No interior de uma limusine, o Sr. Oscar se prepara para participar de encenações que falam sobre o ofício do ator, mas revelam pouco de quem este homem verdadeiramente é. Mal o vemos senão nesses breves momentos, vivenciado apenas em razão da beleza do gesto. O dilema de Oscar é a inexistência além da performance.
No curso de um dia, o diretor Leos Carax propõe uma viagem que namora o surrealismo enquanto manifesta seu amor ao cinema. A narrativa possui uma lógica interna desafiada pela lógica que rege cada uma de suas partes, pois Leos não assina qualquer contrato de realismo, verossimilhança ou mesmo fantasia ou absurdismo com o espectador. Em um momento, vemos um pai que busca a filha numa festa; noutro, um assassino e a vítima são "a mesma pessoa".
Assim, o contrato que Leos assina é com o poder da crítica (e também homenagem) a partir de imagens potentes e de como estas namoram umas com as outras. Não é um filme para ser explicado, é para ser sentido, absorvido, como se estivéssemos acessando os sonhos do diretor (que é o personagem que acorda na cena inicial), muito além do transe dos espectadores dormindo no cinema. Não existe racionalidade nos sonhos, então por que haveria quando estes sonhos viram realidade fílmica?
O motor sagrado da experiência é Denis Lavant, ator fetiche de Leos, e que se transforma em 11 pessoas como se só trocasse de roupa. A qualidade de seu trabalho é indiscutível porque suas encenações são verossímeis, articuladas para que os personagens apropriem-se parcial e temporariamente do corpo do intérprete, deixando só a impressão breve de quem é Oscar. O vazio. O nada prestes a ser consumido em mais um ato.
Eu tento puxar da memória quando os estúdios decidiram que os filmes que deveriam entreter precisariam de 2, 3 horas para fazê-lo. Claro, há narrativa que fazem por merecer a duração, mas este não é o caso com Exército de Ladrões, a prequel de Army of the Dead centrado no ladrão de bancos Dieter.
Interpretado por Matthias Schweighöfer - que também dirige o filme! -, Dieter é o exemplo de um coadjuvante divertido alçado à condição de protagonista. Ainda que divida a cena com um exército (ou "exército") menor do que os 11 de Danny Oceans, Dieter ainda tem a ingenuidade e paixão necessárias para se destacar entre personagens com carisma nulo, com exceção de Nathalie Emmanuel que precisa desesperadamente de uma produção à altura de seu talento.
O filme esforça-se para ser uma brincadeira metalinguística com os filmes de assalto, como Pânico fez com os slashers movies. Ou seja, ele tenta ser um filme do gênero enquanto também reflete sobre as convenções e clichês dele. Não é muito bem sucedido no processo, embora valha pela tentativa, especialmente quando enxergamos a relação de Dieter com os cofres (utilizando efeitos visuais que penetram em seus mecanismos e revelam seus segredos).
O roteiro é formatado como um videogame com fases, em que todos os eventos ficam explicadinhos como se ainda estivéssemos no colégio. Além disto, os personagens não fogem dos arquétipos, até nos (previsíveis) pontos de virada da trama. Mas não dá para negar que o filme é divertido muito graças à abordagem visual de Matthias Schweighöfer.
Precisaria ter 2 horas e 6 minutos? Não. Mas aí exigir demais que Dieter, além de roubar os cofres mais complexos do mundo, mude também toda uma mentalidade da indústria de cinema atual.
Ninguém é incorruptível. Mesmo o mais ético e moral dos homens pode agir contra seus princípios com o devido estímulo. Pensada desta forma, esta série renovada para uma 2ª temporada é uma evidência de um arco dramático negativo que enxerga um homem bom e admirado pelos seus pares em uma espiral descendente para salvar o futuro da única pessoa que lhe importa: o filho.
Até que ponto a paternidade pode servir de excludente de culpa das ações de Michael Desiato? Ações estas que refletem, como um efeito borboleta, em todas as pessoas ao redor, contaminando-as como se fosse um câncer e revelando o racismo estrutural que existe na sociedade americana, disposta a sacrificar um jovem negro para salvar um da mesma idade, mas branco.
Caso o roteiro da série fosse melhor acabado ou a temporada fosse enxuta, as questões talvez se sobressaíssem em relação às conveniências, às coincidências ou à suspensão de descrença que a narrativa pede de nós. Enquanto Michael utiliza sua influência para ditar as regras jogo, a narrativa permanece autêntica porque o poder tem destas relações promíscuas. É que a partir do momento em que Michael começa, ele próprio, a mexer as peças no tabuleiro, o roteiro desanda.
As atuações excelentes de Bryan Cranston, Michael Stuhlbarg e Carmen Ejogo ajudam a complicar o desenho psicológico de cada um deles. Discordamos e inadmitimos as ações, mas as acompanhamos porque fazem parte de um contrato moral que a narrativa fez com nós e que deságua na questão retórica: se você fosse pai, faria o mesmo que Michael? A resposta pode ser um sonoro "não", até estar na mesma situação dele. Você pode torcer contra seus esforços - eu fiz isto - ou se manter neutro, mas não pode ignorar a ironia que o desfecho proporciona.
Your Honor merecia ser uma minissérie só por causa desse momento, pois prevejo que a 2ª temporada tentará consertar o estrago.
É sintomático perceber que o motivo por que alguns rejeitaram esta produção romena tenha sido por ser menos filme de sobrevivência e resgate, mais estudo de personagem, bem adaptado com tendência existente no cinema romeno de eleger, como antagonista, o sistema corrupto no país.
Este drama alegadamente baseado em fatos reais tem no centro um personagem por quem facilmente antipatizamos, em razão de usar o prestígio político para benefício individual, não coletivo. Insatisfeito com o trabalho da equipe de resgate que busca o paradeiro de seu filho e sua namorada, Mircea decide utilizar ilegalmente instrumentos sofisticados de busca que poderiam ser úteis para toda a sociedade.
Mircea é confrontado pela imprensa e também por pais que poderiam utilizar a tecnologia para encontrarem sua filha com rapidez, e o filme enfatiza o conflito moral: quais valores estaria disposto a barganhar para salvar um ente querido? Com isto, vêm as consequências, como a preterição do filho não nascido em favor daquele que exige as suas atenções no momento e um retrato de um país em que a corrupção é a principal moeda de troca.
Desde que assistiu à versão de David Lynch de 1984, Denis Villeneuve confessou ter sonhado adaptar a obra-prima da ficção-científica Duna. Tal sonho é perceptível na reverência e solenidade da narrativa, mesmo que isto signifique sacrificar a alma em favor do corpo.
Certas escolhas visuais tornam isso evidente em como, em planos bem abertos, os personagens são diminuídos diante das naves, dos coletores de especiaria e dos Shai Hulud, os vermes de areia. Não ajuda a direção que as tramas maquiavélicas movidas por ganância, inveja e poder, ou por sentimentos de lealdade e coragem, sejam construídas sobre arquétipos conhecidos que conduzem à atuação blasé de Timothée Chalamet, no típico personagem messiânico que coloca uma barreira insuperável diante do espectador.
Ter um elenco com Oscar Isaac, Jason Momoa, Josh Brolin, Zendaya e mais intérpretes talentosos ajuda a narrativa a ter âncoras facilmente identificáveis, mas nenhum dos atores consegue incutir personalidade e profundidade nos personagem com exceção de Rebecca Ferguson. Sem vida ou emoção, não existe peso dramático nas cenas de ação e a narrativa se torna um deserto de esterilidade igual a Arrakis.
Ainda assim, Duna é um arroubo cinematográfico impossível de ser ignorado. Seus efeitos visuais e sonoros impressionam com a escala épica mesmo para quem já está familiarizado com óperas espaciais (tipo Star Wars). A fotografia é arrebatadora, enquanto a trilha sonora de Hans Zimmer, ainda que aposte em temas étnicos e tribais óbvios, consegue abraçar o ambicioso escopo do projeto. Afora isto, adoro a forma como o design de produção remete à idade média mesmo que estejamos no 10º milênio da humanidade, ajudando a estabelecer a metáfora da colonização por conquistadores europeus e ainda trazer ecológica no subtexto.
Apesar de meus olhos terem se maravilhado com o espetáculo, meu coração permaneceu inerte com o desejo de que isto mude na sequência.
Mike Flanagan encontrou um lar na Netflix em que pôde desenvolver, com paciência, minisséries de terror caracterizadas por mosaicos de personagens, trabalhados com densidade e humanidade.
Aqui, o diretor propõe-se a debater a fé e espiritualidade a partir da trama fantástica de um pároco substituto que chega a uma pequena comunidade insular com uma proposta radical de evangelização, ao mesmo tempo em que retorna ao lar o filho pródigo.
O estudo narrativo apresenta como uma parte relevante da sociedade está disposta a virar o rosto a iniquidades, desde que referendem seus preconceitos tingidos de religiosidade. Junto disto, também apresenta monstros que realizam milagres ou que se doam à piedade. São temas difíceis que não servem de ataque à religião, mas apontam onde está o erro: nos falsos profetas, naqueles que discriminam a crença alheia e impõem a sua sobre os demais como se fosse a verdade.
Nesse sentido, a ideia trazida no centro da narrativa é uma maneira de forçar a evangelização através da comunhão do sangue. É uma releitura de um mito, tantas vezes tratado na cinematografia do terror, de forma original, com personagens por que nutrimos carinho, pena e ódio a partir do desenvolvimento paciente e respeitoso ao espectador.
É uma baita série que comunica o perdão de si mesmo, a gratidão e o estranhamento provocado pelas contradições que o roteiro se propõe não a resolver, mas a expor. Para Flanagan, não é a fé que é ruim, mas o que fazemos com ela em relação aos outros.
A batalha judicial de Britney Spears para desfazer sua curadoria já rendeu 3 documentários, dois disponíveis: Framing Britney Spears, lançado na Globoplay, Toxic: Britney Spears' Battle for Freedom, por enquanto inédito no Brasil, e esta obra da Netflix. Dá para aprender bastane sobre documentários comparando as abordagens.
Enquanto Framing era sensacionalista, Britney vs Spears não adota a forma paparazzi para narrar a história da artista. É mais investigado e jornalístico, partindo de documentos confidenciais e expondo outras facetas que o antecessor não permitia enxergar. Além disto, Britney vs Spears vai direto ao ponto: depois de documentar o divórcio dela com Kevin Federline, parte para analisar as circunstâncias que levaram seu pai a assumir sua curadoria.
A Britney aparenta mais ativa no documentário, através daqueles que falavam por ela. Não há o panorama psicológico definitivo sobre ela - talvez isto jamais seja revelado -, nem detalhes sobre a personalidade de seu pai, o vilão da história, por optar em permanecer calado diante de quem quer que seja. A percepção que temos é a de quem está fora, que parte de interpretações e suposições para chega à conclusão das cineastas.
Isto reforça a ideia de como Britney possuía muitos aliados, antes de serem corrompidos ou afastados dela, e de que o silêncio dela já era suficiente para compreendermos o significado de estar 13 anos presa da liberdade de ditar os rumos de sua vida.
Entulhar um roteiro de reviravoltas pode parecer uma alternativa para que o espectador permaneça atento diante das surpresas. No entanto, plot twists nunca foram sinônimos de qualidade narrativa. É a maneira como são plantados e regados para então frutificar em revelações que não esperávamos que é a chave.
O thriller erótico Observadores juveniliza Janela Indiscreta ou Dublê de Corpo. Não só no elenco - nada convincente, por exemplo: Ben Hardy ser um gênio da fotografia quando mais parece um modelo de foto de cueca que o trabalho é tirar a camisa -, mas no espírito de que melhor ter muito plot twist do que pensar na verossimilhança deles.
Até dá para comprar a ideia (esperada, até) da primeira reviravolta, mas não os caminhos que levam a esta e nem o comportamento de personagens, que não agem como as mesmas pessoas agiriam nas mesmas circunstâncias. Para piorar, as surpresas vêm a reboque de comportamentos subjetivos, dificilmente previsíveis, como acertar a hora exata de retornar para casa e dar de cara com algo na janela.
Nada se compara com a moralidade narrativa: Michael Mohan até tem a cabeça no lugar certo quando critica quem vive a vida dos outros, e não a sua, utilizando-se de um símbolo asiático que serve para revelar a visão de quem enxerga um recorte só e ilustrar as consequências da ação da protagonista. Contudo, Michael é infeliz ao responsabilizar as ações nas personagens femininas enquanto os masculinos só seguem o baile ou são atropelados por ele.
Se Michael ilustra Pippa como a mulher cuja obsessão está associada à sexualidade, não correspondida pelo companheiro, é também quem está disposta a apagar o desenho inocente do casal para continuar a viver a vida dos outros, não a sua. Não soa justo, nem é convincente. É só a vitória do imediatismo do plot twist, nem que para isto precise de um roteiro tacanha igual a esse.
Apesar de se tratar de um filme ambientado no século XIV, O Último Duelo não parece muito diferente do mundo atual. A dúvida lançada diante da corajosa assertiva de uma mulher de que fora estuprada, a humilhação pública de ter suas entranhas reviradas, quando inquirida por homens que a obrigam a reviver a violência (veio à lembrança um caso judicial bastante recente), a falta de sororidade, estes são temas que ressoam com mais força na narrativa do que a colisão de versões.
Pois se Ridley Scott almejava realizar seu Rashomon, a verdade está evidenciada pelo próprio diretor quando introduz a terceira parte, o que pareceria tornar obsoletas as anteriores. Pareceria! Já que sua intenção é revelar que a dignidade de Marguerite não era nada senão o estágio derradeiro de um conjunto de atritos sociais e patrimoniais germinados muito antes. Aqueles homens mesquinhos e pequenos estavam mais preocupados com o orgulho e uma pretensa honra do que com o destino apresentado diante de uma mulher. A vendeta é a razão do duelo, não Marguerite, uma mera desculpa para tanto.
Com 3 versões, a partir de um roteiro co-escrito por Nicole Holofcener e os amigos Matt Damon e Ben Affleck, Ridley Scott promove mais um épico histórico que, acredito, seja capaz de dirigir de olhos vendados: a fotografia acinzentada colorida apenas por cores pastéis de vestidos de Marguerite - o detalhe da bochecha rosada chama-me a atenção -, a montagem caótica do campo de batalho e a cena do duelo digna da tensão praticada em Gladiador.
Seu trabalho de direção é facilitado por atuações marcantes: Matt Damon apropria-se do estereótipo do homem médio americano no campo de batalha francês, revelando-se bruto, insensível e com um sentimento de injustiça e inferioridade por não participar do círculo nobre. Já Adam Driver é ardiloso e político - deveriam ser sinônimos - para escalar os degraus do poder e manter o público em permanente estado de alerta quanto a suas intenções, até cometer um crime vil e repreensível. E se Ben Affleck diverte-se com um tipo maneirista e em ser desafeto de seu melhor amigo na vida real, Jodie Comer tem uma performance dolorosamente irrepreensível enquanto toma ciência de como funciona o mundo dos homens.
Ainda que seja extenso e pese a mão no símbolo da égua no cio ou do retrato vívido da violência contra a mulher, O Último Duelo justifica a duração nos 25 minutos finais e em todos os closes em Marguerite, que encontra, em Jodie Comer, uma atriz apta a dar vida ao mito.
Após um soft reboot morno, o diretor David Gordon Green acertou em cheio ao reencontrar Michael Meyers como um símbolo da maldade e do medo que instila a comunidade de Haddonfield a se transformar no próprio monstro. Com a estrutura caótica pertinente com a narrativa, Michael emerge das chamas - de forma surpreendentemente crível -para continuar sua cruzada pelo restante da noite de Halloween.
A faca permanece afiada, e a cena em que Michael testa diferentes lâminas até encontrar sua favorita é uma evidência da essência que carrega dentro de si. Mas entre os corpos que abandona sem vida no meio do caminho, o foco da narrativa está em analisar como a comunidade responde quando não confia mais nas autoridades policiais e toma a justiça nas próprias mãos.
David Gordon Green é respeitoso com os policiais, que permanecem atônitos e de mãos atadas diante do coro enraivecido, cego ao fato de que o reflexo no espelho não é muito diferente do que Michael tem enxergado por décadas. É o período de pós-justiça, com consequências devastadoras ainda mais considerada a personagem que seria a mais virtuosa da narrativa e no que esta se transforma.
O filme preserva o entretenimento escapista de quem procura, no slasher, a escusa para ver um assassino mascarado destilando um banho de sangue, enquanto propõe uma discussão, até certo ponto expositiva, mas não desnecessária, acerca da sociedade animalesca contemporânea. Haddonfield transformou-se neste manicômio, um barril de pólvora que revela o pior a partir do reflexo do bicho papão que o aterroriza. É a metáfora do poço: encare-o o bastante até este encará-lo de volta, pois, por mais justa que pareça a cruzada contra quem personifica o mal extrema, o resultado de Halloween Kills só reforça como é tênue a linha que separa a justiça do justiçamento.
Parece haver uma dificuldade natural na conexão do espectador com a série, em virtude da distância, pois não existe nenhuma tentativa em tentar convidá-lo para aquele mundo em que raros são os que enxergam. Somos testemunhas oculares, mas não percebemos o mundo da forma que a maioria dos personagens.
Assim, na segunda temporada, See continua negando o prazer de estabelecer empatia por aqueles que enxergam através dos demais sentidos que não o da visão. Até admiro esta temporada mais do que a anterior, mas precisava começar com essa ressalva.
Dito isso, See está ainda mais violenta e aprendeu com Game of Thrones, com a qual divide este potencial épico embora em menor escala, a não poupar seus personagens, nem economizar emoções. O episódio derradeiro, por cerca de 35 minutos, apresenta uma batalha campal jamais encenada, pois as estratégias empregadas por Baba Voss contra o exército de seu irmão, Edo, ganham maior relevo no contexto da cegueira.
Pode-se questionar como aqueles personagens, no calor e caos da batalha, sabiam que não estavam lutando contra os seus, ou criticar a confusão provocada pela geografia da cena. Talvez o todo seja menor do que as partes, ainda que não se possa negar o poder individual da imagem em revelar a crueldade do campo de batalha, em que nem crianças são poupadas.
Além disso, a política da série se mostra mais clara, estabelecendo alianças e motivações críveis, oportunidades de amadurecimento da trama a partir dos conflitos apresentados e a certeza de que ainda haverá muito sangue derramado quando a série retornar para a já confirmada 3ª temporada.
Este thriller é bem intencionado em como tentar atacar um câncer doméstico através da linguagem do mistério, mas não propõe nada além do óbvio enquanto faz isto.
A direção tenta estabelecer um diálogo com o cenário desértico a partir de planos externos em que a vastidão se torna opressiva, enquanto realça a opulência onde fora construída a mansão onde moram Freida Pinto e Logan Marshall-Green. Mas a beleza destas passagens ou o design de produção passam longe de socorrer os graves problemas desse roteiro.
A começar pelo mistério tacanha, que deve surpreender apenas quem nunca assistiu a nenhum filme antes. Depois, a tomada de decisões da protagonista é pra lá de inverossímil, em uma sucessão de trapalhadas que rivalizam sua trajetória com a investigação da polícia (ora, até parece que a construção de um marco arquitetônico como é esta casa não atrairia atenção, notícias e pistas, certo?).
As atuações não atrapalham, mas tampouco são boas o bastante para ajudar o mau desenvolvimento dos personagens - agora com spoilers -
e tapar o buraco da reviravolta tomada por somente um encanamento problemática e ainda por cima. Eu admiro como o roteiro se apropria do debate sobre misoginia, violência doméstica e sororidade, mas da forma como foi feito, era melhor não.
O desejo de decodificar o cinema e entender minuciosamente tudo o que acontece na trama, para estabelecer qualquer relação emocional com a obra, ainda matará a arte e a transformará em mera equação. A complexidade inerente de Primer em atar bem firme os nós das linhas temporais é desafiadora para quem gosta de quebra-cabeças, mas só.
A compreensão integral do roteiro de Shane Carruth é insignificante para entender o que a narrativa revela quando dois amigos e sócios, Aaron e Abe, constroem uma máquina do tempo na garagem de casa, utilizando-a para voltar no tempo e faturar na bolsa de valores. É uma forma de serem recompensados do modo como acreditam merecer.
Pensado assim, Primer é uma narrativa universal do mundo capitalista em que a esmagadora maioria das pessoas não é retribuída, financeira ou moralmente. A universalidade também é expressa na ruptura entre os amigos, que enxergam a invenção como uma alternativa para obter resultados diferentes.
Quem domina a linha temporal, domina o tempo, commodity preciosa no mundo de hoje em que precisamos nos duplicar ou triplicar a fim de sermos produtivos. Com isto em mente e apenas 7 mil dólares no bolso, Shane Carruth criou uma narrativa que desafia a percepção e exige múltiplas revisitações. Não só para tentar decifrar os mistérios, mas para enxergar como uma amizade pode ser dissolvida diante da ganância e do controle. Uma consequência triste da sociedade que põe amigos para concorrer um contra o outro.
O Culpado é mais sobre a trama, e sua reviravolta, do que sobre atmosfera de thriller; é mais sobre Joe, do que sobre o trabalho a que está designado. Estes elementos já colocam o filme noutra direção que o original dinamarquês de 2018, uma refilmagem de aparência, não de essência.
É até melhor que refilmagens tenham abordagens diferentes porque isto permite distinguir como o cinema americano se diferencia em razão de seu individualismo do cinema de boa parte do restante do mundo. Em O Culpado, a chamada de emergência serve de pano de fundo para que Joe entre em termos consigo mesmo, mais do que para enfatizar que mesmo um policial recriminável poderia fazer o bem na situação em que está.
Então, a direção de Antoine Fuqua (de Dia de Treinamento e O Protetor) encena o oposto do ofício de Joe: em vez de ajudar o próximo apesar de si mesmo, O Culpado é sobre ajudar a si a partir do próximo. Não estou fazendo juízo de qualidade com isto, apenas constatando como a mão norte-americana pode alterar um filme sem modificar significativamente a história.
Sim, a narrativa é eficiente e nervosa, ainda que óbvia ao contrapor Joe diante de persianas que o colocam na situação de prisioneiro. E tem uma atuação competente de Jake Gyllenhaal, embora a bombinha de asma seja um dos elementos que prejudica o desenvolvimento de seu personagem em razão do excesso. De toda forma, se você não conferiu o original, talvez curta mais.
Uma boa série é aquela que, apesar de percebermos seus clichês menos elogiosos ou elementos que inverossímeis, ainda mais para quem é do país do futebol, permanecemos envolvidos nas dores dos personagens, choramos suas lágrimas, torcemos por suas conquistas e comemoramos suas alegrias.
Com a primeira temporada, Ted Lasso conquistou todos aqueles ao seu lado e também nós, que passamos a enxergar aqueles personagens com as mesmas lentes bondosas, otimistas e generosas do personagem-título. Quando Jamie Tart tenta recomeçar, nossa desconfiança vai logo para o espaço porque Ted ensinou a gente a crer em mudanças.
Mas otimismo sozinho não conserta o mundo. E esta temporada, até mais do que a passada, proporciona mais momentos angustiantes e dolorosos. Se Ted começou a primeira temporada como comédia indecisa em se aventurar nos elementos dramático, agora os aceita como parte indissociável.
É que a série é um reflexo de Ted: na superfície, cômica, despojada. bonachona. Na essência, porém, reflexiva e introspectiva. Esta temporada proporciona episódios de leveza (como aquele inspirado em comédias românticas e o do natal), bem como há outros que acertam em cheio no drama, até na eleição de um antagonista improvável.
Claro, Ted ensinou que o antagonismo só existe porque ainda não se pôde acessar os caminhos certos da empatia. Então, desconfio que a cena final da temporada - que não precisaria ter aquela viradinha pra câmera com a quebra da quarta parede - é somente desculpa para uma correção de rumo ao estilo Ted Lasso. Com protagonistas cativantes igual ao personagem-título, esta série pode continuar por quantas temporadas quiser.
Sem depender, nem interferir com o universo cinematográfico e televisivo da Marvel, ao menos a primeira vista, What If...? tem a liberdade de jogar com as relações de causa e efeito. Com tal liberdade, a série animada devolve a empolgação, o maravilhamento até, que começou a estar carente nas produções do estúdio. Tudo isto dentro das regras do subgênero ou mesmo da lógica que rege os personagens. É uma subversão controlada, mas ainda assim uma subversão.
A subversão não está apenas na mudança do gênero do Capitão América, agora Capitã Carter, nem somente da identidade do Senhor das Estrelas, T'Challa, é maior do que isto. É como eventos aparentemente minúsculos podem desencadear alterações significativas na personalidade dos heróis. Tony Stark continua egocêntrico, mas ao não poder testar a própria vida, o narcisismo se torna maior do que o heroísmo. Sem desafiar a imaturidade, Thor permanece o garotão festeiro que encontramos no primeiro filme.
O prisma do multiverso, apresentado pelo Vigia, oferece possibilidades infinitas, e estas moldam personalidades como massas de modelar. Em alguns casos, apesar da duração curta dos episódios, existe o resgate de personagens mal aproveitados nos filmes. Como o caso de Ultron, cuja retratação termina por tornar ainda mais obsoleta aquela vista antes em Vingadores: Era de Ultron.
Não faltam emoção e tensão, nem mesmo oportunidades de rever personagens queridos em situações inusitadas, até mesmo como zumbis. Eu adorei, quase sem ressalvas, cada episódio.
São bastante comuns filmes ou séries protagonizados por homens, brancos, héteros e de classe média, mas infrequentes as produções que coloquem estes personagens em atrito com sua subjetividade, dentro de uma sociedade contemporânea em alteração profunda e em ritmo mais veloz do que acompanham. A ansiedade e a síndrome do pânico, meteoros em rota de colisão, sintomatizam a tentativa do Sr. Corman em se adequar e se adaptar a expectativas frustradas, a sonhos não concretizados, a relacionamentos frustrados porém não sem seu aprendizado.
Sr. Corman perdeu sua música e, nesta temporada não renovada pela Apple TV+, tem por objetivo reencontrá-la diante do cenário apocalíptico provocado pela pandemia do Covid-19 (que maximiza infinitamente a ansiedade do protagonista).
Criada, dirigida e protagonizada por Joseph Gordon-Levitt, a série é humana o bastante para sua simplicidade ser acolhedora. Sr. Corman deve perdoar-se, aprender a conviver com aqueles mais próximos - colega de quarto, mãe, pai - e tentar derrotar a ansiedade nesta cruzada. A partir de elementos associados ao cinema independente, o drama não advém de ações ou eventos, mas de emoções represadas, e a câmera na mão, instável, parece apropriada em se manter perto do protagonista e de seu estado psicológico.
Ficamos próximos dos sentimentos da mãe (Debra Winger), do pai (Hugo Weaving, que atuação imensa), de seu colega de quarto (Arturo Castro, que encabeça um dos melhores episódios), porque dentro da lógica de Joseph Gordon-Levitt, cada detalhe, cada indivíduo importa a ponto de merecer a ênfase da câmera. O drama de pessoas comuns é a matéria prima da série de que mais gostei, até agora, e de que me despeço com o sentimento de dever cumprido: algumas relações permanecem inconclusiva, mas sabemos que Corman conhecerá os meios para reencontrar sua música e enfrentar sua ansiedade.
Esta minissérie retrata com excelência como a presença de João de Deus incentivou o turismo religioso e o desenvolvimento socioeconômico em Abadiânia, e com menos excelência a trajetória da nefasta figura título e os crimes que cometeu contra centenas de mulheres e até adolescentes e crianças.
Gosto de como a minissérie submete os fragmentos filmados na época ao juízo contemporâneo. Ou seja, vemos João de Deus pelo sujeito que era de verdade, não a figura que fingia ser. Isto permite ressignificar as imagens de arquivo: no olhar distanciado, alheio até, enxergamos a figura do predador correndo em busca da presa. Não existe mais a imagem do homem santo, só do monstro.
A minissérie recapitula a ascensão de João, dentro do cenário nacional e internacional, e logo abre a porta aos crimes de abuso sexual, que serão objeto dos episódios seguintes, inclusive com a participação de sobreviventes que se dispuseram a mostrar, ou não, o rosto e ceder a voz para que readquirissem o controle tomado por um ato inominável.
É importante que assistamos e escutemos o relato destas mulheres corajosas e a narrativa demonstra astúcia em continuar revelando a quantidade de pessoas que continuam cegas às maldades de João, inclusive aquelas que devoram a infâmia para obter uma notoriedade almejada. Se você tiver estômago forte, é uma minissérie documental breve e envolvente.
Kathryn Bigelow, neste jovem clássico vencedor do Oscar, estabeleceu regras narrativas e estilísticas que norteariam o cinema que retratasse a guerra do Iraque, o mais ilegítimo dos conflitos militares americanos desde que se aventurou nas selvas do Vietnã.
A diretora entendeu que a sujeira da guerra, política, moral e óbvia, exigiria uma abordagem idem. Assim, ao empregar múltiplas câmeras na mão articuladas pela montagem desorientadora, a encenação de Kathryn estabelece a ação no espaço e a movimentação incessante e caótica a fim de situar o espectador à certa distância, mas perto o bastante da psique do trio de soldados, que representam arquétipos da guerra contemporânea.
James, o protagonista de Jeremy Renner, é o xerife do velho oeste, ora deslocado a Bagdá, que atua de forma inconsequente e individualista a fim de cumprir sua missão. É o personagem mais gravemente ferido - do trio -, pois mal percebe que a guerra se tornou seu lar, afastando-o da vida doméstica, da família e de relações humanas significativas.
Ao estabelecer a estrutura em torno de esquetes em que James tenta desarmar as mais variadas bombas ou se posicionar dentro do campo de batalha, é como se a narrativa evidenciasse que só isto importa, de fato, na vida do personagem. Todo o restante pode subtraído, sem qualquer prejuízo. O desenvolvimento de James se faz em ação, não fora dela.
Essa estrutura favorece a construção da tensão crescente, de novo com méritos à montagem, enquanto tenta arrancar James da frieza racional que precisa se submeter para decidir qual fio cortar de um IED. Com elementos de ação e faroeste embutidos em uma narrativa de guerra, a diretora revisita o gênero e atribui-lhe significados antes não apresentados com esta mesma consistência.
Guerra ao Terror, cujo título em inglês significa Armário da Dor, é um retrato implacável e angustiante de mortes, em vida, de pessoas que param de funcionar como agentes da sociedade para se tornarem as peças substituíveis do exército americano ávido para lubrificar sua máquina de guerra com mais insumos humanos. Ainda que a diretora não milite contra ou a favor da guerra, James, Sanborn e Eldrige são provas cabais de seu posicionamento. É uma obra paradigmática e irrepreensível.
Existem muitos traumas que cercam a experiência de Ambar nos Estados Unidos: o sentimento de culpa por haver abandonado a mãe no leito de morte, a condição de imigrante em um país hostil que a deseja somente como mão de obra barata para serviços que os americanos não desejam realizar, a violência contra a mulher praticada por homens que têm seus interesses particulares. Quando a encontramos, Ambar tem dificuldade em renovar o período de aluguel porque não tem carteira de identidade e, para conseguir falsificar em que conste haver nascido no Texas (não em Ohio), precisa desembolsar 3 mil dólares. Isto a empurra a morar em uma pensão para mulheres, estranhamente comandada por um homem, onde começa a testemunhar eventos estranhos relacionados a um artefato latino.
O diretor Santiago Menghini, estreante em longas-metragens e que trabalhou em curtas-metragens e na supervisão de efeitos especiais, transforma a experiência de Ambar em um pesadelo sob a iluminação precária que oscila em circunstâncias bastantes específicas. Com a visibilidade comprometida com relação a parte do que acontece no escuro da pensão, Ambar tateia no escuro como também testa sorte em permanecer no país ilegalmente. Prova disto é depositar a fé em alguém que a trairá e impactará, negativamente, na chance minúscula que tem de usufruiu o idealista sonho americano. Ao menos o chefe da tecelaria onde trabalha é honesto por não esconder sua opressão diária.
Quem interpreta Ambar é a atriz mexicana Cristina Rodlo, com boas participações nas séries Muito Velho para Morrer Jovem e The Terror, além de na refilmagem Miss Bala. Cristina evita o caminho percorrido da protagonista indefesa e adota uma postura combativa, ainda que ausentes os recurso de combate. Ela não somente teme o inesperado, procura enxergá-lo como reflexo da própria situação, enquanto ainda barganha sua forma de sobreviver. Já Marc Menchaca, de The Ozark, tenta conferir dignidade ao antagonista, colocando-o como agente e refém de um sistema de opressão de que acredita não poder escapar, porque deve retribuir algo que recebeu no passado (mas não entro em maiores detalhes para evitar spoilers).
O filme é a segunda adaptação de uma obra literária de Adam Nevill - a anterior, O Ritual, também está disponível na Netfilx -, com o roteiro assinado por Jon Croker e Fernanda Coppel, que podem desconhecer a situação dos imigrantes e a (escassa, mas existente) rede de apoio, embora saibam como tornar macabro o que aparentava ser um terror-metáfora. Na literalidade chocante, o drama de Ambar se torna vívido e pungente, e também enigmático, em como corrige a passada e abre caminho à protagonista em uma terra que não é sua.
O diretor Maurício Eça se propôs a um exercício narrativo intrigante que inicia no cinema e termina no Direito. Isto porque, analisadas de forma individual as faces desta moeda (está mais para um dado), não existiria nada senão maniqueísmo: nesta face, o homem trabalhador, manipulado pela namorada a assassinar seus pais que o desabonam e o oprimiam dentro de parâmetros de riqueza; naquela face, a boa filha e estudante, corrompida pelo namorado em uma vida de torpeza até praticar um ato monstruoso.
Seria bastante frustrante assistir a um filme assim, não? Porém, com o contraponto da versão oposta, o que era maniqueísmo se torna uma opção estilística. Pois se estes filmes não funcionam de forma isolada, é apenas porque o crime que chocou o Brasil não aconteceria se não fosse a agência mútua de Suzana e Daniel. Veio o cinema e mimetizou isto.
Dividir para conquistar, dizia César; reunir versões e encontrar a verdade possível, é a missão do Direito. Ao abraçar esta proposta, Maurício Eça também desaguou na ciência jurídica em que cada acusado tentou, mal sucedidamente, eximir-se da responsabilidade. Ao estar ciente de que a versão de cada acusado é maniqueísta, o diretor pode brincar com este conceito de duplos, ciente de que a ficção inspirada em fatos não modificará a opinião pública sobre o caso, mas proporcionará uma visão maior sobre cinema.
Carla Díaz e Leonardo Bittencourt habilmente conciliam duas versões aparentemente irreconciliáveis, à primeira vista, graças a momentos em que percebemos a área cinza que os cerca: como o olhar de Daniel enquanto Suzana recebe seu carro. Além disto, ao oferecer versões de mesmos eventos, a narrativa explora o trabalho dificultoso do juiz, que nunca encontrará a verdade dos fatos, mas só a verdade que provas lhe permitem concluir. Não que estas versões trarão dúvidas sobre a autoria dos crimes, mas revelarão como Suzana e Daniel se pintaram ao mundo para tentar justificar o injustificável.
O diretor Maurício Eça se propôs a um exercício narrativo intrigante que inicia no cinema e termina no Direito. Isto porque, analisadas de forma individual as faces desta moeda (está mais para um dado), não existiria nada senão maniqueísmo: nesta face, o homem trabalhador, manipulado pela namorada a assassinar seus pais que o desabonam e o oprimiam dentro de parâmetros de riqueza; naquela face, a boa filha e estudante, corrompida pelo namorado em uma vida de torpeza até praticar um ato monstruoso.
Seria bastante frustrante assistir a um filme assim, não? Porém, com o contraponto da versão oposta, o que era maniqueísmo se torna uma opção estilística. Pois se estes filmes não funcionam de forma isolada, é apenas porque o crime que chocou o Brasil não aconteceria se não fosse a agência mútua de Suzana e Daniel. Veio o cinema e mimetizou isto.
Dividir para conquistar, dizia César; reunir versões e encontrar a verdade possível, é a missão do Direito. Ao abraçar esta proposta, Maurício Eça também desaguou na ciência jurídica em que cada acusado tentou, mal sucedidamente, eximir-se da responsabilidade. Ao estar ciente de que a versão de cada acusado é maniqueísta, o diretor pode brincar com este conceito de duplos, ciente de que a ficção inspirada em fatos não modificará a opinião pública sobre o caso, mas proporcionará uma visão maior sobre cinema.
Carla Díaz e Leonardo Bittencourt habilmente conciliam duas versões aparentemente irreconciliáveis, à primeira vista, graças a momentos em que percebemos a área cinza que os cerca: como o olhar de Daniel enquanto Suzana recebe seu carro. Além disto, ao oferecer versões de mesmos eventos, a narrativa explora o trabalho dificultoso do juiz, que nunca encontrará a verdade dos fatos, mas só a verdade que provas lhe permitem concluir. Não que estas versões trarão dúvidas sobre a autoria dos crimes, mas revelarão como Suzana e Daniel se pintaram ao mundo para tentar justificar o injustificável.
Como alguns documentários fizeram, Ponto de Virada se aproveitou do aniversário de 20 anos do atentado terrorista contra os Estados Unidos para discutir o impacto social, geopolítico e cultural do evento definidor dos primeiros anos deste século. Sua proposta é menos de investigar o atentado e mais de análise conjectural. Ou seja, Brian Knappenberger, o diretor, debruça-se sobre as consequências internas e externas pós o ato desde a decisão de declarar guerra contra uma organização terrorista até os eventos subsequentes em que as tropas americanas invadem o Iraque, sob o falso de pretexto de o país albergar armas de destruição em massa.
Os cinco episódios da minissérie mesclam a abordagem humanizada, em que agentes contestam ou confirmam as decisões geopolíticas tomadas pelo governo George Bush e depois Barack Obama e Donald Trump, ou vítimas lamentam a morte de entes queridos e recordam da tragédia, com a abordagem jornalística, mais preocupada em analisar documentos e fatos e chegar à verdade que estes revelarão. Com base nisto, a minissérie obriga a reflexão de quem saiu vitorioso da guerra ao terror, se os Estados Unidos ou Osama Bin Laden? Ainda mais considerada a quantidade de organizações terroristas que se proliferaram depois de o país ocupar e destruir cidades sem qualquer plano de saída nem de reconstrução do país em uma democracia funcional.
A minissérie é evidência, pela sua existência, de como os Estados Unidos ainda não aprenderam a lidar com o luto proveniente do ato terrorista e, no decorrer do processo, terminaram por se transformarem nos mesmos monstros que tentaram combater. Seus soldados até cortaram a cabeça da hidra, mas, igual à mitologia, logo outras nasceram no lugar, onde permanecem até hoje.
Quem não apresentou sintomas de doenças psíquicas nos anos passados não está na sintonia do mundo: ansiedade, depressão, síndrome do pânico, síndrome do impostor, seja o que for, todos precisam de tratamento para se compatibilizarem com o ritmo da sociedade contemporânea e as exigências desta, e um resort bem heterodoxo é onde nove estranhos, assistidos por uma guru e sua equipe igualmente danificados, atravessam o purgatório das dores, frustrações e ressentimentos para emergirem pessoas melhores. Com todos estes sintomas no mesmo cozido interpretados por este elenco talentoso, não é difícil que Nove Desconhecido apresente-se como uma minissérie chamativa.
É também chamativo como, independente dos nomes no elenco ou na produção, a diferença entre remédio e veneno continua sendo a dose. E a desta minissérie é exagerada, especialmente nos episódios a partir dos quais o mistério em torno de Tranquillum é revelado, e importado na forma mais expressiva dos efeitos do tratamento na percepção dos personagens. Além disto, por mais que entremos em contato com os seus dramas, é curioso como a maioria dos personagens permanecem distantes de nós a ponto de o êxito, ou não, do tratamento deixar de ser relevante. Ou seja, não queremos que estes nove sejam curados, queremos apenas saber o mistério em torno das ameças de morte a Masha.
Ao invés de ser um mergulho na psiquê da pessoa contemporânea, a narrativa se torna um thriller de mistério. E não quero afirmar que não possa ser as duas coisas, somente que insiste mais neste último em detrimento daquele, sem que nenhum dos dois seja verdadeiramente satisfatório no fim. E, na tendência de gamificação da vida cotidiana, a narrativa é subdividida em fases, que são as etapas do tratamento, e, cada uma destas fases, com predileção a um ou dois personagens em detrimento do todo. Nem é que não tenha gostado da minissérie, mas simplesmente não decola além da zona de conforto, ainda mais com o pedigree do elenco, a temática contemporânea e as possibilidades de misturar tantos humores em uma panela de pressão.
Holy Motors
3.9 651 Assista AgoraNo interior de uma limusine, o Sr. Oscar se prepara para participar de encenações que falam sobre o ofício do ator, mas revelam pouco de quem este homem verdadeiramente é. Mal o vemos senão nesses breves momentos, vivenciado apenas em razão da beleza do gesto. O dilema de Oscar é a inexistência além da performance.
No curso de um dia, o diretor Leos Carax propõe uma viagem que namora o surrealismo enquanto manifesta seu amor ao cinema. A narrativa possui uma lógica interna desafiada pela lógica que rege cada uma de suas partes, pois Leos não assina qualquer contrato de realismo, verossimilhança ou mesmo fantasia ou absurdismo com o espectador. Em um momento, vemos um pai que busca a filha numa festa; noutro, um assassino e a vítima são "a mesma pessoa".
Assim, o contrato que Leos assina é com o poder da crítica (e também homenagem) a partir de imagens potentes e de como estas namoram umas com as outras. Não é um filme para ser explicado, é para ser sentido, absorvido, como se estivéssemos acessando os sonhos do diretor (que é o personagem que acorda na cena inicial), muito além do transe dos espectadores dormindo no cinema. Não existe racionalidade nos sonhos, então por que haveria quando estes sonhos viram realidade fílmica?
O motor sagrado da experiência é Denis Lavant, ator fetiche de Leos, e que se transforma em 11 pessoas como se só trocasse de roupa. A qualidade de seu trabalho é indiscutível porque suas encenações são verossímeis, articuladas para que os personagens apropriem-se parcial e temporariamente do corpo do intérprete, deixando só a impressão breve de quem é Oscar. O vazio. O nada prestes a ser consumido em mais um ato.
Exército de Ladrões: Invasão da Europa
3.2 181Eu tento puxar da memória quando os estúdios decidiram que os filmes que deveriam entreter precisariam de 2, 3 horas para fazê-lo. Claro, há narrativa que fazem por merecer a duração, mas este não é o caso com Exército de Ladrões, a prequel de Army of the Dead centrado no ladrão de bancos Dieter.
Interpretado por Matthias Schweighöfer - que também dirige o filme! -, Dieter é o exemplo de um coadjuvante divertido alçado à condição de protagonista. Ainda que divida a cena com um exército (ou "exército") menor do que os 11 de Danny Oceans, Dieter ainda tem a ingenuidade e paixão necessárias para se destacar entre personagens com carisma nulo, com exceção de Nathalie Emmanuel que precisa desesperadamente de uma produção à altura de seu talento.
O filme esforça-se para ser uma brincadeira metalinguística com os filmes de assalto, como Pânico fez com os slashers movies. Ou seja, ele tenta ser um filme do gênero enquanto também reflete sobre as convenções e clichês dele. Não é muito bem sucedido no processo, embora valha pela tentativa, especialmente quando enxergamos a relação de Dieter com os cofres (utilizando efeitos visuais que penetram em seus mecanismos e revelam seus segredos).
O roteiro é formatado como um videogame com fases, em que todos os eventos ficam explicadinhos como se ainda estivéssemos no colégio. Além disto, os personagens não fogem dos arquétipos, até nos (previsíveis) pontos de virada da trama. Mas não dá para negar que o filme é divertido muito graças à abordagem visual de Matthias Schweighöfer.
Precisaria ter 2 horas e 6 minutos? Não. Mas aí exigir demais que Dieter, além de roubar os cofres mais complexos do mundo, mude também toda uma mentalidade da indústria de cinema atual.
Your Honor (1ª Temporada)
3.8 72 Assista AgoraNinguém é incorruptível. Mesmo o mais ético e moral dos homens pode agir contra seus princípios com o devido estímulo. Pensada desta forma, esta série renovada para uma 2ª temporada é uma evidência de um arco dramático negativo que enxerga um homem bom e admirado pelos seus pares em uma espiral descendente para salvar o futuro da única pessoa que lhe importa: o filho.
Até que ponto a paternidade pode servir de excludente de culpa das ações de Michael Desiato? Ações estas que refletem, como um efeito borboleta, em todas as pessoas ao redor, contaminando-as como se fosse um câncer e revelando o racismo estrutural que existe na sociedade americana, disposta a sacrificar um jovem negro para salvar um da mesma idade, mas branco.
Caso o roteiro da série fosse melhor acabado ou a temporada fosse enxuta, as questões talvez se sobressaíssem em relação às conveniências, às coincidências ou à suspensão de descrença que a narrativa pede de nós. Enquanto Michael utiliza sua influência para ditar as regras jogo, a narrativa permanece autêntica porque o poder tem destas relações promíscuas. É que a partir do momento em que Michael começa, ele próprio, a mexer as peças no tabuleiro, o roteiro desanda.
As atuações excelentes de Bryan Cranston, Michael Stuhlbarg e Carmen Ejogo ajudam a complicar o desenho psicológico de cada um deles. Discordamos e inadmitimos as ações, mas as acompanhamos porque fazem parte de um contrato moral que a narrativa fez com nós e que deságua na questão retórica: se você fosse pai, faria o mesmo que Michael? A resposta pode ser um sonoro "não", até estar na mesma situação dele. Você pode torcer contra seus esforços - eu fiz isto - ou se manter neutro, mas não pode ignorar a ironia que o desfecho proporciona.
Your Honor merecia ser uma minissérie só por causa desse momento, pois prevejo que a 2ª temporada tentará consertar o estrago.
O Pai que Move Montanhas
2.1 61 Assista AgoraÉ sintomático perceber que o motivo por que alguns rejeitaram esta produção romena tenha sido por ser menos filme de sobrevivência e resgate, mais estudo de personagem, bem adaptado com tendência existente no cinema romeno de eleger, como antagonista, o sistema corrupto no país.
Este drama alegadamente baseado em fatos reais tem no centro um personagem por quem facilmente antipatizamos, em razão de usar o prestígio político para benefício individual, não coletivo. Insatisfeito com o trabalho da equipe de resgate que busca o paradeiro de seu filho e sua namorada, Mircea decide utilizar ilegalmente instrumentos sofisticados de busca que poderiam ser úteis para toda a sociedade.
Mircea é confrontado pela imprensa e também por pais que poderiam utilizar a tecnologia para encontrarem sua filha com rapidez, e o filme enfatiza o conflito moral: quais valores estaria disposto a barganhar para salvar um ente querido? Com isto, vêm as consequências, como a preterição do filho não nascido em favor daquele que exige as suas atenções no momento e um retrato de um país em que a corrupção é a principal moeda de troca.
Duna: Parte 1
3.8 1,6K Assista AgoraDesde que assistiu à versão de David Lynch de 1984, Denis Villeneuve confessou ter sonhado adaptar a obra-prima da ficção-científica Duna. Tal sonho é perceptível na reverência e solenidade da narrativa, mesmo que isto signifique sacrificar a alma em favor do corpo.
Certas escolhas visuais tornam isso evidente em como, em planos bem abertos, os personagens são diminuídos diante das naves, dos coletores de especiaria e dos Shai Hulud, os vermes de areia. Não ajuda a direção que as tramas maquiavélicas movidas por ganância, inveja e poder, ou por sentimentos de lealdade e coragem, sejam construídas sobre arquétipos conhecidos que conduzem à atuação blasé de Timothée Chalamet, no típico personagem messiânico que coloca uma barreira insuperável diante do espectador.
Ter um elenco com Oscar Isaac, Jason Momoa, Josh Brolin, Zendaya e mais intérpretes talentosos ajuda a narrativa a ter âncoras facilmente identificáveis, mas nenhum dos atores consegue incutir personalidade e profundidade nos personagem com exceção de Rebecca Ferguson. Sem vida ou emoção, não existe peso dramático nas cenas de ação e a narrativa se torna um deserto de esterilidade igual a Arrakis.
Ainda assim, Duna é um arroubo cinematográfico impossível de ser ignorado. Seus efeitos visuais e sonoros impressionam com a escala épica mesmo para quem já está familiarizado com óperas espaciais (tipo Star Wars). A fotografia é arrebatadora, enquanto a trilha sonora de Hans Zimmer, ainda que aposte em temas étnicos e tribais óbvios, consegue abraçar o ambicioso escopo do projeto. Afora isto, adoro a forma como o design de produção remete à idade média mesmo que estejamos no 10º milênio da humanidade, ajudando a estabelecer a metáfora da colonização por conquistadores europeus e ainda trazer ecológica no subtexto.
Apesar de meus olhos terem se maravilhado com o espetáculo, meu coração permaneceu inerte com o desejo de que isto mude na sequência.
Missa da Meia-Noite
3.9 731Mike Flanagan encontrou um lar na Netflix em que pôde desenvolver, com paciência, minisséries de terror caracterizadas por mosaicos de personagens, trabalhados com densidade e humanidade.
Aqui, o diretor propõe-se a debater a fé e espiritualidade a partir da trama fantástica de um pároco substituto que chega a uma pequena comunidade insular com uma proposta radical de evangelização, ao mesmo tempo em que retorna ao lar o filho pródigo.
O estudo narrativo apresenta como uma parte relevante da sociedade está disposta a virar o rosto a iniquidades, desde que referendem seus preconceitos tingidos de religiosidade. Junto disto, também apresenta monstros que realizam milagres ou que se doam à piedade. São temas difíceis que não servem de ataque à religião, mas apontam onde está o erro: nos falsos profetas, naqueles que discriminam a crença alheia e impõem a sua sobre os demais como se fosse a verdade.
Nesse sentido, a ideia trazida no centro da narrativa é uma maneira de forçar a evangelização através da comunhão do sangue. É uma releitura de um mito, tantas vezes tratado na cinematografia do terror, de forma original, com personagens por que nutrimos carinho, pena e ódio a partir do desenvolvimento paciente e respeitoso ao espectador.
É uma baita série que comunica o perdão de si mesmo, a gratidão e o estranhamento provocado pelas contradições que o roteiro se propõe não a resolver, mas a expor. Para Flanagan, não é a fé que é ruim, mas o que fazemos com ela em relação aos outros.
Britney x Spears
3.6 115A batalha judicial de Britney Spears para desfazer sua curadoria já rendeu 3 documentários, dois disponíveis: Framing Britney Spears, lançado na Globoplay, Toxic: Britney Spears' Battle for Freedom, por enquanto inédito no Brasil, e esta obra da Netflix. Dá para aprender bastane sobre documentários comparando as abordagens.
Enquanto Framing era sensacionalista, Britney vs Spears não adota a forma paparazzi para narrar a história da artista. É mais investigado e jornalístico, partindo de documentos confidenciais e expondo outras facetas que o antecessor não permitia enxergar. Além disto, Britney vs Spears vai direto ao ponto: depois de documentar o divórcio dela com Kevin Federline, parte para analisar as circunstâncias que levaram seu pai a assumir sua curadoria.
A Britney aparenta mais ativa no documentário, através daqueles que falavam por ela. Não há o panorama psicológico definitivo sobre ela - talvez isto jamais seja revelado -, nem detalhes sobre a personalidade de seu pai, o vilão da história, por optar em permanecer calado diante de quem quer que seja. A percepção que temos é a de quem está fora, que parte de interpretações e suposições para chega à conclusão das cineastas.
Isto reforça a ideia de como Britney possuía muitos aliados, antes de serem corrompidos ou afastados dela, e de que o silêncio dela já era suficiente para compreendermos o significado de estar 13 anos presa da liberdade de ditar os rumos de sua vida.
Observadores
3.0 420 Assista AgoraEntulhar um roteiro de reviravoltas pode parecer uma alternativa para que o espectador permaneça atento diante das surpresas. No entanto, plot twists nunca foram sinônimos de qualidade narrativa. É a maneira como são plantados e regados para então frutificar em revelações que não esperávamos que é a chave.
O thriller erótico Observadores juveniliza Janela Indiscreta ou Dublê de Corpo. Não só no elenco - nada convincente, por exemplo: Ben Hardy ser um gênio da fotografia quando mais parece um modelo de foto de cueca que o trabalho é tirar a camisa -, mas no espírito de que melhor ter muito plot twist do que pensar na verossimilhança deles.
Até dá para comprar a ideia (esperada, até) da primeira reviravolta, mas não os caminhos que levam a esta e nem o comportamento de personagens, que não agem como as mesmas pessoas agiriam nas mesmas circunstâncias. Para piorar, as surpresas vêm a reboque de comportamentos subjetivos, dificilmente previsíveis, como acertar a hora exata de retornar para casa e dar de cara com algo na janela.
Nada se compara com a moralidade narrativa: Michael Mohan até tem a cabeça no lugar certo quando critica quem vive a vida dos outros, e não a sua, utilizando-se de um símbolo asiático que serve para revelar a visão de quem enxerga um recorte só e ilustrar as consequências da ação da protagonista. Contudo, Michael é infeliz ao responsabilizar as ações nas personagens femininas enquanto os masculinos só seguem o baile ou são atropelados por ele.
Se Michael ilustra Pippa como a mulher cuja obsessão está associada à sexualidade, não correspondida pelo companheiro, é também quem está disposta a apagar o desenho inocente do casal para continuar a viver a vida dos outros, não a sua. Não soa justo, nem é convincente. É só a vitória do imediatismo do plot twist, nem que para isto precise de um roteiro tacanha igual a esse.
O Último Duelo
3.9 326Apesar de se tratar de um filme ambientado no século XIV, O Último Duelo não parece muito diferente do mundo atual. A dúvida lançada diante da corajosa assertiva de uma mulher de que fora estuprada, a humilhação pública de ter suas entranhas reviradas, quando inquirida por homens que a obrigam a reviver a violência (veio à lembrança um caso judicial bastante recente), a falta de sororidade, estes são temas que ressoam com mais força na narrativa do que a colisão de versões.
Pois se Ridley Scott almejava realizar seu Rashomon, a verdade está evidenciada pelo próprio diretor quando introduz a terceira parte, o que pareceria tornar obsoletas as anteriores. Pareceria! Já que sua intenção é revelar que a dignidade de Marguerite não era nada senão o estágio derradeiro de um conjunto de atritos sociais e patrimoniais germinados muito antes. Aqueles homens mesquinhos e pequenos estavam mais preocupados com o orgulho e uma pretensa honra do que com o destino apresentado diante de uma mulher. A vendeta é a razão do duelo, não Marguerite, uma mera desculpa para tanto.
Com 3 versões, a partir de um roteiro co-escrito por Nicole Holofcener e os amigos Matt Damon e Ben Affleck, Ridley Scott promove mais um épico histórico que, acredito, seja capaz de dirigir de olhos vendados: a fotografia acinzentada colorida apenas por cores pastéis de vestidos de Marguerite - o detalhe da bochecha rosada chama-me a atenção -, a montagem caótica do campo de batalho e a cena do duelo digna da tensão praticada em Gladiador.
Seu trabalho de direção é facilitado por atuações marcantes: Matt Damon apropria-se do estereótipo do homem médio americano no campo de batalha francês, revelando-se bruto, insensível e com um sentimento de injustiça e inferioridade por não participar do círculo nobre. Já Adam Driver é ardiloso e político - deveriam ser sinônimos - para escalar os degraus do poder e manter o público em permanente estado de alerta quanto a suas intenções, até cometer um crime vil e repreensível. E se Ben Affleck diverte-se com um tipo maneirista e em ser desafeto de seu melhor amigo na vida real, Jodie Comer tem uma performance dolorosamente irrepreensível enquanto toma ciência de como funciona o mundo dos homens.
Ainda que seja extenso e pese a mão no símbolo da égua no cio ou do retrato vívido da violência contra a mulher, O Último Duelo justifica a duração nos 25 minutos finais e em todos os closes em Marguerite, que encontra, em Jodie Comer, uma atriz apta a dar vida ao mito.
Halloween Kills: O Terror Continua
3.0 684 Assista AgoraApós um soft reboot morno, o diretor David Gordon Green acertou em cheio ao reencontrar Michael Meyers como um símbolo da maldade e do medo que instila a comunidade de Haddonfield a se transformar no próprio monstro. Com a estrutura caótica pertinente com a narrativa, Michael emerge das chamas - de forma surpreendentemente crível -para continuar sua cruzada pelo restante da noite de Halloween.
A faca permanece afiada, e a cena em que Michael testa diferentes lâminas até encontrar sua favorita é uma evidência da essência que carrega dentro de si. Mas entre os corpos que abandona sem vida no meio do caminho, o foco da narrativa está em analisar como a comunidade responde quando não confia mais nas autoridades policiais e toma a justiça nas próprias mãos.
David Gordon Green é respeitoso com os policiais, que permanecem atônitos e de mãos atadas diante do coro enraivecido, cego ao fato de que o reflexo no espelho não é muito diferente do que Michael tem enxergado por décadas. É o período de pós-justiça, com consequências devastadoras ainda mais considerada a personagem que seria a mais virtuosa da narrativa e no que esta se transforma.
O filme preserva o entretenimento escapista de quem procura, no slasher, a escusa para ver um assassino mascarado destilando um banho de sangue, enquanto propõe uma discussão, até certo ponto expositiva, mas não desnecessária, acerca da sociedade animalesca contemporânea. Haddonfield transformou-se neste manicômio, um barril de pólvora que revela o pior a partir do reflexo do bicho papão que o aterroriza. É a metáfora do poço: encare-o o bastante até este encará-lo de volta, pois, por mais justa que pareça a cruzada contra quem personifica o mal extrema, o resultado de Halloween Kills só reforça como é tênue a linha que separa a justiça do justiçamento.
See (2ª Temporada)
3.8 26 Assista AgoraParece haver uma dificuldade natural na conexão do espectador com a série, em virtude da distância, pois não existe nenhuma tentativa em tentar convidá-lo para aquele mundo em que raros são os que enxergam. Somos testemunhas oculares, mas não percebemos o mundo da forma que a maioria dos personagens.
Assim, na segunda temporada, See continua negando o prazer de estabelecer empatia por aqueles que enxergam através dos demais sentidos que não o da visão. Até admiro esta temporada mais do que a anterior, mas precisava começar com essa ressalva.
Dito isso, See está ainda mais violenta e aprendeu com Game of Thrones, com a qual divide este potencial épico embora em menor escala, a não poupar seus personagens, nem economizar emoções. O episódio derradeiro, por cerca de 35 minutos, apresenta uma batalha campal jamais encenada, pois as estratégias empregadas por Baba Voss contra o exército de seu irmão, Edo, ganham maior relevo no contexto da cegueira.
Pode-se questionar como aqueles personagens, no calor e caos da batalha, sabiam que não estavam lutando contra os seus, ou criticar a confusão provocada pela geografia da cena. Talvez o todo seja menor do que as partes, ainda que não se possa negar o poder individual da imagem em revelar a crueldade do campo de batalha, em que nem crianças são poupadas.
Além disso, a política da série se mostra mais clara, estabelecendo alianças e motivações críveis, oportunidades de amadurecimento da trama a partir dos conflitos apresentados e a certeza de que ainda haverá muito sangue derramado quando a série retornar para a já confirmada 3ª temporada.
Intrusion
2.5 197Este thriller é bem intencionado em como tentar atacar um câncer doméstico através da linguagem do mistério, mas não propõe nada além do óbvio enquanto faz isto.
A direção tenta estabelecer um diálogo com o cenário desértico a partir de planos externos em que a vastidão se torna opressiva, enquanto realça a opulência onde fora construída a mansão onde moram Freida Pinto e Logan Marshall-Green. Mas a beleza destas passagens ou o design de produção passam longe de socorrer os graves problemas desse roteiro.
A começar pelo mistério tacanha, que deve surpreender apenas quem nunca assistiu a nenhum filme antes. Depois, a tomada de decisões da protagonista é pra lá de inverossímil, em uma sucessão de trapalhadas que rivalizam sua trajetória com a investigação da polícia (ora, até parece que a construção de um marco arquitetônico como é esta casa não atrairia atenção, notícias e pistas, certo?).
As atuações não atrapalham, mas tampouco são boas o bastante para ajudar o mau desenvolvimento dos personagens - agora com spoilers -
e tapar o buraco da reviravolta tomada por somente um encanamento problemática e ainda por cima. Eu admiro como o roteiro se apropria do debate sobre misoginia, violência doméstica e sororidade, mas da forma como foi feito, era melhor não.
Primer
3.5 490 Assista AgoraO desejo de decodificar o cinema e entender minuciosamente tudo o que acontece na trama, para estabelecer qualquer relação emocional com a obra, ainda matará a arte e a transformará em mera equação. A complexidade inerente de Primer em atar bem firme os nós das linhas temporais é desafiadora para quem gosta de quebra-cabeças, mas só.
A compreensão integral do roteiro de Shane Carruth é insignificante para entender o que a narrativa revela quando dois amigos e sócios, Aaron e Abe, constroem uma máquina do tempo na garagem de casa, utilizando-a para voltar no tempo e faturar na bolsa de valores. É uma forma de serem recompensados do modo como acreditam merecer.
Pensado assim, Primer é uma narrativa universal do mundo capitalista em que a esmagadora maioria das pessoas não é retribuída, financeira ou moralmente. A universalidade também é expressa na ruptura entre os amigos, que enxergam a invenção como uma alternativa para obter resultados diferentes.
Quem domina a linha temporal, domina o tempo, commodity preciosa no mundo de hoje em que precisamos nos duplicar ou triplicar a fim de sermos produtivos. Com isto em mente e apenas 7 mil dólares no bolso, Shane Carruth criou uma narrativa que desafia a percepção e exige múltiplas revisitações. Não só para tentar decifrar os mistérios, mas para enxergar como uma amizade pode ser dissolvida diante da ganância e do controle. Uma consequência triste da sociedade que põe amigos para concorrer um contra o outro.
O Culpado
3.0 454 Assista AgoraO Culpado é mais sobre a trama, e sua reviravolta, do que sobre atmosfera de thriller; é mais sobre Joe, do que sobre o trabalho a que está designado. Estes elementos já colocam o filme noutra direção que o original dinamarquês de 2018, uma refilmagem de aparência, não de essência.
É até melhor que refilmagens tenham abordagens diferentes porque isto permite distinguir como o cinema americano se diferencia em razão de seu individualismo do cinema de boa parte do restante do mundo. Em O Culpado, a chamada de emergência serve de pano de fundo para que Joe entre em termos consigo mesmo, mais do que para enfatizar que mesmo um policial recriminável poderia fazer o bem na situação em que está.
Então, a direção de Antoine Fuqua (de Dia de Treinamento e O Protetor) encena o oposto do ofício de Joe: em vez de ajudar o próximo apesar de si mesmo, O Culpado é sobre ajudar a si a partir do próximo. Não estou fazendo juízo de qualidade com isto, apenas constatando como a mão norte-americana pode alterar um filme sem modificar significativamente a história.
Sim, a narrativa é eficiente e nervosa, ainda que óbvia ao contrapor Joe diante de persianas que o colocam na situação de prisioneiro. E tem uma atuação competente de Jake Gyllenhaal, embora a bombinha de asma seja um dos elementos que prejudica o desenvolvimento de seu personagem em razão do excesso. De toda forma, se você não conferiu o original, talvez curta mais.
Ted Lasso (2ª Temporada)
4.4 157Uma boa série é aquela que, apesar de percebermos seus clichês menos elogiosos ou elementos que inverossímeis, ainda mais para quem é do país do futebol, permanecemos envolvidos nas dores dos personagens, choramos suas lágrimas, torcemos por suas conquistas e comemoramos suas alegrias.
Com a primeira temporada, Ted Lasso conquistou todos aqueles ao seu lado e também nós, que passamos a enxergar aqueles personagens com as mesmas lentes bondosas, otimistas e generosas do personagem-título. Quando Jamie Tart tenta recomeçar, nossa desconfiança vai logo para o espaço porque Ted ensinou a gente a crer em mudanças.
Mas otimismo sozinho não conserta o mundo. E esta temporada, até mais do que a passada, proporciona mais momentos angustiantes e dolorosos. Se Ted começou a primeira temporada como comédia indecisa em se aventurar nos elementos dramático, agora os aceita como parte indissociável.
É que a série é um reflexo de Ted: na superfície, cômica, despojada. bonachona. Na essência, porém, reflexiva e introspectiva. Esta temporada proporciona episódios de leveza (como aquele inspirado em comédias românticas e o do natal), bem como há outros que acertam em cheio no drama, até na eleição de um antagonista improvável.
Claro, Ted ensinou que o antagonismo só existe porque ainda não se pôde acessar os caminhos certos da empatia. Então, desconfio que a cena final da temporada - que não precisaria ter aquela viradinha pra câmera com a quebra da quarta parede - é somente desculpa para uma correção de rumo ao estilo Ted Lasso. Com protagonistas cativantes igual ao personagem-título, esta série pode continuar por quantas temporadas quiser.
What If...? (1ª Temporada)
3.8 279 Assista AgoraSem depender, nem interferir com o universo cinematográfico e televisivo da Marvel, ao menos a primeira vista, What If...? tem a liberdade de jogar com as relações de causa e efeito. Com tal liberdade, a série animada devolve a empolgação, o maravilhamento até, que começou a estar carente nas produções do estúdio. Tudo isto dentro das regras do subgênero ou mesmo da lógica que rege os personagens. É uma subversão controlada, mas ainda assim uma subversão.
A subversão não está apenas na mudança do gênero do Capitão América, agora Capitã Carter, nem somente da identidade do Senhor das Estrelas, T'Challa, é maior do que isto. É como eventos aparentemente minúsculos podem desencadear alterações significativas na personalidade dos heróis. Tony Stark continua egocêntrico, mas ao não poder testar a própria vida, o narcisismo se torna maior do que o heroísmo. Sem desafiar a imaturidade, Thor permanece o garotão festeiro que encontramos no primeiro filme.
O prisma do multiverso, apresentado pelo Vigia, oferece possibilidades infinitas, e estas moldam personalidades como massas de modelar. Em alguns casos, apesar da duração curta dos episódios, existe o resgate de personagens mal aproveitados nos filmes. Como o caso de Ultron, cuja retratação termina por tornar ainda mais obsoleta aquela vista antes em Vingadores: Era de Ultron.
Não faltam emoção e tensão, nem mesmo oportunidades de rever personagens queridos em situações inusitadas, até mesmo como zumbis. Eu adorei, quase sem ressalvas, cada episódio.
Mr. Corman (1ª Temporada)
3.6 22São bastante comuns filmes ou séries protagonizados por homens, brancos, héteros e de classe média, mas infrequentes as produções que coloquem estes personagens em atrito com sua subjetividade, dentro de uma sociedade contemporânea em alteração profunda e em ritmo mais veloz do que acompanham. A ansiedade e a síndrome do pânico, meteoros em rota de colisão, sintomatizam a tentativa do Sr. Corman em se adequar e se adaptar a expectativas frustradas, a sonhos não concretizados, a relacionamentos frustrados porém não sem seu aprendizado.
Sr. Corman perdeu sua música e, nesta temporada não renovada pela Apple TV+, tem por objetivo reencontrá-la diante do cenário apocalíptico provocado pela pandemia do Covid-19 (que maximiza infinitamente a ansiedade do protagonista).
Criada, dirigida e protagonizada por Joseph Gordon-Levitt, a série é humana o bastante para sua simplicidade ser acolhedora. Sr. Corman deve perdoar-se, aprender a conviver com aqueles mais próximos - colega de quarto, mãe, pai - e tentar derrotar a ansiedade nesta cruzada. A partir de elementos associados ao cinema independente, o drama não advém de ações ou eventos, mas de emoções represadas, e a câmera na mão, instável, parece apropriada em se manter perto do protagonista e de seu estado psicológico.
Ficamos próximos dos sentimentos da mãe (Debra Winger), do pai (Hugo Weaving, que atuação imensa), de seu colega de quarto (Arturo Castro, que encabeça um dos melhores episódios), porque dentro da lógica de Joseph Gordon-Levitt, cada detalhe, cada indivíduo importa a ponto de merecer a ênfase da câmera. O drama de pessoas comuns é a matéria prima da série de que mais gostei, até agora, e de que me despeço com o sentimento de dever cumprido: algumas relações permanecem inconclusiva, mas sabemos que Corman conhecerá os meios para reencontrar sua música e enfrentar sua ansiedade.
João de Deus: Cura e Crime
3.6 96Esta minissérie retrata com excelência como a presença de João de Deus incentivou o turismo religioso e o desenvolvimento socioeconômico em Abadiânia, e com menos excelência a trajetória da nefasta figura título e os crimes que cometeu contra centenas de mulheres e até adolescentes e crianças.
Gosto de como a minissérie submete os fragmentos filmados na época ao juízo contemporâneo. Ou seja, vemos João de Deus pelo sujeito que era de verdade, não a figura que fingia ser. Isto permite ressignificar as imagens de arquivo: no olhar distanciado, alheio até, enxergamos a figura do predador correndo em busca da presa. Não existe mais a imagem do homem santo, só do monstro.
A minissérie recapitula a ascensão de João, dentro do cenário nacional e internacional, e logo abre a porta aos crimes de abuso sexual, que serão objeto dos episódios seguintes, inclusive com a participação de sobreviventes que se dispuseram a mostrar, ou não, o rosto e ceder a voz para que readquirissem o controle tomado por um ato inominável.
É importante que assistamos e escutemos o relato destas mulheres corajosas e a narrativa demonstra astúcia em continuar revelando a quantidade de pessoas que continuam cegas às maldades de João, inclusive aquelas que devoram a infâmia para obter uma notoriedade almejada. Se você tiver estômago forte, é uma minissérie documental breve e envolvente.
Guerra ao Terror
3.5 1,4K Assista AgoraKathryn Bigelow, neste jovem clássico vencedor do Oscar, estabeleceu regras narrativas e estilísticas que norteariam o cinema que retratasse a guerra do Iraque, o mais ilegítimo dos conflitos militares americanos desde que se aventurou nas selvas do Vietnã.
A diretora entendeu que a sujeira da guerra, política, moral e óbvia, exigiria uma abordagem idem. Assim, ao empregar múltiplas câmeras na mão articuladas pela montagem desorientadora, a encenação de Kathryn estabelece a ação no espaço e a movimentação incessante e caótica a fim de situar o espectador à certa distância, mas perto o bastante da psique do trio de soldados, que representam arquétipos da guerra contemporânea.
James, o protagonista de Jeremy Renner, é o xerife do velho oeste, ora deslocado a Bagdá, que atua de forma inconsequente e individualista a fim de cumprir sua missão. É o personagem mais gravemente ferido - do trio -, pois mal percebe que a guerra se tornou seu lar, afastando-o da vida doméstica, da família e de relações humanas significativas.
Ao estabelecer a estrutura em torno de esquetes em que James tenta desarmar as mais variadas bombas ou se posicionar dentro do campo de batalha, é como se a narrativa evidenciasse que só isto importa, de fato, na vida do personagem. Todo o restante pode subtraído, sem qualquer prejuízo. O desenvolvimento de James se faz em ação, não fora dela.
Essa estrutura favorece a construção da tensão crescente, de novo com méritos à montagem, enquanto tenta arrancar James da frieza racional que precisa se submeter para decidir qual fio cortar de um IED. Com elementos de ação e faroeste embutidos em uma narrativa de guerra, a diretora revisita o gênero e atribui-lhe significados antes não apresentados com esta mesma consistência.
Guerra ao Terror, cujo título em inglês significa Armário da Dor, é um retrato implacável e angustiante de mortes, em vida, de pessoas que param de funcionar como agentes da sociedade para se tornarem as peças substituíveis do exército americano ávido para lubrificar sua máquina de guerra com mais insumos humanos. Ainda que a diretora não milite contra ou a favor da guerra, James, Sanborn e Eldrige são provas cabais de seu posicionamento. É uma obra paradigmática e irrepreensível.
Ninguém Sai Vivo
2.4 201Existem muitos traumas que cercam a experiência de Ambar nos Estados Unidos: o sentimento de culpa por haver abandonado a mãe no leito de morte, a condição de imigrante em um país hostil que a deseja somente como mão de obra barata para serviços que os americanos não desejam realizar, a violência contra a mulher praticada por homens que têm seus interesses particulares. Quando a encontramos, Ambar tem dificuldade em renovar o período de aluguel porque não tem carteira de identidade e, para conseguir falsificar em que conste haver nascido no Texas (não em Ohio), precisa desembolsar 3 mil dólares. Isto a empurra a morar em uma pensão para mulheres, estranhamente comandada por um homem, onde começa a testemunhar eventos estranhos relacionados a um artefato latino.
O diretor Santiago Menghini, estreante em longas-metragens e que trabalhou em curtas-metragens e na supervisão de efeitos especiais, transforma a experiência de Ambar em um pesadelo sob a iluminação precária que oscila em circunstâncias bastantes específicas. Com a visibilidade comprometida com relação a parte do que acontece no escuro da pensão, Ambar tateia no escuro como também testa sorte em permanecer no país ilegalmente. Prova disto é depositar a fé em alguém que a trairá e impactará, negativamente, na chance minúscula que tem de usufruiu o idealista sonho americano. Ao menos o chefe da tecelaria onde trabalha é honesto por não esconder sua opressão diária.
Quem interpreta Ambar é a atriz mexicana Cristina Rodlo, com boas participações nas séries Muito Velho para Morrer Jovem e The Terror, além de na refilmagem Miss Bala. Cristina evita o caminho percorrido da protagonista indefesa e adota uma postura combativa, ainda que ausentes os recurso de combate. Ela não somente teme o inesperado, procura enxergá-lo como reflexo da própria situação, enquanto ainda barganha sua forma de sobreviver. Já Marc Menchaca, de The Ozark, tenta conferir dignidade ao antagonista, colocando-o como agente e refém de um sistema de opressão de que acredita não poder escapar, porque deve retribuir algo que recebeu no passado (mas não entro em maiores detalhes para evitar spoilers).
O filme é a segunda adaptação de uma obra literária de Adam Nevill - a anterior, O Ritual, também está disponível na Netfilx -, com o roteiro assinado por Jon Croker e Fernanda Coppel, que podem desconhecer a situação dos imigrantes e a (escassa, mas existente) rede de apoio, embora saibam como tornar macabro o que aparentava ser um terror-metáfora. Na literalidade chocante, o drama de Ambar se torna vívido e pungente, e também enigmático, em como corrige a passada e abre caminho à protagonista em uma terra que não é sua.
O Menino que Matou Meus Pais
3.0 516 Assista AgoraO diretor Maurício Eça se propôs a um exercício narrativo intrigante que inicia no cinema e termina no Direito. Isto porque, analisadas de forma individual as faces desta moeda (está mais para um dado), não existiria nada senão maniqueísmo: nesta face, o homem trabalhador, manipulado pela namorada a assassinar seus pais que o desabonam e o oprimiam dentro de parâmetros de riqueza; naquela face, a boa filha e estudante, corrompida pelo namorado em uma vida de torpeza até praticar um ato monstruoso.
Seria bastante frustrante assistir a um filme assim, não? Porém, com o contraponto da versão oposta, o que era maniqueísmo se torna uma opção estilística. Pois se estes filmes não funcionam de forma isolada, é apenas porque o crime que chocou o Brasil não aconteceria se não fosse a agência mútua de Suzana e Daniel. Veio o cinema e mimetizou isto.
Dividir para conquistar, dizia César; reunir versões e encontrar a verdade possível, é a missão do Direito. Ao abraçar esta proposta, Maurício Eça também desaguou na ciência jurídica em que cada acusado tentou, mal sucedidamente, eximir-se da responsabilidade. Ao estar ciente de que a versão de cada acusado é maniqueísta, o diretor pode brincar com este conceito de duplos, ciente de que a ficção inspirada em fatos não modificará a opinião pública sobre o caso, mas proporcionará uma visão maior sobre cinema.
Carla Díaz e Leonardo Bittencourt habilmente conciliam duas versões aparentemente irreconciliáveis, à primeira vista, graças a momentos em que percebemos a área cinza que os cerca: como o olhar de Daniel enquanto Suzana recebe seu carro. Além disto, ao oferecer versões de mesmos eventos, a narrativa explora o trabalho dificultoso do juiz, que nunca encontrará a verdade dos fatos, mas só a verdade que provas lhe permitem concluir. Não que estas versões trarão dúvidas sobre a autoria dos crimes, mas revelarão como Suzana e Daniel se pintaram ao mundo para tentar justificar o injustificável.
A Menina que Matou os Pais
3.1 680 Assista AgoraO diretor Maurício Eça se propôs a um exercício narrativo intrigante que inicia no cinema e termina no Direito. Isto porque, analisadas de forma individual as faces desta moeda (está mais para um dado), não existiria nada senão maniqueísmo: nesta face, o homem trabalhador, manipulado pela namorada a assassinar seus pais que o desabonam e o oprimiam dentro de parâmetros de riqueza; naquela face, a boa filha e estudante, corrompida pelo namorado em uma vida de torpeza até praticar um ato monstruoso.
Seria bastante frustrante assistir a um filme assim, não? Porém, com o contraponto da versão oposta, o que era maniqueísmo se torna uma opção estilística. Pois se estes filmes não funcionam de forma isolada, é apenas porque o crime que chocou o Brasil não aconteceria se não fosse a agência mútua de Suzana e Daniel. Veio o cinema e mimetizou isto.
Dividir para conquistar, dizia César; reunir versões e encontrar a verdade possível, é a missão do Direito. Ao abraçar esta proposta, Maurício Eça também desaguou na ciência jurídica em que cada acusado tentou, mal sucedidamente, eximir-se da responsabilidade. Ao estar ciente de que a versão de cada acusado é maniqueísta, o diretor pode brincar com este conceito de duplos, ciente de que a ficção inspirada em fatos não modificará a opinião pública sobre o caso, mas proporcionará uma visão maior sobre cinema.
Carla Díaz e Leonardo Bittencourt habilmente conciliam duas versões aparentemente irreconciliáveis, à primeira vista, graças a momentos em que percebemos a área cinza que os cerca: como o olhar de Daniel enquanto Suzana recebe seu carro. Além disto, ao oferecer versões de mesmos eventos, a narrativa explora o trabalho dificultoso do juiz, que nunca encontrará a verdade dos fatos, mas só a verdade que provas lhe permitem concluir. Não que estas versões trarão dúvidas sobre a autoria dos crimes, mas revelarão como Suzana e Daniel se pintaram ao mundo para tentar justificar o injustificável.
Ponto de Virada: 11/9 e a Guerra contra o Terror
4.3 39 Assista AgoraComo alguns documentários fizeram, Ponto de Virada se aproveitou do aniversário de 20 anos do atentado terrorista contra os Estados Unidos para discutir o impacto social, geopolítico e cultural do evento definidor dos primeiros anos deste século. Sua proposta é menos de investigar o atentado e mais de análise conjectural. Ou seja, Brian Knappenberger, o diretor, debruça-se sobre as consequências internas e externas pós o ato desde a decisão de declarar guerra contra uma organização terrorista até os eventos subsequentes em que as tropas americanas invadem o Iraque, sob o falso de pretexto de o país albergar armas de destruição em massa.
Os cinco episódios da minissérie mesclam a abordagem humanizada, em que agentes contestam ou confirmam as decisões geopolíticas tomadas pelo governo George Bush e depois Barack Obama e Donald Trump, ou vítimas lamentam a morte de entes queridos e recordam da tragédia, com a abordagem jornalística, mais preocupada em analisar documentos e fatos e chegar à verdade que estes revelarão. Com base nisto, a minissérie obriga a reflexão de quem saiu vitorioso da guerra ao terror, se os Estados Unidos ou Osama Bin Laden? Ainda mais considerada a quantidade de organizações terroristas que se proliferaram depois de o país ocupar e destruir cidades sem qualquer plano de saída nem de reconstrução do país em uma democracia funcional.
A minissérie é evidência, pela sua existência, de como os Estados Unidos ainda não aprenderam a lidar com o luto proveniente do ato terrorista e, no decorrer do processo, terminaram por se transformarem nos mesmos monstros que tentaram combater. Seus soldados até cortaram a cabeça da hidra, mas, igual à mitologia, logo outras nasceram no lugar, onde permanecem até hoje.
Nove Desconhecidos (1ª Temporada)
3.4 229 Assista AgoraQuem não apresentou sintomas de doenças psíquicas nos anos passados não está na sintonia do mundo: ansiedade, depressão, síndrome do pânico, síndrome do impostor, seja o que for, todos precisam de tratamento para se compatibilizarem com o ritmo da sociedade contemporânea e as exigências desta, e um resort bem heterodoxo é onde nove estranhos, assistidos por uma guru e sua equipe igualmente danificados, atravessam o purgatório das dores, frustrações e ressentimentos para emergirem pessoas melhores. Com todos estes sintomas no mesmo cozido interpretados por este elenco talentoso, não é difícil que Nove Desconhecido apresente-se como uma minissérie chamativa.
É também chamativo como, independente dos nomes no elenco ou na produção, a diferença entre remédio e veneno continua sendo a dose. E a desta minissérie é exagerada, especialmente nos episódios a partir dos quais o mistério em torno de Tranquillum é revelado, e importado na forma mais expressiva dos efeitos do tratamento na percepção dos personagens. Além disto, por mais que entremos em contato com os seus dramas, é curioso como a maioria dos personagens permanecem distantes de nós a ponto de o êxito, ou não, do tratamento deixar de ser relevante. Ou seja, não queremos que estes nove sejam curados, queremos apenas saber o mistério em torno das ameças de morte a Masha.
Ao invés de ser um mergulho na psiquê da pessoa contemporânea, a narrativa se torna um thriller de mistério. E não quero afirmar que não possa ser as duas coisas, somente que insiste mais neste último em detrimento daquele, sem que nenhum dos dois seja verdadeiramente satisfatório no fim. E, na tendência de gamificação da vida cotidiana, a narrativa é subdividida em fases, que são as etapas do tratamento, e, cada uma destas fases, com predileção a um ou dois personagens em detrimento do todo. Nem é que não tenha gostado da minissérie, mas simplesmente não decola além da zona de conforto, ainda mais com o pedigree do elenco, a temática contemporânea e as possibilidades de misturar tantos humores em uma panela de pressão.