O conto de fadas é uma narrativa descontextualizada do mundo em que vivemos hoje, mas céus, como este clássico é gostoso. Deve ser o misto de ingenuidade e literariedade trazidos por Rob Reiner. Ele sabe que seu filme, mesmo em 1987, estava perigosamente perto de ser datado, então aborda os seus personagens com um humor crítico e desconstruído sem perder a essência do jogo com príncipe, princesa plebeia, plebeu pirata, bem como o elemento afetivo e inocente do filme.
Rob Reiner também se dedica ao aspecto literário. Até poderia ir direto ao ponto da história, mas isto tiraria o charme de encaderná-la no interior de outra história: a de uma criança adoentada e viciada em videogames que recebe o avô, que o presenteia com o livro que havia lido para seu pai. O garoto não gosta das cenas em que o casal central se beija e prefere a aventura, e passamos a enxergar o mundo através do olhar imaginativo de uma criança, construído a partir da voz de seu avô. O conto de fadas é então um pacto maior do que entre só leitor e escritor, inclui a comunhão familiar e a experiência cinematográfica.
Dentro das páginas do conto de fadas, a fantasia é quente, cativante e se apoia em um quarteto de atores carismáticos. É o tipo de filme mais carente nos dias de hoje: o que oferece entretenimento, sem qualquer agenda adicional. Uma aventura fantástica objetiva. Sem símbolos ou metáforas, resta o amor verdadeiro e o momento entre avô e neto em torno do amor pelo contar histórias. Ao desligar o jogo, resta o mundo da imaginação fruto da literatura para onde escapam os que buscam sonhar.
Desde que estreou nos longas-metragens, Guy Ritchie descartou a abordagem convencional do cinema de gângster para adotar uma estrutura caracterizada por um mosaico de personagens e percursos narrativos concorrentes, complementares e entrecortados de forma caótica. Isto não é demérito. O caos de Ritchie é o reflexo da tomada decisória que, ao melhor estilo efeito borboleta, causa consequências indiretas até mais do que diretas. Em Infiltrado, as causas e os efeitos estão separados pelo tempo e Jason Statham é como o anjo vingador que se coloca como juiz e carrasco.
O que motiva este homem, o espectador se pergunta, enquanto as respostas vão sendo fornecidas e mais problemas apresentados à medida em que a narrativa anda para trás ou para os lados revelando facetas desconhecidas que resultaram no presente. Tudo é amarrado com bastante competência por Guy, que também assina o roteiro, e, ainda que não haja a aspereza de seus dois primeiros clássicos - Jogos Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch - Porcos e Diamantes -, há muitos motivos para permanecer imerso na narrativa.
A violência é um desses motivos, mas a expectativa por conclusões também. O diretor não decepciona em nenhuma destas dimensões. Jason Statham pode ser limitado a este tipo de personagem, mas o interpreta muitíssimo bem: confiamos na dor que o motiva e somos tragados pelo furacão de violência a que reage mais do que provoca. Já o elenco de apoio é certeiro, com destaque a Holt McCallany (de Mindhunter) e Scott Eastwood (filho do Clint), em mais um trabalho expressivo e envolvente de Guy Ritchie.
O que é um caubói sem chapéu, sela ou cavalo? A pergunta é a base para tentar compreender o dilema que atravessa Brady, que após um acidente no rodeio com sérias sequelas recebeu um ultimato: se você continuar montando cavalos, inevitavelmente terá um destino trágico. Depois de conhecer a história de Brady enquanto filmava seu primeiro filme, Chloé Zhao decidiu passar o verniz da ficção em cima do drama do caubói e chegou a esta meditação acerca do que é um homem sem propósito.
Ao lado de atores não profissionais que interpretam versões próximas mas não idênticas de si mesmos (ex. Lane Scott, o amigo de Brady, está de fato numa cadeira de rodas com limitação de mobilidade e comunicação MAS não por causa de um acidente de cavalo, e sim de carro), Chloé Zhao realizou um estudo de personagem, sociocultural sobre aquela comunidade marginalizada em um Estados Unidos bem diferente daquele a que nós estamos acostumados. Sem realizar juízo de valor, apenas observando o desenrolar da vida na Dacota do Sul, a diretora criou uma obra empática sobre pessoas cuja identidade está ameaçada em busca de um velho oeste bem diferente daquele por onde passeou John Wayne.
Mesmo sem ser profissional, Brady evidencia o dilema do personagem de forma clara. Ele está em estado vegetativo de forma consciente, ou um sonâmbulo sem aquilo que acredita definir sua personalidade. Ao menos tempo, vemos como lida com o pai, que o ama mas não sabe demonstrar, a irmã no espectro autista, os amigos que o incentivam a isto ou aquilo e os admiradores que lhe recordam do valor que crê não mais ter. A fotografia de Joshua James Richards, companheiro da diretora, é habilidoso em utilizar apenas a luz solar para estabelecer este mundo natural em que o homem é apenas um pequeno borrão na paisagem.
Afinal, dentre 8 bilhões de pessoas, o que poderia tornar especial a jornada de uma pessoa média em um dos estados mais pobres dos Estados Unidos? A resposta é fácil: uma direção sensível, poética e alérgica a sentimentalismo.
A diversidade é um caminho rápido para que as histórias agradáveis ou os clichês confortáveis a que estamos acostumados ganhem contornos que não esperávamos pelo mero fato de estarmos noutra realidade, que não aquela de nossas bolhas ou as que o cinema apresenta/ou repetidas vezes. Isto porque No Ritmo do Coração (que em inglês se chama CODA, acrônimo para filho/a de pais surdos) não altera a busca por um sonho, a jornada de amadurecimento e autodescoberta ou as relações familiares vistas em comédias dramáticas parecidas, mas ao situar isto em uma família de surdos (salvo a filha caçula), o filme consegue parecer inédito, mesmo não o sendo.
Ao menos inédito em execução, já que o filme é uma refilmagem do belga A Família Bélier. Não que isto diminua suas qualidades, pois os dramas apresentados são adaptados à realidade americana: ao invés de uma fazenda, os Rossi ganham a vida com a pesca, e daí já surgem muitas questões. Não apenas os Rossi são marginalizados e excluídos pelos pares ouvintes, como a própria atividade deles exige a presença de um destes para, por exemplo, responder aos chamados da guarda costeira. Quer dizer, a surdez exige um custo incremental à atividade que é inexistente aos ouvintes, um elemento constatado, não militado. Além disto, o próprio conflito central é admirável, pois Ruby é cantora em uma família que não pode escutar sua voz.
A poesia melancólica que existe aí provoca duas das melhores e mais emocionantes cenas deste ano, uma que envolve uma apresentação a partir do ponto de vista de seus pais e outra relacionada ao toque que aproxima dois mundos que habitam dentro de uma mesma família. É uma dramédia cativante, musical, honesta e respeitosa à comunidade surda ao evitar abordar seus personagens como se fossem indefesos.
Um dos melhores filmes do ano e a prova de que nem toda refilmagem precisa ser descartada.
O colégio de Moordale é uma espécie de utopia em que as pessoas conversam a respeito de seus problemas individuais (incluídos os de cunho identitário, sexual, existencial etc) e aprendem a ser melhores versões de si mesmos com o poder da honestidade. Não só a honestidade com os outros, mas sobretudo consigo mesmo. Em vez de resolver questões na base do acaso, da inspiração divina ou da declaração de amor eterno que remenda as dores só em um momento - como acontece na maioria das comédias adolescentes, sejam românticas ou não -, Sex Education investe no diálogo como a ponte para acessar o outro. É raro enxergar a defesa deste valor e melhor ver como isto rende uma temporada mais madura.
Faz sentido que seja assim, pois os tempos que vivemos são de guerra perpétua e terra arrasada, não de diplomacia e aproximação. É por isto que a vilã (“vilã” para ser sincero com a proposta da narrativa) é uma personagem cujo nome significa esperança (Hope) mas na realidade é a cara do retrocesso. Suas intenções podem soar nobres, em tentar tornar Moordale uma referência educacional, porém sua execução revela a forma míope com que tenta enfiar pessoas diferentes dentro de caixas. Uniformizá-los, impor-lhes uma conformidade a padrões estabelecidos e deseducar sexualmente é uma forma de retirar a subjetividade do indivíduo; não que os alunos não metam os pés pelas mãos, mas aí só estão agindo conforme suas idades.
Esta temporada é, talvez, a melhor, ao menos até os três episódios finais que sugerem estarmos assistindo à temporada final (a série já está renovada para a quarta), quando isto é provocado pela forma acelerada com que resolve a dúzia de conflitos introduzida. Não ajuda o fato de haver muitos personagens para conciliar, com alguns abandonados (Ruby), outros subdesenvolvidos (Isaac e até Hope, cujo humanização se resume a duas cenas). Faria até sentido se fosse a despedida da série, mas não é. Assim, o que me impediu de amar esta temporada foi a pressa adolescente que não me deixou curtir os momentos com a calma que deveriam ser apreciados. Ainda assim, melhor do que 99% da produção adolescente.
Eu sempre considerei a maior parte da franquia Velozes e Furiosos como bipolar e até então não havia encontrado a forma certa de me expressar. É que se a narrativa brinca com a suspensão de descrença de um modo fantasioso - muitas das vezes somente precisamos de um tico disto -, os personagens parecem existir dentro de um universo pretensioso, sisudo, em que dramas familiares sufocam onde deveria haver entretenimento.
Dá para perceber isso em como a duração dos filmes da série sempre parece ser maior do que precisariam, estrangulando sequências de ação mais e mais impressionantes entre um enfadonho blá blá blá que ouvimos não uma, nem duas, mas oito vezes a respeito da importância de família. No meio do caminho, mais personagens ressuscitados além de flashbacks que mais atrapalham por quebrarem o ritmo da narrativa para, só agora, no nono episódio, introduzir um personagem cuja importância seria, no mínimo, digna de uma menção honrosa nos filmes passados.
As cenas de ação empolgam, em especial aquela que acontece no clímax - já que a primeira termina de uma maneira mais absurda do que pilotar um carro no espaço. A partir de um dispositivo físico introduzido no roteiro e cujo funcionamento, confesso, desafiou as leis da física mais elementares a ponto de ninguém mais importar e somente curtir, a sequência do clímax é de uma escala e duração ambiciosas e que certamente exigiu meses de preparo, coordenação e execução milimétrica.
Entretanto não é essa sequência de ação, nem outras menores espalhadas na narrativa, que justifique 140 minutos enfadonhos, quando deveriam ser excitantes. Se o roteiro tomasse menos anabolizantes, talvez pudesse ser exatamente o divertimento que estávamos precisando.
Imagine a situação: seu cônjuge de quarenta e tantos anos, com doença de Alzheimer e institucionalizado em uma clínica especializada, esquece estar casada e se apaixona por outra pessoa. A dramaticidade é evidente mas evita se transformar uma dramalhão água com açúcar nas mãos da diretora Sarah Polley; em vez disto, é tema de um estudo da e a respeito da memória.
Enquanto Grant, o marido, é inundado pelas memórias do que viveu com a esposa Fiona, para ela estas memórias não persistiram. Assim, esquecer se torna a chave para viver no presente e recomeçar; para Grant, porém, é o martírio que o obriga a viver no passado enquanto espectador da felicidade de sua esposa. Além disso, os esqueletos guardados por Grant dentro do armário e o processo de deterioração da memória do adultério são as maneiras de libertação de Fiona das amarguras de um casamento imperfeito.
Sarah Polley traduz a contradição que o esquecimento representa de modo delicado e poético, sem abdicar de romantismo ou até mesmo de um conveniente senso de humor. Além disso, não esquece o senso de tragédia que é despedir-se, em vida, de sua esposa, mas também a oportunidade de renascimento que isto proporciona. Um despido das mágoas do passado, como um quadro em branco, como a neve.
Eu entendo a frustração de quem esperava que o documentário sobre Michael Schumacher trouxesse informações acerca do estado de saúde do piloto de fórmula 1 depois de um acidente tê-lo colocado em coma e posto um véu opaco sobre a situação. Mas há poesia nesta privacidade, pois é como se o documentário respeitasse a personalidade reservada do automobilista.
Dentro de sua proposta, este documentário é emocionante e edificante ao proporcionar um olhar na vida de um talento nato na direção em alta velocidade. Alguém arrojado a ponto de trapacear inconscientemente, quem sabe, para vencer a qualquer custo. Eu, ainda quando apaixonado por fórmula 1, tive meus sentimentos ambivalentes em torno de Michael: ora reconhecia sua genialidade, ora percebia a arrogância e desonestidade detrás da competitividade.
Ainda bem que este documentário não mudou este meu pensamento, mas tornou mais intrigante o personagem (muito além da ideia de um Dick Vigarista que era vendida nas manhãs da Globo aos domingos). O Schumacher do documentário é intenso, silencioso como humano e barulhento como piloto; é apaixonado e falível, e o trio de diretores encontra um obstáculo que se torna o núcleo do documentário, pois todos os heróis, por mais improváveis que sejam, precisam matar os dragões de suas histórias.
A frente da escuderia Ferrari, o piloto enfrentou seu maior obstáculo e ao encontrar aí o caminho para o clímax da narrativa, o documentário cria uma experiência empolgante e humanizada em retratar a vida e a carreira de uma lenda. Com omissões, é claro, mas, como filme que é, o documentário biográfico também tem seu recorte. Errados somos nós em criarmos expectativas.
É compreensível a pressa em comparar esta comédia dramática autobiográfica com O Diabo veste Prada a partir de semelhanças indiscutíveis: a relação entre a assistente sonhadora e a chefe; a presença de um o namorado que atrasa a jornada da heroína e de coadjuvantes no escritório que a apaziguam; mesmo uma visita inesperada na residência trabalha com o mesmo signo, a falta de maquiagem, a fim de tecer um comentário sobre aquelas mulheres poderosas. Contudo, se o Diabo veste Prada exibia a relação abusiva dentro da editora e de como Miranda era, ela própria, vítima de uma estrutura massacrante que a impedia até de estar com os filhos, Um Ano em Nova York é mais ameno, reconfortante até, por tratar da responsabilidade do autor para com aqueles tocados por sua obra.
Eu consigo visualizar o esforço do diretor Philippe Falardeau em evitar a comparação que pode até ter sido desejada pelos produtores, já que facilitaria vender o filme. A ambientação na Nova York dos anos 90 um tico antes da informatização do mercado editorial resgata o prazer pré internet da leitura e de sentir a textura dos livros, enquanto Margaret Qualley e Sigourney Weaver constroem uma relação bastante honesta de respeito mútuo, ainda que caracterizada por uma hierarquia e por um atrito geracional. Margaret não oprime Joanna, somente exerce o seu ofício da forma que conhece, algumas vezes mais dura, porém não desrespeitosa.
A narrativa é acolhedora e confortável, atributos que Joanna buscou em Nova York e encontrou de formas menos evidentes. É também poética, igual a protagonista, em como introduz as cartas não lidas mas não oferece conclusividade a elas senão no gesto inocente de Joanna. É uma forma de oferecer esta perspectiva sem falsear seu resultado, enquanto também proporciona uma viagem no tempo a esta Nova York da literatura e apresenta, agora com a devida atenção, o talento de Margaret Qualley.
É difícil manter um distanciamento emocional de uma aventura com que cresci e que devo ter visto uma dúzia de vezes, mas bastou Os Goonies chegar na Netflix, pá, eu precisava rever.
Acho até que serve para perceber como o cinema infantil contemporâneo tem involuído para a infantilização dos menores, já que o roteiro de Christopher Columbus (baseado em uma história de Steven Spielberg) não poupa a trupe de crianças desajustadas de trombar com cadáveres, de sofrer tortura psicológica diante de três bandidos inescrupulosos nem de estar em risco de morte a todo momento.
Hoje, Os Goonies é ainda mais relevante porque valoriza a amizade física, não virtual, a aventura, não a simulação dos videogames, e a coragem para que esta geração de heróis inesperados possa salvar seus pais da ameaça de despejo. De sua forma, o filme dirigido pelo saudoso Richard Donner celebra a busca pelo tesouro, que pode significar somente estar, por mais um dia, na companhia de amigos queridos.
A trilha sonora de John Williams também é um capricho, em um filme que reconhece a importância da amizade a frente da aventura. Até há poucas piadas que envelheceram mal, porém a ideia de que amigos não enxergam aparência, mas o coração, e de que o melhor sorriso é aquele dado com a pessoa, não às custas delas, fortalecem ainda mais um clássico do cinema de aventura juvenil como nunca antes visto.
Kate não é a primeira pessoa a ser envenenada e ter xis horas de vida antes de descobrir quem é o responsável.
Kate não é a primeira assassina profissional, na forma de um exército de uma mulher só, contra meio mundo de pessoas que querem matá-la.
Kate não é a primeira profissional que sofreu as consequências de ter sua regra de ouro, a única, desrespeitada.
Kate definitivamente não é original, nem mesmo surpreendente, mas é igual à protagonista: incrivelmente focado naquilo que é, de tal forma que compensa qualquer limitação decorrente da falta de ambição do projeto. Mary Elizabeth Winstead tem o vigor de uma jovem Sigourney Weaver, embora aqui não exiba o mesmo carisma.
As cenas de ação andam na linha de John Wick, com Kate eleita como a máquina de matar da vez, sob o pano de fundo de uma Tóquio néon e sem maiores diferenças em comparação com qualquer metrópole a noite.
Kate é um contracheque rápido para o elenco, especialmente Woody Harrelson, e um entretenimento enlatado que ocupa 100 minutos de um dia. Às vezes eu não sei nem o que dizer sobre um filme ou série que, por não inspirar nenhuma emoção genuína em mim, torna até sem propósito o que faço.
Eu costumo ter ressalvas com o gênero biográfico, ainda mais quando a personalidade biografada está viva e em atividade. Se o risco de parecer chapa branca é grande com personalidades falecidas, imagine se o biografado está sentado diante de você contando causos de sua vida? É claro que Miguel Faria Jr. não poderia evitar ser condescendente em sua entrevista com Chico Buarque, nem se aprofundar mais em assuntos sensíveis, mas este documentário parece encontrar uma outra forma de conquistar o espectador: ouvir Chico em sua própria voz.
É que Chico é apaixonante demais, e quando começa a recordar o passado e as histórias, muitas das vezes é transportado para elas e comunica isto a partir de emoção, sensibilidade e até gargalhadas. Viajamos desde a gênese de Chico na bossa nova, ao período da ditadura até os dias atuais, de um poeta mais protelador, mas não menos encantador. Chico enxerga o hoje sem pessimismo, nem romantismo: ele conversa sobre a música contemporânea, sobre o ofício de cantor, compositor e escritor, sobre a democracia, família, netos de forma franca.
Entreatos, Miguel Faria Jr. monta um cenário em que diversos artistas homenageiam Chico cantando suas composições: Péricles, Adriana Calcanhoto, ele próprio. É um documentário com objetivo único de homenagear, sem a intenção de investigar os cantos mais sombrios do artista. Ao trazer esta honestidade para primeiro plano, desarma quem queria criticar qualquer omissão e convida para curtir 2 horas na companhia de uma personalidade singular na história brasileira.
Quanto vale a vida de cada uma das milhares de vítimas, fatais ou que sofreram ferimentos físicos ou psicológicos, do 11 de setembro? Esta é a pergunta que procura responder o advogado Ken Feinberg, mestre especial do fundo indenizatório destas vítimas, enquanto desenvolve uma fórmula objetiva que satisfaça gregos e troianos e respeite as individualidades de cada situação. Seu trabalho é dificílimo, melhor dizendo impossível; entretanto, enxergar a situação com lentes humanas, em vez de burocráticas, este sim é um obstáculo superável.
Deste modo, este belo thriller dramático da diretora Sara Colangelo acerta em reproduzir o tédio burocrático a partir de cores de baixa saturação, sem vida, com um esverdeado misturado às cinzas que continuam a cair sobre a vida daquelas pessoas. Quanto vale? é um filme sobre o poder da escuta como forma de remediar situações irremediáveis; não é que Ken seja uma pessoa má, pelo contrário, só que não escuta as pessoas que mais precisam ser escutadas e delega isto a terceiros que, em razão deste processo, são transformados.
Esta história real que desconhecia sobre o 11 de setembro é, assim, uma exemplificação do poder do cinema quando toca o espectador que se abre ao inesperado. E tem ao menos 3 atuações dignas de nota: Michael Keaton, bastante a vontade em sua arrogância e mais ainda em sua humildade; Stanley Tucci, que se dispõe a ser a voz da razão; e Laura Benanti, que, por causa de um segundo de hesitação, antecipa ao espectador a revelação que saberemos a respeito de seu marido. São atuações poderosas em um drama que tenta colocar o espectador em condição de desconforto, a considerar como Sara posiciona a câmera, muitas das vezes cortando parte do rosto de Ken enquanto numa conversa.
Ao mesmo tempo, é também um drama que sabe transformar o ato de criar uma regulamentação em uma corrida eletrizante contra o tempo - a partir de 2 variáveis: o tempo restante e a quantidade de adesões ao fundo que precisa ser no mínimo 80%. Qualquer narrativa que faça do ato de legislar algo interessante e envolvente merece uma espiada, ainda mais quando a história fala tanto a respeito de humanidade.
Eu consigo somente imaginar a sensação que deve ser, para um diretor, ter uma liberdade criativa irrestrita para narrar a história que deseja, com o orçamento que precisa, independente de palpites e intervenções da produção e de qualquer dependência de bilheterias para validar seu trabalho. Depois de enriquecer o caixa da Warner com Invocação do Mal 1 e 2 e Aquaman, James Wan ganhou carta branca e orçamento significativo de U$ 40 milhões para realizar um giallo: um subgênero italiano, muito estilizado e violento, que misturava policial, thriller e terror e envolvia a caçada a um assassino em série cuja identidade era conservada em segredo até o clímax. Talvez não seja o filme que a Warner desejava produzir – imagino que quisessem um terror de casa mal assombrada –, mas é o filme que o terror precisava, até para evitar que caísse novamente na zona de conforto de anos anteriores.
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Durante os primeiros meses da pandemia, tentei reviver a minha infância quando assistia a programas infantis na manhã e passei a assistir a episódios de séries animadas. Isto foi meio ao acaso e começou com The Midnight Gospel. Aí emendei com BoJack Horseman e veio Ricky & Morty. Esta experiência fazia-me ansiar as manhãs, já que me policiava só para ver 1 episódio/dia, e dava algum sentido à insanidade que vivíamos/vivemos. Fui da filosofia à reflexão sobre depressão e autoajuda e parei numa anarquia niilista.
Como amo a lógica insana e libertina que rege as ações de Rick & Morty. São 20 minutos semanais que brincam com ciência e referências cinematográficas enquanto desprezam a vida e as relações familiares mais óbvias. A fundação da série está na anarquia, no caos e no acaso com que enxerga um personagem cujo conhecimento o torna divino, e por esta razão é capaz de enxergar a realidade a seu redor como algo sem muito sentido. Nem por isto deixa de expressar relações de afeto, como com o melhor amigo, Homem-Pássaro ou Morty.
A série continua a brincar com o próprio cânone de forma autorreferencial em episódios independentes ou inter-relacionados para empurrar a história adiante. Enquanto faz isto, sempre gargalho, reflito temas existenciais acerca de mortalidade, (in)finitude, propósito etc, e ainda levo na bagagem experiências em animação que não imaginaria possíveis quando era criança e assistia à TV Xuxa.
Da mesma forma ocorrida em Pantera Negra, com Shang-Chi a Marvel tem a responsabilidade em retratar uma cultura que, até então, nunca teve representatividade heroica dentro do cinema norte-americano. É ótimo que isto aconteça, embora Shang-Chi tropece em estereótipos parecidos que Xu Wenwu critica em certo momento. Eu vou explicar. Enquanto Pantera Negra conjugou etnicidade à tecnologia, Shang-Chi apenas repete os modos de representação chinesa, de Kung-Fu Panda até o recente Raya, O Último Dragão.
A Ta Lo da narrativa tem menos personalidade do que Wakanda. Salvo sua fauna exótica, não existe nada especial no design de produção que filmes melhores não tenham retratado com exuberância cultural e histórica. Sem este elemento cultural - que enriquecia uma jornada já batida com T'Challa -, a de Shaun/Shang-Chi é morna, requentada e simplória, com meia-dúzia de flashbacks que servem para engrossar um enredo com poucos encantos. Na realidade, o melhor do roteiro está em como se costura aos demais filmes da Marvel com o retorno de um certo personagem e diálogos divertidos ainda mais quando saem da boca de Awkwafina.
Na verdade, não há nada errado no desenrolar da narrativa, que segue à risca a jornada do herói - da fuga à relutância, do sacrifício à vitória -, nem também maiores virtudes. O kung-fu é competente, mas perto do que o cinema de Hong Kong já apresentou, parece uma versão China in Box americanizado pela direção de Destin Daniel Cretton (que nem experiência no assunto tem). Inclusive, tem as mensagens de biscoito da sorte, sobre mirar em algo ou aceitar seu destino como formas de estabelecer conflitos de seus personagens. O humor funciona, porém daquele jeito da Marvel, atenuando o que deveria ser tratado com maior seriedade, ainda mais tratando de criaturas que devoram as almas das pessoas.
Entretanto, mesmo mediano, Shang-Chi tem, arrisco dizer, um dos maiores acertos de um filme da Marvel: a escalação de Tony Leung como o "verdadeiro" Mandarim. É um ator que comunica facilmente qual o conflito do antagonista a partir de uma troca de olhares, sem empalidecer também nas cenas mais físicas. Tony trata esta fantasia com a mesma seriedade que faria com um romance dramático de Wong Kar Wai, com o desenvolvimento de um homem conflituoso, violento e amoroso a sua forma, que eleva não somente a narrativa - graças à ambição potencialmente destrutiva - , como a jornada de amadurecimento do filho.
A diretora Nadine Labaki chamou Cafarnaum (cidade bíblica onde Jesus realizou milagres mas também sinônimo de caos) de ativismo cinematográfico. Seu discurso não é da boca para fora, e mesmo que não seja capaz de alterar a realidade de Beirute, pode conscientizar a partir do poder da câmera de lançar luz em realidades desconfortáveis provocadas diretamente ou não por nossas ações e omissões. Dói ver pessoas, especialmente crianças, em situação de miséria, e Nadine, cineasta com interesse sociopolítico, tencionou seu inconformismo em uma construção poderosa dentro de uma realidade que parece a nossa.
Nadine inicia com o processo civil movido por Zain, um garoto preso de uns 12 anos, contra os pais por terem-no concebido neste mundo infeliz. É uma alegoria sobre a negligência paterna que passeia sobre perigosa linha que divide o olhar inocente, ainda que corrompido, de Zain do ponto de vista crítico de Nadine contra as instituições sociais elitistas - a um juiz é dado o poder de julgar condições indignas que jamais vivenciou - e as famílias tradicionais - que normalizam o casamento de uma garota que recém menstruou com um homem muito mais velho.
Cafarnaum é contraditório e precisa ser, pois não existem soluções fáceis à problemática discutida. Os pais não são culpados, somente vítimas de um mesmo sistema que os impede de enxergar adiante. Entretanto, são responsáveis, conjuntamente com o Estado que nem reconhece a existência de Zain (ele não tem certidão de nascimento). Não existir é uma expressão da invisibilidade daqueles que habitam a margem da sociedade, tidos por párias ou verdades inconvenientes, tendo no "super-herói", o Homem-Barata, uma metáfora vívida disto.
A intensidade da narrativa é ainda maior diante das opções estéticas de uma filmagem realista, com a câmera em punho no meio das ruas, sem iluminação artificial e mínima interferência na dinâmica daquele cenário. A montagem intensifica o sofrimento, coroado pela atuação de Zain Al Rafeea, ator não profissional descoberto por Nadine, e que teve melhor sorte que seu personagem, após ser reassentado com a família na Noruega.
Esta realidade ao estilo Cinderela, porém, é raridade diante do soco no estômago que é Cafarnaum.
Em certo momento da história dos filmes de casa mal assombrada, algum roteirista deve ter pensado que seria divertido brincar com a apreensão do espectador com terrores falsos ou inofensivos, tipo a chave do carro desaparecer e reaparecer ou a bolinha de tênis que estava embaixo da cama aparecer sobre esta.
Só que estamos em 2021. A experiência cinematográfica evoluiu com a linguagem do cinema e, mesmo assim, roteiros como o deste Mudança Mortal permanecem estanques. Eles apostam em subterfúgios bobos e que nem movem a história a frente, nem desenvolvem os personagens, nem produzem alguma forma de tensão.
(Ainda por cima estes sustos são imensos furos de roteiro que não fazem sentido após conhecermos qual a explicação dos fenômenos ocorridos na casa recém adquirida por um casal em crise após a esposa trair o marido).
O que seria um terror descartável, semelhante ao meme da família correndo feliz para morar em uma casa assombrada, fica ofensivo, quando o roteiro utiliza o fato de o marido não crer nos fenômenos testemunhados pela esposa como metáfora da perda de confiança após a traição. Pior, ainda responsabiliza a esposa adúltera pela situação - a partir da análise do que aconteceu antes -, enquanto passa o maior pano para o adultério do marido - relembre da visita feita pela protagonista à vendedora da casa.
É um terror que não aterroriza, com uma fotografia horrorosa (clara demais de dia; azulada demais a noite) e uma mentalidade do século XIX.
Apesar de a matéria prima da contação de histórias serem as pessoas, algumas narrativas parecem amar estar perto de gente de verdade. Se Dora permanece fechada dentro de si, Central do Brasil mostra qual o poder existe a partir do contato verdadeiro. Um que Dora nega àqueles cujas cartas entulha dentro de sua gaveta, até conhecer o jovem Josué.
A dinâmica entre Fernanda Montenegro e Vinícius de Oliveira é onde reside o coração desta fábula melancólica acerca da importância da mensagem, do mensageiro e da memória. Josué é a mensagem; Dora, a mensageira; enquanto isto, a memória é construída na estrada enquanto partem do Rio de Janeiro em direção à cidade onde mora o pai do garoto recém órfão de mãe. Dora desconfia do êxito da missão ou mesmo de seu propósito, mas como a carteira que aprende que é, não desiste de entregar a correspondência no destino certo.
Ao redor deles, rostos de pessoas que estariam invisíveis na multidão se não fosse o olhar gentil de Walter Salles, auxiliado pela fotografia calorosa do mestre Walter Carvalho. Cada marca de expressão, cada sorriso, cada fio de cabelo desgrenhado reforça as histórias que são aquilo que carregamos conosco no fim do dia. Histórias que se transformam em memórias. Memórias que aumentam o nosso amor pela vida.
Central do Brasil parece mais distante do que é. Como sociedade, além de não existirem mais notas de 1 real, também abdicamos da palavra escrita, do ato de escrever uma carta a quem amamos, do altruísmo de se entregar ao outro. As memórias se tornaram mais fugidias, pois as experiências também se tornaram descartáveis. Assim, este drama resgata o poder do agora e da construção de um laço indelével, enquanto revela, nas estradas e romarias, um Brasil desconhecido e a promessa de uma história que jamais será esquecida.
Eu entendo o sentimento de inconformismo leva Ray a partir numa cruzada de vingança de um homem sozinho contra a Big Pharma, o apelido dado às corporações do setor farmacêutico que, como corvos, vírus ou cânceres, enriquece a partir do infortúnio de milhares de famílias. Em vez de medicamentos e tratamento acessíveis, a garantia de que ou você morre da doença ou entra em falência. Assim, é até mais contemporâneo vingar-se de CEOs indiferentes do que da máfia russa ou japonesa, que ao menos ainda tinham algum código de honra.
Só que nem a melhor das intenções, nem cenas de ação honestas (ao menos até certo momento) e executadas com segurança compensam seu roteiro desastrado. Já começa com a suspensão de descrença em acreditar na premissa quase absurda, passeia pela trapalhice policial e termina em furos no roteiro inaceitáveis.
Da onde surgiu a retroescavadeira que fecha o túnel no jogo do bicho e como, dentro das circunstâncias apresentadas no filme, esse veículo poderia estar ali?
Como, em 2021, o FBI aceitaria a confissão de uma pessoa coagida com uma arma no pescoço? E como desapareceria o fato de que a pessoa responsável por homicídios pode viajar a vontade de avião?
Isto porque nem falei do elefante branco no meio da sala. Não, não é o Jason Momoa - que é um ator carismático como o estereótipo clássico do brutamontes com um bom coração -, nem Isabela Merced, a Dora a aventureira, nem o vilão que parece ter saído de algum filme de Jason Bourne, mas o tipo de reviravolta que tenta parecer espertalhona com uma montagem retrospectiva, toda cheia de si, que parece dizer com o sorrisinho cafajeste de canto de boca "viram, vocês não perceberam isso".
Justiça em Família tenta ser socialmente engajado e aparentar mais inteligente do que é, enquanto trapaceia o público - e o bom senso. Mas é só mais um filme de vingança esquecível e que não resiste a uma análise aprofundada, igual às relações entre política e empresas.
Eu admiro as superproduções que me colocam para pensar muito além das reflexões expositivas propostas no roteiro. Nesta comédia de ação, fala-se muito da importância do homem médio, de como o homem vira máquina e perde a liberdade dentro do sistema capitalista - que busca maximizar vendas a todo custo, nem que para isto engane os clientes e invista na violência como alternativa -, da mulher gamer, dos trolls etc. Mas de todas as reflexões, a que mais gostei é fruto de uma hipocrisia, e nem é uma má hipocrisia, é apenas regra do jogo.
Em certo instante, o personagem interpretado por Taika Waititi justifica qual a lógica de negócios da sua empresa: produzir somente aquilo que o público deseja. Bem, estamos falando do vilão, enquanto a dupla de programadores independentes que teve a criação roubada procura revolucionar a experiência dos games, a partir da proposição de um jogo original. Ou seja, o mesmo roteiro que apenas repete todo o blockbuster é ainda o que critica a falta de criatividade da indústria do cinema (a partir da metáfora dos games). O roteiro que defende os games não violentos em favor da observação dos NPCs é também um roteiro que aposta na violência como forma de ganhar experiência ou na resolução do clímax.
Free Guy não poderia ser a metáfora do game contemplativo, pois isto seria um fracasso de bilheteria colossal. Criticar a própria atitude que adota é o tipo de tiro no pé que apenas um diretor tão mergulhado na indústria faria. Shawn Levy não é um sujeito criativo; sua função é só de apontar a câmera e deixar Ryan Reynolds ser Ryan Reynolds, Jodie Comer conquistar aqueles não conquistados por Killing Eve, e deixar as boas sacadas do roteiro florescerem. Ele não é o diretor que tapará o buraco óbvio do roteiro, a ponto de exigir machadas em servidores quando um puxão na tomada resolveria.
Quer dizer que o filme não é divertido? Nunca! Eu ri e me empolguei, e ainda fiquei feliz em saber que parte do público-alvo do filme, os trolls gamers, são criticados de forma literal e escrachada (a forma como entendem). Mas não dá para amar um filme hipócrita, por mais que eu queira.
Filmes sobre amadurecimento costumam ser contados através de um prisma etário que distancia a direção da história contada. Por motivos óbvios dentro do cinema, não são jovens que contam acerca de seu amadurecimento, mas pessoas mais velhas que enxergam a transição sexual, emocional e psicológica da adolescência à idade adulta com o olhar nostálgico de quem já viveu, não de quem está vivendo.
Califórnia tem disto, mas tem também um olhar empático de Marina Person à juventude dos anos 80 (a sua), a partir de objetos de cena e canções representativas, mas que não sufocam o amadurecimento de Teca. A ênfase de Marina são os personagens; o mundo que os cerca individualiza aquela existência, mas os sentimentos que ressoam com intensidade. A inadequação com o próprio corpo, a dificuldade em ter a iniciação sexual, o silêncio em relação à doença do tio amado.
A cidade americana que dá nome ao filme é a metáfora do escapismo em direção ao local ideal, de uma utopia que, para Marina, vem ainda numa nostalgia. Uma época em que gravávamos fitas cassete para as pessoas que amávamos, em que escrever cartas e cartões postais era um ato de presença. Existe uma calorosidade que vem da paixão da direção pela história e passa à relação dos personagens e nossa com eles.
A direção tem, na profundidade de campo rasa, a ideia de isolamento e de que o amadurecimento é no tempo de cada. Já a câmera na mão revela a instabilidade emocional típica daquele período da vida. Além disto, Clara Gallo, Caio Horowicz e Caio Blat oferecem atuações mais naturalistas de personagens que vivem dramas próximos dos nossos. É um filme sobre amar o processo de transformação, não é a toa que inicia e termina com o plano-detalhe do olhar de uma adolescente e termina com o de uma mulher.
Steven Soderbergh não inventa a roda no gênero do crime, mas ele certamente dá uma sacudida aqui e acolá enquanto transporte seus espectadores para o cinema noir que era feito nos anos 30, 40 e 50. Ninguém poderia confiar em ninguém. A ganância costumava ser o pecado mais capital, depois da confiança. E você poderia usar uma reviravolta no roteiro que colocasse tudo em perspectiva, ou não.
Depois que você se acostuma com o formato anamórfico, em que a imagem é comprimida para caber dentro de um quadro definido, no motivo de haver tantas deformidades nos cantos da tela - que após algum tempo acabam ficando mais charmosas -, Nenhum Passo em Falso é uma delícia de assistir. Muito por conta de seu superelenco, com Don Cheadle em um papel que seria inimaginável na Hollywood daquele período, Benício Del Toro, David Harbour, Jon Hamm, Brendan Fraser - que engordou para estrelar o novo filme de Darren Aronofsky - e uma participação especial caprichadíssima.
Caprichosa também é a fotografia, e Steven Soderbergh (sob o pseudônimo Peter Andrews) estabelece uma linguagem visual apaixonante. Os contrastes entre claro e escuro sempre ditaram a tônica deste gênero, mas agora, com cores expressivas, parecem ainda mais marcantes. A luz justificada de abajures e afins cria uma espécie de âncora onde podemos repousar nossos olhares enquanto o elenco permanece nas sombras, onde suas intenções são melhor mascaradas e dissimuladas.
É difícil confiar em alguém e é por isto que a resolução da narrativa reside neste elo que une duas pessoas num mundo preparado para apunhalá-los pelas costas. Claro que, entre traições e reviravoltas, é difícil saber quem está enganando quem, o que mantém o espectador alerta por esta viagem ao cinema clássico nos dias de hoje.
Como amadurecer cercado pelos espinhos de um padrasto abusivo? Esta adaptação da autobiografia escrita por Tobias Wolff não coloca açúcar num relacionamento abusivo, nem se revela condescendente consigo mesmo. O roteiro adaptado retrata um homem em harmonia com o adolescente que um dia foi: sensível, apesar de desordeiro ou mesmo trapaceiro; consciente em reconhecer não poder medir força com o padrasto, Dwight, embora até se esforce em tentar estabelecer alguma relação com alguém mesquinho, rancoroso, preconceituoso e violento.
A narração de Leonardo DiCaprio, ao invés de um ator na idade adulta, confere a ideia de presente a uma história sobre o ontem e todas as experiências, boas ou ruins, que maturam um adolescente no homem que será. E se o autor das memórias não se enxergava como santo ou vítima, Leonardo DiCaprio não ousaria fazer isto. Apesar de ser doce e carinhoso com a mãe, Toby julga-a, normalmente pelo olhar, em razão das decisões que os colocaram no caminho de Dwight. Ele sabe que a mãe é vítima, mas isto não o impede de demonstrar ressentimento, na forma que adolescentes melhor fazem.
Sua mãe, Ellen Barkin, também está numa jornada de amadurecimento na idade adulta. Carolina, em meados dos anos 50, deve abandonar a dependência da figura masculina e a vida doméstica, e ser livre de acordo com seus próprios termos. Pior, deve se livrar do lar abusivo onde está, habitado por um homem que, nas entrelinhas, revela suas inadequações consigo mesmo. E Robert De Niro evita que Dwight só seja um vilão unidimensional, transformando-o neste poço de mágoa de si próprio. Um valentão que se troca com um adolescente e revive na memória brigas que afirmariam sua condição de alfa, mas de fato evidenciam a masculinidade frágil de um homem com problemas com sua sexualidade e mesmo sua insignificância moral.
Gosto da direção de Michael Caton Jones e de como deixar os atores livres para encontrar momentos emocionais e significativos. E, para quem gosta de estudar o amadurecimento da sociedade e do cinema em relação a temas sociais, este filme conjuga três épocas em uma: a década de 50, quando o filme é ambientado, a década de 90, quando já havia conquistas sociais, e os dias de hoje. O resultado é revelador.
A Princesa Prometida
3.7 328 Assista AgoraO conto de fadas é uma narrativa descontextualizada do mundo em que vivemos hoje, mas céus, como este clássico é gostoso. Deve ser o misto de ingenuidade e literariedade trazidos por Rob Reiner. Ele sabe que seu filme, mesmo em 1987, estava perigosamente perto de ser datado, então aborda os seus personagens com um humor crítico e desconstruído sem perder a essência do jogo com príncipe, princesa plebeia, plebeu pirata, bem como o elemento afetivo e inocente do filme.
Rob Reiner também se dedica ao aspecto literário. Até poderia ir direto ao ponto da história, mas isto tiraria o charme de encaderná-la no interior de outra história: a de uma criança adoentada e viciada em videogames que recebe o avô, que o presenteia com o livro que havia lido para seu pai. O garoto não gosta das cenas em que o casal central se beija e prefere a aventura, e passamos a enxergar o mundo através do olhar imaginativo de uma criança, construído a partir da voz de seu avô. O conto de fadas é então um pacto maior do que entre só leitor e escritor, inclui a comunhão familiar e a experiência cinematográfica.
Dentro das páginas do conto de fadas, a fantasia é quente, cativante e se apoia em um quarteto de atores carismáticos. É o tipo de filme mais carente nos dias de hoje: o que oferece entretenimento, sem qualquer agenda adicional. Uma aventura fantástica objetiva. Sem símbolos ou metáforas, resta o amor verdadeiro e o momento entre avô e neto em torno do amor pelo contar histórias. Ao desligar o jogo, resta o mundo da imaginação fruto da literatura para onde escapam os que buscam sonhar.
Infiltrado
3.6 319 Assista AgoraDesde que estreou nos longas-metragens, Guy Ritchie descartou a abordagem convencional do cinema de gângster para adotar uma estrutura caracterizada por um mosaico de personagens e percursos narrativos concorrentes, complementares e entrecortados de forma caótica. Isto não é demérito. O caos de Ritchie é o reflexo da tomada decisória que, ao melhor estilo efeito borboleta, causa consequências indiretas até mais do que diretas. Em Infiltrado, as causas e os efeitos estão separados pelo tempo e Jason Statham é como o anjo vingador que se coloca como juiz e carrasco.
O que motiva este homem, o espectador se pergunta, enquanto as respostas vão sendo fornecidas e mais problemas apresentados à medida em que a narrativa anda para trás ou para os lados revelando facetas desconhecidas que resultaram no presente. Tudo é amarrado com bastante competência por Guy, que também assina o roteiro, e, ainda que não haja a aspereza de seus dois primeiros clássicos - Jogos Trapaças e Dois Canos Fumegantes e Snatch - Porcos e Diamantes -, há muitos motivos para permanecer imerso na narrativa.
A violência é um desses motivos, mas a expectativa por conclusões também. O diretor não decepciona em nenhuma destas dimensões. Jason Statham pode ser limitado a este tipo de personagem, mas o interpreta muitíssimo bem: confiamos na dor que o motiva e somos tragados pelo furacão de violência a que reage mais do que provoca. Já o elenco de apoio é certeiro, com destaque a Holt McCallany (de Mindhunter) e Scott Eastwood (filho do Clint), em mais um trabalho expressivo e envolvente de Guy Ritchie.
Domando o Destino
3.8 78 Assista AgoraO que é um caubói sem chapéu, sela ou cavalo? A pergunta é a base para tentar compreender o dilema que atravessa Brady, que após um acidente no rodeio com sérias sequelas recebeu um ultimato: se você continuar montando cavalos, inevitavelmente terá um destino trágico. Depois de conhecer a história de Brady enquanto filmava seu primeiro filme, Chloé Zhao decidiu passar o verniz da ficção em cima do drama do caubói e chegou a esta meditação acerca do que é um homem sem propósito.
Ao lado de atores não profissionais que interpretam versões próximas mas não idênticas de si mesmos (ex. Lane Scott, o amigo de Brady, está de fato numa cadeira de rodas com limitação de mobilidade e comunicação MAS não por causa de um acidente de cavalo, e sim de carro), Chloé Zhao realizou um estudo de personagem, sociocultural sobre aquela comunidade marginalizada em um Estados Unidos bem diferente daquele a que nós estamos acostumados. Sem realizar juízo de valor, apenas observando o desenrolar da vida na Dacota do Sul, a diretora criou uma obra empática sobre pessoas cuja identidade está ameaçada em busca de um velho oeste bem diferente daquele por onde passeou John Wayne.
Mesmo sem ser profissional, Brady evidencia o dilema do personagem de forma clara. Ele está em estado vegetativo de forma consciente, ou um sonâmbulo sem aquilo que acredita definir sua personalidade. Ao menos tempo, vemos como lida com o pai, que o ama mas não sabe demonstrar, a irmã no espectro autista, os amigos que o incentivam a isto ou aquilo e os admiradores que lhe recordam do valor que crê não mais ter. A fotografia de Joshua James Richards, companheiro da diretora, é habilidoso em utilizar apenas a luz solar para estabelecer este mundo natural em que o homem é apenas um pequeno borrão na paisagem.
Afinal, dentre 8 bilhões de pessoas, o que poderia tornar especial a jornada de uma pessoa média em um dos estados mais pobres dos Estados Unidos? A resposta é fácil: uma direção sensível, poética e alérgica a sentimentalismo.
No Ritmo do Coração
4.1 754 Assista AgoraA diversidade é um caminho rápido para que as histórias agradáveis ou os clichês confortáveis a que estamos acostumados ganhem contornos que não esperávamos pelo mero fato de estarmos noutra realidade, que não aquela de nossas bolhas ou as que o cinema apresenta/ou repetidas vezes. Isto porque No Ritmo do Coração (que em inglês se chama CODA, acrônimo para filho/a de pais surdos) não altera a busca por um sonho, a jornada de amadurecimento e autodescoberta ou as relações familiares vistas em comédias dramáticas parecidas, mas ao situar isto em uma família de surdos (salvo a filha caçula), o filme consegue parecer inédito, mesmo não o sendo.
Ao menos inédito em execução, já que o filme é uma refilmagem do belga A Família Bélier. Não que isto diminua suas qualidades, pois os dramas apresentados são adaptados à realidade americana: ao invés de uma fazenda, os Rossi ganham a vida com a pesca, e daí já surgem muitas questões. Não apenas os Rossi são marginalizados e excluídos pelos pares ouvintes, como a própria atividade deles exige a presença de um destes para, por exemplo, responder aos chamados da guarda costeira. Quer dizer, a surdez exige um custo incremental à atividade que é inexistente aos ouvintes, um elemento constatado, não militado. Além disto, o próprio conflito central é admirável, pois Ruby é cantora em uma família que não pode escutar sua voz.
A poesia melancólica que existe aí provoca duas das melhores e mais emocionantes cenas deste ano, uma que envolve uma apresentação a partir do ponto de vista de seus pais e outra relacionada ao toque que aproxima dois mundos que habitam dentro de uma mesma família. É uma dramédia cativante, musical, honesta e respeitosa à comunidade surda ao evitar abordar seus personagens como se fossem indefesos.
Um dos melhores filmes do ano e a prova de que nem toda refilmagem precisa ser descartada.
Sex Education (3ª Temporada)
4.3 431 Assista AgoraO colégio de Moordale é uma espécie de utopia em que as pessoas conversam a respeito de seus problemas individuais (incluídos os de cunho identitário, sexual, existencial etc) e aprendem a ser melhores versões de si mesmos com o poder da honestidade. Não só a honestidade com os outros, mas sobretudo consigo mesmo. Em vez de resolver questões na base do acaso, da inspiração divina ou da declaração de amor eterno que remenda as dores só em um momento - como acontece na maioria das comédias adolescentes, sejam românticas ou não -, Sex Education investe no diálogo como a ponte para acessar o outro. É raro enxergar a defesa deste valor e melhor ver como isto rende uma temporada mais madura.
Faz sentido que seja assim, pois os tempos que vivemos são de guerra perpétua e terra arrasada, não de diplomacia e aproximação. É por isto que a vilã (“vilã” para ser sincero com a proposta da narrativa) é uma personagem cujo nome significa esperança (Hope) mas na realidade é a cara do retrocesso. Suas intenções podem soar nobres, em tentar tornar Moordale uma referência educacional, porém sua execução revela a forma míope com que tenta enfiar pessoas diferentes dentro de caixas. Uniformizá-los, impor-lhes uma conformidade a padrões estabelecidos e deseducar sexualmente é uma forma de retirar a subjetividade do indivíduo; não que os alunos não metam os pés pelas mãos, mas aí só estão agindo conforme suas idades.
Esta temporada é, talvez, a melhor, ao menos até os três episódios finais que sugerem estarmos assistindo à temporada final (a série já está renovada para a quarta), quando isto é provocado pela forma acelerada com que resolve a dúzia de conflitos introduzida. Não ajuda o fato de haver muitos personagens para conciliar, com alguns abandonados (Ruby), outros subdesenvolvidos (Isaac e até Hope, cujo humanização se resume a duas cenas). Faria até sentido se fosse a despedida da série, mas não é. Assim, o que me impediu de amar esta temporada foi a pressa adolescente que não me deixou curtir os momentos com a calma que deveriam ser apreciados. Ainda assim, melhor do que 99% da produção adolescente.
Velozes e Furiosos 9
2.8 413 Assista AgoraEu sempre considerei a maior parte da franquia Velozes e Furiosos como bipolar e até então não havia encontrado a forma certa de me expressar. É que se a narrativa brinca com a suspensão de descrença de um modo fantasioso - muitas das vezes somente precisamos de um tico disto -, os personagens parecem existir dentro de um universo pretensioso, sisudo, em que dramas familiares sufocam onde deveria haver entretenimento.
Dá para perceber isso em como a duração dos filmes da série sempre parece ser maior do que precisariam, estrangulando sequências de ação mais e mais impressionantes entre um enfadonho blá blá blá que ouvimos não uma, nem duas, mas oito vezes a respeito da importância de família. No meio do caminho, mais personagens ressuscitados além de flashbacks que mais atrapalham por quebrarem o ritmo da narrativa para, só agora, no nono episódio, introduzir um personagem cuja importância seria, no mínimo, digna de uma menção honrosa nos filmes passados.
As cenas de ação empolgam, em especial aquela que acontece no clímax - já que a primeira termina de uma maneira mais absurda do que pilotar um carro no espaço. A partir de um dispositivo físico introduzido no roteiro e cujo funcionamento, confesso, desafiou as leis da física mais elementares a ponto de ninguém mais importar e somente curtir, a sequência do clímax é de uma escala e duração ambiciosas e que certamente exigiu meses de preparo, coordenação e execução milimétrica.
Entretanto não é essa sequência de ação, nem outras menores espalhadas na narrativa, que justifique 140 minutos enfadonhos, quando deveriam ser excitantes. Se o roteiro tomasse menos anabolizantes, talvez pudesse ser exatamente o divertimento que estávamos precisando.
Longe Dela
3.9 133Imagine a situação: seu cônjuge de quarenta e tantos anos, com doença de Alzheimer e institucionalizado em uma clínica especializada, esquece estar casada e se apaixona por outra pessoa. A dramaticidade é evidente mas evita se transformar uma dramalhão água com açúcar nas mãos da diretora Sarah Polley; em vez disto, é tema de um estudo da e a respeito da memória.
Enquanto Grant, o marido, é inundado pelas memórias do que viveu com a esposa Fiona, para ela estas memórias não persistiram. Assim, esquecer se torna a chave para viver no presente e recomeçar; para Grant, porém, é o martírio que o obriga a viver no passado enquanto espectador da felicidade de sua esposa. Além disso, os esqueletos guardados por Grant dentro do armário e o processo de deterioração da memória do adultério são as maneiras de libertação de Fiona das amarguras de um casamento imperfeito.
Sarah Polley traduz a contradição que o esquecimento representa de modo delicado e poético, sem abdicar de romantismo ou até mesmo de um conveniente senso de humor. Além disso, não esquece o senso de tragédia que é despedir-se, em vida, de sua esposa, mas também a oportunidade de renascimento que isto proporciona. Um despido das mágoas do passado, como um quadro em branco, como a neve.
Schumacher
3.8 70Eu entendo a frustração de quem esperava que o documentário sobre Michael Schumacher trouxesse informações acerca do estado de saúde do piloto de fórmula 1 depois de um acidente tê-lo colocado em coma e posto um véu opaco sobre a situação. Mas há poesia nesta privacidade, pois é como se o documentário respeitasse a personalidade reservada do automobilista.
Dentro de sua proposta, este documentário é emocionante e edificante ao proporcionar um olhar na vida de um talento nato na direção em alta velocidade. Alguém arrojado a ponto de trapacear inconscientemente, quem sabe, para vencer a qualquer custo. Eu, ainda quando apaixonado por fórmula 1, tive meus sentimentos ambivalentes em torno de Michael: ora reconhecia sua genialidade, ora percebia a arrogância e desonestidade detrás da competitividade.
Ainda bem que este documentário não mudou este meu pensamento, mas tornou mais intrigante o personagem (muito além da ideia de um Dick Vigarista que era vendida nas manhãs da Globo aos domingos). O Schumacher do documentário é intenso, silencioso como humano e barulhento como piloto; é apaixonado e falível, e o trio de diretores encontra um obstáculo que se torna o núcleo do documentário, pois todos os heróis, por mais improváveis que sejam, precisam matar os dragões de suas histórias.
A frente da escuderia Ferrari, o piloto enfrentou seu maior obstáculo e ao encontrar aí o caminho para o clímax da narrativa, o documentário cria uma experiência empolgante e humanizada em retratar a vida e a carreira de uma lenda. Com omissões, é claro, mas, como filme que é, o documentário biográfico também tem seu recorte. Errados somos nós em criarmos expectativas.
Um Ano em Nova York
3.4 29É compreensível a pressa em comparar esta comédia dramática autobiográfica com O Diabo veste Prada a partir de semelhanças indiscutíveis: a relação entre a assistente sonhadora e a chefe; a presença de um o namorado que atrasa a jornada da heroína e de coadjuvantes no escritório que a apaziguam; mesmo uma visita inesperada na residência trabalha com o mesmo signo, a falta de maquiagem, a fim de tecer um comentário sobre aquelas mulheres poderosas. Contudo, se o Diabo veste Prada exibia a relação abusiva dentro da editora e de como Miranda era, ela própria, vítima de uma estrutura massacrante que a impedia até de estar com os filhos, Um Ano em Nova York é mais ameno, reconfortante até, por tratar da responsabilidade do autor para com aqueles tocados por sua obra.
Eu consigo visualizar o esforço do diretor Philippe Falardeau em evitar a comparação que pode até ter sido desejada pelos produtores, já que facilitaria vender o filme. A ambientação na Nova York dos anos 90 um tico antes da informatização do mercado editorial resgata o prazer pré internet da leitura e de sentir a textura dos livros, enquanto Margaret Qualley e Sigourney Weaver constroem uma relação bastante honesta de respeito mútuo, ainda que caracterizada por uma hierarquia e por um atrito geracional. Margaret não oprime Joanna, somente exerce o seu ofício da forma que conhece, algumas vezes mais dura, porém não desrespeitosa.
A narrativa é acolhedora e confortável, atributos que Joanna buscou em Nova York e encontrou de formas menos evidentes. É também poética, igual a protagonista, em como introduz as cartas não lidas mas não oferece conclusividade a elas senão no gesto inocente de Joanna. É uma forma de oferecer esta perspectiva sem falsear seu resultado, enquanto também proporciona uma viagem no tempo a esta Nova York da literatura e apresenta, agora com a devida atenção, o talento de Margaret Qualley.
Os Goonies
4.1 1,3K Assista AgoraÉ difícil manter um distanciamento emocional de uma aventura com que cresci e que devo ter visto uma dúzia de vezes, mas bastou Os Goonies chegar na Netflix, pá, eu precisava rever.
Acho até que serve para perceber como o cinema infantil contemporâneo tem involuído para a infantilização dos menores, já que o roteiro de Christopher Columbus (baseado em uma história de Steven Spielberg) não poupa a trupe de crianças desajustadas de trombar com cadáveres, de sofrer tortura psicológica diante de três bandidos inescrupulosos nem de estar em risco de morte a todo momento.
Hoje, Os Goonies é ainda mais relevante porque valoriza a amizade física, não virtual, a aventura, não a simulação dos videogames, e a coragem para que esta geração de heróis inesperados possa salvar seus pais da ameaça de despejo. De sua forma, o filme dirigido pelo saudoso Richard Donner celebra a busca pelo tesouro, que pode significar somente estar, por mais um dia, na companhia de amigos queridos.
A trilha sonora de John Williams também é um capricho, em um filme que reconhece a importância da amizade a frente da aventura. Até há poucas piadas que envelheceram mal, porém a ideia de que amigos não enxergam aparência, mas o coração, e de que o melhor sorriso é aquele dado com a pessoa, não às custas delas, fortalecem ainda mais um clássico do cinema de aventura juvenil como nunca antes visto.
Kate
3.3 301 Assista AgoraKate não é a primeira pessoa a ser envenenada e ter xis horas de vida antes de descobrir quem é o responsável.
Kate não é a primeira assassina profissional, na forma de um exército de uma mulher só, contra meio mundo de pessoas que querem matá-la.
Kate não é a primeira profissional que sofreu as consequências de ter sua regra de ouro, a única, desrespeitada.
Kate definitivamente não é original, nem mesmo surpreendente, mas é igual à protagonista: incrivelmente focado naquilo que é, de tal forma que compensa qualquer limitação decorrente da falta de ambição do projeto. Mary Elizabeth Winstead tem o vigor de uma jovem Sigourney Weaver, embora aqui não exiba o mesmo carisma.
As cenas de ação andam na linha de John Wick, com Kate eleita como a máquina de matar da vez, sob o pano de fundo de uma Tóquio néon e sem maiores diferenças em comparação com qualquer metrópole a noite.
Kate é um contracheque rápido para o elenco, especialmente Woody Harrelson, e um entretenimento enlatado que ocupa 100 minutos de um dia. Às vezes eu não sei nem o que dizer sobre um filme ou série que, por não inspirar nenhuma emoção genuína em mim, torna até sem propósito o que faço.
Chico: Artista Brasileiro
4.3 85Eu costumo ter ressalvas com o gênero biográfico, ainda mais quando a personalidade biografada está viva e em atividade. Se o risco de parecer chapa branca é grande com personalidades falecidas, imagine se o biografado está sentado diante de você contando causos de sua vida? É claro que Miguel Faria Jr. não poderia evitar ser condescendente em sua entrevista com Chico Buarque, nem se aprofundar mais em assuntos sensíveis, mas este documentário parece encontrar uma outra forma de conquistar o espectador: ouvir Chico em sua própria voz.
É que Chico é apaixonante demais, e quando começa a recordar o passado e as histórias, muitas das vezes é transportado para elas e comunica isto a partir de emoção, sensibilidade e até gargalhadas. Viajamos desde a gênese de Chico na bossa nova, ao período da ditadura até os dias atuais, de um poeta mais protelador, mas não menos encantador. Chico enxerga o hoje sem pessimismo, nem romantismo: ele conversa sobre a música contemporânea, sobre o ofício de cantor, compositor e escritor, sobre a democracia, família, netos de forma franca.
Entreatos, Miguel Faria Jr. monta um cenário em que diversos artistas homenageiam Chico cantando suas composições: Péricles, Adriana Calcanhoto, ele próprio. É um documentário com objetivo único de homenagear, sem a intenção de investigar os cantos mais sombrios do artista. Ao trazer esta honestidade para primeiro plano, desarma quem queria criticar qualquer omissão e convida para curtir 2 horas na companhia de uma personalidade singular na história brasileira.
Quanto Vale?
3.5 50 Assista AgoraQuanto vale a vida de cada uma das milhares de vítimas, fatais ou que sofreram ferimentos físicos ou psicológicos, do 11 de setembro? Esta é a pergunta que procura responder o advogado Ken Feinberg, mestre especial do fundo indenizatório destas vítimas, enquanto desenvolve uma fórmula objetiva que satisfaça gregos e troianos e respeite as individualidades de cada situação. Seu trabalho é dificílimo, melhor dizendo impossível; entretanto, enxergar a situação com lentes humanas, em vez de burocráticas, este sim é um obstáculo superável.
Deste modo, este belo thriller dramático da diretora Sara Colangelo acerta em reproduzir o tédio burocrático a partir de cores de baixa saturação, sem vida, com um esverdeado misturado às cinzas que continuam a cair sobre a vida daquelas pessoas. Quanto vale? é um filme sobre o poder da escuta como forma de remediar situações irremediáveis; não é que Ken seja uma pessoa má, pelo contrário, só que não escuta as pessoas que mais precisam ser escutadas e delega isto a terceiros que, em razão deste processo, são transformados.
Esta história real que desconhecia sobre o 11 de setembro é, assim, uma exemplificação do poder do cinema quando toca o espectador que se abre ao inesperado. E tem ao menos 3 atuações dignas de nota: Michael Keaton, bastante a vontade em sua arrogância e mais ainda em sua humildade; Stanley Tucci, que se dispõe a ser a voz da razão; e Laura Benanti, que, por causa de um segundo de hesitação, antecipa ao espectador a revelação que saberemos a respeito de seu marido. São atuações poderosas em um drama que tenta colocar o espectador em condição de desconforto, a considerar como Sara posiciona a câmera, muitas das vezes cortando parte do rosto de Ken enquanto numa conversa.
Ao mesmo tempo, é também um drama que sabe transformar o ato de criar uma regulamentação em uma corrida eletrizante contra o tempo - a partir de 2 variáveis: o tempo restante e a quantidade de adesões ao fundo que precisa ser no mínimo 80%. Qualquer narrativa que faça do ato de legislar algo interessante e envolvente merece uma espiada, ainda mais quando a história fala tanto a respeito de humanidade.
Maligno
3.3 1,2KEu consigo somente imaginar a sensação que deve ser, para um diretor, ter uma liberdade criativa irrestrita para narrar a história que deseja, com o orçamento que precisa, independente de palpites e intervenções da produção e de qualquer dependência de bilheterias para validar seu trabalho. Depois de enriquecer o caixa da Warner com Invocação do Mal 1 e 2 e Aquaman, James Wan ganhou carta branca e orçamento significativo de U$ 40 milhões para realizar um giallo: um subgênero italiano, muito estilizado e violento, que misturava policial, thriller e terror e envolvia a caçada a um assassino em série cuja identidade era conservada em segredo até o clímax. Talvez não seja o filme que a Warner desejava produzir – imagino que quisessem um terror de casa mal assombrada –, mas é o filme que o terror precisava, até para evitar que caísse novamente na zona de conforto de anos anteriores.
Crítica sem spoilers no Cinemacomcritica . com . br!
Rick and Morty (5ª Temporada)
4.2 101Durante os primeiros meses da pandemia, tentei reviver a minha infância quando assistia a programas infantis na manhã e passei a assistir a episódios de séries animadas. Isto foi meio ao acaso e começou com The Midnight Gospel. Aí emendei com BoJack Horseman e veio Ricky & Morty. Esta experiência fazia-me ansiar as manhãs, já que me policiava só para ver 1 episódio/dia, e dava algum sentido à insanidade que vivíamos/vivemos. Fui da filosofia à reflexão sobre depressão e autoajuda e parei numa anarquia niilista.
Como amo a lógica insana e libertina que rege as ações de Rick & Morty. São 20 minutos semanais que brincam com ciência e referências cinematográficas enquanto desprezam a vida e as relações familiares mais óbvias. A fundação da série está na anarquia, no caos e no acaso com que enxerga um personagem cujo conhecimento o torna divino, e por esta razão é capaz de enxergar a realidade a seu redor como algo sem muito sentido. Nem por isto deixa de expressar relações de afeto, como com o melhor amigo, Homem-Pássaro ou Morty.
A série continua a brincar com o próprio cânone de forma autorreferencial em episódios independentes ou inter-relacionados para empurrar a história adiante. Enquanto faz isto, sempre gargalho, reflito temas existenciais acerca de mortalidade, (in)finitude, propósito etc, e ainda levo na bagagem experiências em animação que não imaginaria possíveis quando era criança e assistia à TV Xuxa.
Shang-Chi e a Lenda dos Dez Anéis
3.8 893 Assista AgoraDa mesma forma ocorrida em Pantera Negra, com Shang-Chi a Marvel tem a responsabilidade em retratar uma cultura que, até então, nunca teve representatividade heroica dentro do cinema norte-americano. É ótimo que isto aconteça, embora Shang-Chi tropece em estereótipos parecidos que Xu Wenwu critica em certo momento. Eu vou explicar. Enquanto Pantera Negra conjugou etnicidade à tecnologia, Shang-Chi apenas repete os modos de representação chinesa, de Kung-Fu Panda até o recente Raya, O Último Dragão.
A Ta Lo da narrativa tem menos personalidade do que Wakanda. Salvo sua fauna exótica, não existe nada especial no design de produção que filmes melhores não tenham retratado com exuberância cultural e histórica. Sem este elemento cultural - que enriquecia uma jornada já batida com T'Challa -, a de Shaun/Shang-Chi é morna, requentada e simplória, com meia-dúzia de flashbacks que servem para engrossar um enredo com poucos encantos. Na realidade, o melhor do roteiro está em como se costura aos demais filmes da Marvel com o retorno de um certo personagem e diálogos divertidos ainda mais quando saem da boca de Awkwafina.
Na verdade, não há nada errado no desenrolar da narrativa, que segue à risca a jornada do herói - da fuga à relutância, do sacrifício à vitória -, nem também maiores virtudes. O kung-fu é competente, mas perto do que o cinema de Hong Kong já apresentou, parece uma versão China in Box americanizado pela direção de Destin Daniel Cretton (que nem experiência no assunto tem). Inclusive, tem as mensagens de biscoito da sorte, sobre mirar em algo ou aceitar seu destino como formas de estabelecer conflitos de seus personagens. O humor funciona, porém daquele jeito da Marvel, atenuando o que deveria ser tratado com maior seriedade, ainda mais tratando de criaturas que devoram as almas das pessoas.
Entretanto, mesmo mediano, Shang-Chi tem, arrisco dizer, um dos maiores acertos de um filme da Marvel: a escalação de Tony Leung como o "verdadeiro" Mandarim. É um ator que comunica facilmente qual o conflito do antagonista a partir de uma troca de olhares, sem empalidecer também nas cenas mais físicas. Tony trata esta fantasia com a mesma seriedade que faria com um romance dramático de Wong Kar Wai, com o desenvolvimento de um homem conflituoso, violento e amoroso a sua forma, que eleva não somente a narrativa - graças à ambição potencialmente destrutiva - , como a jornada de amadurecimento do filho.
Um bom filme, ainda que seja mais do mesmo.
Cafarnaum
4.6 673 Assista AgoraA diretora Nadine Labaki chamou Cafarnaum (cidade bíblica onde Jesus realizou milagres mas também sinônimo de caos) de ativismo cinematográfico. Seu discurso não é da boca para fora, e mesmo que não seja capaz de alterar a realidade de Beirute, pode conscientizar a partir do poder da câmera de lançar luz em realidades desconfortáveis provocadas diretamente ou não por nossas ações e omissões. Dói ver pessoas, especialmente crianças, em situação de miséria, e Nadine, cineasta com interesse sociopolítico, tencionou seu inconformismo em uma construção poderosa dentro de uma realidade que parece a nossa.
Nadine inicia com o processo civil movido por Zain, um garoto preso de uns 12 anos, contra os pais por terem-no concebido neste mundo infeliz. É uma alegoria sobre a negligência paterna que passeia sobre perigosa linha que divide o olhar inocente, ainda que corrompido, de Zain do ponto de vista crítico de Nadine contra as instituições sociais elitistas - a um juiz é dado o poder de julgar condições indignas que jamais vivenciou - e as famílias tradicionais - que normalizam o casamento de uma garota que recém menstruou com um homem muito mais velho.
Cafarnaum é contraditório e precisa ser, pois não existem soluções fáceis à problemática discutida. Os pais não são culpados, somente vítimas de um mesmo sistema que os impede de enxergar adiante. Entretanto, são responsáveis, conjuntamente com o Estado que nem reconhece a existência de Zain (ele não tem certidão de nascimento). Não existir é uma expressão da invisibilidade daqueles que habitam a margem da sociedade, tidos por párias ou verdades inconvenientes, tendo no "super-herói", o Homem-Barata, uma metáfora vívida disto.
A intensidade da narrativa é ainda maior diante das opções estéticas de uma filmagem realista, com a câmera em punho no meio das ruas, sem iluminação artificial e mínima interferência na dinâmica daquele cenário. A montagem intensifica o sofrimento, coroado pela atuação de Zain Al Rafeea, ator não profissional descoberto por Nadine, e que teve melhor sorte que seu personagem, após ser reassentado com a família na Noruega.
Esta realidade ao estilo Cinderela, porém, é raridade diante do soco no estômago que é Cafarnaum.
Mudança Mortal
2.5 196 Assista AgoraEm certo momento da história dos filmes de casa mal assombrada, algum roteirista deve ter pensado que seria divertido brincar com a apreensão do espectador com terrores falsos ou inofensivos, tipo a chave do carro desaparecer e reaparecer ou a bolinha de tênis que estava embaixo da cama aparecer sobre esta.
Só que estamos em 2021. A experiência cinematográfica evoluiu com a linguagem do cinema e, mesmo assim, roteiros como o deste Mudança Mortal permanecem estanques. Eles apostam em subterfúgios bobos e que nem movem a história a frente, nem desenvolvem os personagens, nem produzem alguma forma de tensão.
(Ainda por cima estes sustos são imensos furos de roteiro que não fazem sentido após conhecermos qual a explicação dos fenômenos ocorridos na casa recém adquirida por um casal em crise após a esposa trair o marido).
O que seria um terror descartável, semelhante ao meme da família correndo feliz para morar em uma casa assombrada, fica ofensivo, quando o roteiro utiliza o fato de o marido não crer nos fenômenos testemunhados pela esposa como metáfora da perda de confiança após a traição. Pior, ainda responsabiliza a esposa adúltera pela situação - a partir da análise do que aconteceu antes -, enquanto passa o maior pano para o adultério do marido - relembre da visita feita pela protagonista à vendedora da casa.
É um terror que não aterroriza, com uma fotografia horrorosa (clara demais de dia; azulada demais a noite) e uma mentalidade do século XIX.
Central do Brasil
4.1 1,8K Assista AgoraApesar de a matéria prima da contação de histórias serem as pessoas, algumas narrativas parecem amar estar perto de gente de verdade. Se Dora permanece fechada dentro de si, Central do Brasil mostra qual o poder existe a partir do contato verdadeiro. Um que Dora nega àqueles cujas cartas entulha dentro de sua gaveta, até conhecer o jovem Josué.
A dinâmica entre Fernanda Montenegro e Vinícius de Oliveira é onde reside o coração desta fábula melancólica acerca da importância da mensagem, do mensageiro e da memória. Josué é a mensagem; Dora,
a mensageira; enquanto isto, a memória é construída na estrada enquanto partem do Rio de Janeiro em direção à cidade onde mora o pai do garoto recém órfão de mãe. Dora desconfia do êxito da missão ou mesmo de seu propósito, mas como a carteira que aprende que é, não desiste de entregar a correspondência no destino certo.
Ao redor deles, rostos de pessoas que estariam invisíveis na multidão se não fosse o olhar gentil de Walter Salles, auxiliado pela fotografia calorosa do mestre Walter Carvalho. Cada marca de expressão, cada sorriso, cada fio de cabelo desgrenhado reforça as histórias que são aquilo que carregamos conosco no fim do dia. Histórias que se transformam em memórias. Memórias que aumentam o nosso amor pela vida.
Central do Brasil parece mais distante do que é. Como sociedade, além de não existirem mais notas de 1 real, também abdicamos da palavra escrita, do ato de escrever uma carta a quem amamos, do altruísmo de se entregar ao outro. As memórias se tornaram mais fugidias, pois as experiências também se tornaram descartáveis. Assim, este drama resgata o poder do agora e da construção de um laço indelével, enquanto revela, nas estradas e romarias, um Brasil desconhecido e a promessa de uma história que jamais será esquecida.
Justiça em Família
2.7 169 Assista AgoraEu entendo o sentimento de inconformismo leva Ray a partir numa cruzada de vingança de um homem sozinho contra a Big Pharma, o apelido dado às corporações do setor farmacêutico que, como corvos, vírus ou cânceres, enriquece a partir do infortúnio de milhares de famílias. Em vez de medicamentos e tratamento acessíveis, a garantia de que ou você morre da doença ou entra em falência. Assim, é até mais contemporâneo vingar-se de CEOs indiferentes do que da máfia russa ou japonesa, que ao menos ainda tinham algum código de honra.
Só que nem a melhor das intenções, nem cenas de ação honestas (ao menos até certo momento) e executadas com segurança compensam seu roteiro desastrado. Já começa com a suspensão de descrença em acreditar na premissa quase absurda, passeia pela trapalhice policial e termina em furos no roteiro inaceitáveis.
Da onde surgiu a retroescavadeira que fecha o túnel no jogo do bicho e como, dentro das circunstâncias apresentadas no filme, esse veículo poderia estar ali?
Como, em 2021, o FBI aceitaria a confissão de uma pessoa coagida com uma arma no pescoço? E como desapareceria o fato de que a pessoa responsável por homicídios pode viajar a vontade de avião?
Isto porque nem falei do elefante branco no meio da sala. Não, não é o Jason Momoa - que é um ator carismático como o estereótipo clássico do brutamontes com um bom coração -, nem Isabela Merced, a Dora a aventureira, nem o vilão que parece ter saído de algum filme de Jason Bourne, mas o tipo de reviravolta que tenta parecer espertalhona com uma montagem retrospectiva, toda cheia de si, que parece dizer com o sorrisinho cafajeste de canto de boca "viram, vocês não perceberam isso".
Justiça em Família tenta ser socialmente engajado e aparentar mais inteligente do que é, enquanto trapaceia o público - e o bom senso. Mas é só mais um filme de vingança esquecível e que não resiste a uma análise aprofundada, igual às relações entre política e empresas.
Free Guy: Assumindo o Controle
3.5 579 Assista AgoraEu admiro as superproduções que me colocam para pensar muito além das reflexões expositivas propostas no roteiro. Nesta comédia de ação, fala-se muito da importância do homem médio, de como o homem vira máquina e perde a liberdade dentro do sistema capitalista - que busca maximizar vendas a todo custo, nem que para isto engane os clientes e invista na violência como alternativa -, da mulher gamer, dos trolls etc. Mas de todas as reflexões, a que mais gostei é fruto de uma hipocrisia, e nem é uma má hipocrisia, é apenas regra do jogo.
Em certo instante, o personagem interpretado por Taika Waititi justifica qual a lógica de negócios da sua empresa: produzir somente aquilo que o público deseja. Bem, estamos falando do vilão, enquanto a dupla de programadores independentes que teve a criação roubada procura revolucionar a experiência dos games, a partir da proposição de um jogo original. Ou seja, o mesmo roteiro que apenas repete todo o blockbuster é ainda o que critica a falta de criatividade da indústria do cinema (a partir da metáfora dos games). O roteiro que defende os games não violentos em favor da observação dos NPCs é também um roteiro que aposta na violência como forma de ganhar experiência ou na resolução do clímax.
Free Guy não poderia ser a metáfora do game contemplativo, pois isto seria um fracasso de bilheteria colossal. Criticar a própria atitude que adota é o tipo de tiro no pé que apenas um diretor tão mergulhado na indústria faria. Shawn Levy não é um sujeito criativo; sua função é só de apontar a câmera e deixar Ryan Reynolds ser Ryan Reynolds, Jodie Comer conquistar aqueles não conquistados por Killing Eve, e deixar as boas sacadas do roteiro florescerem. Ele não é o diretor que tapará o buraco óbvio do roteiro, a ponto de exigir machadas em servidores quando um puxão na tomada resolveria.
Quer dizer que o filme não é divertido? Nunca! Eu ri e me empolguei, e ainda fiquei feliz em saber que parte do público-alvo do filme, os trolls gamers, são criticados de forma literal e escrachada (a forma como entendem). Mas não dá para amar um filme hipócrita, por mais que eu queira.
Califórnia
3.5 302Filmes sobre amadurecimento costumam ser contados através de um prisma etário que distancia a direção da história contada. Por motivos óbvios dentro do cinema, não são jovens que contam acerca de seu amadurecimento, mas pessoas mais velhas que enxergam a transição sexual, emocional e psicológica da adolescência à idade adulta com o olhar nostálgico de quem já viveu, não de quem está vivendo.
Califórnia tem disto, mas tem também um olhar empático de Marina Person à juventude dos anos 80 (a sua), a partir de objetos de cena e canções representativas, mas que não sufocam o amadurecimento de Teca. A ênfase de Marina são os personagens; o mundo que os cerca individualiza aquela existência, mas os sentimentos que ressoam com intensidade. A inadequação com o próprio corpo, a dificuldade em ter a iniciação sexual, o silêncio em relação à doença do tio amado.
A cidade americana que dá nome ao filme é a metáfora do escapismo em direção ao local ideal, de uma utopia que, para Marina, vem ainda numa nostalgia. Uma época em que gravávamos fitas cassete para as pessoas que amávamos, em que escrever cartas e cartões postais era um ato de presença. Existe uma calorosidade que vem da paixão da direção pela história e passa à relação dos personagens e nossa com eles.
A direção tem, na profundidade de campo rasa, a ideia de isolamento e de que o amadurecimento é no tempo de cada. Já a câmera na mão revela a instabilidade emocional típica daquele período da vida. Além disto, Clara Gallo, Caio Horowicz e Caio Blat oferecem atuações mais naturalistas de personagens que vivem dramas próximos dos nossos. É um filme sobre amar o processo de transformação, não é a toa que inicia e termina com o plano-detalhe do olhar de uma adolescente e termina com o de uma mulher.
Nem um Passo em Falso
3.2 96 Assista AgoraSteven Soderbergh não inventa a roda no gênero do crime, mas ele certamente dá uma sacudida aqui e acolá enquanto transporte seus espectadores para o cinema noir que era feito nos anos 30, 40 e 50. Ninguém poderia confiar em ninguém. A ganância costumava ser o pecado mais capital, depois da confiança. E você poderia usar uma reviravolta no roteiro que colocasse tudo em perspectiva, ou não.
Depois que você se acostuma com o formato anamórfico, em que a imagem é comprimida para caber dentro de um quadro definido, no motivo de haver tantas deformidades nos cantos da tela - que após algum tempo acabam ficando mais charmosas -, Nenhum Passo em Falso é uma delícia de assistir. Muito por conta de seu superelenco, com Don Cheadle em um papel que seria inimaginável na Hollywood daquele período, Benício Del Toro, David Harbour, Jon Hamm, Brendan Fraser - que engordou para estrelar o novo filme de Darren Aronofsky - e uma participação especial caprichadíssima.
Caprichosa também é a fotografia, e Steven Soderbergh (sob o pseudônimo Peter Andrews) estabelece uma linguagem visual apaixonante. Os contrastes entre claro e escuro sempre ditaram a tônica deste gênero, mas agora, com cores expressivas, parecem ainda mais marcantes. A luz justificada de abajures e afins cria uma espécie de âncora onde podemos repousar nossos olhares enquanto o elenco permanece nas sombras, onde suas intenções são melhor mascaradas e dissimuladas.
É difícil confiar em alguém e é por isto que a resolução da narrativa reside neste elo que une duas pessoas num mundo preparado para apunhalá-los pelas costas. Claro que, entre traições e reviravoltas, é difícil saber quem está enganando quem, o que mantém o espectador alerta por esta viagem ao cinema clássico nos dias de hoje.
O Despertar de um Homem
3.7 260 Assista AgoraComo amadurecer cercado pelos espinhos de um padrasto abusivo? Esta adaptação da autobiografia escrita por Tobias Wolff não coloca açúcar num relacionamento abusivo, nem se revela condescendente consigo mesmo. O roteiro adaptado retrata um homem em harmonia com o adolescente que um dia foi: sensível, apesar de desordeiro ou mesmo trapaceiro; consciente em reconhecer não poder medir força com o padrasto, Dwight, embora até se esforce em tentar estabelecer alguma relação com alguém mesquinho, rancoroso, preconceituoso e violento.
A narração de Leonardo DiCaprio, ao invés de um ator na idade adulta, confere a ideia de presente a uma história sobre o ontem e todas as experiências, boas ou ruins, que maturam um adolescente no homem que será. E se o autor das memórias não se enxergava como santo ou vítima, Leonardo DiCaprio não ousaria fazer isto. Apesar de ser doce e carinhoso com a mãe, Toby julga-a, normalmente pelo olhar, em razão das decisões que os colocaram no caminho de Dwight. Ele sabe que a mãe é vítima, mas isto não o impede de demonstrar ressentimento, na forma que adolescentes melhor fazem.
Sua mãe, Ellen Barkin, também está numa jornada de amadurecimento na idade adulta. Carolina, em meados dos anos 50, deve abandonar a dependência da figura masculina e a vida doméstica, e ser livre de acordo com seus próprios termos. Pior, deve se livrar do lar abusivo onde está, habitado por um homem que, nas entrelinhas, revela suas inadequações consigo mesmo. E Robert De Niro evita que Dwight só seja um vilão unidimensional, transformando-o neste poço de mágoa de si próprio. Um valentão que se troca com um adolescente e revive na memória brigas que afirmariam sua condição de alfa, mas de fato evidenciam a masculinidade frágil de um homem com problemas com sua sexualidade e mesmo sua insignificância moral.
Gosto da direção de Michael Caton Jones e de como deixar os atores livres para encontrar momentos emocionais e significativos. E, para quem gosta de estudar o amadurecimento da sociedade e do cinema em relação a temas sociais, este filme conjuga três épocas em uma: a década de 50, quando o filme é ambientado, a década de 90, quando já havia conquistas sociais, e os dias de hoje. O resultado é revelador.