A sede por poder, o coração que se rende à imoralidade, em uma trama política no qual a ética cede lugar à insensatez. Tramas humanas sobre máscaras que se esvaem em um noir sólido e intrigante. O verniz crítico sobre a podridão social é perceptível até hoje.
Símbolo proeminente do noir, precursor no formato, preserva as principais características do senso que ditou marcas na velha Hollywood. Ainda que bastante envelhecido em termos de narrativa, com soluções frágeis e uma certa ingenuidade acentuada, este filme preserva um movimento cênico ainda interessante.
A ambiguidade moral é exposta não só na malícia e aparência gélida da personagem de Veronika Lake, mas, como na construção de Philip Raven - o assassno profissional solitário, metódico, melancólico e vítima de uma vida dolorosa (grande destaque de Alan Ladd, em uma atuação bem firme e imponente). Pós Segunda Guerra, ainda permanece os traços daquele período, como o pessimismo de uma sociedade ainda receosa após tantas turbulências.
A direção de Frank Tuttle cria planos nas sombras fotográficas, na relação do assassino que foge do encalço da polícia, nos diálogos emulados com certa tensão sexual entre Ladd e Lake - que, com tanta química em cena, acabaram por fazer posteriores filmes juntos. Interessante como o personagem do Ladd dialoga com o do Delain em "O Samurai" de Melville, talvez os arquétipos da solidão que permeia a carapuça de um assassino sem destino.
A dificuldade de estabelecer um laço de felicidade. Ou a melancolia como prazer do cotidiano. Ou quando o tédio parece a única alternativa. Um conto íntimo sobre a solidão que parece a única aliada. Através do personagem-título, vemos a representação da carência afetiva - e mais, a forma como um ser humano não consegue se conectar com as pessoas. Através de Jim (na defesa interpretativa de um Casey Affleck melancólico em cena), vemos a situação do retorno com os laços familiares. É o jovem que retorna à família depois de anos afastado, pois não conseguiu ser feliz financeiro e emocionalmente. Buscemi cria as perspectivas intimistas com diálogos que evocam o traço do cotidiano, com câmeras coladas e próximas aos olhares dos atores, num filme filmado com câmera Panasonic mini-DV, dando um aspecto de “filmagem caseira”, em imagens granuladas. Affleck expõe esse personagem em busca de acolhimento e busca por um sentido, na química em cena com Liv Tyler, em um roteiro que mais parece ter sido feito por Jason Reitman. Sim, um trabalho que mostra como a solidão pode nos deteriorar e causar isolamentos imprescindíveis.
Como encontrar um eixo numa sociedade que não parece te acolher? A trajetória é a linguagem da percepção juvenil, através das mãos dadas que nos conectamos com a persona de um jovem em momento de ebulições - sexuais e até obscuras. Armin (um excelente Constantin von Jascherof, com olhos firmes, cachos loiros, uma fragilidade em cena, como um fetiche óbvio) é a representação do indivíduo que se perde da realidade e passa a viver em sua bolha imaginária, na profundeza do desejo e dê certos anseios que passam a ditar suas regras cotidianas.
Solitário, sem interações sociais, não consegue estabelecer um diálogo familiar. As fantasias passam a consumí-lo, como a busca por certos caminhos perigosos, quase criminas, no intuito de satisfazer o espaço que o vazio de sua carência permite. Se afunda em fetiches como uma forma de preenchimento de uma alma insegura.
A direção de Christoph Hochhäusler cola à respiração e nuca deste adolescente, em um formato naturalista, isento de recursos que manipulem a indução da absorção de um drama. Investe na psiquê do juvenil, com cenas entrecortadas que exibem elementos oníricos ou idealizações sexuais - como o homoerotismo com desconhecidos. Sem trilha sonora, isento de melodrama, a linhagem é seca. Vemos um estudo sobre o processo da separação da infância para a fase adulta, do qual jovens caminham em rumos onde nem sempre são bem interpretados.
A metalinguagem e as digressões cênicas. Ingmar Bergman estabelece a criação de três vertentes no formato de sua narrativa. Todas envolvem Henrik Voegler (o ótimo Erland Josephson), um dramaturgo e diretor de teatro. É através dele que o filme assume as situações:
1) Bergman coloca o personagem como em processo de ensaio de uma peça sua, onde Henrik dialoga com a colega de cena, Anna (uma Lena Olin febril em cena), sobre o processo de compreensão de personagens e cenas. Vemos essa situação como primeiro foco. 2) O que assistimos, é propriamente já a exposição da apresentação de uma peça em ação. 3) As duas pessoas, são traços da realidade, onde se desdobram em discussões em um cenário de teatro, sobre o processo de composição de uma peça; sobre a crítica ao papel de ator e atuações; transformando a discussão em espaço para maiores digressões.
É quando o roteiro, diante destas três máscaras que flerta, aproveita-se para tecer maiores provocações além: como traumas e vivências do passado do dramaturgo (colocando a participação de Ingrid Thulin também) sendo colocadas à nós; diálogos sobre solidão e esgotamento sentimental; além de reflexões existenciais. Bergman cria seu espetáculo intimista, cheio de monoblocos de monólogos, para expor que tudo pode ser, apenas, um processo mental e psicológico do dramaturgo. Uma forma de compreendemos suas cicatrizes e memórias.
A exposição do sentimento, os diálogos e os desejos na relação entre dois homens. Thiago Cazado (que também personifica um dos personagens em cena) e Mauro Carvalho, exploram o terreno verbal da esfera homoafetiva. A ideia de trazer em sua narrativa a intimidade e o processo do interesse e da vivência de duas pessoas que buscam serem aceitas, sem se tolher diante do que sentem em função de uma sociedade opressora, é válida. Não é à toa que o filme garante, dentro de seu formato de roteiro, duas situações importantes: a poética do olhar, já que um dos personagens nos conta os fatos ocorridos até o presente, destrancando as noções do tesão e do aprendizado do sentimento a dois, o que nos remete ao senso afetivo exposto em "Hoje Eu Quero Voltar Sozinho" de Daniel Ribeiro, com um olhar mais emotivo em torno de. Ou na forma direta que estabelece, colocando o casal dialogando sensos triviais, anseios e sensações, uma espécie de diálogo com o "Weekend", por exemplo, de Andrew Haigh (2012). Entretanto, ainda que a concepção e ideia sejam interessantes, a falta de maturidade e cuidado na direção expõe nítidas fragilidades cênicas. Você compreende a proposta, mas percebe que a fita assume um tom quase amador, por vezes, diante de soluções simplificadas. Tanto na encenação do casal de atores que, por vezes, soam muito artificiais e mecânicos - ou em algumas adoções da narrativa que forçam uma aparência muito piegas, a fita demonstra a insegurança da produção.
Maledicentes da hipocrisia. Ou quando o estigma da fofoca contamina a sociedade. Ou quando as dúvidas corroem. Henri-Georges Clouzot cria o cenário mórbido do psicológico, através de uma comunidade formada em máscaras, que se inquietam com o que é pressuposto. O idílico inicial cenário logo é desconstruído, quando cartas anônimas passam a denegrir as personalidades dos habitantes do vilarejo, espalhando boatos e colocando uns contra os outros em situações de medo e julgamentos premeditados. Clouzot se firma em cima do protagonista para exibir seu conto de paranoia - o médico conhecido por todos, personificado com excelente defesa na interpretação por Pierre Fresnay.
"Você acha que as pessoas são todas boas ou todas más. Que a luz é o bem e a escuridão é o Mal. Mas onde cada um começa?"
As cartas, assinadas pelo codinome de “O Corvo”, começam a chegar, abalam os moradores, sendo que cada um passa a julgar o próximo pelos “atos” que estariam sendo feitos - sem questionar se tais informações seriam verdadeiras. Clouzot induz em nós o pensamento sobre essa situação, algo tão comum em nossa sociedade, já que preferem cair nas armadilhas de intrigas de uma fofoca à busca pela verdade. Todos acabam reféns e escravos das palavras das cartas. Ademais, trata-se de um argumento sobre a histeria coletiva, visto que tal qual no filme, no qual os moradores entram na zona do desespero e da maledicência, temos a reflexão de que também somos contaminados por situações semelhantes na esfera de nossa sociedade.
Hong Sang-soo estabelece em seu cenário a intimidade na narrativa, através do seu senso do trivial, da abordagem do cotidiano, sob uma esfera da ótica naturalista. A câmera permanece quase sempre estática, orientando-se nos planos dos diálogos e da interação dos personagens que verbalizam, aqui, os anseios das percepções amorosas e anseios humanos.
“Por que não diz nada? Sou a única que parece dizer verdades”. Os dilemas expostos por Younghee (Kim Min-hee), nada mais que causam identificação com nossos diálogos, visto que representa a mulher fragilizada pela relação com um homem casado. Sang-soo a coloca essa personagem, uma atriz sul coreana, em momento de resignação ou reflexão com sua natureza, quando decide dar uma pausa em sua carreira, para se encontrar. Na primeira parte, temos a personagem na Alemanha, à espera. Na segunda, o cenário volta-se na Coreia para destrinchar ainda mais o íntimo de Younghee.
O jogo das suas ações e situações sempre são feita de diálogos, já que Sang-soo nunca a coloca “atuando” ou praticando seu lado profissional, ou mesmo não a vemos com o tal homem com quem se envolve - as percepções são feitas por memórias ou dizeres sobre sentimentos, sensações e inseguranças. A linguagem cênica da direção é própria quanto à construção desta protagonista, sempre com diálogos e interações dela para com os outros - amigos, cenas dela conversando em sacada de prédios ou bancos de praças ou mesas enquanto jantam -, com o intuito de nos aproximar desse seu cotidiano.
“Eu queria, apenas, desaparecer suavemente”.
Não há jogos estéticos nem induções de símbolos, o que se estabelece é o critério de um filme que vemos um traço da realidade, como uma câmera mecânica que acompanha passos e verbalizações de uma pessoa humana e plenamente real, imersa em seu dia a dia. Narrativa feita em cima de cenas e mais cenas de conversas. Kim Min-hee promove uma atuação discreta, mas dotada de verdade por centrar-se na defesa de uma mulher tão feita de inseguranças e verdades humanas.
Por vezes, diante dos “zooms” estranhos do Sang-soo, vemos seu olhar trêmulo e a expressão melancólica que surge de sua personagem, um retrato trivial mas que percorre emoções verdadeiras. E, ironicamente, a personagem permanecer na zona da sinceridade - tanto enquanto está contida e serena, ou nos momentos em que se rende à bebida e se descontrola mais emocionalmente. Em ambos os estados físicos e emocionais, sóbria ou embriagada, temos uma personagem que sabe o que pensa.
A transfiguração de personalidade. Ou o efeito de uma vítima do sistema. A mudança comportamental de figura de dona de casa para estrela criminal. Elisa do Nascimento é a persona que é impulsionada pelo instinto de vingança, abandona as vestes antigas de mulher da sociedade para se aliciar ao submundo das zonas dos “fora-da-lei”, tornando-se a “Lili Carabina”. Interessante q narrativa ácida, irônica e cheia de humor negro que o filme assume, de acordo com a caricatura feminina que Betty Faria assume. A peruca loira, a maquiagem exagerada, o aspecto sensual que usa para articular-se como uma exímia criminal. Lui Farias parece se divertir na criação de um cenário policial que assume influências dos filmes americanos oitentistas, para contar essa trajetória de mulher inspirada na figura real da Djanira Metralha, usando de arquétipos intencionais, como o delegado personificado por Reginaldo Farias, que mais parece personagens de séries da década de 70, com o tom mais voltado ao leve humor canastrão que permeia a obra. A trama baseia-se no livro lançado anos antes por Aguinaldo Silva e nada mais que um representante de poderio feminino que não baixa guarda diante do machismo que tolhe.
“Às vezes, mal me reconheço no espelho. Faço viagens para fora do meu corpo e vejo minhas mãos vermelhas, e meu rosto cruel. E fico pensando no homem que seguiu uma trilha tão errônea”.
A trajetória de rivalidade. Ou a desconstrução do mito do indivíduo imoral? Andrew Dominik constrói as suas percepções em cima da figura do Jesse James (um Brad Pitt vulnerável em cena), com um olhar intimista e que percorre não só as situações que culminaram no ato de fama do bandido reconhecido pelos roubos aos trens e assassinatos - mas, tende a criar a noção da personalidade deste indivíduo através de uma narrativa humana.
Não é a toa que as quase 3 horas de projeção investe em diálogos e uma atmosfera de interação de personagens ao invés de vestígios de ação desenfreada. Sob um narrador onisciente que tudo vê e observa, essa realidade é exemplificada. Dominik esmiúça a trajetória comportamental de Jesse com seus comparsas - Jeremy Renner, Sam Shepard ou Sam Rockwell -, preocupando-se em destrancar um pouco das atitudes de cada um, para compreendermos a caracterização daquela “gangue”. Sob a fotografia de Roger Deakins, com planos que parecem filtrar o tom de uma narrativa que também projeta algo “poético”, com luzes e sombras, e cenas emolduradas no patamar dos grandes western, este filme evoca a natureza da desconfiança humana.
A relação estabelecida entre a figura do Jesse com seu pupilo Robert Ford (um Casey Affleck imponente e detalhista na interpretação), é bem delineada. Primeiramente entende-se a obsessão ou aspecto da idolatria do jovem para com o mito “fora-da-lei”, vemos a ambição de Ford em fazer parte do mundo de seu maior ídolo. É quando certas tônicas vem à tona, como a inveja e até uma sutileza em que posiciona o papel de Ford como uma espécie de admirador à representatividade masculina do James. Dominik coloca o olhar frio de Affleck em foco, numa atuação cheia de nuances.
Compreende-se a aproximação destes dois homens para, depois, formar o senso de intimidação de uma relação que se torna perigosa a partir de desconfianças. A indisposição em cena é feita com a sólida direção que favorece os planos e tête-à-tête bastante direto entre Affleck e Pitt, travando a encenação de amizade e indisposição psicológica entre esses dois homens. Por fim, resta a mensagem clara sobre uma história travada não só por vingança: mas, culpa nos corações.
Quais limites para uma fantasia sexual? O que alimenta tal sentido - a solidão ou o impulso do desejo? Robert Altman destranca a psique da representação do oculto do sexo feminino. Através da exposição da típica mulher social, integrada na família, nas convenções da “normalidade” - Sandy Dennis alimenta-se do seu fascínio em possuir garotos. E tal senso logo é desmascarado antes mesmo dos 15 minutos de projeção, quando vemos a sua personagem intrigada e atraída pelo adolescente que permanece sentado no banco da praça em frente à sua casa (Michael Burns com seus cachos loiros angelicais, a aparência para o fetiche). Altman logo exibe que por trás de convenções, existem aparências.
Temos a narrativa que explora a libido e, também, a solitária figura de uma mulher que precisa oprimir certos devaneios e interesses considerados como “libertinos”. A oposição que se estabelece entre a mulher madura com o frescor juvenil do seu “subordinado”, são efeitos eróticos promovidos por Altman para provocar: não deixa de ser a desconstrução do “American Way Of Life”, já que descortina o papel da mulher que aqui seria vista como pervertida ou até promíscua ao invés de formada em casamentos e filhos.
O discurso é proeminente: o que faz essa mulher acolher o jovem em sua casa? Seria mesmo à favor de seus desejos mais secretos? Ou reside aí o doloroso processo de ser solitária? Altman induz a paciência, sob sua narrativa lenta e delicada, na interação intimista entre esses dois indivíduos, com uma climática trilha sonora de Johnny Mandel. O jogo de tensão se firma quando a mulher condiciona o seu pupilo preso no quarto, como um escravo de seus desejos e anseios, mostrando que o que haverá são indícios de dominação e dominado.
O irônico é ver que as cenas são mais verbalizadas pela Dennis - o semblante triste e olhar vago, a voz trêmula: sua personagem fala o tempo todo, se desconstrói e conversa sobre si mesma enquanto o jovem, apenas, serve-se como ouvinte. Mas, fora da interação com a sua dominadora, o jovem conversa normalmente e até se doa sexual para outras mulheres. O problema reside na relação da dominante com o garoto que não se entrega total ao seu comando. Altman exibe o quão a figura daquela mulher se firma emocionalmente insegura e solitária, usando da presença do jovem para suprir suas carências do corpo e da alma, nada mais que reflexos da sociedade individualista.
“Eu sempre achei que há outro homem dentro de outro homem: Um estranho que habita nele”. O tapa da vingança ou a maldição da justiça. A trama que percorre a ganância do homem que é movido pelo instinto de crueldade contra a esposa - Thomas Jane, com seu sotaque “caipira”, a fala mansa e pausada, nos conta a sua trajetória “pacata” até o desequilíbrio que o leva a assinar sua esposa. Sob a redoma rural de uma cidade pequena, a narrativa constrói a convivência do casal com o filho, até a desestrutura. É quando a trama reverte-se no mórbido e com toques habituais dos traços mais comuns das obras de Stephen King: a consciência se fragmentando.
Como lidar com o peso da culpa? O assassino passa a ser atormentado pela sombra da esposa morte - ou seriam indícios de uma loucura? A produção é climática e tem o cuidado de ser bem firme na direção de Zak Hilditch - habituado a abordar as sensações do medo, vide seu trabalho “As Horas Finais” -, incidindo a noção de sobrenatural-psicológico com elementos investigativos de um bom suspense redondo. A trilha sonora de Mike Patton, vocalista do Faith No More, ajuda na atmosfera tensa com violinos sinistros e, por vezes, distorcidos, evocando o terror de instabilidade emocional que habita q situação deste crime passional. Um conto sobre como as consequências para certos atos impulsos e descabidos são capazes de deixar estigmas no ser humano.
O desalento pela ausência de afeto. Como prosseguir quando existe a falta da presença paterna? Temos um conto sobre laços familiares. Acima de tudo, Selton Mello nos submete a uma trajetória sobre o rito de maturidade, de acordo com as perspectivas de seu protagonista Tony Terranova - um excelente Johnny Massaro em foco cênico. A narrativa percorre as noções do processo de angústia e saudade do jovem que sente que não pode caminhar sem a presença do pai (Vicent Cassel). Além da ausência, trata das experiências do sexo e também das verbalizações juvenis, no terreno da década de 60 nas Serras Gaúchas, com ares europeus. Entretanto, ainda que crie um verniz até poético dentro da melancólica narrativa, por vezes Mello se rende a pequenos floreios estéticos e alguns sentimentalismos em cima da relação do protagonista e suas interações. Ainda assim, um tratado humano sobre a carência afetiva.
A mente em processo de deteriorização. Ou a alma que se fragmenta em pedaços. Face a face com a depressão. Ingmar Bergman promove o obscuro estudo de personagem através do dedo na ferida - da alma que adoece. Através das perspectivas da psiquiatra abalada emocionalmente por feridas que não se cicatrizam - uma Liv Ullmann à beira do colapso, com olhos constantes manejados e voz trêmula. Jenny Isaksson é a representação da mulher sufocada pelo cotidiano, que não consegue mais respirar, atormentada por visões e delírios que deturpam sua vida.
Como se reestabelecer novamente? Bergman constrói o estudo em cima da persona desta mulher, na ótica do feminino, numa narrativa sólida dotada de diálogos e planos fecundados no silêncios, isento de trilha sonora e formatos redondos. Temos uma construção cuidadosa e lenta, quando aos poucos vamos compreendendo a noção de vida e personalidade desta mulher. O roteiro induz o público na intimidade do inconsciente da protagonista - cenas em que vemos os símbolos de sonhos e “mentais”, além de diálogos que remontam a trajetória da psicanalista. As cenas em que Ullmann verbaliza suas memórias, angústias e situações do passado, nos auxilia neste processo de compreensão com a tal persona.
“É tão horrível quando as faces se transformam. E não podemos mais reconhecê-las. (....) É sempre horrível ter a consciência pesada”. A noção de horror é visível na maneira como a narrativa adentra no espaço do psicológico desta mulher - as cenas em que ela confronta seus próprios medos, através da visão da figura de uma velha-decrépita, que perambula e a observa, tem tal atmosfera de tensão que soa como um assombro cênico. Nada mais que a metáfora e representação da sombra da depressão que a persegue e a tolhe socialmente.
“Sua frigidez é tão intensa que me atrai”. A ironia de constatar a desconstrução de uma psiquiatra em processo de desestrutura é uma provocação promovida por Bergman. A atuação de Ullmann é dotada de tão entrega e naturalidade que obteve, na época, inúmeras nomeações às premiações - inclusive ao Oscar de Atriz do ano. Os dez minutos finais de monólogos dolorosos, são verbos intensos e a comprovação de sua atuação mais contundente.
"Ficaria agradecida com os horrores que já conhece. Os horrores desconhecidos são piores. Acha que estou mentalmente perturbada pelo resto da vida? Sabia que há um exército de um milhão de pessoas mentalmente perturbadas, pobres diabos que perambulam gritando uns com os outros palavras que não entendemos e que deixam a gente ainda mais apavorados? Não sei. Há um chamado para nós que não cremos. Que quer dizer? Às vezes digo para mim mesmo. Pode dizer para mim? Desejo que alguém ou algo me bata, assim posso voltar a realidade. Repito incessantemente, talvez um dia eu seja real. Que quer dizer com “real”? Ouvir uma voz humana e confiar que vem de alguém igual a mim, tocar um par de lábios e ao mesmo tempo saber que isso é um par de lábios."
É possível se conectar após a velhice. Um trabalho sobre o comunicar-se. O encontro de dois indivíduos, viúvos e desconectados com a aparência do sexo e noções do desejo. É quando esses sensos somam ao reaprendizado do sentimento. Terceiro filme juntos, Fonda e Redford exibem a sintonia de sempre em diálogos fechados sobre perspectivas, solidão, agruras e amor. Reflexões sobre a brevidade da vida e as imprevisibilidade do destino. É um filme que mostra o quanto somos sozinhos e que tal situação não permite conforto. Aprendemos com o aprender do outro ao lado. Vemos o encontro de uma mulher e um homem que percebem que o final dos anos podem garantir mais harmonia com a companhia e compreensão mútua. A linguagem é simples, o formato quadrado também, mas sincero no que se propõe.
O replicante que, ironicamente por não ter alma, aprende a relação de sensibilidade que muitos humanos não parecem ter. A falta de alma é capaz de torná-lo um ser sem perspetivas? O que o torna mais sensível? As ausências de memórias reais o torna menos emocional? Denis Villeneuve insere elementos do caos distópico do filme original, criando amarras e relações com as situações do trabalho de Ridley Scott, em conexões com o universo e exímias referências. Nos submetemos a um filme de cunho existencial e não de insinuações baratas de ações desenfreadas. Por isso, takes de silêncios e respirações que dizem mais.
A determinação narrativa é feita de fragmentos - tão condizentes com as memórias que são remodeladas do protagonista (um Ryan Gosling calado, observador e que diz mais com o olhar) que não se livra de sua condição solitária. “Você devia sorrir mais vezes” - é dito pra ele em dado momento, numa reflexão à condição desbotada de uma humanidade sem expressão e mecânica. Quer maior crueldade que perceber o quanto esses seres replicantes parecem dotados de mais sensibilização que os próprios humanos? O tapa na consciência é verdadeiro.
Denis Villeneuve traça um estudo de personagem em busca do reflexo de sua “sociedade perdida”. Soma-se, dentro da técnica irretocável, a trilha sonora etérea e que nos causa maior imersão de Hans Zimmer, que se aproxima bastante do feito de Vangelis do filme de 1982. Além das cenas emolduradas com uma fotografia precisa de Roger Deakins que recria quadros de “mundos imperfeitos” da nova era da superficialidade; cores, jogos de luzes e sombras que exibem as tônicas dessas esferas do cenário de um universo decadente pós-tecnológico. Uma estética modernista de zonas urbanas.
“Com quantas meninas de 13 anos você transou além de mim?”. As cicatrizes do sexo. Ou mesmo os traços de um trauma que atrapalha o caminhar. Não ê à toa que logo no início, vemos as duas mulheres em fases distintas da mesma pessoa - na infância sob uma árvore e na atualidade, transando com um desconhecido em uma boate. A narrativa transpõe o acerto de contas com as sombras: Rooney Mara transmite o olhar melancólico e a falta de satisfação em um cotidiano letárgico, sem brilho. É a jovem que busca compreender a razão de ter sido “usada”, a vítima do assédio de um homem mais velho (um Ben Mendelsohn bem preciso em cena). Não temos o tom didático e expositivo sobre os indícios da pedofilia, mas vemos um drama de diálogos e exposição das sensações sobre esse efeito. O roteiro permeia as cenas de diálogos centrados nas interações de Mara com Mendelsohn, na tentativa de desconstruir essas mágoas de um passado ainda presente. O tête-à-tête é exposto pra nos situar os ecos de um abuso. O estudo dos personagens surgem em cima desses “desabafos expostos” em cenas. A narrativa é enxuta: direta e concisa, sem muitas divagações - a não ser o recurso da linha narrativa do passado e presente para modelar ao público as sensações da dor da protagonista.
Encenação sobre a opressão feminina entre quatro paredes. Sofia Coppola orienta seus planos sob uma rigidez na direção, o apreço pela frieza, através de uma fotografia em contrastes acentuados e cinzentos, para adentrar a identidade sobre uma situação da ótica do feminino. Ironicamente, o tal soldado ferido (um dúbio Colin Farrell), que precisa de amparos, permanece na posição de submissão inicial física aos comandos dos flertes e interesses libidinais das mulheres que o rodeiam. É quando as tensões aparentes revestem-se em outros posicionamentos - a insegurança feminina, diante de um período da Guerra Civil Americana, que precisam abraçar-se para defender o território imaculado.
Coppola coloca o jogo de interação e constrói primeiramente as noções de desejo e carência feminina - é visível o quanto cada uma das mulheres (os pilares Kidman, Fanning e Dunst) em suas diversos estágios de maturidade, se concentram no interesse à figura masculina que abala o tédio e a calmaria daquele universo dotado de letargia. As sutilezas do sexo ganham novos contornos: É quando este sentido se desconstrói e passamos a enxergar a situação como um risco à fragilidade feminina, provando que é nada mais que um conto sobre a defesa da mulher diante de um período em que as atitudes machistas oprimiam o feminino e o instinto de proteção - independente do questionável senso de moralidade - era preciso para vencer este meio.
O faro da libido. Não deixa de ser irônico observar a persona principal, personificada por uma Nastassja Kinski estonteante e permissiva à própria sensualidade em cena, uma virginal que descobre ser parte de uma estranha personificação: tanto ela quanto seu irmão - um dúbio e malicioso Malcolm McDowell - descendem de uma inusitada linhagem de homens-felinos que só podem amar e reproduzir entre si.
A provocação do roteiro usa do artifício sexual para criar sua aura de horror mais voltado ao soft-porn, já que usa da metáfora visível: o ser humano que se transmuta num animal, no caso a pantera, quando consumido pelo desejo. Sob a eletrônica trilha de Giorgio Moroder, vemos o conto da mulher que pouco a pouco passa a se transformar em um ser mais irracional, deixando sua formalidade de lado e partindo para os comandos que seu próprio instinto delibera.
Existe o verniz erótico presente que assume as linhas narrativas, não é à toa que há uma atração visível dos irmãos em foco - a provocação do incesto; o apelo sexual em que McDowell nutre por mulheres e a própria mudança no comportamento frágil de Kinski que passa a ser menos recatada e mais altiva, mas que tenta compreender seu lado selvagem. As passagens dela como “sonhos”, em uma fotografia avermelhada, é belíssima e sexy.
Paul Schrader investe na atmosfera e no desenvolvimento mais lento, estabelecendo o processo de transformação da jovem e seu ingresso ao mundo de libido e “animalidade”. Há cenas de gráficos sanguinários e certas tensões são colocadas em jogo, mas não deixa de ser uma fita dramática sobre o quanto nos submetemos aos instintos mais agressivos que surgem do âmago. Destaque para a música-tema imposta por David Bowie.
Tal qual a frase que abre o filme, trecho de “Uma Casa Assombrada”, de Virgínia Woolf - “Como um novo despertar, a cada momento que acordasse, uma porta se fechava” -, temos um trabalho experimental e dotado de subjetividade que recorre à filosofia por trás do formato. David Lowery não só reafirma as indagações sobre a existência e recria em sua obra um conto sobre o transcender espiritual - como executa aqui uma trajetória sobre o luto. Como permanecer ao lado de alguém mesmo após a “morte física”? Remove-se as vestes físicas e ecoamos através do infinito?
O luto. Não é a toa que a sequência de mais de cinco minutos, em que a personagem da Rooney Mara, come uma torta, é uma maneira agressiva e seca de mostrar o quanto alguém permanece debilitado psico e fisicamente após a perda de um ente querido. A câmera segue o fluxo do momento, não há cortes, estabelecendo no público a sensação incômoda de alguém que “mastiga” a própria solidão. Tanto ela, quanto ele, são ambos os personagens sem nome - apenas, as letras iniciais, “C” e “M”, refletem a ideia do registro ideológico social que norteia a ideia física de um indivíduo. Só que para Lowery, aqui, não há espaço para nomes: mas, para o que transcende além deste senso.
É um filme sobre o estar presente mesmo que isento do que é considerado físico. Casey Affleck permanece à espreita, fora da linha temporal e do além da própria linha cósmica diante da amada. Temos o olhar do indivíduo que desencarna e passa a agir como alguém que perscruta e observa o seu foco de apego/sentimento - os signos são evidentes em cena, como a manta branca e os dois furos nos olhos, reafirmando o aspecto do símbolo padrão de um “fantasma”. Não vemos seus olhos, o que é irônico, pois são através deles que poderíamos ver a emoção brotar.
O uso de elipses para fundamentar a narração - o vai-vem do tempo indefinido, não há o presente e passado, mas um ser que orbita a existência além -, com silêncios que dizem mais que diálogos extensos, o uso da comunicação imagética com poucas falas no esqueleto do roteiro. Há uma aproximação com o senso estilístico de Terrence Malick, ao inserir cenas com entrecortes de galáxias ou mesmo planos com a contemplação da natureza ao redor - o momento em que o fantasma retorna, andando, em um campo aberto com o nascer do sol ao fundo, parece uma cena onírica ou quadro-pintado de tão plástico. São efeitos visuais que fecundam a narrativa e providenciam seu caráter simbólico também. O formato de tela quadrado com “pontas arredondadas” também encontra, em seu recurso, a ideia da visão do fantasma em si: a visão de seus olhos estreitados por dois furos em um lençol que serve de carapuça para sua existência; a mortalha sombria de um mundo no qual ele divaga e permanece como poeira e “condenado”.
David Lowery cria um universo minimalista e delicado, é metafísico e atmosférico. Acima de tudo, sombrio por expor as dores de como o ser humano pode se manter além do tempo e da organização social, no plano infinito sem pretendentes - não há linhas temporais definidas, é um conjunto só. Tal qual o fantasma que espreita a sua solidão, em dado momento visualizamos um outro semelhante, em outra casa, à janela: outro ser que vaga e permanece à sombra da própria solidão cósmica e sobrenatural; caminhando no véu do invisível, em busca do ente físico que se foi. É como permanecemos aqui, na sociedade, necessitando do acolher do outro para continuarmos nos sentido vivo - no temor de nos consolidarmos solitários por medo de não vencer na teia da crueldade terrena. Sim, eis um filme de vasta percepções e maiores debates que nunca se finalizam.
As intransigências e divergências da vida a dois. Sob o verniz leve, temos o formato da verve teatral, já que bebe diretamente da fonte - texto baseado na peça de Neil Simon. Os conflitos, as dores, as opiniões e clamores - de desejo e insatisfações dos recentes casados Fonda e Redford. Ambos em plena sintonia em cena, acentuando a caricatura do "American Way Of Life" com humor e tons até pueris na maioria das sequências.
Ainda que engessado na forma cênica de teatro e, por vezes, certos diálogos e concepções de cenas demonstrem uma certa "inocência" em excesso, o jogo interpretativo dos dois e a participação de Mildred Natwick - que faz a mãe de Fonda -, garantem o espaço de diversão em cena. Com uma personificação altiva, foi indicada ao Oscar de coadjuvante.
A direção pouco inventiva de Gene Saks permite que o elenco se entrose e exerça sua verborragia, em planos mais estáticos e cenas formadas em "situações como capítulos". Do meio pro final, flui melhor e há uma quebra no tom formal de antes quando o casal sai da zona de ação dentro apartamento e verbaliza passos em outros ambientes cênicos.
Em linhas gerais, a fita incute a reflexão óbvia do anseio de divórcio "pós ilusão do casamento" em tempos em que, tanto o homem quanto a mulher, precisam se impor para o que, de fato, descobrem dentro do matrimônio. Entretanto, o que vemos mesmo é a fórmula de retratar as entranhas do desejo e afeto entre quatro paredes.
Como remover as vestes da opressão? A mulher que é tolhida, vítima de um sistema de aparências e máscaras de conveniência. Formada em casamento que a agride. O efeito de violência psicológica e o machismo que comanda o espaço, são indícios colocados sob o olhar neutro, mas de personalidade de William Oldroyd. Temos o cenário sobre a alma feminina na Inglaterra rural de meados do século XIX, onde as perspectivas e anseios da jovem Katherine (vamos ver mais deste nome, Florence Pugh!) entram em forma e caráter com o que é submetida.
O patriarcalismo dominante da época, a escravidão com os ranços racistas; e os ditames determinantes de um marido abusivo e machista, podem encontrar nítidos ecos com a nossa atualidade. Há uma frieza nos planos, nas cenas, no silencio e olhares, isenta de trilha sonora para dramatizar - na plasticidade que Oldroyd muito bem constrói pra dar essa noção de tédio e desalento da protagonista em ação. Uma direção sofisticada.
As noções de submissão do roteiro logo muda no cenário, quando emerge da figura da protagonista a vocação para sentir e o direito para ter a liberdade do prazer. É quando ela se envolve com um dos serventes da fazenda onde vive, o roteiro acentua a provocativa do comportamento que toda mulher precisa ter - mas, nem sempre consegue.
Chega a ser irônico o título, tal qual a menção à Shakespeare: seria um conto aqui sobre o poder da ambição ou da vontade de viver pela chance de ser predestinada ao amor? Há um tom cruel que percorre as veias nas ações, algo até mórbido. Mas, como condenar? Não é fácil ser mulher. É preciso compreender aquele tempo. Acima de tudo, um filme que encontra reflexo no olhar sobre o feminino.
Um conto lúdico que transpõe o social em uma atmosfera fantástica. Caio Sóh expõe a falta de esperança, tédio e ausência de perspectiva através do desbotamento. Em Lajedo de Pai Mateus, na Paraíba - que mais parece um terreno lunar em uma elevação rochosa que contrasta com a vegetação do agreste -, observamos as noções intimistas da divagação de Aparecida (Dill) que não perde o olhar sensível ante à amarga realidade ao redor. Através dela, a sensibilidade feminina, a mulher que transforma o caos em sonhos mastigados - o que há por trás do céu? Brinca com a vida seca e transforma os bagulhos recolhidos pelo marido em lindos artefatos que vende em feiras, como a máquina de filtrar pensamentos e um foguete caseiro.
A fábula centra os devaneios e as angústia de um sertão com ares pitorescos por conta de certos símbolos poéticos unidos ao "realismo fantástico" com elementos de uma direção de arte que assume o cênico. É assim que a direção de Sóh evoca, também, o seu olhar sobre a realidade deste ambiente tão marcado por dores, cicatrizes no corpo e na alma diante do sol agressivo nas faces.
O personagem do Orciollo Neto assume o oposto, fora da órbita ingênua e sonhadora da sua esposa, o típico indivíduo que exterioriza suas agruras e extremos violentos. Um ser embrutecido. "Nós somos feitos dessas terras. É aqui que vamos viver e ser enterrados, junto com os nossos" - diz ele em dado momento, simbolizando essa sina e conformidade em permanecer nas terras onde nasceu e se condicionou.
Acima de tudo, Sóh faz seu conto sobre as perspectivas humanas deste meio do "produto do meio", como um Movimento da Literatura Naturalista. Por isso mesmo, recria os planos lúdicos dos protagonistas com diálogos de coadjuvantes que planam suas falas em tons mais reais - como Paula Burlamaqui que personifica a prostituta violentada pelo sistema de mundo e que encontra refúgio com o casal melancólico que se contrapõe ao personagem do Renato Góes que concebe o humor na narrativa. A mistura dos planos reais com o lirismo soam equilibrados.
É um sertão de miséria social, mas que traz dentro do corpo do roteiro um contorno mais poético - como monólogos e uma encenação teatral com certas representações artísticas em cena pra falar da existência. Como um formato de contos retirados da oralidade popular brasileira, quase folclórico em sua essência, Sóh questiona o público com suas provocações sobre Deus e diabo; os limites do humano é nossa própria existência em sobreviver. Mais que um retrato do êxodo rural, reinam os sonhos e as dores de um povo carente do sertão que precisa encontrar seu espaço no mundo.
Nelson Rodrigues, despido de qualquer pudor ou hipocrisia, expõe o lado perverso e irresponsável da natureza humana. Interessante como temos um filme atual e que expõe a atualidade com seus preconceitos mais cruéis. A mídia cada vez mais sensacionalista e que adora criar factoides, a polícia corrupta, a sociedade que não sabe criar uma opinião própria e vomita tudo que aparece nos jornais na Tv e a facilidade de transformar algo duvidoso em verdade absoluta. A plena homofobia e os jogos de máscaras humanas. Entretanto, a direção formal e o tom carregado de "teatralismo" impede maiores provocações numa trama que ainda rende ecos sociais. A versão de 1980 de Bruno Barreto tem leitura mais contundente, com Tarcísio Meira e Ney Latorraca mais sensível e roteiro bastante superior.
A Chave de Vidro
3.6 11A sede por poder, o coração que se rende à imoralidade, em uma trama política no qual a ética cede lugar à insensatez. Tramas humanas sobre máscaras que se esvaem em um noir sólido e intrigante. O verniz crítico sobre a podridão social é perceptível até hoje.
Alma Torturada
3.7 28Símbolo proeminente do noir, precursor no formato, preserva as principais características do senso que ditou marcas na velha Hollywood. Ainda que bastante envelhecido em termos de narrativa, com soluções frágeis e uma certa ingenuidade acentuada, este filme preserva um movimento cênico ainda interessante.
A ambiguidade moral é exposta não só na malícia e aparência gélida da personagem de Veronika Lake, mas, como na construção de Philip Raven - o assassno profissional solitário, metódico, melancólico e vítima de uma vida dolorosa (grande destaque de Alan Ladd, em uma atuação bem firme e imponente). Pós Segunda Guerra, ainda permanece os traços daquele período, como o pessimismo de uma sociedade ainda receosa após tantas turbulências.
A direção de Frank Tuttle cria planos nas sombras fotográficas, na relação do assassino que foge do encalço da polícia, nos diálogos emulados com certa tensão sexual entre Ladd e Lake - que, com tanta química em cena, acabaram por fazer posteriores filmes juntos. Interessante como o personagem do Ladd dialoga com o do Delain em "O Samurai" de Melville, talvez os arquétipos da solidão que permeia a carapuça de um assassino sem destino.
O Solitário Jim
3.4 18A dificuldade de estabelecer um laço de felicidade. Ou a melancolia como prazer do cotidiano. Ou quando o tédio parece a única alternativa. Um conto íntimo sobre a solidão que parece a única aliada. Através do personagem-título, vemos a representação da carência afetiva - e mais, a forma como um ser humano não consegue se conectar com as pessoas. Através de Jim (na defesa interpretativa de um Casey Affleck melancólico em cena), vemos a situação do retorno com os laços familiares. É o jovem que retorna à família depois de anos afastado, pois não conseguiu ser feliz financeiro e emocionalmente. Buscemi cria as perspectivas intimistas com diálogos que evocam o traço do cotidiano, com câmeras coladas e próximas aos olhares dos atores, num filme filmado com câmera Panasonic mini-DV, dando um aspecto de “filmagem caseira”, em imagens granuladas. Affleck expõe esse personagem em busca de acolhimento e busca por um sentido, na química em cena com Liv Tyler, em um roteiro que mais parece ter sido feito por Jason Reitman. Sim, um trabalho que mostra como a solidão pode nos deteriorar e causar isolamentos imprescindíveis.
Eu Sou Culpado
3.3 7“Eu penso em você enquanto me masturbo”.
Como encontrar um eixo numa sociedade que não parece te acolher? A trajetória é a linguagem da percepção juvenil, através das mãos dadas que nos conectamos com a persona de um jovem em momento de ebulições - sexuais e até obscuras. Armin (um excelente Constantin von Jascherof, com olhos firmes, cachos loiros, uma fragilidade em cena, como um fetiche óbvio) é a representação do indivíduo que se perde da realidade e passa a viver em sua bolha imaginária, na profundeza do desejo e dê certos anseios que passam a ditar suas regras cotidianas.
Solitário, sem interações sociais, não consegue estabelecer um diálogo familiar. As fantasias passam a consumí-lo, como a busca por certos caminhos perigosos, quase criminas, no intuito de satisfazer o espaço que o vazio de sua carência permite. Se afunda em fetiches como uma forma de preenchimento de uma alma insegura.
A direção de Christoph Hochhäusler cola à respiração e nuca deste adolescente, em um formato naturalista, isento de recursos que manipulem a indução da absorção de um drama. Investe na psiquê do juvenil, com cenas entrecortadas que exibem elementos oníricos ou idealizações sexuais - como o homoerotismo com desconhecidos. Sem trilha sonora, isento de melodrama, a linhagem é seca. Vemos um estudo sobre o processo da separação da infância para a fase adulta, do qual jovens caminham em rumos onde nem sempre são bem interpretados.
Depois do Ensaio
3.9 19A metalinguagem e as digressões cênicas. Ingmar Bergman estabelece a criação de três vertentes no formato de sua narrativa. Todas envolvem Henrik Voegler (o ótimo Erland Josephson), um dramaturgo e diretor de teatro. É através dele que o filme assume as situações:
1) Bergman coloca o personagem como em processo de ensaio de uma peça sua, onde Henrik dialoga com a colega de cena, Anna (uma Lena Olin febril em cena), sobre o processo de compreensão de personagens e cenas. Vemos essa situação como primeiro foco. 2) O que assistimos, é propriamente já a exposição da apresentação de uma peça em ação. 3) As duas pessoas, são traços da realidade, onde se desdobram em discussões em um cenário de teatro, sobre o processo de composição de uma peça; sobre a crítica ao papel de ator e atuações; transformando a discussão em espaço para maiores digressões.
É quando o roteiro, diante destas três máscaras que flerta, aproveita-se para tecer maiores provocações além: como traumas e vivências do passado do dramaturgo (colocando a participação de Ingrid Thulin também) sendo colocadas à nós; diálogos sobre solidão e esgotamento sentimental; além de reflexões existenciais. Bergman cria seu espetáculo intimista, cheio de monoblocos de monólogos, para expor que tudo pode ser, apenas, um processo mental e psicológico do dramaturgo. Uma forma de compreendemos suas cicatrizes e memórias.
Sobre Nós
2.8 47A exposição do sentimento, os diálogos e os desejos na relação entre dois homens. Thiago Cazado (que também personifica um dos personagens em cena) e Mauro Carvalho, exploram o terreno verbal da esfera homoafetiva. A ideia de trazer em sua narrativa a intimidade e o processo do interesse e da vivência de duas pessoas que buscam serem aceitas, sem se tolher diante do que sentem em função de uma sociedade opressora, é válida. Não é à toa que o filme garante, dentro de seu formato de roteiro, duas situações importantes: a poética do olhar, já que um dos personagens nos conta os fatos ocorridos até o presente, destrancando as noções do tesão e do aprendizado do sentimento a dois, o que nos remete ao senso afetivo exposto em "Hoje Eu Quero Voltar Sozinho" de Daniel Ribeiro, com um olhar mais emotivo em torno de. Ou na forma direta que estabelece, colocando o casal dialogando sensos triviais, anseios e sensações, uma espécie de diálogo com o "Weekend", por exemplo, de Andrew Haigh (2012). Entretanto, ainda que a concepção e ideia sejam interessantes, a falta de maturidade e cuidado na direção expõe nítidas fragilidades cênicas. Você compreende a proposta, mas percebe que a fita assume um tom quase amador, por vezes, diante de soluções simplificadas. Tanto na encenação do casal de atores que, por vezes, soam muito artificiais e mecânicos - ou em algumas adoções da narrativa que forçam uma aparência muito piegas, a fita demonstra a insegurança da produção.
Sombras do Pavor
4.0 34 Assista AgoraMaledicentes da hipocrisia. Ou quando o estigma da fofoca contamina a sociedade. Ou quando as dúvidas corroem. Henri-Georges Clouzot cria o cenário mórbido do psicológico, através de uma comunidade formada em máscaras, que se inquietam com o que é pressuposto. O idílico inicial cenário logo é desconstruído, quando cartas anônimas passam a denegrir as personalidades dos habitantes do vilarejo, espalhando boatos e colocando uns contra os outros em situações de medo e julgamentos premeditados. Clouzot se firma em cima do protagonista para exibir seu conto de paranoia - o médico conhecido por todos, personificado com excelente defesa na interpretação por Pierre Fresnay.
"Você acha que as pessoas são todas boas ou todas más. Que a luz é o bem e a escuridão é o Mal. Mas onde cada um começa?"
As cartas, assinadas pelo codinome de “O Corvo”, começam a chegar, abalam os moradores, sendo que cada um passa a julgar o próximo pelos “atos” que estariam sendo feitos - sem questionar se tais informações seriam verdadeiras. Clouzot induz em nós o pensamento sobre essa situação, algo tão comum em nossa sociedade, já que preferem cair nas armadilhas de intrigas de uma fofoca à busca pela verdade. Todos acabam reféns e escravos das palavras das cartas. Ademais, trata-se de um argumento sobre a histeria coletiva, visto que tal qual no filme, no qual os moradores entram na zona do desespero e da maledicência, temos a reflexão de que também somos contaminados por situações semelhantes na esfera de nossa sociedade.
Na Praia à Noite Sozinha
3.6 68Hong Sang-soo estabelece em seu cenário a intimidade na narrativa, através do seu senso do trivial, da abordagem do cotidiano, sob uma esfera da ótica naturalista. A câmera permanece quase sempre estática, orientando-se nos planos dos diálogos e da interação dos personagens que verbalizam, aqui, os anseios das percepções amorosas e anseios humanos.
“Por que não diz nada? Sou a única que parece dizer verdades”. Os dilemas expostos por Younghee (Kim Min-hee), nada mais que causam identificação com nossos diálogos, visto que representa a mulher fragilizada pela relação com um homem casado. Sang-soo a coloca essa personagem, uma atriz sul coreana, em momento de resignação ou reflexão com sua natureza, quando decide dar uma pausa em sua carreira, para se encontrar. Na primeira parte, temos a personagem na Alemanha, à espera. Na segunda, o cenário volta-se na Coreia para destrinchar ainda mais o íntimo de Younghee.
O jogo das suas ações e situações sempre são feita de diálogos, já que Sang-soo nunca a coloca “atuando” ou praticando seu lado profissional, ou mesmo não a vemos com o tal homem com quem se envolve - as percepções são feitas por memórias ou dizeres sobre sentimentos, sensações e inseguranças. A linguagem cênica da direção é própria quanto à construção desta protagonista, sempre com diálogos e interações dela para com os outros - amigos, cenas dela conversando em sacada de prédios ou bancos de praças ou mesas enquanto jantam -, com o intuito de nos aproximar desse seu cotidiano.
“Eu queria, apenas, desaparecer suavemente”.
Não há jogos estéticos nem induções de símbolos, o que se estabelece é o critério de um filme que vemos um traço da realidade, como uma câmera mecânica que acompanha passos e verbalizações de uma pessoa humana e plenamente real, imersa em seu dia a dia. Narrativa feita em cima de cenas e mais cenas de conversas. Kim Min-hee promove uma atuação discreta, mas dotada de verdade por centrar-se na defesa de uma mulher tão feita de inseguranças e verdades humanas.
Por vezes, diante dos “zooms” estranhos do Sang-soo, vemos seu olhar trêmulo e a expressão melancólica que surge de sua personagem, um retrato trivial mas que percorre emoções verdadeiras. E, ironicamente, a personagem permanecer na zona da sinceridade - tanto enquanto está contida e serena, ou nos momentos em que se rende à bebida e se descontrola mais emocionalmente. Em ambos os estados físicos e emocionais, sóbria ou embriagada, temos uma personagem que sabe o que pensa.
Lili, a Estrela do Crime
2.7 20A transfiguração de personalidade. Ou o efeito de uma vítima do sistema. A mudança comportamental de figura de dona de casa para estrela criminal. Elisa do Nascimento é a persona que é impulsionada pelo instinto de vingança, abandona as vestes antigas de mulher da sociedade para se aliciar ao submundo das zonas dos “fora-da-lei”, tornando-se a “Lili Carabina”. Interessante q narrativa ácida, irônica e cheia de humor negro que o filme assume, de acordo com a caricatura feminina que Betty Faria assume. A peruca loira, a maquiagem exagerada, o aspecto sensual que usa para articular-se como uma exímia criminal. Lui Farias parece se divertir na criação de um cenário policial que assume influências dos filmes americanos oitentistas, para contar essa trajetória de mulher inspirada na figura real da Djanira Metralha, usando de arquétipos intencionais, como o delegado personificado por Reginaldo Farias, que mais parece personagens de séries da década de 70, com o tom mais voltado ao leve humor canastrão que permeia a obra. A trama baseia-se no livro lançado anos antes por Aguinaldo Silva e nada mais que um representante de poderio feminino que não baixa guarda diante do machismo que tolhe.
O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford
3.6 478 Assista Agora“Às vezes, mal me reconheço no espelho. Faço viagens para fora do meu corpo e vejo minhas mãos vermelhas, e meu rosto cruel. E fico pensando no homem que seguiu uma trilha tão errônea”.
A trajetória de rivalidade. Ou a desconstrução do mito do indivíduo imoral? Andrew Dominik constrói as suas percepções em cima da figura do Jesse James (um Brad Pitt vulnerável em cena), com um olhar intimista e que percorre não só as situações que culminaram no ato de fama do bandido reconhecido pelos roubos aos trens e assassinatos - mas, tende a criar a noção da personalidade deste indivíduo através de uma narrativa humana.
Não é a toa que as quase 3 horas de projeção investe em diálogos e uma atmosfera de interação de personagens ao invés de vestígios de ação desenfreada. Sob um narrador onisciente que tudo vê e observa, essa realidade é exemplificada. Dominik esmiúça a trajetória comportamental de Jesse com seus comparsas - Jeremy Renner, Sam Shepard ou Sam Rockwell -, preocupando-se em destrancar um pouco das atitudes de cada um, para compreendermos a caracterização daquela “gangue”. Sob a fotografia de Roger Deakins, com planos que parecem filtrar o tom de uma narrativa que também projeta algo “poético”, com luzes e sombras, e cenas emolduradas no patamar dos grandes western, este filme evoca a natureza da desconfiança humana.
A relação estabelecida entre a figura do Jesse com seu pupilo Robert Ford (um Casey Affleck imponente e detalhista na interpretação), é bem delineada. Primeiramente entende-se a obsessão ou aspecto da idolatria do jovem para com o mito “fora-da-lei”, vemos a ambição de Ford em fazer parte do mundo de seu maior ídolo. É quando certas tônicas vem à tona, como a inveja e até uma sutileza em que posiciona o papel de Ford como uma espécie de admirador à representatividade masculina do James. Dominik coloca o olhar frio de Affleck em foco, numa atuação cheia de nuances.
Compreende-se a aproximação destes dois homens para, depois, formar o senso de intimidação de uma relação que se torna perigosa a partir de desconfianças. A indisposição em cena é feita com a sólida direção que favorece os planos e tête-à-tête bastante direto entre Affleck e Pitt, travando a encenação de amizade e indisposição psicológica entre esses dois homens. Por fim, resta a mensagem clara sobre uma história travada não só por vingança: mas, culpa nos corações.
Uma Mulher Diferente
3.9 10Quais limites para uma fantasia sexual? O que alimenta tal sentido - a solidão ou o impulso do desejo? Robert Altman destranca a psique da representação do oculto do sexo feminino. Através da exposição da típica mulher social, integrada na família, nas convenções da “normalidade” - Sandy Dennis alimenta-se do seu fascínio em possuir garotos. E tal senso logo é desmascarado antes mesmo dos 15 minutos de projeção, quando vemos a sua personagem intrigada e atraída pelo adolescente que permanece sentado no banco da praça em frente à sua casa (Michael Burns com seus cachos loiros angelicais, a aparência para o fetiche). Altman logo exibe que por trás de convenções, existem aparências.
Temos a narrativa que explora a libido e, também, a solitária figura de uma mulher que precisa oprimir certos devaneios e interesses considerados como “libertinos”. A oposição que se estabelece entre a mulher madura com o frescor juvenil do seu “subordinado”, são efeitos eróticos promovidos por Altman para provocar: não deixa de ser a desconstrução do “American Way Of Life”, já que descortina o papel da mulher que aqui seria vista como pervertida ou até promíscua ao invés de formada em casamentos e filhos.
O discurso é proeminente: o que faz essa mulher acolher o jovem em sua casa? Seria mesmo à favor de seus desejos mais secretos? Ou reside aí o doloroso processo de ser solitária? Altman induz a paciência, sob sua narrativa lenta e delicada, na interação intimista entre esses dois indivíduos, com uma climática trilha sonora de Johnny Mandel. O jogo de tensão se firma quando a mulher condiciona o seu pupilo preso no quarto, como um escravo de seus desejos e anseios, mostrando que o que haverá são indícios de dominação e dominado.
O irônico é ver que as cenas são mais verbalizadas pela Dennis - o semblante triste e olhar vago, a voz trêmula: sua personagem fala o tempo todo, se desconstrói e conversa sobre si mesma enquanto o jovem, apenas, serve-se como ouvinte. Mas, fora da interação com a sua dominadora, o jovem conversa normalmente e até se doa sexual para outras mulheres. O problema reside na relação da dominante com o garoto que não se entrega total ao seu comando. Altman exibe o quão a figura daquela mulher se firma emocionalmente insegura e solitária, usando da presença do jovem para suprir suas carências do corpo e da alma, nada mais que reflexos da sociedade individualista.
1922
3.2 797 Assista Agora“Eu sempre achei que há outro homem dentro de outro homem: Um estranho que habita nele”. O tapa da vingança ou a maldição da justiça. A trama que percorre a ganância do homem que é movido pelo instinto de crueldade contra a esposa - Thomas Jane, com seu sotaque “caipira”, a fala mansa e pausada, nos conta a sua trajetória “pacata” até o desequilíbrio que o leva a assinar sua esposa. Sob a redoma rural de uma cidade pequena, a narrativa constrói a convivência do casal com o filho, até a desestrutura. É quando a trama reverte-se no mórbido e com toques habituais dos traços mais comuns das obras de Stephen King: a consciência se fragmentando.
Como lidar com o peso da culpa? O assassino passa a ser atormentado pela sombra da esposa morte - ou seriam indícios de uma loucura? A produção é climática e tem o cuidado de ser bem firme na direção de Zak Hilditch - habituado a abordar as sensações do medo, vide seu trabalho “As Horas Finais” -, incidindo a noção de sobrenatural-psicológico com elementos investigativos de um bom suspense redondo. A trilha sonora de Mike Patton, vocalista do Faith No More, ajuda na atmosfera tensa com violinos sinistros e, por vezes, distorcidos, evocando o terror de instabilidade emocional que habita q situação deste crime passional. Um conto sobre como as consequências para certos atos impulsos e descabidos são capazes de deixar estigmas no ser humano.
O Filme da Minha Vida
3.6 500 Assista AgoraO desalento pela ausência de afeto. Como prosseguir quando existe a falta da presença paterna? Temos um conto sobre laços familiares. Acima de tudo, Selton Mello nos submete a uma trajetória sobre o rito de maturidade, de acordo com as perspectivas de seu protagonista Tony Terranova - um excelente Johnny Massaro em foco cênico. A narrativa percorre as noções do processo de angústia e saudade do jovem que sente que não pode caminhar sem a presença do pai (Vicent Cassel). Além da ausência, trata das experiências do sexo e também das verbalizações juvenis, no terreno da década de 60 nas Serras Gaúchas, com ares europeus. Entretanto, ainda que crie um verniz até poético dentro da melancólica narrativa, por vezes Mello se rende a pequenos floreios estéticos e alguns sentimentalismos em cima da relação do protagonista e suas interações. Ainda assim, um tratado humano sobre a carência afetiva.
Face a Face
4.2 131A mente em processo de deteriorização. Ou a alma que se fragmenta em pedaços. Face a face com a depressão. Ingmar Bergman promove o obscuro estudo de personagem através do dedo na ferida - da alma que adoece. Através das perspectivas da psiquiatra abalada emocionalmente por feridas que não se cicatrizam - uma Liv Ullmann à beira do colapso, com olhos constantes manejados e voz trêmula. Jenny Isaksson é a representação da mulher sufocada pelo cotidiano, que não consegue mais respirar, atormentada por visões e delírios que deturpam sua vida.
Como se reestabelecer novamente? Bergman constrói o estudo em cima da persona desta mulher, na ótica do feminino, numa narrativa sólida dotada de diálogos e planos fecundados no silêncios, isento de trilha sonora e formatos redondos. Temos uma construção cuidadosa e lenta, quando aos poucos vamos compreendendo a noção de vida e personalidade desta mulher. O roteiro induz o público na intimidade do inconsciente da protagonista - cenas em que vemos os símbolos de sonhos e “mentais”, além de diálogos que remontam a trajetória da psicanalista. As cenas em que Ullmann verbaliza suas memórias, angústias e situações do passado, nos auxilia neste processo de compreensão com a tal persona.
“É tão horrível quando as faces se transformam. E não podemos mais reconhecê-las. (....) É sempre horrível ter a consciência pesada”. A noção de horror é visível na maneira como a narrativa adentra no espaço do psicológico desta mulher - as cenas em que ela confronta seus próprios medos, através da visão da figura de uma velha-decrépita, que perambula e a observa, tem tal atmosfera de tensão que soa como um assombro cênico. Nada mais que a metáfora e representação da sombra da depressão que a persegue e a tolhe socialmente.
“Sua frigidez é tão intensa que me atrai”. A ironia de constatar a desconstrução de uma psiquiatra em processo de desestrutura é uma provocação promovida por Bergman. A atuação de Ullmann é dotada de tão entrega e naturalidade que obteve, na época, inúmeras nomeações às premiações - inclusive ao Oscar de Atriz do ano. Os dez minutos finais de monólogos dolorosos, são verbos intensos e a comprovação de sua atuação mais contundente.
"Ficaria agradecida com os horrores que já conhece. Os horrores desconhecidos são piores. Acha que estou mentalmente perturbada pelo resto da vida? Sabia que há um exército de um milhão de pessoas mentalmente perturbadas, pobres diabos que perambulam gritando uns com os outros palavras que não entendemos e que deixam a gente ainda mais apavorados? Não sei. Há um chamado para nós que não cremos. Que quer dizer? Às vezes digo para mim mesmo. Pode dizer para mim? Desejo que alguém ou algo me bata, assim posso voltar a realidade. Repito incessantemente, talvez um dia eu seja real. Que quer dizer com “real”? Ouvir uma voz humana e confiar que vem de alguém igual a mim, tocar um par de lábios e ao mesmo tempo saber que isso é um par de lábios."
Nossas Noites
3.7 165 Assista AgoraÉ possível se conectar após a velhice. Um trabalho sobre o comunicar-se. O encontro de dois indivíduos, viúvos e desconectados com a aparência do sexo e noções do desejo. É quando esses sensos somam ao reaprendizado do sentimento. Terceiro filme juntos, Fonda e Redford exibem a sintonia de sempre em diálogos fechados sobre perspectivas, solidão, agruras e amor. Reflexões sobre a brevidade da vida e as imprevisibilidade do destino. É um filme que mostra o quanto somos sozinhos e que tal situação não permite conforto. Aprendemos com o aprender do outro ao lado. Vemos o encontro de uma mulher e um homem que percebem que o final dos anos podem garantir mais harmonia com a companhia e compreensão mútua. A linguagem é simples, o formato quadrado também, mas sincero no que se propõe.
Blade Runner 2049
4.0 1,7K Assista AgoraO replicante que, ironicamente por não ter alma, aprende a relação de sensibilidade que muitos humanos não parecem ter. A falta de alma é capaz de torná-lo um ser sem perspetivas? O que o torna mais sensível? As ausências de memórias reais o torna menos emocional? Denis Villeneuve insere elementos do caos distópico do filme original, criando amarras e relações com as situações do trabalho de Ridley Scott, em conexões com o universo e exímias referências. Nos submetemos a um filme de cunho existencial e não de insinuações baratas de ações desenfreadas. Por isso, takes de silêncios e respirações que dizem mais.
A determinação narrativa é feita de fragmentos - tão condizentes com as memórias que são remodeladas do protagonista (um Ryan Gosling calado, observador e que diz mais com o olhar) que não se livra de sua condição solitária. “Você devia sorrir mais vezes” - é dito pra ele em dado momento, numa reflexão à condição desbotada de uma humanidade sem expressão e mecânica. Quer maior crueldade que perceber o quanto esses seres replicantes parecem dotados de mais sensibilização que os próprios humanos? O tapa na consciência é verdadeiro.
Denis Villeneuve traça um estudo de personagem em busca do reflexo de sua “sociedade perdida”. Soma-se, dentro da técnica irretocável, a trilha sonora etérea e que nos causa maior imersão de Hans Zimmer, que se aproxima bastante do feito de Vangelis do filme de 1982. Além das cenas emolduradas com uma fotografia precisa de Roger Deakins que recria quadros de “mundos imperfeitos” da nova era da superficialidade; cores, jogos de luzes e sombras que exibem as tônicas dessas esferas do cenário de um universo decadente pós-tecnológico. Uma estética modernista de zonas urbanas.
Una
3.0 139 Assista Agora“Com quantas meninas de 13 anos você transou além de mim?”. As cicatrizes do sexo. Ou mesmo os traços de um trauma que atrapalha o caminhar. Não ê à toa que logo no início, vemos as duas mulheres em fases distintas da mesma pessoa - na infância sob uma árvore e na atualidade, transando com um desconhecido em uma boate. A narrativa transpõe o acerto de contas com as sombras: Rooney Mara transmite o olhar melancólico e a falta de satisfação em um cotidiano letárgico, sem brilho. É a jovem que busca compreender a razão de ter sido “usada”, a vítima do assédio de um homem mais velho (um Ben Mendelsohn bem preciso em cena). Não temos o tom didático e expositivo sobre os indícios da pedofilia, mas vemos um drama de diálogos e exposição das sensações sobre esse efeito. O roteiro permeia as cenas de diálogos centrados nas interações de Mara com Mendelsohn, na tentativa de desconstruir essas mágoas de um passado ainda presente. O tête-à-tête é exposto pra nos situar os ecos de um abuso. O estudo dos personagens surgem em cima desses “desabafos expostos” em cenas. A narrativa é enxuta: direta e concisa, sem muitas divagações - a não ser o recurso da linha narrativa do passado e presente para modelar ao público as sensações da dor da protagonista.
O Estranho que Nós Amamos
3.2 616 Assista AgoraEncenação sobre a opressão feminina entre quatro paredes. Sofia Coppola orienta seus planos sob uma rigidez na direção, o apreço pela frieza, através de uma fotografia em contrastes acentuados e cinzentos, para adentrar a identidade sobre uma situação da ótica do feminino. Ironicamente, o tal soldado ferido (um dúbio Colin Farrell), que precisa de amparos, permanece na posição de submissão inicial física aos comandos dos flertes e interesses libidinais das mulheres que o rodeiam. É quando as tensões aparentes revestem-se em outros posicionamentos - a insegurança feminina, diante de um período da Guerra Civil Americana, que precisam abraçar-se para defender o território imaculado.
Coppola coloca o jogo de interação e constrói primeiramente as noções de desejo e carência feminina - é visível o quanto cada uma das mulheres (os pilares Kidman, Fanning e Dunst) em suas diversos estágios de maturidade, se concentram no interesse à figura masculina que abala o tédio e a calmaria daquele universo dotado de letargia. As sutilezas do sexo ganham novos contornos: É quando este sentido se desconstrói e passamos a enxergar a situação como um risco à fragilidade feminina, provando que é nada mais que um conto sobre a defesa da mulher diante de um período em que as atitudes machistas oprimiam o feminino e o instinto de proteção - independente do questionável senso de moralidade - era preciso para vencer este meio.
A Marca da Pantera
3.2 138O faro da libido. Não deixa de ser irônico observar a persona principal, personificada por uma Nastassja Kinski estonteante e permissiva à própria sensualidade em cena, uma virginal que descobre ser parte de uma estranha personificação: tanto ela quanto seu irmão - um dúbio e malicioso Malcolm McDowell - descendem de uma inusitada linhagem de homens-felinos que só podem amar e reproduzir entre si.
A provocação do roteiro usa do artifício sexual para criar sua aura de horror mais voltado ao soft-porn, já que usa da metáfora visível: o ser humano que se transmuta num animal, no caso a pantera, quando consumido pelo desejo. Sob a eletrônica trilha de Giorgio Moroder, vemos o conto da mulher que pouco a pouco passa a se transformar em um ser mais irracional, deixando sua formalidade de lado e partindo para os comandos que seu próprio instinto delibera.
Existe o verniz erótico presente que assume as linhas narrativas, não é à toa que há uma atração visível dos irmãos em foco - a provocação do incesto; o apelo sexual em que McDowell nutre por mulheres e a própria mudança no comportamento frágil de Kinski que passa a ser menos recatada e mais altiva, mas que tenta compreender seu lado selvagem. As passagens dela como “sonhos”, em uma fotografia avermelhada, é belíssima e sexy.
Paul Schrader investe na atmosfera e no desenvolvimento mais lento, estabelecendo o processo de transformação da jovem e seu ingresso ao mundo de libido e “animalidade”. Há cenas de gráficos sanguinários e certas tensões são colocadas em jogo, mas não deixa de ser uma fita dramática sobre o quanto nos submetemos aos instintos mais agressivos que surgem do âmago. Destaque para a música-tema imposta por David Bowie.
Sombras da Vida
3.8 1,3K Assista AgoraTal qual a frase que abre o filme, trecho de “Uma Casa Assombrada”, de Virgínia Woolf - “Como um novo despertar, a cada momento que acordasse, uma porta se fechava” -, temos um trabalho experimental e dotado de subjetividade que recorre à filosofia por trás do formato. David Lowery não só reafirma as indagações sobre a existência e recria em sua obra um conto sobre o transcender espiritual - como executa aqui uma trajetória sobre o luto. Como permanecer ao lado de alguém mesmo após a “morte física”? Remove-se as vestes físicas e ecoamos através do infinito?
O luto. Não é a toa que a sequência de mais de cinco minutos, em que a personagem da Rooney Mara, come uma torta, é uma maneira agressiva e seca de mostrar o quanto alguém permanece debilitado psico e fisicamente após a perda de um ente querido. A câmera segue o fluxo do momento, não há cortes, estabelecendo no público a sensação incômoda de alguém que “mastiga” a própria solidão. Tanto ela, quanto ele, são ambos os personagens sem nome - apenas, as letras iniciais, “C” e “M”, refletem a ideia do registro ideológico social que norteia a ideia física de um indivíduo. Só que para Lowery, aqui, não há espaço para nomes: mas, para o que transcende além deste senso.
É um filme sobre o estar presente mesmo que isento do que é considerado físico. Casey Affleck permanece à espreita, fora da linha temporal e do além da própria linha cósmica diante da amada. Temos o olhar do indivíduo que desencarna e passa a agir como alguém que perscruta e observa o seu foco de apego/sentimento - os signos são evidentes em cena, como a manta branca e os dois furos nos olhos, reafirmando o aspecto do símbolo padrão de um “fantasma”. Não vemos seus olhos, o que é irônico, pois são através deles que poderíamos ver a emoção brotar.
O uso de elipses para fundamentar a narração - o vai-vem do tempo indefinido, não há o presente e passado, mas um ser que orbita a existência além -, com silêncios que dizem mais que diálogos extensos, o uso da comunicação imagética com poucas falas no esqueleto do roteiro. Há uma aproximação com o senso estilístico de Terrence Malick, ao inserir cenas com entrecortes de galáxias ou mesmo planos com a contemplação da natureza ao redor - o momento em que o fantasma retorna, andando, em um campo aberto com o nascer do sol ao fundo, parece uma cena onírica ou quadro-pintado de tão plástico. São efeitos visuais que fecundam a narrativa e providenciam seu caráter simbólico também. O formato de tela quadrado com “pontas arredondadas” também encontra, em seu recurso, a ideia da visão do fantasma em si: a visão de seus olhos estreitados por dois furos em um lençol que serve de carapuça para sua existência; a mortalha sombria de um mundo no qual ele divaga e permanece como poeira e “condenado”.
David Lowery cria um universo minimalista e delicado, é metafísico e atmosférico. Acima de tudo, sombrio por expor as dores de como o ser humano pode se manter além do tempo e da organização social, no plano infinito sem pretendentes - não há linhas temporais definidas, é um conjunto só. Tal qual o fantasma que espreita a sua solidão, em dado momento visualizamos um outro semelhante, em outra casa, à janela: outro ser que vaga e permanece à sombra da própria solidão cósmica e sobrenatural; caminhando no véu do invisível, em busca do ente físico que se foi. É como permanecemos aqui, na sociedade, necessitando do acolher do outro para continuarmos nos sentido vivo - no temor de nos consolidarmos solitários por medo de não vencer na teia da crueldade terrena. Sim, eis um filme de vasta percepções e maiores debates que nunca se finalizam.
Descalços no Parque
3.6 97As intransigências e divergências da vida a dois. Sob o verniz leve, temos o formato da verve teatral, já que bebe diretamente da fonte - texto baseado na peça de Neil Simon. Os conflitos, as dores, as opiniões e clamores - de desejo e insatisfações dos recentes casados Fonda e Redford. Ambos em plena sintonia em cena, acentuando a caricatura do "American Way Of Life" com humor e tons até pueris na maioria das sequências.
Ainda que engessado na forma cênica de teatro e, por vezes, certos diálogos e concepções de cenas demonstrem uma certa "inocência" em excesso, o jogo interpretativo dos dois e a participação de Mildred Natwick - que faz a mãe de Fonda -, garantem o espaço de diversão em cena. Com uma personificação altiva, foi indicada ao Oscar de coadjuvante.
A direção pouco inventiva de Gene Saks permite que o elenco se entrose e exerça sua verborragia, em planos mais estáticos e cenas formadas em "situações como capítulos". Do meio pro final, flui melhor e há uma quebra no tom formal de antes quando o casal sai da zona de ação dentro apartamento e verbaliza passos em outros ambientes cênicos.
Em linhas gerais, a fita incute a reflexão óbvia do anseio de divórcio "pós ilusão do casamento" em tempos em que, tanto o homem quanto a mulher, precisam se impor para o que, de fato, descobrem dentro do matrimônio. Entretanto, o que vemos mesmo é a fórmula de retratar as entranhas do desejo e afeto entre quatro paredes.
Lady Macbeth
3.5 158Como remover as vestes da opressão? A mulher que é tolhida, vítima de um sistema de aparências e máscaras de conveniência. Formada em casamento que a agride. O efeito de violência psicológica e o machismo que comanda o espaço, são indícios colocados sob o olhar neutro, mas de personalidade de William Oldroyd. Temos o cenário sobre a alma feminina na Inglaterra rural de meados do século XIX, onde as perspectivas e anseios da jovem Katherine (vamos ver mais deste nome, Florence Pugh!) entram em forma e caráter com o que é submetida.
O patriarcalismo dominante da época, a escravidão com os ranços racistas; e os ditames determinantes de um marido abusivo e machista, podem encontrar nítidos ecos com a nossa atualidade. Há uma frieza nos planos, nas cenas, no silencio e olhares, isenta de trilha sonora para dramatizar - na plasticidade que Oldroyd muito bem constrói pra dar essa noção de tédio e desalento da protagonista em ação. Uma direção sofisticada.
As noções de submissão do roteiro logo muda no cenário, quando emerge da figura da protagonista a vocação para sentir e o direito para ter a liberdade do prazer. É quando ela se envolve com um dos serventes da fazenda onde vive, o roteiro acentua a provocativa do comportamento que toda mulher precisa ter - mas, nem sempre consegue.
Chega a ser irônico o título, tal qual a menção à Shakespeare: seria um conto aqui sobre o poder da ambição ou da vontade de viver pela chance de ser predestinada ao amor? Há um tom cruel que percorre as veias nas ações, algo até mórbido. Mas, como condenar? Não é fácil ser mulher. É preciso compreender aquele tempo. Acima de tudo, um filme que encontra reflexo no olhar sobre o feminino.
Por Trás do Céu
3.6 27Um conto lúdico que transpõe o social em uma atmosfera fantástica. Caio Sóh expõe a falta de esperança, tédio e ausência de perspectiva através do desbotamento. Em Lajedo de Pai Mateus, na Paraíba - que mais parece um terreno lunar em uma elevação rochosa que contrasta com a vegetação do agreste -, observamos as noções intimistas da divagação de Aparecida (Dill) que não perde o olhar sensível ante à amarga realidade ao redor. Através dela, a sensibilidade feminina, a mulher que transforma o caos em sonhos mastigados - o que há por trás do céu? Brinca com a vida seca e transforma os bagulhos recolhidos pelo marido em lindos artefatos que vende em feiras, como a máquina de filtrar pensamentos e um foguete caseiro.
A fábula centra os devaneios e as angústia de um sertão com ares pitorescos por conta de certos símbolos poéticos unidos ao "realismo fantástico" com elementos de uma direção de arte que assume o cênico. É assim que a direção de Sóh evoca, também, o seu olhar sobre a realidade deste ambiente tão marcado por dores, cicatrizes no corpo e na alma diante do sol agressivo nas faces.
O personagem do Orciollo Neto assume o oposto, fora da órbita ingênua e sonhadora da sua esposa, o típico indivíduo que exterioriza suas agruras e extremos violentos. Um ser embrutecido. "Nós somos feitos dessas terras. É aqui que vamos viver e ser enterrados, junto com os nossos" - diz ele em dado momento, simbolizando essa sina e conformidade em permanecer nas terras onde nasceu e se condicionou.
Acima de tudo, Sóh faz seu conto sobre as perspectivas humanas deste meio do "produto do meio", como um Movimento da Literatura Naturalista. Por isso mesmo, recria os planos lúdicos dos protagonistas com diálogos de coadjuvantes que planam suas falas em tons mais reais - como Paula Burlamaqui que personifica a prostituta violentada pelo sistema de mundo e que encontra refúgio com o casal melancólico que se contrapõe ao personagem do Renato Góes que concebe o humor na narrativa. A mistura dos planos reais com o lirismo soam equilibrados.
É um sertão de miséria social, mas que traz dentro do corpo do roteiro um contorno mais poético - como monólogos e uma encenação teatral com certas representações artísticas em cena pra falar da existência. Como um formato de contos retirados da oralidade popular brasileira, quase folclórico em sua essência, Sóh questiona o público com suas provocações sobre Deus e diabo; os limites do humano é nossa própria existência em sobreviver. Mais que um retrato do êxodo rural, reinam os sonhos e as dores de um povo carente do sertão que precisa encontrar seu espaço no mundo.
O Beijo
3.5 8 Assista AgoraNelson Rodrigues, despido de qualquer pudor ou hipocrisia, expõe o lado perverso e irresponsável da natureza humana. Interessante como temos um filme atual e que expõe a atualidade com seus preconceitos mais cruéis. A mídia cada vez mais sensacionalista e que adora criar factoides, a polícia corrupta, a sociedade que não sabe criar uma opinião própria e vomita tudo que aparece nos jornais na Tv e a facilidade de transformar algo duvidoso em verdade absoluta. A plena homofobia e os jogos de máscaras humanas. Entretanto, a direção formal e o tom carregado de "teatralismo" impede maiores provocações numa trama que ainda rende ecos sociais. A versão de 1980 de Bruno Barreto tem leitura mais contundente, com Tarcísio Meira e Ney Latorraca mais sensível e roteiro bastante superior.