nunca é bom agouro torcer contra o protagonista, ainda mais com a opressão que provocada nas personagens femininas que o envolvem.
É como se, em vez de contar A Forma da Água da perspectiva de Sally Hawkins, Del Toro optasse por tornar Michael Shannon o protagonista. Aqui, a humanização de Stanton se limita a flashbacks ou à vaidade de quem descobre ter um dom somente para se enxergar refém dele, tão interessado Del Toro estava em retratar a conclusão do processo de degradação - que vem de forma óbvia igual as viradas na trama - e não o processo em si. Mesmo assim, a embalagem é atraente e hipnótica o bastante para enfeitiçar o espectador por 150 minutos.
O caso de comer com os olhos uma comida amarga.
A Mão de Deus
3.6 189Ao encarar a própria vida no autobiográfico A Mão de Deus, Paolo Sorrentino não economiza em resgatar o mesmo olhar que possuía quando estava na juventude, nem que este olhar seja depreciativo. Dentro do cinema do diretor, a câmera não está presente para julgar quem quer que seja, mas para retratar, deslocando ao espectador a tarefa de valorar o que é posto diante de si. O ridículo pode parecer sagrado; o sagrado pode parecer imoral. Paolo apenas articula este cinema essencialmente italiano formado na base do olhar, mas não mascara nem atenua o autorretrato.
Sua inspiração é Federico Fellini, e sua obra está repleta de momentos em que existe a contemplação do belo ou feio, o toque surrealista tido na percepção e no resgate da memória. A Mão de Deus começa como uma comédia tipicamente italiana, destacando a organização familiar, a maneira com que entes relacionam-se uns com os outros, sem meias palavras, revelando o processo transformador provocado por eventos e acontecimentos específicos, que se mesclam com o pano de fundo da contratação de Diego Maradona para o Napoli.
São estes momentos que redefinem a vida das pessoas, os afetos, a culpa, a impotência, na estrutura que nasce na comédia - ao menos, até percebermos que não há nada de engraçado no contexto -, passa ao drama e conclui no autoconhecimento, no momento definidor em que adolescentes se tornam adultos. Não de forma conscientes, mas porque a vida lhes exige isto para sobreviver. Sorrentino é carinhoso consigo mesmo, mas isto não o torna menos crítico a quem foi, visto no jovem interpretado com empenho por Filippo Scotti.
Não faltam momentos emocionantes, engatilhados pela forma como Sorrentino movimenta a câmera em direção à ação ou utiliza a trilha sonora doce para marcar a contemplação. Enquanto escrevo, penso apenas no som da lanche batendo contra as ondas do mar, tuf tuf, e sinto que a vida é este movimento de colisões que, ironicamente, também traz alguma forma de paz e consolo. FILMÃO.
Amor, Sublime Amor
3.4 355 Assista AgoraAdianto que não gosto da versão original de Amor, Sublime Amor. Além de ser fruto de uma época em que os musicais estavam em baixa, ainda que o filme tenha faturado 10 Oscars!, sempre torci o nariz para a forma em cima do muro que o roteiro tratava o tema. Ele transformava a luta por dignidade de um grupo de imigrantes porto-riquenhos numa versão de Romeu e Julieta, colocando-os no mesmo degrau em que os Jets, que os discriminavam, como se seus conflitos fossem semelhantes.
Eu entendo a lógica em revelar que, no bairro de West Side à beira da gentrificação e em processo de ser apropriado pela elite, as gangues revelam como lutamos uns contra os outros em vez de nos unir contra o inimigo comum e que fomenta as animosidades entre cada um. Mas não dá para colocá-los de forma igual quando a legitimidade de suas lutas é diferente: os Jets lutam contra a falta de oportunidades, os Sharks contra isto E TAMBÉM contra a sociedade que os discrimina em razão de sua origem, seu idioma, seu estilo de vida.
Qual não é a minha surpresa quando, apesar de passados 60 anos, Steven Spielberg repete os mesmos erros? Ao menos não repete a forma mais quadradona do original, homenageando-o (para quem o considera um clássico americano, eu não) e atualizando-o onde crê precisar disto além de inverter a etnia dos namorados. Percebo uma tentativa consciente de teatralização, e assim os cenários parecem frutos de uma peça. Tem um quê de artificialidade - como o exterior do condomínio onde Maria mora, o interior da delegacia de polícia - como se desejasse registrar o amor a este musical mais clássico.
Enquanto isto, há a modernização na coreografia das danças, sempre com um escopo ambicioso que exige uma montagem afinada. E gosto de como a narrativa reaproveita Rita Moreno noutra personagem. E se falta química ao casal Ansel Elgort e Rachel Zegler, ao menos a jovem atriz tem uma voz de piano que permite esquecer os momentos meio embaraçosos com o ator. Ela é ajudada por Ariana DeBose e Mike Faist que conferem intensidade e melancolia a Anita e Riff e ainda por Spielberg, que estreando em musicais, parece ter a experiência de quem os comandou a vida inteira.
Sempre em Frente
3.9 160Mike Mills conhece a forma de criar um drama que me toca no coração. Um que não é árido em emoção mas que não as permite transbordar a ponto de parecer um banho de açúcar que provoca enjoo. Toda Forma de Amor e Mulheres do Século 20 são filmes que sensibilizam com uma naturalidade que falta a maioria dos diretores, e C'mon C'mon repete isto.
Com o preto e branco, a narrativa anula uma parte da comunicação visual (aquela feita através de cores) a fim de se concentrar no que é importante: a relação entre tio e sobrinho, interpretados por Joaquin Phoenix - um ator hipnótico que não precisa sair por aí sorrindo para todo mundo para ser querido - e Woody Norman, que tem o gene da criança do cinema independente americano: precoce, irritadiça mas que não se afasta do que a torna criança.
A dinâmica do duo e de Johnny com a irmã Viv estruturam o filme, que viaja por cidades para proporcionar encontros reveladores da vida real dentro dos Estados Unidos (Nova York, Nova Orleans, Detroit), como a forma de contrapor o drama que exigiu que Jesse temporariamente se afastasse da mãe. Nas passagens em que é documental é espontâneo, tal como tenta ser na ficção, que se desenvolve de forma acessível, humana, simples e sem evitar cair em armadilhas do drama clássico - mais sentimental - nem o drama independente - aquele que tenta ser descolado.
É o tipo de drama caloroso que não precisa se esforçar para provocar lágrimas, quando já sabe qual é o caminho para o coração do público. O desejo de se comunicar e escutar o outro, estranhos ou o sobrinho.
Não Olhe para Cima
3.7 1,9K Assista AgoraDepois de vencer o Oscar por A Grande Aposta, Adam McKay criou uma fórmula bastante eficiente de comédias satíricas, pautadas no hoje e no agora, que combinam uma montagem intensa com excessos que trouxe das comédias que havia dirigido antes (O Âncora, Quase Irmãos etc). E com um talento para reunir um elenco invejável e articulá-lo em torno de sua proposta. Que, neste caso, é utilizar um cometa em rota de colisão com a Terra como uma metáfora da crise climática, do negacionismo de uma parte da população, da postura negligente das autoridades políticas (que agem quando precisam criar uma cortina de fumaça) e da imprensa mais interessada em frivolidades que dão audiência.
A comédia é certeira em revelar como a ciência é desacreditada por achismos, politicagem, notícias falsas e pretensos gurus que ocupam o escalão mais elevado do governo por indicação de quem quer que seja - para tanto, brinca com a nomeação à Suprema Corte que parece não ter nada a ver com a trama, mas tem tudo justo por escolher um não jurista para cargo jurídico. Isto vale para como os personagens de DiCaprio e Lawrence são testados de maneiras diferentes, em razão de ela ser mulher: enquanto DiCaprio acaba se tornando um símbolo sexual, Lawrence é taxada como raivosa e objeto de memes.
Mais personagens desfilam pela narrativa, todas criados na base da sátira: Meryl Streep interpreta uma presidente com pé no trumpismo, Mark Rylance, uma versão com dentadura de Elon Musk, e muito mais. São 2 horas e 30 minutos que comentam o óbvio, mas não falo isto de forma pejorativa: às vezes, o óbvio precisa ser esfregado na cara de um e de outro para revelar como podemos agir estupidamente dentro de uma situação que exige seriedade. O problema na narrativa está em Adam McKay, sempre que se aproxima da comédia genuinamente nonsense, puxa o freio de mão para introduzir um tom sentimental ou que se leva a sério.
O diretor aspira a Doutor Fantástico e Rede de Intrigas, mas somente consegue ser uma versão paralela de Marte Ataca!, desperdiçando um ou outro nome do elenco e momentos em que a seriedade colide com a sátira. Não Olhe para Cima é uma comédia necessária em tempos de crise ambiental, porque o humor é uma forma excelente de comunicar a realidade para a qual não queremos olhar. Uma pena, portanto, que Adam McKay não desbloqueie todo o potencial que a narrativa tinha e tenha se contentado em uma versão mais branda do que poderia ser memorável.
A Tragédia de Macbeth
3.7 192 Assista AgoraApesar de dirigir-solo a adaptação de William Shakespeare, Joel Coen não foge da temática que norteou sua obra ao lado do irmão, Ethan: o castigo imposto a quem comete iniquidades, a exemplo de MacBeth. Depois das versões de Orson Welles, Akira Kurosawa, Roman Polanski, definitivas dentro da proposta que encenavam, cabe se indagar o que Joel Coen tem a oferecer à leitura da obra e como esta conversa com os tempos de hoje.
Como MacBeth dialoga sobre ambição, ganância, traição, trata então de temas atemporais e destacáveis dentro da sociedade capitalista e neoliberal, facilitando a adaptação aos dias de hoje. Porém, Joel Coen opta por um registro mais formal dos diálogos, tal como Shakespeare os concedeu, sem modernizá-los, o que cria um empecilho para que nos aproximemos dos personagens em uma dimensão emocional, não intelectual. O fato de serem interpretados por Denzel Washington ou Frances McDormand atenua a distância, porque ambos conseguem se desenvolver muito além do texto rígido e da prosa mais formal.
Mesmo sem esta proximidade emocional - já esperada pois estamos diante de um homem mesquinho e traiçoeiro, envenenado pela sede de poder e pelas palavras da Lady MacBeth -, o elemento intelectual associado à fotografia de Bruno Delbonnel auxilia a viver esta fábula às avessas como se fosse uma obra de horror expressionista oriunda dos primórdios do cinema. A fotografia preto e branco recorre ao alto contraste - o branco muito claro, o preto muito escuro -, acentuado pela utilização de obstáculos contornados pela luz - pórticos, frestas, neblina - e cria uma sensação de aprisionamento dentro da perversão de MacBeth.
Bruno Delbonnel produziu, para mim, as imagens mais bonitas de 2021, enquanto Joel Coen, amparado pelos sempre ótimos Denzel Washington e Frances McDormand, revitalizou Shakespeare. Se não através do texto, a partir de como o ilustrou, com o contorno de um pesadelo de que nenhum dos personagens escapará ileso.
Um Herói
3.9 56 Assista AgoraAsghar Farhadi é mestre em, a partir de um incidente cotidiano, estruturar um conto sobre moral, mas não moralista, que funciona dentro do Irã e também em todo o restante do mundo. Foi assim em A Separação, O Passado, O Apartamento e agora em Um Herói, que conta a história de um homem, preso por dívida, que durante uma liberação do presídio encontra uma sacola de dinheiro cheia de moedas de ouro com que conseguiria se ver livre da cadeia. Mas Rahim é honesto, ao menos é isto em que acreditamos, e resolve devolver a sacola para seu dono.
Por que parece? É que a estrutura do roteiro, os acontecimentos desenvolvidos, os julgamentos realizados e as relações de causa e efeito obrigam o espectador a questionar até mesmo aquilo que parece certo: a honestidade de Rahim. Uma informação adicional modifica o juízo que fazemos do personagem e chegamos até a duvidar daquilo que acabamos de ter visto com os próprios olhos, diante das notícias falsas ou não que as redes sociais e a imprensa começam a divulgar.
O roteiro também é inteligente em abrir o campo de visão o bastante para que enxerguemos Rahim a partir do olhar de seu credor, e não é absurda a forma inconformada com que reage diante da popularidade súbita de um homem celebrado por haver agido como todos devemos agir na mesma situação. É igual ao sentimento do filho honesto bíblico que criticava o pai por receber de braços abertos o filho pródigo, que havia gastado metade de sua herança.
Um Herói é fruto de um roteiro provocador, que não oferece respostas mastigadas. Asghar deseja explorar, o máximo que pode, sua premissa e seu universo de personagens, exaurindo as possibilidades enquanto apresenta um panorama complexo para que sejamos os juízes, ou não, de Rahim. Mergulhado dentro do realismo e culturalismo iraniano, Um Herói é, fácil, um dos melhores filmes do ano.
O Contador de Cartas
3.1 83 Assista AgoraSou encantado com o formalismo de Paul Schrader. É como se o diretor reduzisse a narrativa ao mínimo denominador comum da linguagem cinematográfica e assim permitisse que os planos e as movimentações conversem com maior facilidade com quem os vê. Não precisa ser crítico nem cinéfilo caxias para perceber e sentir como a encenação rígida torna, paralelamente, o protagonista vivido por Osaac Isaac mais misterioso e favorece as quebras de paradigma em flashbacks bem mais estilizados.
O que é irônico, pois o jogador de Oscar parece ser quem está dando as cartas ao espectador, alimentando-o com o que deseja que este saiba a seu respeito, enquanto, dentro da trama, recebe cartas com que talvez não consiga vencer. Ao invés de um ás, recebe um coringa, na forma de Tye Sheridan que se consolida como este ator obtuso e estranhamente ameaçador. Para quem gosta de planejar e calcular, o imprevisível pode ser desafiador e até mesmo libertador. É retornar às origens de um primitivismo que ele parece haver afastado.
A narrativa se estrutura em frentes que caminham a passos pacientes e talvez não se realizam da forma como esperamos: a dinâmica mestre e aprendiz, o romance estabelecido apesar de não sugerir qualquer consumação além do campo das ideias, o regresso ao passado na forma de penitência e aclaramento. Tudo isto simultaneamente a um campeonato de pôquer, que parece ser a menor das preocupações deste homem. O pôquer é a desculpa para que a narrativa caminhe adiante e o meio de realizar seu plano.
Neste mundo, o formalismo retrata o método de direção de Paul Scharader (Fé Corrompida) e também a espécie de protagonista. Funciona em frente e atrás das câmeras, proporcionando um thriller frio e cujos thrills estão ocultados, sugeridos, implicados. É o modo encontrado por Paul (e o jogador) para manter controle. Eu adorei.
Imperdoável
3.6 521 Assista AgoraNora Fingscheidt, a diretora de Transtorno Explosivo, traz emoções calejadas para a adaptação cinematográfica da minissérie britânica lançada em 2009. Seu objetivo é discutir escolhas, responsabilidade, culpa a partir da história de uma mulher, cujas ações parecem estar movidas pelo interesse egoísta de rever a irmã caçula logo depois de deixar a cadeia por haver assassinado um policial. Egoísta porque sua irmã foi adotada por uma família que cuida bem dela, proporciona-lhe tudo de melhor.
Pode notar que todos os personagens coadjuvantes fazem escolhas e precisam arcar com as consequências de seus atos, o que os relaciona com Ruth, interpretada por Sandra Bullock adotando o estilo taciturno de quem abaixa a cabeça em razão do crime cometido até a emoção transbordar de tão incontrolável. A atriz está impecável, tal como Viola Davis, cuja participação é pequena o bastante para levantar a questão do motivo de a atriz ter aceitado um papel cujo atrativo está somente em uma breve passagem. Mas a personagem de Viola Davis é sintoma do que segura esta narrativa para trás: o excesso de coadjuvantes.
Se na minissérie pode até fazer sentido ter meia dúzia de personagens que gravitam em torno de Ruth, em 110 minutos isto dilui suas ações e escolhas. A presença dos filhos enlutados do homem assassinado por Ruth não se justifica desde o primeiro instante, piora e desanda de vez quando se torna justificativa rasteira para o terceiro ato mais forçado. É que existe muita coisa com o que o roteiro deve se preocupar com a introdução de uma informação que muda a percepção em relação a Ruth, então não parece fazer sentido entulhar de personagens que só servem para congestionar o caminho da protagonista rumo a catarse.
Que já até havia vindo, pois Imperdoável oferece uma discussão bem interessante acerca da reintegração do condenado na sociedade após cumprir a pena atribuída. Seu direito de existir, de ser admitido como um indivíduo, que é ainda complicado dentro da sociedade americana como admite a personagem de Viola Davis ao confrontar o marido. Eu até acredito que Imperdoável discuta, com razoabilidade, a questão e o drama vivenciado por Ruth, apenas poderia fazê-lo de forma focada a Sandra Bullock que, percebe-se, tanto se dedicou ao projeto.
Mass
4.0 70 Assista AgoraVez ou outra chega um filme que, utilizando-se de uma estrutura simples, consegue proporcionar uma imersão prolongada na dor catártica indispensável para que sejam superados traumas e lutos. Durante o curso de um dia, duas famílias se reúnem na sala de uma igreja local, aconselhadas de que esta seria a forma adequada para enfrentar uma tragédia em comum. Qual? Desconfiamos, mas não sabemos a princípio.
Seu roteiro ensina como ser expositivo sem parecer estar sendo expositivo, já que os personagens jamais comentam, de maneira explícita, por que estão reunidos. Eles conversam como qualquer pessoa conversaria naquela situação, e não como papagaios de notícias para o espectador. Isto confere verossimilhança à trama e desenvolvimento do encontro a portas fechadas, para o qual fomos convidados pela direção a espiar. À medida que o tempo avança e a mágoa se torna insuportável, a verdade também sobe a superfície e começamos a costurar melhor os acontecimentos e o que levou as famílias àqueles momentos.
Após um momento introdutório e procedimental, como se preparasse o espectador ao que irá acontecer, a narrativa abre as portas a Jason Isaacs, Martha Plimpton, Ann Dowd e Reed Birney e os deixa a sós, o tempo que for, para tentarem encontrar um denominador que lhes traga algum consolo, quem sabe paz. E são atuações estupendas, a começar por Jason Isaacs, que quebra o estereótipo usualmente atribuído a ele, e Ann Dowd, que convence o espectador de tal forma de seu sofrimento que até a perdoamos por interpretar a malvada Tia Lydia de The Handmaid's Tale.
Além disso, a narrativa sabe empregar os elementos que introduziu na narrativa - como uma garrafa de água ou o ensaio do coral que está acontecendo ao mesmo tempo - como elementos que pontuam e destacam a terapia dolorosa, mas indispensável, que aquelas famílias passam.
Drive My Car
3.8 386 Assista AgoraUm dos elementos que sempre gostei nos dramas japoneses é a forma minimalista com que ilustram as emoções dos personagens. É o reflexo de uma cultura introspectiva, sem o hábito de manifestar sentimentos igual a nós, convidando o espectador a penetrar no interior da alma de seus personagens para tentar responder aos dilemas que enfrentam.
Um exemplo disso é este drama dirigido por Ryûsuke Hamaguchi, que venceu o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes. É o segundo trabalho de destaque do diretor no ano após o ótimo Roda da Fortuna e da Fantasia. Aqui, ele introduz Hidetoshi, um ator e diretor de teatro com um casamento sólido desafiado depois de surpreender a esposa com um outro homem. Já vi esta história antes, certo? Errado! Não só a esposa não notou a chegada inesperada do marido, como este não deseja confrontá-la do adultério.
Em vez disto, prefere concentrar sua atenção na carreira artística até uma tragédia sobrevir. Não entrarei em maiores detalhes, mas o filme suprime a ação e procura a contemplação nos olhares e nas verdades trocados entre Hidetoshi e Misaki, motorista contratada pela produção e que apresenta paralelos a partir de sua história de vida. A metáfora é a de soltar o voltante, o controle, e aceitar ser passageiro de sua vida, como se pudesse assisti-la de fora e, talvez, aprender com seus erros e procurar acertar.
Com 3 horas de duração, a narrativa ainda desafia a estrutura em três atos - com que todo mundo já deve estar familiarizando - introduzindo os créditos iniciais apenas com 40 minutos, como se houvéssemos deixado o prólogo em direção ao purgatório por que passa Hidetoshi até readquirir ânimo e potência para reassumir o controle. É um filme sensível, que não chora seus choros porque o japonês não é assim; ao invés, ilustra a dor com a constatação da impossibilidade de reparo e, com isto, provoca alívio a partir da máxima: se não tem como resolver resolvido está. Yasujirô Ozu ficaria orgulhoso de um trabalho igual a este.
Cyrano
3.3 65A história de Cyrano de Bergerac já ganhou o cinema por muitas vezes, em adaptação direta (o filme com Gerard Depardieu), em comédias (o Roxanne com Steve Martin) e agora em um musical, saído da Broadway. Como clássico literário, a trama é universal introduzindo o personagem-título, um homem que se considerava indigno, em termos de aparência, para conquistar o amor de Roxanne, e que utilizava um avatar mais belo para comunicar seu amor através de suas poesias.
O narigão é substituído pelo nanismo, mas a essência permanece a mesma: Cyrano não se julga à altura de Roxanne, e Joe Wright (de Orgulho e Preconceito e Desejo e Reparação) trabalha com êxito a proposta de um filme de época mais clássico porém que respira os ares mais anacrônicos em suas canções. Ele adapta de forma direta, com subversões que conferem um ar de novidade a uma história já conhecida (para muitos, ao menos).
Poderia ter tido mais tato com Roxanne, que permanece na posição passiva de quem espera o amor para toda a vida, ou mesmo com as convenções de conto de fadas. O roteiro exige MUITO da suspensão de descrença para que aceitamos que Roxanne não confunde a letra de Cyrano com a de Christian, ou a voz de ambos. Além do mais, se você for um espectador mais cínico, a ingenuidade em ver Christian escalando uma árvore para encontrar a mulher amada pode parecer muito conto de fadas.
Seja como for, o conceito de se esconder atrás de um avatar - tão comum nos dias de hoje, que é a natureza da relação de Cyrano e Christian - e a atuação de Peter Dinklage compensam tradições e conveniências e tornam Cyrano um compromisso bem agradável.
Crítica em vídeo:
https://www.youtube.com/watch?v=gBthrl5C9FQ
Maid
4.5 368 Assista AgoraÉ difícil não se emocionar com a trajetória universal de Alex, que parece com a de muitas mulheres que precisaram adiar ou interromper os seus sonhos por causa de uma gravidez não planejada e que sobrevivem, ou às vezes não sobrevivem!, ameaças e abusos físicos, sexuais, emocionais e psicológicos de seus companheiros. Mal sabem que estão vivendo em uma situação abusiva, o que esta minissérie torna visível em imagens a partir de uma metáfora envolvendo uma floresta bem densa e um buraco de onde é difícil sair.
Maid conversa até com quem não vive situações assim, mas já ouviu um "entra no carro!" gritado a plenos pulmões ou uma notícia feliz ser recebida com desdém ou até irritação por quem deveria comemorar junto. Indispensável do ponto de vista da relevância, Maid é também uma aventura de empoderamento bem planejada em torno de eventos - igual ao caderno de histórias de Alex - e ancorada na atuação definidora de carreira de Margaret Qualley. Ao rejeitar o rótulo de ser uma abusada - no início, claro -, a atriz consegue mascarar uma ilusão de que "isto não acontece comigo" revela apenas nas entrelinhas. Sua habilidade de marejar os olhos, como se brigasse com as lágrimas, ou de encarar, apática, a "prisão" onde está são artifícios que utiliza para contrastar com a determinação e dinamismo em lidar com o problema dos outros.
A profissão de diarista é a metáfora de uma mulher que arruma a casa (e até as vidas!) de algumas mulheres, embora se sinta impedida de fazer o mesmo consigo, ante a dificuldade de reconhecer o abuso que vive enquanto há tempo. O restante do elenco compõe o mosaico de uma sociedade que não mete a colher no problema dos vizinhos, mas que enxerga envergonhada sua própria covardia e falta de agência em interceder em defesa de Alex (ou de qualquer outra mulher abusada). Ao aproximar a narrativa do mundo real, Maid também expõe como a situação de abuso pode ser transmitida de mãe para filha, caso não se corte a questão pela raiz: nunca é a culpa da vítima; mas a ausência de conscientização de que há saída, rede apoio, justiça, vida e sonhos longe do abusador.
Ataque dos Cães
3.7 933A diretora de O Piano, Jane Campion, retorna após mais de uma década de hiato com uma narrativa sugerida como também são os sentimentos de seus personagens amargurados por máscaras que precisam vestir, a fim de permanecerem lúcidos dentro de uma sociedade cão. Enquanto Phil precisa reprimir sua sexualidade detrás da figura de um caubói que não se sente confortável com ela, de modo que se conserva "sujo" por toda a narrativa, Rose finge ser uma esposa feliz enquanto afunda sua mágoa no alcoolismo. Já George, finge administrar a família funcional.
Só Peter é sincero com quem verdadeiramente é. Suas perversões estão escondidas sob a cama e sob nossos olhos por conveniência, não porque teme revelar quem é. Sua frieza é colocada contra a autossuficiência de Phil, e logo o roteiro estruturado em 5 capítulos começa a apresentar a coesão que parecia faltar no início.
Enquanto isto, sentimentos represados continuam represados porque a diretora rejeita a catarse que seja artificial dentro daquele contexto de época e cultural. Mesmo Rose, a premiada com os momentos mais intensos (correspondidos pela atuação irrepreensível de Kirsten Dunst), deve engolir a dor a cada garrafa de bebida. Assim, a direção de Jane Campion não realiza a conexão direta do espectador com os personagens, faz isto a partir da omissão: a empatia nasce no que é negado, na amargura, no minimalismo de pessoas que mal sabem o que é expor seus sentimentos.
É o que necessitam para sobreviver ante as paisagens arrebatadoras retratadas a partir de planos bem abertos que criam o sentimento de falsa liberdade. Pois estão nada mais, nada menos do que presos, ou pela geografia do local acidentado, ou pelos instintos que escondem de si e dos outros. A partir de informações que estão diante dos olhos mas que não são gritadas para todo mundo como fazem os diretores inseguros, Ataque dos Cães desconstrói sutilmente a masculinidade e escancara a autoria de não um, mas 2 atos brutais, evidências de que aparências podem e quase sempre enganam.