O mórbido lúdico. O conto nipônico que não se debruça, somente, a uma superficial releitura do clássico de Edgar Allan Poe. Kaneto Shindô conceitua seu cinema em cima da persona feminina, a representação da vingança para construção da personalidade de Mulher que se vinga. O direito de ir contra ao poderio machista? A ótica segue a mulher e nora que são violentadas e assassinadas por samurais errantes. É quando a narrativa se transmuta de sinistro para conceituar a vingança.
Shindô, sob o exercício da fotografia em chiaroscuro, coloca-nos próximos desta trajetória minimalista e sobrenatural. Inclusive, com doses eróticas cênicas. Um horror elegante e dotado de poesia visual. Não deixa de ser um diálogo sobre a Morte e também sobre o que plana a atmosfera fora do terreno vital. O que temos é um espiritualismo que brinca de tecer uma crítica à certas tensões japonesas sociais, através das defesas de mulheres à frente do seu tempo, emulando a perversão pra simbolizar o direito de escolha e personalidade. Pra não se tolher, resta a atitude sangrenta.
O ato subversivo. Logo de início, a projeção investe em dez minutos de insinuações e cenas que caracterizam o comportamento transgressivo da protagonista. A jovem que rouba transeuntes sem medo da punição nas imediações de um metrô. Logo entende-se que ali é o centro de onde vai partir a crítica narrativa. Claudio Giovannese mantém a câmera próxima das pessoas que quer retratar, como artifício pro estímulo “naturalista” que quer criar em cena. Dafne (Daphne Scoccia), a típica adolescente sem perspectivas e mal educada pela vida oprimida, parte para a realidade dentro do cenário do reformatório. É lá que temos a insinuação sentimental, no qual a moça conhece na ala masculina um prisioneiro que passa a se corresponder e a estabelecer um elo de tesão e afinidade. Giovannese segue o padrão habitual dos trabalhos cinematográficos que exibem as vivências e dificuldades sob o teto da prisão, a dinâmica e rotina dentro deste ambiente, para percebemos a violência e amarga situação em que se encontra a sua personagem em foco.
“Nós entramos sozinhos. E saímos sozinhos”. O caminhar de uma rotina sistemática, da solidão, da personalidade de uma figura humana envelhecida. Uma ode à finitude da vida. Os primeiros minutos da narrativa expõem o caráter pessoal deste personagem em seu modo de ser e agir. Tanto o chapéu de cowboy ou as botas que coloca, ou a gaita que entoa, fazem de Lucky um indivíduo próprio em seu habitat melancólico.
“O realismo é uma coisa. É a prática de aceitar uma situação tal como ela é. E está preparado para lidar com ela”. Através da defesa de Harry Dean Stanton, no seu último papel e, sem duvida, melhor interpretação de sua carreira, compreendemos que ali existe um filme sobre fragilidades do fim de vida. John Carroll Lynch nos coloca próximos do cotidiano deste homem embrutecido pelo tempo, pela vida e pelo sol de memórias de um passado. Entre conversas com pessoas que o rodeia, na localidade, vamos nos situando com essa persona.
Enquanto Lynch desconstrói a natureza do cotidiano deste homem, o prepara (ou nos coloca) para a eminência da morte. Quando sofre um acidente dentro de sua casa, a câmera logo corta do aparente vigor para a insegurança da velhice: Lucy se depara em um posto médico, ao lado de uma idosa, no símbolo do confronto de sua possível debilidade. Como alguém de 92 anos percebe que envelhece? Trata-se do olhar em torno de alguém que percebe a sua própria fragilidade. A sequência dele sentado, na penumbra do quarto, fumando e com a música de Johnny Cash tocando, é um dos momentos mais belos que um filme pode criar sobre a solidão. “Então, eu vejo a escuridão. Então, eu vejo a escuridão”.
É um trabalho intimista. Não é a toa que a câmera de Lynch traça um diálogo com este homem, sempre colada à fronte ou atrás de seus passos metódicos e repetições do dia; ou mesmo quando sua preocupação e saúde comprometida se acentua na narrativa. Tal qual os cactos que povoam o lugarejo que mora, existe em Lucky certos fantasmas que persistem em sua jornada, pouco a pouco vem à tona sob nossos olhos marejados.
Um olhar sobre a falta de compreensão. O que temos é a perspectiva feminina, acima de tudo. Um filme que exibe lá na década de 60: a noção da mulher sem falta de acolhimento. Natalie Wood foi nomeada ao Oscar de Melhor Atriz por defender as dores e dilemas desta persona fragilizada, vitimada, sem opções diante da gravidez inesperada. A típica feminina que se envolve sexualmente com um homem a quem não lhe proporciona segurança e atendimento.
Neste caso, um Steve McQueen no arquétipo machista e viril, o indivíduo que se nega a prestar não só apoio, mas a solidariedade a essa mulher que decide fazer um aborto. O olhar da direção de Robert Mulligan exibe certos julgamentos daquele tempo, mas, sem nunca colocar a culpa em cima da figura da mulher.
No desenvolvimento do roteiro, vemos a aproximação demarcada pelo drama deste casal em problemática. Wood assume a protagonista delicada, pois sua Angie Rossini é católica e decidida em seus preceitos. Diferente da personalidade de Rocky Papasano, com a esperteza da atuação de McQueen, que, aos poucos, vai se desconstruindo à favor da condição do desamparo feminino. Sob a melancolia de uma trilha sonora bela de Elmer Bernstein, temos um diálogo sobre o afeto que merece ser redescoberto.
Retrato do fanatismo religioso que contamina a sociedade. Através da personificação do estudante do título, o temperamental Veniamin (Pyotr Skvortsov), vemos o típico ser humano que se esmera no estudo da escrita bíblica e utiliza de citações e interpretações das leituras e parábolas para constituir suas ações.
Eis um católico fervoroso em ação. O jovem crítica e verbaliza contra a todos de acordo com suas visões religiosas, repele e se indispõe com quem é contra a ele, sempre usando ditados e argumentações que retira do testamento. Cada versículo que profere faz parte de seu lema de vida. Agressivo, torna-se ortodoxo e segue tudo ao pé da letra.
A direção investe nessa perspectiva deste jovem que abala as convicções da mãe, entra em conflito com a professora que é racional e com demais colegas. O ciclo de fanatismo e euforia ganha maior proporção dramática, quando percebemos que temos um jovem que não só se submete à aparência fanática, mas talvez um certo desgaste psicológico.
Curioso como o roteiro exibe, também, as influências que o jovem passa a exercer nas pessoas que convive: como se os obrigassem a serem seus discípulos. Um filme que destranca não só dilemas e situações de uma juventude ou do extremo do fanatismo, mas, também, sobre o que existe por baixo dos tapetes de uma Rússia instável.
“Os longos trinos dos violinos de outono, ferem a minha alma em um langor de calma. Sem ar e pálida, quando soa a hora, lembro-me do passado e choro. Assim, vou-me ao vento, que me leva em um vai e vem; como uma folha morta em algum lugar do destino”.
O diálogo como construção de uma relação, até então, firmada na ausência. Pai e filho em jornada de autoconhecimento, da busca por entendimento mútuo, de arestas que permaneceram durante anos. Sob a paisagem fria e fotografia com tons cinzentos da Noruega, captamos a tônica melancólica que a direção nos fornece.
Trata-se de laços mecânicos e frios que precisam se aquecer para estabelecer um sentido. Thomas Arslan usa o silêncio das respirações dos personagens, livre de trilhas intrusas, para promover o contato do vestígio do cotidiano. Como veremos o florescer deste contato entre pai e filho que mais parecem desconhecidos? A câmera os segue, andarilhos, entre belos recortes de paisagens, exibindo essa aproximação latente.
Michael (Georg Friedrich, em uma atuação vencedora do Urso de Prata em Berlim) representa o pai ausente e fracassado no sentimento paterno, o indivíduo que acorda para os atos falhos e tenta conhecer o filho indisposto - Luis (Tristan Göbel), o típico jovem cheio de rancor e cicatrizes de uma educação sem afago. Um intimista e pequeno tratado sobre as relações entre pais e filhos e mágoas que se afirmam para uma combustão de humanidade entristecida pela ausência do outro.
“Sinto como se estivesse que atuar próximo de você. “
O que fazer quando só a memória parece se manter? Diante da ausência, o conforto de um holograma, que serve como espécie de consolo e auxílio à vida de uma mulher que ainda preserva a memória do marido morto. Baseado na peça de Jordan Harrison, Michael Almereyda investe neste panorama complexo de um futuro tão próximo e verdadeiro que até causa desconforto. Marjorie (Lois Smith) vivencia o Alzheimer que assola não só seu corpo, mas a condição de sua alma também. E se alimenta da figura do holograma programado pra estabelecer um elo com as suas convicções e percepções antigas - a condição de depositar suas visões e lembranças do marido na representação de um ser falso (John Hamm).
Memórias, personalidade e comportamentos são reconstruídos, constantemente, neste holograma que tenta ao máximo satisfazer o emotivo e lado sentimental desta mulher que não esquece o homem que tanto amou. “Deveria me sentir triste pela forma como você fala comigo?”. A fita exibe essa tônica sobre a condição desconfortável que reina, dentro do seio familiar e da intimidade do cotidiano, por conta da dependência e de presença de uma inteligência artificial que acaba por condicionar a pessoa no acalento ilusório.
A linhagem da cuidadosa direção de Almereyda estabelece diálogos, focos nas interações dos personagens - como a presença de coadjuvantes consistentes como Geena Davis e Tim Robbins -, que dão vazão à crítica da sociedade que se firma em prestações artificiais, plásticos e prejudicados por falta de relações mais construídas no corpo a corpo. Por que nos relacionamentos com holograma se ainda há humanos ao redor?
Ironicamente, tais hologramas parecem amparar não emocionalmente essas relações que se constrói com os humanos - inclusive, agindo como espécie de “psicólogos”, já que fornecem influências em cima das ações e das fragilidades. Como a relação entre Marjorie e o holograma do seu marido juvenil.
Como suportar a perda de alguém? Trata-se, acima de tudo, sobre como o luto nos coloca na amargura e na linha do desespero. A protagonista utiliza do holograma para não apagar a memória de alguém que foi essencial na sua condição humana. Entretanto, perde-se, também, na fragmentação de sua conturbada memória.
Mais que um formato de ficção científica intimista, é um filme que trava a linha sobre a humanidade melancólica em não saber sobreviver diante da morte de alguém querido. É sobre envelhecer, é sobre caminhar com a solidão. Lois Smith assume a personagem com nuances de acordo com a forte posição de sua protagonista que nos coloca na reflexão de sua vida que se despe pouco a pouco. Toda a narrativa norteia-se em cima das situações de como uma memória é capaz de nos organizar e também desorganizar o que aparenta solidez. Um trabalho comovente de como é difícil lidar com perdas que nos permite tropeçar nos caminhos tortuosos da vida.
“Por que você está fazendo um filme sobre meu circo?” A infância em sua odisseia dos sonhos. A imaginação que remove as percepções de uma realidade cruel. Jonas e sua peregrinação pelos caminhos do mundo circense que cria sua própria condição infantil. O olhar naturalista de um menino imerso nos sonhos que acredita, nos anseios de uma esperança que não se perde.
A câmera colada à face é constante, o olhar delicado e cuidadoso de Paula Gomes percorre a intimidade e cotidiano de uma infância que foge das marcas das dores, da dificuldade financeira e, principalmente, das inseguranças de um mundo sem perspectiva. A zona periférica de Salvador pode muito bem ser revelada e refletida em outros locais do nosso Brasil, em que a sociedade empobrecida e alheia ao sistema da desigualdade, necessita vencer.
A linhagem aqui é direta, real, sem devaneios. Gomes retrata a vida deste menino que vagueia de acordo com seus sonhos e também dilemas que refletem em seu processo de amadurecimento. No precário circo improvisado e ao lado de seus amigos que dividem a mesma condição de vida, Jonas é a representação de nosso futuro atual - o abandono, a falta de afago e o humano que parece melancólico à felicidade que nunca o atinge. E é dentro desse ambiente de devoção e vivência com o circo, é que Jonas estuda e compreende as noções de mundo. Acima de tudo, um rito sobre a infância que se dilui na adolescência.
A visão da cineasta cria planos e usa de artifícios encenados propositais - obviamente algumas passagens, ali, são conduzidas para que esta visão cinematográfica não precise de narrações ou verbalizações diretamente pra câmera. Gomes faz com que esses “atores reais” desabafem e permaneçam reais sob nossa observação silenciosa. Um retrato sobre sonhos e condições daqueles à margem de.
A jornada de peregrinação tal qual os caminhos que os eremitas percorrem, em Trás-os-Montes, no norte de Portugal. O homem em meio à própria catarse existencial. Se na era da tradução cristã, a virtude e a transcendência eram alcançados pela ausência do desejo - aqui, o personagem principal se depara com os demônios internos da dor do desejo, da comunhão do prazer com a natureza ao redor que o absorve e o desorganiza.
João Pedro Rodrigues brinca com as perspectivas, com simbolismos e provocações extremas ao nos colocar próximo de Fernando - o indivíduo que se reencontra, Corpo e Alma, com a fonte natural. Visto como uma alegoria de Santo Antônio de Pádua, existem maiores camadas que não devem ser desprezadas em seu formato e narrativa.
No superficial olhar, temos o personagem que percorre rios e florestas, após sofrer um acidente e quase sugado pela correnteza. No olhar mais profundo, temos uma narrativa que evoca o folclore, o oculto e o que se encontra por trás do real - não é a toa que as leituras proposta por Rodrigues vão além do que reside na casca. Seria a odisseia íntima sobre uma santificação de um homem comum?
O roteiro flerta com as perspectivas do personagem, já que ele encontra duas garotas chinesas oriundas dos caminhos de Santiago de Compostela; um jovem pastor mudo e surdo e gay!; amazonas desnudas que se mesclam à integrantes de tribos aparente hostis. Sonhos, devaneios ou articulações de nosso histórico de mundo diante dos efeitos da atualidade?
Um filme que exibe referências religiosas, dialoga sobre símbolos profanos e culmina em um estudo sobre o humano. Rodrigues nos coloca sobretudo na visão e sensações deste homem em processo de transformação que culminará em algo além. É o profano que se transfigura em algo sagrado? A sexualidade surge como uma das características, tão habitual no universo de Rodrigues, mas não direciona só neste foco: já que temos um trabalho de digressões até sensoriais. Sim, um filme bastante questionador em suas mensagens.
“Tínhamos uma vida que não poderíamos imaginar”. As intransigências de um casamento falido. Angelina Jolie recria o relacionamento em frangalhos, através da relação conflituosa em um cenário nos meados da década de 70. Vanessa (Jolie) e Roland (Pitt), se hospedam na França, na tentativa de explorar alguns entraves do cotidiano: a recuperação de um matrimônio firmado em tédio e distância. Enquanto ele tenta dar prosseguimento à criação do seu livro, ela tenta estabelecer um contato consigo mesma. Jolie cria a direção focada nos planos, na narrativa lenta e na exibição deste casal que tenta se reajustar. Compreende-se, ali, a ótica sobre uma relação permeada de dores e cruas mágoas. A ambientação amorosa, sob a trilha sensual de músicas de Serge Gainsbourg e Jane Birkin, transmite a atmosfera de intimidade.
No princípio, vemos a chegada do casal ao cenário de luxo e suntuoso hotel, ironicamente um lugar imponente e de harmônica arquitetura, local no qual será o desmoronamento íntimo de diálogos e rancores. Jolie cria a atmosfera de falência sentimental e nos coloca próximos deste casal que sente a necessidade de retomar o elo perdido - e também o desejo. Não é a toa que ambos observam o vigor e energia sexual de um casal que se hospeda ao lado (Mélanie Laurent e Melvil Poupaud, ótimos em cena), mostrando que ali existe uma representação de matrimônio e libido que causa admiração - e inveja.
Angelina Jolie foge de tons exagerados no melodrama, optando por uma encenação formada mais em diálogos e respirações de seu universo intimista. É um trabalho sóbrio sobre as rupturas do amor e as sombras que invadem as relações cansadas. Curiosamente, vemos a ficção que também acaba por dialogar com a sua própria vida - já que, na época, a atriz vivia o fim de seu casamento de anos com Brad Pitt. Ambos promovem o diálogo sobre a desconstrução a dois de maneira natural e convivente. E quando o roteiro exibe certos segredos que vem à tona, compreendemos que ali é um conto mais sobre amor machucado que precisa se reerguer.
Um dia de cão. Ou a jornada íntima ao inferno. Trabalho criativo e autoral estabelecido pelos irmãos Josh e Benny Safdie. A representação de uma Nova York permissiva à decadência e à instabilidade da insegurança diante de crimes e violência constantes. A leitura do roteiro mostra a relação entre o desajustado criminal, Connie (um Robert Pattinson totalmente transparente e inteligente em cena) e seu irmão com problemas mentais, Nick (o próprio Benny). O que parece ser um conto sobre uma relação familiar, permeada na vivência da criminalidade e comportamentos erráticos, logo se fragmenta em outros níveis quando o filme exibe suas intenções: a jornada de Connie em resgatar seu irmão de todas as formas.
Com um ritmo de constante construção de tensão, dentro de tons “realistas”, a direção dos Safdie coloca-nos próximos dos olhares nervosos e da voz entrecortada do personagem de Pattinson que parece se envolver em uma gradual teia de infortúnios - um novelo de lã que vai se alimentando com as situações de riscos que parecem se colocar à frente deste homem tido como marginal e perigoso, mas que pouco a pouco é desconstruído pelo roteiro com um olhar que o humaniza.
A estética de tons escuros, cores azuladas e vermelhas, se mesclam à atmosférica trilha sonora de Oneohtrix Point Never que cria uma aura que flerta com o psicodélico e também um aspecto macabro. Uma sonoridade de sintetizadores que nos remetem aos filmes do John Carpenter. Não é a toa que vemos uma cidade suja, soturna e estranha, um cenário social onde esses humanos amorais e à margem se destacam. O cinema aqui nos remete aos da década de 70, como os de John Cassavetes que exibiam a verve naturalista urbana. Sim, um filme sobre a desordem e o caos social dos à margem de.
Esse aspecto de “descida ao inferno”, que afoga o protagonista, na realidade funciona como uma ladeira desordenada de eventos aflitos e infelizes que o acometem - e o impedem de chegar ao seu desejo. A direção é muito cuidadosa em criar essa sensação de melancolia e angústia que rodeia à figura de grande interpretação de Pattinson - emprestando ao indivíduo uma urgência de resgatar o elo familiar que tanto considera, mas, ao mesmo tempo, colocando-o no limite de sua própria aparente sanidade. A montanha-russa é amarga e crua.
Por isso mesmo, o filme começa com o personagem de um jeito fisicamente e depois passa a moldá-lo - como os cabelos que mudam de cor, penteado e a fragilização física que se acentua em uma face com ferimentos. Pattinson assume o melhor papel de sua carreira, até agora, com a verdade interpretativa com seus olhos vidrados e ansiosos - quase como um drogado. Eis o protesto contra um sistema que o pune? Será que este ser marginal terá chances de prosperar? As perguntas são feitas enquanto a narrativa explode sem receios e o cinema dos irmãos Safdie exibem a face agressiva de uma humanidade que vaga, perdida e inconsolável, pelas ruas sombrias de uma Nova York sem aparente consolo e piedade.
O retorno às origens. Ou o reencontro com suas memórias. Claude Chabrol conceitua a Nouvelle Vague na estética social, a câmera na mão que percorre os personagens por um vilarejo na França - o encontro de dois amigos. François que retorna e encontra o símbolo de sua infância, Serge, em uma miserável condição - a química entre Jean-Claude Brialy e Gérard Blain transmite a cumplicidade e a tônica da intimidade de uma amizade sentimentalista. Ironicamente, o subtexto homoafetivo parece evidente já que há certos diálogos e emulações que demonstram um interesse mais além.
A sutileza de Chabrol é capaz de permitir esse sentido, ainda que o filme claramente percorra outros objetivos, como a crítica à sociedade vitimada por um sistema precário e que a tolhe de prosperar financeiramente. Enquanto temos o olhar amadurecido do homem que prosperou e retorna à sua cidade, temos a amargura de ver seu amigo preso em suas condições e sem possibilidades de sair da teia da infelicidade. Blain, com sua jaqueta a la James Dean e virilidade comportamental típico de um Marlon Brando, exibe a figura máscula de um condenado socialmente. Qual dor maior que ver um homem que abdicou de seu sonho de ser um arquiteto e torna-se um caminhoneiro fracassado? Uma atuação forte de um ator que representa um homem perdido na frustração.
Chabrol coloca o tédio e o marasmo em pauta, na representação dessas pessoas que se estagnaram na vida. O vilarejo exposto em meio à degradação física e a falta de progresso, fazem da narrativa o atestado de um mundo fragmentado e sem sucesso após turbulências de anos de uma Segunda Guerra conflituosa. Também, um retrato sobre mulheres vítimas do machismo - como a esposa grávida de Serge que recebe o desamparo do desafeto; ou a avançada liberal sexualmente, feita por uma estonteante Bernadette Lafont em cena, que é falada por todos do vilarejo.
Acima de tudo, uma exposição neorrealista sobre as dificuldades humanas, de acordo com uma direção que não se preocupa em condenar os personagens com julgamentos - mas, sim, humanizá-los. E são cenas bem concebidas sobre esse sentido, reforçadas por um dos símbolos da fotografia da Nouvelle Vague, Henri Decae.
O rito da passagem da infância para a crua realidade do adulto. Ou a virginal que se fragmenta. A transformação feminina, sob a ótica de Jaromil Jires, um dos nomes do surrealismo do cinema na Tchecoslováquia. Não è toa que logo no início da projeção, observamos a jovem que desabrocha hormonal e psicologicamente - na representação da menstruação, através do sangue que se projeta em pingos em uma flor margarida. A referência clara só dimensiona o que o filme quer nos fornecer: a psicologia sexual.
Inúmeros são os símbolos usados ao longo de uma narrativa que até soa simples em sua intenção. A iniciação ao mundo da libido da protagonista é feita através da sua imaginação que se potencializa, mesclando o traço real com o subjetivo - vampiros e monstros habitam seus mundos, como percepções que representam seus desejos mais ocultos. Nada mais que articulações sobre a repressão de um ser humano, na auto-punição - a cena em que se direciona, tal qual Cristo, na cruz, numa igreja, exemplifica esse sentido. Valerie sofre pelos desejos que sente.
Ao mesmo tempo em que temos um retrato da juventude que se atira aos seus anseios, vemos a jovem em seu processo de repulsa - por isso mesmo, Jirel nos provoca, colocando as visões e delírios desse feminino de maneira próxima. Há uma crítica à oposição do cristianismo com o paganismo - como as figuras dos padres sexualizados e abusivos; ou mesmo na caracterização dos fiéis carocas que fazem parte de uma seita religiosa rígida e com aparência mórbida. A narrativa explora as perspectivas destas ebulições carnais e emocionais, sob uma ótica sensorial, quase uma "Alice no país das Maravilhas" macabra. Um New Wave Tcheca que explora bem o que jaz por trás das máscaras humanas.
“Eu tenho consciência do que as pessoas pensam sobre minha alma”. A reinserção na sociedade - ou dentro de si mesma? A mulher que precisa retomar as rédeas não só do cotidiano e das satisfações sociais, mas assumir a sua própria responsabilidade consigo. O cenário é em Recife, mas cabe perfeitamente em qualquer cenário. Ex-drogada, ex-limada existencialmente? O diálogo é direto, entre a lucidez e o delírio, o direito feminino de protesto contra um sistema que a tolhe - e a fere com julgamentos de conveniências. A direção de Daniel Aragão nos coloca próximo da angústia e da personalidade defendida por uma Bianca Joy Porte que revela o processo conturbado que é se assumir como é, buscando uma nova posição em um mundo que padece de acolhimento - tanto afetivamente (no teor sexual com o envolvimento com o personagem do Sérgio Marone) ou familiar (a fria interação com seu pai político, feito por Zé Carlos Machado). E como fugir do medo de fracassar por conta de tentações ainda presentes? Um retrato sobre a necessidade de emergir diante das próprias sombras criadas ao longo da vida.
O fardo dos pequenos acúmulos do cotidiano. Ou quando habita, em nós, a insistência da sensação de ser incompleto. Irônico observar logo no início, na projeção de cenas de planos abertos e silenciosos, que exploram o conceito principal que a narrativa quer externar: o contraponto da solidão entre uma vasta arquitetura?
Kogonada nos coloca próximos dos silêncios, das respirações e de diálogos constantes entre pessoas que se cruzam na cidade de Indiana, no símbolo do modernismo, uma meca arquitetônica. Lá se confrontam os pilares existenciais da bibliotecária sonhadora e também amante da selva de pedra (um excelente Haley Lu Richardson), seu colega intelectualista falante (Rory Culkin) e o filho de, olha só, um arquiteto famoso que vem à cidade pra resolver certas questões no familiar (John Cho, natural ao extremo).
A ponte de diálogos e aproximações destas pessoas em cena dita sentidos sobre amizade, carências e também dilemas onde fragilidades humanas são estabelecidas. Kogonada cria tomadas e cenas em que bases de interações destes personagens são formadas em diálogos, isento de trilha sonora intrusiva, para exemplificar esse jogo dialético.
O discurso, vagamente, nos associa a exemplos de integração entre solidão e carência como o exposto por Sofia Coppola em “Encontros e Desencontros”, no qual duas pessoas fecundam uma intimidade e contato em contraponto com a vastidão de um local que os submete à contemplação e também à estranheza.
Casey e Jin se buscam e se submetem a uma desconstrução psicológica que fornecem o toque com o humano; o encontro de duas pessoas para sanar arestas e conceber pontes de aprendizados entre elas. Diante de conversas sobre fortalezas da arquitetura, desabafos e afetos, Kogonada nunca excede no tom emocional - ainda que seja um filme sobre a emoção que se desperta. Articulando-se com uma fotografia de tons mais frios à rígida formalidade de uma arquitetura no enquadramento, o palco cênico de conversas são exercidas entre duas pessoas em busca de si mesmos.
"Conhecer o lado mais escuro dos outros, de alguma forma, nos conectou, e nos redimiu.. O modo como dois negativos formam um positivo. O jeito como seus olhos se ajustam à escuridão. Somos um elo”.
“A verdade é que se eu fosse um homem e explicasse as leis, as pessoas ouviriam e aceitariam”. Uma narrativa que se propõe a expor as ânsias e dilemas do feminino sobre o feminino. O olhar de Kelly Reichardt é uma crônica do ser mulher: aborda os traços dos cotidianos de mulheres de diferentes vidas e perspectivas, mas dentro de irônicas aproximações sensíveis sob a geografia de Montana nos Estados Unidos. Entre os pilares de Dern, Stewart, Williams e Gladstone: vemos certos confrontos e buscas individuais por uma voz, uma noção de diálogo e existência dentro de seus mundos particulares. A narrativa - adaptada de três contos independentes de Maile Meloy - foge do melodrama barato, sendo mais intimista e discreta, sem trilha sonora intrusiva, permitindo cenas de integração entre personagens no senso “gente como a gente”. O filme funciona como retrato do feminino, frente à opressão masculina, durante anos. São “blocos cênicos” que dividem recortes de quatro contextos de/sobre mulheres tendo que estabelecer algum ajuste. E não deixa de ser um formato que exibe os efeitos de tempos históricos dos Estados Unidos em que pessoas comuns permanecem à procura de algum eixo.
O linchamento social como punição. A crítica lançada em 1976, ainda presente no seio da atualidade. A ação desenvolve as perspetivas do velho rabugento (o ótimo Jofre Soares), sem condições financeiras, o nordestino solitário que azucrina as pessoas no Morro Agudo, no Rio de Janeiro. Luiz Paulino dos Santos exibe sem pressa a convivência e as noções comportamentais deste indivíduo e dos demais moradores no local - para, só depois, colocar a premissa em questão.
O homem em momento de curiosidade, observa uma das moradoras tomando banho nua (uma Marieta Severo com 30 anos), é quando é alvo da comunidade que o arrasta para um processo de violência e condenação brutal. Com cenas e situações que exploram o olhar de uma sociedade que cria regras e condena o indivíduo ao seu modo próprio, numa referência clara ao nosso sistema em que as pessoas nem sempre buscam o sistema judiciário para condenar o outro - sujando as mãos com agressividade.
Paulino dos Santos exibe a nítida via crucis, na figura do velho vitimado e sofrendo no corpo as marcas de uma comunidade que não dá espaço para diálogo - a cena em que tentam crucificá-lo em uma cruz é uma analogia ao Cristo. Há um olhar perverso dentro da forma cênica. Ironicamente, o filme exibe um sincretismo religioso, tanto nas figuras do fanatismo dos evangélicos (moradoras eufóricas e histéricas na igreja) ou em sequências de cunho dos rituais do candomblé. Tanto um quanto o outro, condenam o velho à morte, mostrando que ninguém está livre do julgamento.
A sede do sucesso que se dilui. Ou quando a persistência desmorona sonhos. Um olhar verifico sobre a trajetória de Jimmy Piersall, desde menino ao sucesso na liga principal de beisebol. A direção emocional de Robert Mulligan percorre as vivências familiares desta figura real para depois destrancar dilemas. Temos a defesa interpretativa de um excelente Anthony Perkins - entende a dor que este personagem enfrenta com um roteiro que trabalha duas tônicas na ação.
Primeiramente, dentro de casa onde o jovem sofre pressões por parte de um pai autoritário (um imponente Karl Malden) que o tolhe de todas as formas, privando de quaisquer anseios a não ser se fixar ao papel de jogador. Segundo, a narrativa exibe o tormento ao desconstruir a figura sadia e propensa ao sucesso deste jogador, ao se configurar com problemas psico-emocionais - sendo preso em um sanatório.
Como manter a serenidade diante de tantas pressões ao redor? O filme exibe a fragmentação de um homem. Mulligan exibe um recorte episódico, correto nas situações dos fatos que ocorreram na vida deste indivíduo, mas cuidadoso ao exibir as perspectivas emotivas sobre um ser humano que teve o intelecto e a aptidão colocadas à prova, condenado por pressões que levaram ao transtorno físico e emocional.
Pratos à mesa. Não é a toa que a primeira sequência exibe bem a tônica que o formato narrativo decide externar: a aparente harmonia familiar em um almoço de um dia qualquer, solar e íntimo, que se converte em indisposições e dores antigas - culminando na chuva que desaba literalmente sobre os pratos, talheres e corpos frente a frente em discussões calorosas. Laís Bodanzky expõe a ferida através do olhar diante da relação de pais e filhos.
Só que o senso de sentimentalismo aqui foge do aspecto de união ou “afago”, evidenciando o apreço pela melancolia e desconstrução de cada um - em especial a transformação da personagem de Maria Ribeiro que norteia o sentido que o cênico narrativo quer nos fornecer: a mulher que descobre que não é filha do pai que a criou; a representação do feminino independente, na era em que o feminino age com atitude e busca pelo seu idealismo frente à sociedade que a tolhe.
Mas, ironicamente, se descobre fragmentada no casamento sem diálogo afetivo (o marido defendido por um Paulo Vilhena bem sólido em cena), ou na fragilidade que se apresenta com a ausência de interação com sua mãe (Clarisse Abujamra, natural e precisa). Bondansky utiliza a instabilidade emocional e do mundo que parece ruir ao redor desta mulher de 38 anos que simboliza o indivíduo da atualidade, permeado de inseguranças e desalento familiar. Sem trilha sonora intrusiva e modulações pra provocar algo, é o trabalho de direção mais maduro da cineasta.
“Não quero mais fingir que sou uma mulher que dá conta de tudo. Eu não dou conta de tudo", diz em dado momento a mulher que precisa estabelecer um sentido em seu mundo - Maria Ribeiro se despe em uma atuação sincera, com propriedade e humana, sem medo de errar no tom. Como encontrar-se e ter um eixo numa vida que parece perder o sentido? Algumas perguntas são lançadas neste roteiro sensato sobre núcleos familiares que se desajustam e pessoas que mesmo com laços de sangue, parecem preservar exímias desconexões. Ao passo que os personagens parecem buscar um alento entre eles, é que o roteiro expõe esse processo de crescimento e maturidade. Um filme que exibe as angústias dos reflexos de relações entre mãe e filha; anseios pessoais e memórias familiares que merecem ser preservadas.
“O que pode ser descrito com palavras não tem nada a ver com o real”. A angústia do desejo. Ou quando a infidelidade parece um impulso presente. Sang-soo, aqui, reforça que até para o âmbito do olhar masculino - existe a consequência da fragilidade do desejo. Através do protagonista (o ótimo Kwon Hae-Hyo), com toda sua melancolia visível, observamos o centro de seu conflito: a entrega ao que sente.
Os alicerces da traição masculina são expostos em um microcosmo: temos o editor em um casamento de abandono; a relação que chega ao fim com a sua amante e o aflorar de um novo tesão com a sua nova funcionária (Kim Min-hee, fetiche do cineasta, que protagonizou anteriormente o “Na Praia À Noite Sozinha”). A fotografia monocromática, fixada em tons de brilhos claros, e manipulações de câmeras estáticas que vai e vem nos habituais zooms característicos do Soo, permanecem próximos aos diálogos que seus personagens promovem em cena.
A aparente “trivialidade” exposta, como traço do cotidiano, permanece como indício narrativo. São cenas e mais cenas de diálogos montados, até planos sem corte de blocos cênicos de cinco ou seis minutos. E aqui a discussão exibe o protagonista tendo que lidar com seus desejos, sem nunca ser julgado ou malhado por um roteiro naturalista que o compreende. Enquanto temos uma ação que se desenvolve em um só dia, versando sobre relações instáveis, apáticas e abaladas, Sang-soo coloca este homem em meio a três mulheres em uma elipse narrativa de diálogos sobre a existência da frágil carne humana.
A ótica sobre a maldade que permanece desde a formação psicológica infantil. A tônica de horror é exposto em um roteiro que cria, dentro da própria caricatura intencional, a noção da malícia e da perversão comportamental - a menina que ouve, desde cedo, histórias de horror e internaliza tais noções. Tais histórias de bruxaria e maldade influenciam as percepções da menina que passa a se “contaminar” com certos anseios e potencializa a sua imaginação pra algo mórbido. Seria ela uma bruxa ou teria poderes? Ou tudo seriam exponenciais mentais? Interessante o formato cênico do filme - nunca vemos os rostos dos adultos, sempre de “costas” ou filmados do ombro pra baixo. O olhar é para e sobre os sensos infantis. Por vezes, tais insinuações de horror psicológico lembra uma representação do universo do Guillermo Del Toro quando insere a protagonista mirim na interação com uma amiga, elevando a amizade à consequências sinistras e até subjetivas na invocação do belzebu.
O Gato Preto
4.1 54 Assista AgoraO mórbido lúdico. O conto nipônico que não se debruça, somente, a uma superficial releitura do clássico de Edgar Allan Poe. Kaneto Shindô conceitua seu cinema em cima da persona feminina, a representação da vingança para construção da personalidade de Mulher que se vinga. O direito de ir contra ao poderio machista? A ótica segue a mulher e nora que são violentadas e assassinadas por samurais errantes. É quando a narrativa se transmuta de sinistro para conceituar a vingança.
Shindô, sob o exercício da fotografia em chiaroscuro, coloca-nos próximos desta trajetória minimalista e sobrenatural. Inclusive, com doses eróticas cênicas. Um horror elegante e dotado de poesia visual. Não deixa de ser um diálogo sobre a Morte e também sobre o que plana a atmosfera fora do terreno vital. O que temos é um espiritualismo que brinca de tecer uma crítica à certas tensões japonesas sociais, através das defesas de mulheres à frente do seu tempo, emulando a perversão pra simbolizar o direito de escolha e personalidade. Pra não se tolher, resta a atitude sangrenta.
Fiore
3.1 6O ato subversivo. Logo de início, a projeção investe em dez minutos de insinuações e cenas que caracterizam o comportamento transgressivo da protagonista. A jovem que rouba transeuntes sem medo da punição nas imediações de um metrô. Logo entende-se que ali é o centro de onde vai partir a crítica narrativa. Claudio Giovannese mantém a câmera próxima das pessoas que quer retratar, como artifício pro estímulo “naturalista” que quer criar em cena. Dafne (Daphne Scoccia), a típica adolescente sem perspectivas e mal educada pela vida oprimida, parte para a realidade dentro do cenário do reformatório. É lá que temos a insinuação sentimental, no qual a moça conhece na ala masculina um prisioneiro que passa a se corresponder e a estabelecer um elo de tesão e afinidade. Giovannese segue o padrão habitual dos trabalhos cinematográficos que exibem as vivências e dificuldades sob o teto da prisão, a dinâmica e rotina dentro deste ambiente, para percebemos a violência e amarga situação em que se encontra a sua personagem em foco.
Lucky
4.1 193 Assista Agora“Nós entramos sozinhos. E saímos sozinhos”. O caminhar de uma rotina sistemática, da solidão, da personalidade de uma figura humana envelhecida. Uma ode à finitude da vida. Os primeiros minutos da narrativa expõem o caráter pessoal deste personagem em seu modo de ser e agir. Tanto o chapéu de cowboy ou as botas que coloca, ou a gaita que entoa, fazem de Lucky um indivíduo próprio em seu habitat melancólico.
“O realismo é uma coisa. É a prática de aceitar uma situação tal como ela é. E está preparado para lidar com ela”. Através da defesa de Harry Dean Stanton, no seu último papel e, sem duvida, melhor interpretação de sua carreira, compreendemos que ali existe um filme sobre fragilidades do fim de vida. John Carroll Lynch nos coloca próximos do cotidiano deste homem embrutecido pelo tempo, pela vida e pelo sol de memórias de um passado. Entre conversas com pessoas que o rodeia, na localidade, vamos nos situando com essa persona.
Enquanto Lynch desconstrói a natureza do cotidiano deste homem, o prepara (ou nos coloca) para a eminência da morte. Quando sofre um acidente dentro de sua casa, a câmera logo corta do aparente vigor para a insegurança da velhice: Lucy se depara em um posto médico, ao lado de uma idosa, no símbolo do confronto de sua possível debilidade. Como alguém de 92 anos percebe que envelhece? Trata-se do olhar em torno de alguém que percebe a sua própria fragilidade. A sequência dele sentado, na penumbra do quarto, fumando e com a música de Johnny Cash tocando, é um dos momentos mais belos que um filme pode criar sobre a solidão. “Então, eu vejo a escuridão. Então, eu vejo a escuridão”.
É um trabalho intimista. Não é a toa que a câmera de Lynch traça um diálogo com este homem, sempre colada à fronte ou atrás de seus passos metódicos e repetições do dia; ou mesmo quando sua preocupação e saúde comprometida se acentua na narrativa. Tal qual os cactos que povoam o lugarejo que mora, existe em Lucky certos fantasmas que persistem em sua jornada, pouco a pouco vem à tona sob nossos olhos marejados.
O Preço de um Prazer
3.8 12Um olhar sobre a falta de compreensão. O que temos é a perspectiva feminina, acima de tudo. Um filme que exibe lá na década de 60: a noção da mulher sem falta de acolhimento. Natalie Wood foi nomeada ao Oscar de Melhor Atriz por defender as dores e dilemas desta persona fragilizada, vitimada, sem opções diante da gravidez inesperada. A típica feminina que se envolve sexualmente com um homem a quem não lhe proporciona segurança e atendimento.
Neste caso, um Steve McQueen no arquétipo machista e viril, o indivíduo que se nega a prestar não só apoio, mas a solidariedade a essa mulher que decide fazer um aborto. O olhar da direção de Robert Mulligan exibe certos julgamentos daquele tempo, mas, sem nunca colocar a culpa em cima da figura da mulher.
No desenvolvimento do roteiro, vemos a aproximação demarcada pelo drama deste casal em problemática. Wood assume a protagonista delicada, pois sua Angie Rossini é católica e decidida em seus preceitos. Diferente da personalidade de Rocky Papasano, com a esperteza da atuação de McQueen, que, aos poucos, vai se desconstruindo à favor da condição do desamparo feminino. Sob a melancolia de uma trilha sonora bela de Elmer Bernstein, temos um diálogo sobre o afeto que merece ser redescoberto.
Além das Palavras
3.5 44 Assista Agora“Poemas são meu consolo pela eternidade que nos rodeia”.
O Estudante
3.5 51Retrato do fanatismo religioso que contamina a sociedade. Através da personificação do estudante do título, o temperamental Veniamin (Pyotr Skvortsov), vemos o típico ser humano que se esmera no estudo da escrita bíblica e utiliza de citações e interpretações das leituras e parábolas para constituir suas ações.
Eis um católico fervoroso em ação. O jovem crítica e verbaliza contra a todos de acordo com suas visões religiosas, repele e se indispõe com quem é contra a ele, sempre usando ditados e argumentações que retira do testamento. Cada versículo que profere faz parte de seu lema de vida. Agressivo, torna-se ortodoxo e segue tudo ao pé da letra.
A direção investe nessa perspectiva deste jovem que abala as convicções da mãe, entra em conflito com a professora que é racional e com demais colegas. O ciclo de fanatismo e euforia ganha maior proporção dramática, quando percebemos que temos um jovem que não só se submete à aparência fanática, mas talvez um certo desgaste psicológico.
Curioso como o roteiro exibe, também, as influências que o jovem passa a exercer nas pessoas que convive: como se os obrigassem a serem seus discípulos. Um filme que destranca não só dilemas e situações de uma juventude ou do extremo do fanatismo, mas, também, sobre o que existe por baixo dos tapetes de uma Rússia instável.
Frantz
4.1 120 Assista Agora“Os longos trinos dos violinos de outono, ferem a minha alma em um langor de calma. Sem ar e pálida, quando soa a hora, lembro-me do passado e choro. Assim, vou-me ao vento, que me leva em um vai e vem; como uma folha morta em algum lugar do destino”.
Noites Brilhantes
2.6 5O diálogo como construção de uma relação, até então, firmada na ausência. Pai e filho em jornada de autoconhecimento, da busca por entendimento mútuo, de arestas que permaneceram durante anos. Sob a paisagem fria e fotografia com tons cinzentos da Noruega, captamos a tônica melancólica que a direção nos fornece.
Trata-se de laços mecânicos e frios que precisam se aquecer para estabelecer um sentido. Thomas Arslan usa o silêncio das respirações dos personagens, livre de trilhas intrusas, para promover o contato do vestígio do cotidiano. Como veremos o florescer deste contato entre pai e filho que mais parecem desconhecidos? A câmera os segue, andarilhos, entre belos recortes de paisagens, exibindo essa aproximação latente.
Michael (Georg Friedrich, em uma atuação vencedora do Urso de Prata em Berlim) representa o pai ausente e fracassado no sentimento paterno, o indivíduo que acorda para os atos falhos e tenta conhecer o filho indisposto - Luis (Tristan Göbel), o típico jovem cheio de rancor e cicatrizes de uma educação sem afago. Um intimista e pequeno tratado sobre as relações entre pais e filhos e mágoas que se afirmam para uma combustão de humanidade entristecida pela ausência do outro.
Marjorie Prime
3.4 43 Assista Agora“Sinto como se estivesse que atuar próximo de você. “
O que fazer quando só a memória parece se manter? Diante da ausência, o conforto de um holograma, que serve como espécie de consolo e auxílio à vida de uma mulher que ainda preserva a memória do marido morto. Baseado na peça de Jordan Harrison, Michael Almereyda investe neste panorama complexo de um futuro tão próximo e verdadeiro que até causa desconforto. Marjorie (Lois Smith) vivencia o Alzheimer que assola não só seu corpo, mas a condição de sua alma também. E se alimenta da figura do holograma programado pra estabelecer um elo com as suas convicções e percepções antigas - a condição de depositar suas visões e lembranças do marido na representação de um ser falso (John Hamm).
Memórias, personalidade e comportamentos são reconstruídos, constantemente, neste holograma que tenta ao máximo satisfazer o emotivo e lado sentimental desta mulher que não esquece o homem que tanto amou. “Deveria me sentir triste pela forma como você fala comigo?”. A fita exibe essa tônica sobre a condição desconfortável que reina, dentro do seio familiar e da intimidade do cotidiano, por conta da dependência e de presença de uma inteligência artificial que acaba por condicionar a pessoa no acalento ilusório.
A linhagem da cuidadosa direção de Almereyda estabelece diálogos, focos nas interações dos personagens - como a presença de coadjuvantes consistentes como Geena Davis e Tim Robbins -, que dão vazão à crítica da sociedade que se firma em prestações artificiais, plásticos e prejudicados por falta de relações mais construídas no corpo a corpo. Por que nos relacionamentos com holograma se ainda há humanos ao redor?
Ironicamente, tais hologramas parecem amparar não emocionalmente essas relações que se constrói com os humanos - inclusive, agindo como espécie de “psicólogos”, já que fornecem influências em cima das ações e das fragilidades. Como a relação entre Marjorie e o holograma do seu marido juvenil.
Como suportar a perda de alguém? Trata-se, acima de tudo, sobre como o luto nos coloca na amargura e na linha do desespero. A protagonista utiliza do holograma para não apagar a memória de alguém que foi essencial na sua condição humana. Entretanto, perde-se, também, na fragmentação de sua conturbada memória.
Mais que um formato de ficção científica intimista, é um filme que trava a linha sobre a humanidade melancólica em não saber sobreviver diante da morte de alguém querido. É sobre envelhecer, é sobre caminhar com a solidão. Lois Smith assume a personagem com nuances de acordo com a forte posição de sua protagonista que nos coloca na reflexão de sua vida que se despe pouco a pouco. Toda a narrativa norteia-se em cima das situações de como uma memória é capaz de nos organizar e também desorganizar o que aparenta solidez. Um trabalho comovente de como é difícil lidar com perdas que nos permite tropeçar nos caminhos tortuosos da vida.
Jonas e o Circo sem Lona
4.2 33“Por que você está fazendo um filme sobre meu circo?” A infância em sua odisseia dos sonhos. A imaginação que remove as percepções de uma realidade cruel. Jonas e sua peregrinação pelos caminhos do mundo circense que cria sua própria condição infantil. O olhar naturalista de um menino imerso nos sonhos que acredita, nos anseios de uma esperança que não se perde.
A câmera colada à face é constante, o olhar delicado e cuidadoso de Paula Gomes percorre a intimidade e cotidiano de uma infância que foge das marcas das dores, da dificuldade financeira e, principalmente, das inseguranças de um mundo sem perspectiva. A zona periférica de Salvador pode muito bem ser revelada e refletida em outros locais do nosso Brasil, em que a sociedade empobrecida e alheia ao sistema da desigualdade, necessita vencer.
A linhagem aqui é direta, real, sem devaneios. Gomes retrata a vida deste menino que vagueia de acordo com seus sonhos e também dilemas que refletem em seu processo de amadurecimento. No precário circo improvisado e ao lado de seus amigos que dividem a mesma condição de vida, Jonas é a representação de nosso futuro atual - o abandono, a falta de afago e o humano que parece melancólico à felicidade que nunca o atinge. E é dentro desse ambiente de devoção e vivência com o circo, é que Jonas estuda e compreende as noções de mundo. Acima de tudo, um rito sobre a infância que se dilui na adolescência.
A visão da cineasta cria planos e usa de artifícios encenados propositais - obviamente algumas passagens, ali, são conduzidas para que esta visão cinematográfica não precise de narrações ou verbalizações diretamente pra câmera. Gomes faz com que esses “atores reais” desabafem e permaneçam reais sob nossa observação silenciosa. Um retrato sobre sonhos e condições daqueles à margem de.
O Ornitólogo
3.5 84A jornada de peregrinação tal qual os caminhos que os eremitas percorrem, em Trás-os-Montes, no norte de Portugal. O homem em meio à própria catarse existencial. Se na era da tradução cristã, a virtude e a transcendência eram alcançados pela ausência do desejo - aqui, o personagem principal se depara com os demônios internos da dor do desejo, da comunhão do prazer com a natureza ao redor que o absorve e o desorganiza.
João Pedro Rodrigues brinca com as perspectivas, com simbolismos e provocações extremas ao nos colocar próximo de Fernando - o indivíduo que se reencontra, Corpo e Alma, com a fonte natural. Visto como uma alegoria de Santo Antônio de Pádua, existem maiores camadas que não devem ser desprezadas em seu formato e narrativa.
No superficial olhar, temos o personagem que percorre rios e florestas, após sofrer um acidente e quase sugado pela correnteza. No olhar mais profundo, temos uma narrativa que evoca o folclore, o oculto e o que se encontra por trás do real - não é a toa que as leituras proposta por Rodrigues vão além do que reside na casca. Seria a odisseia íntima sobre uma santificação de um homem comum?
O roteiro flerta com as perspectivas do personagem, já que ele encontra duas garotas chinesas oriundas dos caminhos de Santiago de Compostela; um jovem pastor mudo e surdo e gay!; amazonas desnudas que se mesclam à integrantes de tribos aparente hostis. Sonhos, devaneios ou articulações de nosso histórico de mundo diante dos efeitos da atualidade?
Um filme que exibe referências religiosas, dialoga sobre símbolos profanos e culmina em um estudo sobre o humano. Rodrigues nos coloca sobretudo na visão e sensações deste homem em processo de transformação que culminará em algo além. É o profano que se transfigura em algo sagrado? A sexualidade surge como uma das características, tão habitual no universo de Rodrigues, mas não direciona só neste foco: já que temos um trabalho de digressões até sensoriais. Sim, um filme bastante questionador em suas mensagens.
À Beira Mar
3.1 222 Assista Agora“Tínhamos uma vida que não poderíamos imaginar”. As intransigências de um casamento falido. Angelina Jolie recria o relacionamento em frangalhos, através da relação conflituosa em um cenário nos meados da década de 70. Vanessa (Jolie) e Roland (Pitt), se hospedam na França, na tentativa de explorar alguns entraves do cotidiano: a recuperação de um matrimônio firmado em tédio e distância. Enquanto ele tenta dar prosseguimento à criação do seu livro, ela tenta estabelecer um contato consigo mesma. Jolie cria a direção focada nos planos, na narrativa lenta e na exibição deste casal que tenta se reajustar. Compreende-se, ali, a ótica sobre uma relação permeada de dores e cruas mágoas. A ambientação amorosa, sob a trilha sensual de músicas de Serge Gainsbourg e Jane Birkin, transmite a atmosfera de intimidade.
No princípio, vemos a chegada do casal ao cenário de luxo e suntuoso hotel, ironicamente um lugar imponente e de harmônica arquitetura, local no qual será o desmoronamento íntimo de diálogos e rancores. Jolie cria a atmosfera de falência sentimental e nos coloca próximos deste casal que sente a necessidade de retomar o elo perdido - e também o desejo. Não é a toa que ambos observam o vigor e energia sexual de um casal que se hospeda ao lado (Mélanie Laurent e Melvil Poupaud, ótimos em cena), mostrando que ali existe uma representação de matrimônio e libido que causa admiração - e inveja.
Angelina Jolie foge de tons exagerados no melodrama, optando por uma encenação formada mais em diálogos e respirações de seu universo intimista. É um trabalho sóbrio sobre as rupturas do amor e as sombras que invadem as relações cansadas. Curiosamente, vemos a ficção que também acaba por dialogar com a sua própria vida - já que, na época, a atriz vivia o fim de seu casamento de anos com Brad Pitt. Ambos promovem o diálogo sobre a desconstrução a dois de maneira natural e convivente. E quando o roteiro exibe certos segredos que vem à tona, compreendemos que ali é um conto mais sobre amor machucado que precisa se reerguer.
Bom Comportamento
3.8 392Um dia de cão. Ou a jornada íntima ao inferno. Trabalho criativo e autoral estabelecido pelos irmãos Josh e Benny Safdie. A representação de uma Nova York permissiva à decadência e à instabilidade da insegurança diante de crimes e violência constantes. A leitura do roteiro mostra a relação entre o desajustado criminal, Connie (um Robert Pattinson totalmente transparente e inteligente em cena) e seu irmão com problemas mentais, Nick (o próprio Benny). O que parece ser um conto sobre uma relação familiar, permeada na vivência da criminalidade e comportamentos erráticos, logo se fragmenta em outros níveis quando o filme exibe suas intenções: a jornada de Connie em resgatar seu irmão de todas as formas.
Com um ritmo de constante construção de tensão, dentro de tons “realistas”, a direção dos Safdie coloca-nos próximos dos olhares nervosos e da voz entrecortada do personagem de Pattinson que parece se envolver em uma gradual teia de infortúnios - um novelo de lã que vai se alimentando com as situações de riscos que parecem se colocar à frente deste homem tido como marginal e perigoso, mas que pouco a pouco é desconstruído pelo roteiro com um olhar que o humaniza.
A estética de tons escuros, cores azuladas e vermelhas, se mesclam à atmosférica trilha sonora de Oneohtrix Point Never que cria uma aura que flerta com o psicodélico e também um aspecto macabro. Uma sonoridade de sintetizadores que nos remetem aos filmes do John Carpenter. Não é a toa que vemos uma cidade suja, soturna e estranha, um cenário social onde esses humanos amorais e à margem se destacam. O cinema aqui nos remete aos da década de 70, como os de John Cassavetes que exibiam a verve naturalista urbana. Sim, um filme sobre a desordem e o caos social dos à margem de.
Esse aspecto de “descida ao inferno”, que afoga o protagonista, na realidade funciona como uma ladeira desordenada de eventos aflitos e infelizes que o acometem - e o impedem de chegar ao seu desejo. A direção é muito cuidadosa em criar essa sensação de melancolia e angústia que rodeia à figura de grande interpretação de Pattinson - emprestando ao indivíduo uma urgência de resgatar o elo familiar que tanto considera, mas, ao mesmo tempo, colocando-o no limite de sua própria aparente sanidade. A montanha-russa é amarga e crua.
Por isso mesmo, o filme começa com o personagem de um jeito fisicamente e depois passa a moldá-lo - como os cabelos que mudam de cor, penteado e a fragilização física que se acentua em uma face com ferimentos. Pattinson assume o melhor papel de sua carreira, até agora, com a verdade interpretativa com seus olhos vidrados e ansiosos - quase como um drogado. Eis o protesto contra um sistema que o pune? Será que este ser marginal terá chances de prosperar? As perguntas são feitas enquanto a narrativa explode sem receios e o cinema dos irmãos Safdie exibem a face agressiva de uma humanidade que vaga, perdida e inconsolável, pelas ruas sombrias de uma Nova York sem aparente consolo e piedade.
Nas Garras do Vício
3.9 28O retorno às origens. Ou o reencontro com suas memórias. Claude Chabrol conceitua a Nouvelle Vague na estética social, a câmera na mão que percorre os personagens por um vilarejo na França - o encontro de dois amigos. François que retorna e encontra o símbolo de sua infância, Serge, em uma miserável condição - a química entre Jean-Claude Brialy e Gérard Blain transmite a cumplicidade e a tônica da intimidade de uma amizade sentimentalista. Ironicamente, o subtexto homoafetivo parece evidente já que há certos diálogos e emulações que demonstram um interesse mais além.
A sutileza de Chabrol é capaz de permitir esse sentido, ainda que o filme claramente percorra outros objetivos, como a crítica à sociedade vitimada por um sistema precário e que a tolhe de prosperar financeiramente. Enquanto temos o olhar amadurecido do homem que prosperou e retorna à sua cidade, temos a amargura de ver seu amigo preso em suas condições e sem possibilidades de sair da teia da infelicidade. Blain, com sua jaqueta a la James Dean e virilidade comportamental típico de um Marlon Brando, exibe a figura máscula de um condenado socialmente. Qual dor maior que ver um homem que abdicou de seu sonho de ser um arquiteto e torna-se um caminhoneiro fracassado? Uma atuação forte de um ator que representa um homem perdido na frustração.
Chabrol coloca o tédio e o marasmo em pauta, na representação dessas pessoas que se estagnaram na vida. O vilarejo exposto em meio à degradação física e a falta de progresso, fazem da narrativa o atestado de um mundo fragmentado e sem sucesso após turbulências de anos de uma Segunda Guerra conflituosa. Também, um retrato sobre mulheres vítimas do machismo - como a esposa grávida de Serge que recebe o desamparo do desafeto; ou a avançada liberal sexualmente, feita por uma estonteante Bernadette Lafont em cena, que é falada por todos do vilarejo.
Acima de tudo, uma exposição neorrealista sobre as dificuldades humanas, de acordo com uma direção que não se preocupa em condenar os personagens com julgamentos - mas, sim, humanizá-los. E são cenas bem concebidas sobre esse sentido, reforçadas por um dos símbolos da fotografia da Nouvelle Vague, Henri Decae.
Valerie e Sua Semana de Deslumbramentos
3.9 191 Assista AgoraO rito da passagem da infância para a crua realidade do adulto. Ou a virginal que se fragmenta. A transformação feminina, sob a ótica de Jaromil Jires, um dos nomes do surrealismo do cinema na Tchecoslováquia. Não è toa que logo no início da projeção, observamos a jovem que desabrocha hormonal e psicologicamente - na representação da menstruação, através do sangue que se projeta em pingos em uma flor margarida. A referência clara só dimensiona o que o filme quer nos fornecer: a psicologia sexual.
Inúmeros são os símbolos usados ao longo de uma narrativa que até soa simples em sua intenção. A iniciação ao mundo da libido da protagonista é feita através da sua imaginação que se potencializa, mesclando o traço real com o subjetivo - vampiros e monstros habitam seus mundos, como percepções que representam seus desejos mais ocultos. Nada mais que articulações sobre a repressão de um ser humano, na auto-punição - a cena em que se direciona, tal qual Cristo, na cruz, numa igreja, exemplifica esse sentido. Valerie sofre pelos desejos que sente.
Ao mesmo tempo em que temos um retrato da juventude que se atira aos seus anseios, vemos a jovem em seu processo de repulsa - por isso mesmo, Jirel nos provoca, colocando as visões e delírios desse feminino de maneira próxima. Há uma crítica à oposição do cristianismo com o paganismo - como as figuras dos padres sexualizados e abusivos; ou mesmo na caracterização dos fiéis carocas que fazem parte de uma seita religiosa rígida e com aparência mórbida. A narrativa explora as perspectivas destas ebulições carnais e emocionais, sob uma ótica sensorial, quase uma "Alice no país das Maravilhas" macabra. Um New Wave Tcheca que explora bem o que jaz por trás das máscaras humanas.
Prometo Um Dia Deixar Essa Cidade
2.5 14“Eu tenho consciência do que as pessoas pensam sobre minha alma”. A reinserção na sociedade - ou dentro de si mesma? A mulher que precisa retomar as rédeas não só do cotidiano e das satisfações sociais, mas assumir a sua própria responsabilidade consigo. O cenário é em Recife, mas cabe perfeitamente em qualquer cenário. Ex-drogada, ex-limada existencialmente? O diálogo é direto, entre a lucidez e o delírio, o direito feminino de protesto contra um sistema que a tolhe - e a fere com julgamentos de conveniências. A direção de Daniel Aragão nos coloca próximo da angústia e da personalidade defendida por uma Bianca Joy Porte que revela o processo conturbado que é se assumir como é, buscando uma nova posição em um mundo que padece de acolhimento - tanto afetivamente (no teor sexual com o envolvimento com o personagem do Sérgio Marone) ou familiar (a fria interação com seu pai político, feito por Zé Carlos Machado). E como fugir do medo de fracassar por conta de tentações ainda presentes? Um retrato sobre a necessidade de emergir diante das próprias sombras criadas ao longo da vida.
Columbus
3.8 129O fardo dos pequenos acúmulos do cotidiano. Ou quando habita, em nós, a insistência da sensação de ser incompleto. Irônico observar logo no início, na projeção de cenas de planos abertos e silenciosos, que exploram o conceito principal que a narrativa quer externar: o contraponto da solidão entre uma vasta arquitetura?
Kogonada nos coloca próximos dos silêncios, das respirações e de diálogos constantes entre pessoas que se cruzam na cidade de Indiana, no símbolo do modernismo, uma meca arquitetônica. Lá se confrontam os pilares existenciais da bibliotecária sonhadora e também amante da selva de pedra (um excelente Haley Lu Richardson), seu colega intelectualista falante (Rory Culkin) e o filho de, olha só, um arquiteto famoso que vem à cidade pra resolver certas questões no familiar (John Cho, natural ao extremo).
A ponte de diálogos e aproximações destas pessoas em cena dita sentidos sobre amizade, carências e também dilemas onde fragilidades humanas são estabelecidas. Kogonada cria tomadas e cenas em que bases de interações destes personagens são formadas em diálogos, isento de trilha sonora intrusiva, para exemplificar esse jogo dialético.
O discurso, vagamente, nos associa a exemplos de integração entre solidão e carência como o exposto por Sofia Coppola em “Encontros e Desencontros”, no qual duas pessoas fecundam uma intimidade e contato em contraponto com a vastidão de um local que os submete à contemplação e também à estranheza.
Casey e Jin se buscam e se submetem a uma desconstrução psicológica que fornecem o toque com o humano; o encontro de duas pessoas para sanar arestas e conceber pontes de aprendizados entre elas. Diante de conversas sobre fortalezas da arquitetura, desabafos e afetos, Kogonada nunca excede no tom emocional - ainda que seja um filme sobre a emoção que se desperta. Articulando-se com uma fotografia de tons mais frios à rígida formalidade de uma arquitetura no enquadramento, o palco cênico de conversas são exercidas entre duas pessoas em busca de si mesmos.
Os Segredos de Tanner Hall
3.0 82 Assista Agora"Conhecer o lado mais escuro dos outros, de alguma forma, nos conectou, e nos redimiu.. O modo como dois negativos formam um positivo. O jeito como seus olhos se ajustam à escuridão. Somos um elo”.
Certas Mulheres
3.1 76 Assista Agora“A verdade é que se eu fosse um homem e explicasse as leis, as pessoas ouviriam e aceitariam”. Uma narrativa que se propõe a expor as ânsias e dilemas do feminino sobre o feminino. O olhar de Kelly Reichardt é uma crônica do ser mulher: aborda os traços dos cotidianos de mulheres de diferentes vidas e perspectivas, mas dentro de irônicas aproximações sensíveis sob a geografia de Montana nos Estados Unidos. Entre os pilares de Dern, Stewart, Williams e Gladstone: vemos certos confrontos e buscas individuais por uma voz, uma noção de diálogo e existência dentro de seus mundos particulares. A narrativa - adaptada de três contos independentes de Maile Meloy - foge do melodrama barato, sendo mais intimista e discreta, sem trilha sonora intrusiva, permitindo cenas de integração entre personagens no senso “gente como a gente”. O filme funciona como retrato do feminino, frente à opressão masculina, durante anos. São “blocos cênicos” que dividem recortes de quatro contextos de/sobre mulheres tendo que estabelecer algum ajuste. E não deixa de ser um formato que exibe os efeitos de tempos históricos dos Estados Unidos em que pessoas comuns permanecem à procura de algum eixo.
Crueldade Mortal
3.5 10O linchamento social como punição. A crítica lançada em 1976, ainda presente no seio da atualidade. A ação desenvolve as perspetivas do velho rabugento (o ótimo Jofre Soares), sem condições financeiras, o nordestino solitário que azucrina as pessoas no Morro Agudo, no Rio de Janeiro. Luiz Paulino dos Santos exibe sem pressa a convivência e as noções comportamentais deste indivíduo e dos demais moradores no local - para, só depois, colocar a premissa em questão.
O homem em momento de curiosidade, observa uma das moradoras tomando banho nua (uma Marieta Severo com 30 anos), é quando é alvo da comunidade que o arrasta para um processo de violência e condenação brutal. Com cenas e situações que exploram o olhar de uma sociedade que cria regras e condena o indivíduo ao seu modo próprio, numa referência clara ao nosso sistema em que as pessoas nem sempre buscam o sistema judiciário para condenar o outro - sujando as mãos com agressividade.
Paulino dos Santos exibe a nítida via crucis, na figura do velho vitimado e sofrendo no corpo as marcas de uma comunidade que não dá espaço para diálogo - a cena em que tentam crucificá-lo em uma cruz é uma analogia ao Cristo. Há um olhar perverso dentro da forma cênica. Ironicamente, o filme exibe um sincretismo religioso, tanto nas figuras do fanatismo dos evangélicos (moradoras eufóricas e histéricas na igreja) ou em sequências de cunho dos rituais do candomblé. Tanto um quanto o outro, condenam o velho à morte, mostrando que ninguém está livre do julgamento.
Vencendo o Medo
3.5 4A sede do sucesso que se dilui. Ou quando a persistência desmorona sonhos. Um olhar verifico sobre a trajetória de Jimmy Piersall, desde menino ao sucesso na liga principal de beisebol. A direção emocional de Robert Mulligan percorre as vivências familiares desta figura real para depois destrancar dilemas. Temos a defesa interpretativa de um excelente Anthony Perkins - entende a dor que este personagem enfrenta com um roteiro que trabalha duas tônicas na ação.
Primeiramente, dentro de casa onde o jovem sofre pressões por parte de um pai autoritário (um imponente Karl Malden) que o tolhe de todas as formas, privando de quaisquer anseios a não ser se fixar ao papel de jogador. Segundo, a narrativa exibe o tormento ao desconstruir a figura sadia e propensa ao sucesso deste jogador, ao se configurar com problemas psico-emocionais - sendo preso em um sanatório.
Como manter a serenidade diante de tantas pressões ao redor? O filme exibe a fragmentação de um homem. Mulligan exibe um recorte episódico, correto nas situações dos fatos que ocorreram na vida deste indivíduo, mas cuidadoso ao exibir as perspectivas emotivas sobre um ser humano que teve o intelecto e a aptidão colocadas à prova, condenado por pressões que levaram ao transtorno físico e emocional.
Como Nossos Pais
3.8 444Pratos à mesa. Não é a toa que a primeira sequência exibe bem a tônica que o formato narrativo decide externar: a aparente harmonia familiar em um almoço de um dia qualquer, solar e íntimo, que se converte em indisposições e dores antigas - culminando na chuva que desaba literalmente sobre os pratos, talheres e corpos frente a frente em discussões calorosas. Laís Bodanzky expõe a ferida através do olhar diante da relação de pais e filhos.
Só que o senso de sentimentalismo aqui foge do aspecto de união ou “afago”, evidenciando o apreço pela melancolia e desconstrução de cada um - em especial a transformação da personagem de Maria Ribeiro que norteia o sentido que o cênico narrativo quer nos fornecer: a mulher que descobre que não é filha do pai que a criou; a representação do feminino independente, na era em que o feminino age com atitude e busca pelo seu idealismo frente à sociedade que a tolhe.
Mas, ironicamente, se descobre fragmentada no casamento sem diálogo afetivo (o marido defendido por um Paulo Vilhena bem sólido em cena), ou na fragilidade que se apresenta com a ausência de interação com sua mãe (Clarisse Abujamra, natural e precisa). Bondansky utiliza a instabilidade emocional e do mundo que parece ruir ao redor desta mulher de 38 anos que simboliza o indivíduo da atualidade, permeado de inseguranças e desalento familiar. Sem trilha sonora intrusiva e modulações pra provocar algo, é o trabalho de direção mais maduro da cineasta.
“Não quero mais fingir que sou uma mulher que dá conta de tudo. Eu não dou conta de tudo", diz em dado momento a mulher que precisa estabelecer um sentido em seu mundo - Maria Ribeiro se despe em uma atuação sincera, com propriedade e humana, sem medo de errar no tom. Como encontrar-se e ter um eixo numa vida que parece perder o sentido? Algumas perguntas são lançadas neste roteiro sensato sobre núcleos familiares que se desajustam e pessoas que mesmo com laços de sangue, parecem preservar exímias desconexões. Ao passo que os personagens parecem buscar um alento entre eles, é que o roteiro expõe esse processo de crescimento e maturidade. Um filme que exibe as angústias dos reflexos de relações entre mãe e filha; anseios pessoais e memórias familiares que merecem ser preservadas.
O Dia Depois
3.5 40 Assista Agora“O que pode ser descrito com palavras não tem nada a ver com o real”. A angústia do desejo. Ou quando a infidelidade parece um impulso presente. Sang-soo, aqui, reforça que até para o âmbito do olhar masculino - existe a consequência da fragilidade do desejo. Através do protagonista (o ótimo Kwon Hae-Hyo), com toda sua melancolia visível, observamos o centro de seu conflito: a entrega ao que sente.
Os alicerces da traição masculina são expostos em um microcosmo: temos o editor em um casamento de abandono; a relação que chega ao fim com a sua amante e o aflorar de um novo tesão com a sua nova funcionária (Kim Min-hee, fetiche do cineasta, que protagonizou anteriormente o “Na Praia À Noite Sozinha”). A fotografia monocromática, fixada em tons de brilhos claros, e manipulações de câmeras estáticas que vai e vem nos habituais zooms característicos do Soo, permanecem próximos aos diálogos que seus personagens promovem em cena.
A aparente “trivialidade” exposta, como traço do cotidiano, permanece como indício narrativo. São cenas e mais cenas de diálogos montados, até planos sem corte de blocos cênicos de cinco ou seis minutos. E aqui a discussão exibe o protagonista tendo que lidar com seus desejos, sem nunca ser julgado ou malhado por um roteiro naturalista que o compreende. Enquanto temos uma ação que se desenvolve em um só dia, versando sobre relações instáveis, apáticas e abaladas, Sang-soo coloca este homem em meio a três mulheres em uma elipse narrativa de diálogos sobre a existência da frágil carne humana.
Veneno Para as Fadas
3.9 103 Assista AgoraA ótica sobre a maldade que permanece desde a formação psicológica infantil. A tônica de horror é exposto em um roteiro que cria, dentro da própria caricatura intencional, a noção da malícia e da perversão comportamental - a menina que ouve, desde cedo, histórias de horror e internaliza tais noções. Tais histórias de bruxaria e maldade influenciam as percepções da menina que passa a se “contaminar” com certos anseios e potencializa a sua imaginação pra algo mórbido. Seria ela uma bruxa ou teria poderes? Ou tudo seriam exponenciais mentais? Interessante o formato cênico do filme - nunca vemos os rostos dos adultos, sempre de “costas” ou filmados do ombro pra baixo. O olhar é para e sobre os sensos infantis. Por vezes, tais insinuações de horror psicológico lembra uma representação do universo do Guillermo Del Toro quando insere a protagonista mirim na interação com uma amiga, elevando a amizade à consequências sinistras e até subjetivas na invocação do belzebu.