Há filmes que falam sobre o coração, quando não há nada que os cale: eles falam por si. Qual sentido da amizade? Deliberado, o filme Conta Comigo revela-se inevitavelmente um estudo pleno, singelo e incondicional sobre a amizade. Pois, quatro diferentes amigos descobrem o próprio significado de existência rumo à compreensão humana - diante de uma jornada que trilham em busca de um corpo de um adolescente desaparecido. Os quatro são amplamente divergentes: há o sensível Gordie (Wil Wheaton), o medroso Vern (Jerry O'Connell), o destemido Teddy (Corey Feldman) e o maduro valente Chris (River Phoenix). O roteiro, genuína adaptação sentimental do conto "O Corpo" de Stephen King, revela-se um estudo discreto sobre a autodescoberta, amizade ocasional que perdura, manifestações da pré-adolescência sexual e boa dose de psicologia de transgressões familiares. Os quatro garotos lidam com o desapego familiar, a necessidade de questionarem os próprios problemas. O enredo é narrado pelo ponto de vista do personagem Gordie, já homem, escritor, e personificado por Richard Dreyfuss: eis que sua percepção já madura e um tanto nostálgica condiciona o espectador avaliar, junto com ele, toda sua vivência no verão de 1959. E o roteiro de Raynold Gideon evidencia essa busca sentimental sobre jovens em constante sede de amizade, doce partilha de companheirismo e fidelidade conjunta. Como deve prevalecer a mais pura amizade?
Os diálogos sensíveis, as brincadeiras, as travessuras, em meio ao leve humor e densa dose emocional - conduz um roteiro muito primoroso, de pura ternura e realista. Quem não teve amigos pra toda vida em tão curto espaço de tempo? Quem não recorda momentos da infância ou pré-adolescência? Mais que um condicionamento narrativo sobre amizade: é um exercício quase literário cinematográfico de lealdade - deve ser, portanto, classificado como um melodrama pautado na reflexão de temas como crescimento pessoal, maturidade e perda. Os garotos traçam a própria perda da infância pra maturidade, no decorrer da jornada. Com o fim da inocência: o ganho da vida? O diretor Rob Reiner é perspicaz em conduzir cenas com emoção à flor da pele, preenchendo com fidelidade a aura dos anos 60 - repleta de hits sonoros, roupas, hábitos e costumes - para dar vazão a um sentimento único: o valor da amizade, jamais deve ser dissipado. O que fazer quando uma amizade é abalada? O que define o sustento desse sentimento? O que deve prevalecer?
A música Stand by me, de John Lennon, aqui é performado com êxtase imortal por Ben E. King e dá tom à atmosfera juvenil do filme, deliciosamente transmitido com ternura. Jornada de aprendizado? O que se configura mais tocante no filme: a importância da amizade só é exercida quando essa deixa de existir. De fato, encontrar amizades sinceras é algo bastante improvável. Nem toda amizade é eterna, principalmente as de infância que cicatrizam, mas são difíceis de serem cultivadas até a fase adulta. Há situações, constantemente, que coloca tudo a prova. O risco é pouco? No filme, há uma humanização dos personagens. River Phoenix, morto poucos anos depois do filme, interpretava magistralmente com misto de emoção e sinceridade. Há um Corey Feldman cativante, John Cusack como o irmão falecido de Gordie e até uma participação de Kierfer Sutherland como um bad boy antagonista da trama.
O roteiro expressa as diferenças psicológicas entre os garotos: enquanto Vern e Teddy mantinham papos desconexos, brincadeiras infantis e certa imaturidade - Chris e Gordie tinham sintonia pra papos mais existenciais, reflexivos e demonstravam maior sexualidade pela maturidade mais evidente. Tanto Chris e Gordie servem de catalisadores para a motivação reflexiva sobre abordagens íntimas de melancolia, insatisfação de vida e meditação sobre problemas pessoais. Eis uma lição de vida bem concebida, película poética. "Amigos nas nossas vidas são como garçons em restaurantes. Sempre passam, porém, alguns demoram mais do que outros".
O mundo contemporâneo se embruteceu tanto devido à agressões sexuais, violências pervertidas, estupros desmedidos que o senso de escândalo parece ter se esvaído. Talvez, seja um dos motivos pelos quais consideram o filme O Último Tango em Paris menos forte que no período de lançamento. Contudo, o trabalho concebido pelo diretor Bernardo Bertolucci não deve ser esquecido: trata-se de um grande filme erótico-reflexivo, denso pela carga libidinosa que externa com grande maestria. Um belo representante cinematográfico da depravação exposta. Penetrante, sensual e orgástico filme mais controverso. O foco centra-se em duas pessoas que se esbarram pelo acaso do destino: Paul (Marlon Brando) é um empresário americano quarentão que vive em Paris, marcado pelo recente suicídio da esposa, jamais consegue se desvencilhar da dor que o consome diariamente. Como esquecer as dores que atormentam a alma? Ele se vê sem chão, sua alma devastada amargurada. Como se recuperar do choque? Casualmente, conhece Jeanne (Maria Schneider), uma parisiense de apenas 20 anos. O acaso trata de providenciar o impulso: ambos procuravam um apartamento para alugar - por destino, o mesmo. Imediatamente, ambos desconhecidos e de vidas tão opostas, permitem-se a um desejo irrefreável. A trama ferve com o erotismo idealizado pelas próprias fantasias secretas de Bertolucci: o casal passa a ter um caso segredado com muita libido, paixão tortuosa por uma súbita necessidade de prazer a dois. Sexo por sexo, fervura erótica.
John e Jeanne evitam os nomes, preferem se predestinar ao contato sexual e as peripécias do gozo incondicional - mas, evitam dizer os nomes de cada um, bem como não conversam sobre suas vidas individuais. Dentro do quarto, tudo é permissível, os desejos são expostos com muita fúria - perdem a identidade e renascem? A fúria carnal com laivos de sadomasoquismo caracteriza a animalesca relação. De fato, nas transas diárias eles mantêm um forte elo. Química sexual, práticas de orgasmos e penetrações tornam-se a própria fuga da realidade. Eis que transformam o acaso em destino sexual. É um homem e uma mulher, é macho e fêmea, unidos para a satisfação da carne que pede o prazer - gemidos, seduções e brincadeiras perversas que tanto evocam o orgasmo. Imersos no apartamento, as fantasias são reais - o mundo torna-se menos vazio? Talvez, o sexo atenue as dores individuais de ambos. Incapazes de romper o forte laço sexualizado, arrebatados pela dança carnal frenética, esses dois amantes representam a busca pela satisfação carnal e o senso libertário tão ansiado pelo ser humano. Nota-se que a paixão nasce, ainda que ambos tentem se desvencilhar, inicialmente. Porém, tudo foge do controle de ambos.
Jeanne é a típica mulher liberal, espécie de ninfeta sensual que se permite aos comandos libidinosos de um homem mais amadurecido pela vida. Ela se comporta com uma malícia quase pueril. Excita ser direcionada por alguém que a comande sexualmente? Ela anseia o homem misterioso que dialoga - ainda que pouco - com ela sobre a vida, que a ensina a prática do sexo ousado e que a conduz num tórrido romance de tesão. A teia do jogo sexual pode ser perigosa? Dentro do apartamento, ela renasce uma nova mulher - esquece-se das preocupações do mundo, das responsabilidades e trai o marido (Jean-Pierre Léaud) que não parece adequar-se a sua realidade. O sexo funciona como uma válvula de escape, um impulso contra a mesmice, uma transgressão gostosa a ser exercida. Afinal, o que é proibido é mais prazeroso. Paul, ao contrário da verve comportamental passional da amante, utiliza de seus dons pervertidos para satisfazer sua necessidade de prazer - há também nele uma busca pela fuga, quer atenuar sua dor visto que sofre com a perda da esposa. Evita saber o nome de Jeanne, pois acredita que o conhecimento do nome traga maior envolvimento com a trajetória da garota. Afinal, um nome traz toda uma carga histórica sobre o indivíduo, agrega valores pessoais sobre a pessoa com a qual se relaciona. Pois, então, esses dois transam e são consumidos pela vocação da libertinagem entre quatro paredes. Estes dois indivíduos são artificios de um roteiro que prioriza uma análise sobre os anseios, contradições e perversões humanas sexuais. Duas pessoas, sem reminiscências, apenas o sexo como força provocadora. É nítido que ambos recebem e concebem o prazer que servem de sinônimo de aprendizado - a vida torna-se menos dolorosa, há esperança. Fora o sexo que serve de pauta para o mote do filme, há embutido um olhar melancólico sobre duas pessoas desesperadas pela salvação. O sexo pode levar à plenitude da felicidade? Profundamente triste, do encontro vazio de dois seres humanos em desespero, o sexo como uma tentativa inútil de lidar com o passado.
O frisson deste cult íntimo thriller erótico evidencia-se nas cenas de sexo de ambos. Há nudez sensual de Schneider, constante. Insinuações de frases perversas proferidas por Brando, como cenas de penetração ardente, ainda que cuidadosa (a primeira transa dos dois é intensa, crua). Há a imortal sequência onde Paul usa a manteiga para lubrificar e praticar o sexo anal (sodomia) violentamente com Jeanne - inclusive, há versões do filme que esta cena teve que ser censurada tamanha polêmica. A cena assemelha-se a um estupro, torna-se mais tensa pela maneira como é expressa - Paul, enquanto penetra o ânus da garota, pede que ela o deixe mais excitado, profanando palavrões e repetindo mensagens religiosas que ele a direciona. Seria um fetiche? Havia uma relação de dor, prazer, sentimento e até ódio neste casal que desmistifica o senso de privações da libido, servem de expressão para a quebra dos tabus sociais. O senso de instituição moral é colocado à prova, talvez ridicularizada e tudo é questionado. O sexo seria criador de vínculos entre eles e estabelecimento contra a convenção social? E também um movimento contra à rigidez da sociedade contra os indivíduos? O cuidado da direção de Bertolucci centra-se nesses questionamentos, ainda que as cenas sejam realistas e ousadas, não há conceito de vulgaridade - tudo é bem pensado, plástico. O diretor versa sobre a dor, sobre o peso da existência e sobre a sexualidade acima das relações. Aonde ninguém se conhece, ninguém tem obrigações. Há diálogos existenciais, profundos, que exercem tons carnais tangíveis. A trilha sonora caliente de Gato Barbieri tonifica-se como uma moldura emocional, maestria sofisticada do erotismo melodramático em acordes do tango-jazz estilizado. O recurso técnico encontra cores, contornos e adornos precisos pela alaranjada fotografia excepcional de Vittorio Storaro que revigoriza o filme - cores quentes denunciam o teores orgásticos que simbolizam os amantes em cena. O dom subversivo imagético proposto por Bertolucci destina-se ao misto da elegância, da obscenidade estrutural, explora bem a sensualidade corporal dos atores em cena na composição dos planos objetivos. Puro charme cinematográfico que atua como crítica à humanidade. Eis uma tragédia erótica que deve ser vivenciada, uma obra de arte que é capaz de tirar qualquer um do estado catatônico.
Elia Kazan já tinha a consciência que falar de sexo não é simples, ainda mais quando o senso volta-se ao universo da juventude — com toda sua ebulição carnal, desejos imoderados, explosão hormonal que caracteriza tão bem esse período. Abordar a sexualidade juvenil é também estar ciente que esse processo é resultado de diversos fatores, um deles é o sentimento. Pois sexo, além de algo carnal, é também algo intrínseco a alma humana. E talvez por ter isso em mente, o diretor promoveu um dos filmes mais contundentes e polêmicos da história da cinematografia americana. Diferente do seu “Uma Rua Chamada Pecado”, Kazan conseguiu efetuar uma produção sem uma censura forte, já que o Código Hays não atuava mais como elemento de mutilação nas estruturas dos roteiros de filmes, digamos, “mais maliciosos”. Clamor do Sexo atuou como um retrato de uma sociedade puritana, moralista e altamente repressora contra uma juventude prestes a explodir pelos direitos do sexo. O filme foca no período dos anos 1920 em Kansas, um ano antes da Grande Depressão: conhecemos a virginal Wilma Dean 'Deanie' (Natalie Wood), uma jovem cheia de sonhos e com o sonho de entregar-se ao seu amado Bud Stamper (Warren Beatty), este sofre por ter que reprimir seus instintos libinais já que, naquela época, transar antes do casamento estava fora de qualquer cogitação. Como fazer para conter dois jovens em processo de tesão absurdo, visto que a sociedade condenava a liberdade sexual numa relação de namoro? É justamente esta problemática apresentada no filme que, até hoje, é um exemplo dramático sobre escolhas que envolvem os sentidos de desejo, sentimento e anseios da humanidade. A linha do sexo é algo sempre delicado a ser discutido, mas aqui ganha força.
Como alerta, é provocante a maneira como o filme, produzido no princípio da década de 1960, consegue sustentar sua narrativa com bastante ousadia. A malícia, o jogo romântico, a forma como o casal protagonista dialoga com seus anseios carnais, são pontos bem pungentes aqui. Obviamente, Elia Kazan sabe expressar a dolorosa problemática vivenciada por Bud ou a angústia sentida por Deani com cuidado, mas ainda assim tudo é bem expresso, sem medo das reações do público que, surpreendentemente, aceitou o filme sem medo. Até a censura foi liberal, um feito bem notável, visto que até nas cenas de beijo são calorosas, até ardentes. A provocação se sustenta na maneira como Bud precisa lidar com sua vontade de fazer sexo com a namorada, impossibilitado por conta de uma família com rigores paternais, acaba por sofrer por ter que atenuar sua libido.
Para Deani é até pior e o roteiro acentua muito bem: qualquer garota que transasse com o namorado, antes do casamento, era considerada promíscua. Deani sofre por ter que reprimir sua feminilidade natural, todos seus desejos abismais, tendo que controlar suas emoções mais libidinosas já que seria condenada por todos. Ser virgem era um fator primordial, então. Por que ter que frear os desejos por um grande amor? Como provar para a sociedade que o sexo age com importância num relacionamento? E como fazer valer a sexualidade num terreno tão repressor? Inúmeras perguntas são feitas a partir do casal, tamanha a reflexão. Tanto o homem quanto a mulher aqui retratados acabam por reprimir-se sexualmente a ponto da relação torna-se abalada. É a maneira de Kazan expor que nenhum romance dura sem o clamor do sexo, sem a energia do tesão que alimenta a juventude insaciável. A ausência do sexo enfraquece, faz com que qualquer ser humano acabe por repensar a relação, é algo frustrante.
Warren Beatty com sua beleza, masculinidade e impulsos sexuais, teve a chance de brilhar com seu personagem. O ator sustenta muito bem a emulsão emotiva de seu Bud que sofre de desejo, suas cenas de dramaticidade são extremas, porém as mais memoráveis são as protagonizadas com apelos românticos de uma Natalie Wood totalmente entregue à sua Deani — a atriz fez aqui a grande atuação de sua breve carreira. É perceptível a bela química interpretativa dos dois em cena, ainda mais quando o roteirista William Inge insere obstáculos na vida do casal apaixonado, quando Bud e Deani acabam por se afastar e outras situações dramáticas são exercidas, como os conflitos vividos pela irmã de Bud, Ginny (Barbara Loden), uma espécia de ovelha-negra da família que afronta a todos com seu comportamento transgressor libidinoso.
Nunca foi tão sensual e até doloroso colocar o tema do sexo num filme, e aqui este sentido ganha uma força bem realista, já que o espectador tende a se identificar com os amantes juvenis. Inesperado ver algumas sequências de nudez de Wood que sabe verbalizar na sensualidade corporal e verbal, como na cena da banheira onde presenciamos — seu talento aqui atinge o ápice — uma discussão da sua personagem com a mãe, quando ela questiona suas posições femininas acerca de desejos. Um filme que sabe provocar por escancarar os segredos da juventude que não queria permanecer conformada no America way of life, um exemplo nítido de como a sexualidade fervente da juventude serviu como quebra dos tabus num período onde a opressão parecia ser o único senso da sociedade preconceituosa. Elia Kazan trouxe à tona uma problemática sexual que ainda se mantém pertinente. Sedutor incontestável, este é um marco que jamais envelhece.
Pois todo filme nacional pode atingir o ápice, é o que ocorre com o intenso Bicho de sete cabeças: definitivamente, uma abordagem contundente e violenta do âmbito brazuca, efeito cinematográfico de pura realidade. Dirigido com talento pela criativa Laís Bodanzky, o filme captura a crueldade humana no mais profundo absurdo. Rodrigo Santoro é Neto, um jovem enviado ao manicômio pelos pais por não se enquadrar nos padrões sociais. Qual a condição da loucura? O que determina ser ou não sensato? Neto suporta a crueldade e agrura de um sistema que, condicionalmente, devora suas presas com maldade. Othon Bastos e Cássia Kiss personificam a estrutura familia que adotam a internação do filho, pura medida impulsiva. O filme propõe alfinetar a alma, o coração e a sociedade: como abrir os olhos diante de jovens transviados? Neto peca em viver imerso nas drogas e à condição de subversivo, porém tem sua vida revirada pela ignorância da família. Como um adolescente de classe média se predestina ao esquecimento? É no manicômio que o jovem encontra a amargura: é obrigado a usar fortes medicamentos, recebe maus-tratos e tem um violento tratamento - inclusos eletrochoques de 460 volts e encarceramento! É com muita emoção que vivenciamos a dor: ele sente o próprio inferno de perto, junto com suas constantes convulsões provocadas pelas descargas elétricas. Já imaginou ter os neurônios queimados e se observar próximo da morte?
O filme é contundente, selvagem, impactante. Como se livrar do abismo? A história é baseada no material autobiográfico de Austregésilo Carrano Bueno, no seu livro Canto dos malditos - internado entre 1974 e 1977, num hospital de Curitiba. A película é um sôco no estômago, contextualiza um período de pura crueldade social e pra compreender é necessário refletir. Existem, ainda, jovens condenados ao manicômio? Como se configura a atualidade neste sentido? Como se deparar com o uso das drogas na juventude? O filme propõe ainda mais: é importante uma relação de pais com filhos, um ajuda o outro, a compreensão mútua. A ausência de diálogos e afetuosidade tende à alienação familiar.
O sistema manicomial do Brasil se predestina ao tabu total, nada é muito questionado. O cinema exerce essa importância de questionamentos. É interessante observar a atuação emocional de Rodrigo Santoro: a degradação mental e física de Neto é violenta, sofre na própria carne a violência dos abusos e métodos dos medicamentos inseridos na veia. A ironia é constatar que o manicômio não cura os pacientes, mas os condiciona, ainda mais, à loucura e alienação - sem nenhum estímulo de recuperação ou intelecto.
O filme tem uma estética documental com planos modernos, acelerados, de acordo com o ritmo narrativo e do embalo psicológico dos personagens. A trilha sonora tem letras compostas pelo músico Arnaldo Antunes e André Abujamra concebem o tom conceitual da temática: as músicas determinam pensamentos e sentimentos do protagonista. Eis que o cinema nacional denuncia com lucidez o sofrimento, as atrocidades de um sistema psiquiátrico e desmascara uma sociedade diante do consumo de drogas.
Como entender o comprometimento com a infidelidade na própria vida? O ser humano, ainda que imerso em princípios da moralidade, pode se permitir aos anseios de um súbito desejo? Qual sentido de um relacionamento se não há a euforia do amor e paixão? Interessante abordagem proposta pelo diretor e roteirista Paulo Halm no seu instigante filme Histórias de amor duram apenas 90 minutos. A película é uma discussão sobre as inconstâncias do sentimento juvenil, a relação da sexualidade e um pequeno recorte sobre os sentidos dos relacionamentos abertos e bígamos que se intensificam na esfera da sociedade. O foco narrativo centra-se em Zeca (Caio Blat), um homem à beira do colapso existencial, um escritor que não consegue finalizar seu livro e sente-se frustrado por isso. Reside num morno apartamento em companhia de sua esposa, Júlia (Maria Ribeiro). No completo ócio constante, eis que a infelicidade persiste nos laços conjugais ao ponto de Zeca não conseguir mais manter uma boa sintonia sexual com sua mulher. Seria um casamento já firmado com ausência de libido? Mas, o destino providencia a catarse: Zeca flagra Júlia em um quarto com sua melhor amiga Carol (Luz Cipriota) e crê que ambas têm um caso secreto. A desconfiança passa a ser gradual, o rapaz sustenta nas suas dúvidas e sua mente, a partir disso, garante todo um tormento particular. Todo o filme mantém a percepção centralizada no olhar do próprio narrador, Zeca - assim, todas suas fragilidades são expostas ao público concebendo uma intimidade identificável, crível. Será que ele estava sendo traído há muito tempo? Como entender essa descoberta que o corrói? Ou seria apenas um ciúme que estabeleceu a cegueira em sua vida?
Interessante que todo o mote do sexo paira no esqueleto argumentativo bastante delineado por Paulo Ham. Todos os diálogos não escondem o quão passional, intenso e sexual é seu personagem Zeca. É o típico homem que vive imerso nos próprios problemas das dúvidas existenciais - o que fazer para sustentar uma vida que quer? como ter inspiração para finalizar o livro que pretende terminar? a vida há de ser mais prazerosa? - e que não consegue conceber um rumo evidente aos anseios. Sua relação com sua mulher firma-se no condicionamento na teia tediosa da rotina - até as transas de ambos tendem a ser conformadas em padrões. Praticamente, Zeca tende a estimular a esposa a ter relações sexuais com ele, visto que se mostra um homem dotado de libido constante. É como se o orgasmo estimulasse uma energia já dispersa em sua vida, pois Zeca não consegue dar melhores contornos a sua vida senão ao vazio que o confunde. E ele se submete ao ostracismo social, vive no seu mundo de imaginações e sonhos - mas, sua realidade é ser sustentado pelo dinheiro da mãe falecida sob a administração do pai Humberto (Daniel Dantas), por quem nutre uma relação firmada em mágoas e frieza.
O destino de Zeca, em meio as suas turbulências internas de sonhos não realizados, passa a ter novos contornos: ao passo que desconfia que Júlia o esteja traindo com Carol - essa passa a viabilizar um novo sentido orgástico em sua vida. É o tesão expressando novos horizontes? Do desejo nada se sabe? Não há maneiras de internalizar a compreensão das funções libidinosas que se apoderam da carne. Eis que Zeca passa a desejar ardentemente a amiga de Júlia (ainda que ela possa ser amante de sua mulher), não consegue conter a sua libido que se torna mais nítida quando ele se masturba toda noite ao pensar no corpo da garota que causa um irremediável tesão dentro de si. Nota-se que Zeca transa com Júlia mais pela sua necessidade fisiológica, visto que é um homem com uma forte tendência aos anseios libidinosos. Então, Carol torna-se de amiga e amante de sua esposa para seu objeto de maior desejo: ele projeta nessa mulher, dançarina argentina, um modelo sexual de satisfação para todas suas aspirações de prazer. Enquanto erotiza suas visões ao imaginar um romance lésbico de sua esposa com ela, arde nele uma vontade de possuir essa misteriosa garota que domina todos os sentidos do seu dia a dia. É necessário trair? Há na mente de Zeca o fetiche da tentação de dividir-se sexualmente, como prato degustável do orgasmo, entre duas mulheres?
É um filme que aborda os percalços dos desejos que podem afligir a carne, a alma. Mas, o retrato de Paulo Ham vai além aos mostrar questões contemporâneas como sensos de moralidade, dúvidas existenciais de jovens que não insistem em amadurecer, inconstâncias do sentimento, ciúmes que se manifestam e inquietações da alma. A maneira como as ótimas atuações de Caio Blat (que sustenta a narração em off de seu personagem), Maria Ribeiro e uma enérgica Luz Cipriota se completam em cena, concebem uma atmosfera tangível - personificações da realidade de mundo? São questionamentos, sexualidade e anseios muito bem delineados. E o misto do drama com toques de humor tornam os diálogos coloquiais verossímeis. É interessante como o cinema nacional alia-se do vigor e da mudança nos paradigmas para estruturar um bom conto de sexo e reflexão. Seria também um retrato sobre a geração - humana - perdida em depressões? Dúvidas? Ou é apenas uma maneira de mostrar como todo ser humano, ainda que não demonstre, tende a ser infinitamente inseguro? Pelo menos Zeca não é representante do sexo frustrado. Belíssimo filme provocador, crônica cinematográfica realística.
Como se expressa a juventude sem sucesso? O que torna um homem inseguro? A falta de perspectiva pode corrompê-lo? Se nada mais der certo representa a crua e contundente realidade do cenário brasileiro — é um estudo humanístico sobre as mazelas sociais, a desesperança pessoal e os conflitos dos incontornáveis distúrbios políticos. Decisivo filme que recobre a juventude sem perspectiva, com suas inseguranças e dificuldades para se vencer numa metrópole predatória. Dirigido com cuidado por José Eduardo Belmonte, é um filme que costura as dores de personagens solitários, onde o tom da perseverança se ausenta para dar vazão a um universo que reina a criminalidade paulistana. O filme centra-se no submundo humano, é através de pequenos, mas não menos profundos, personagens que a trama se evidencia. Léo (Cauã Reymond) é o jornalista que enfrenta problemas financeiros, sem emprego definido e uma vida insatisfeita devido às dívidas exorbitantes; Ângela (Luíza Mariani) divide o apartamento com Léo por quem é sustentada, tem um filho de seis anos e não consegue definir sua vida: depressiva, viciada em drogas e com tendências evidentes de imaturidade; a andrógena Marcin (Caroline Abras) que se veste como homem, lésbica assumida, trafica drogas e mantém uma conturbada relação filial com a travesti Sybelle (Milhem Cortaz); e há o taxista Wilson (João Miguel) que acredita precisar de um psiquiatra para dar sentido a sua vida insípida. O que une esses personagens? Belmonte, com texto co-escrito com Breno Alex e Luis Carlos Pacc, constrói seu recorte de realidade brasileira, através de cada personagem, para promover sua crítica: desprovidos de oportunidades, chances e realizações, esses humanos se unem para praticar golpes. E o perigo é gradual, é quando os delitos tornam-se perigosos. A cinematografia nacional encontra-se na sua melhor atmosfera, esse filme reflete bem o momento deste brilhantismo; no exercício da pós-modernidade que toma novo fôlego através de produção viabilizada por um talentoso diretor.
Como se libertar das armadilhas do destino que pode ser cruel? Como vencer numa cidade que não é fácil e tudo é um redemoinho de vícios, frustrações e agruras? O filme critica a realidade brasileira. Sob a caótica São Paulo, vista com um olhar amargo por Belmonte, é que seus personagens ganham sustância. Se nada mais na vida der certo? Há a chance de burlar o sistema através da criminalidade? Da perda da paciência por um mundo melhor e justo? Belmonte coloca seus personagens aflitos, pois culpam o sistema que limita seus universos sem oportunidades. Com a falta de dinheiro, os males são reforçados. Léo, Marcin e Wilson permitem-se aos golpes às instituições; gradualmente imersos numa teia onde não há escapatória. Roubam pessoas, infiltram-se em meios arriscados para obter grana para uma ilusão de mundo? E como acordar dessa realidade? Belmonte atiça sua câmera na percepção desses personagens que contestam a política; questionam suas fraquezas e envolve-se mais no submundo do crime. Abandonados, descrentes, vivem neste limbo brasileiro onde não há regalias às classes desfavorecidas. O tom frenético da montagem; dos diálogos naturais e do elenco talentoso evidenciam a ousadia deste trabalho cinematográfico. Determinam o grande impacto que causa. A fotografia de André Lavenere captura os tons avermelhados dos ambientes soturnos dos bordéis paulistanos; os close-ups investidos em cenas emocionais e as narrações em off dos personagens principais são pontos positivos.
O tom sexual permeia a trama, através da construção das personalidades e do comportamento provocante dos personagens. A representação da homossexualidade é centrada na figura masculinizada de Marcin, uma garota que expressa sua fisionomia dúbia por ser andrógena; imersa em cenários de uma vida frágil dentro de bares e cabarés onde se alimenta do consumo de drogas e de uma vida precária. O roteiro contorna a maneira como uma garota se adequa ao meio masculino, através de uma postura transgressora e sem trejeitos femininos. E há também a dimensão do aspecto do travesti Sybelle, um homem que mantém seu corpo de mulher, ainda que sua voz seja grave — as representações da androgenia e do transexualismo são aspectos da realidade, universo queer, e é a forma como o filme investe na sua provocação. O submundo é controverso, é sexualmente transgressor. Ora, a ebulição sexual também é característica da juventude indagadora? E Belmonte jamais julga seus personagens subversivos, somente evidencia que todos são humanos e não devem sofrer preconceito. Porém, ainda que os contornos da diversidade sexual sejam evidentes, o filme não se aprofunda neste condicionamento. Ademais, as interpretações surpreendentes de Cauã Reymond e de Caroline Abras produzem momentos emotivos que prefiguram o efeito dramático da narrativa.
É um trabalho que expressa a crise da juventude, ao se desdobrar nas questões das identidades problemáticas e na criminalidade, assim Belmonte ajuda a criar seu filme conscientizador. É interessante como os personagens são ambivalentes, afinal a moralidade é um questionamento bastante relativo. O que torna alguém ruim? Qual o sentido de maldade? Todo ladrão, só por roubar e cometer crimes, deve ser taxado como perverso? A trama envolve ao intensificar um olhar humano, sensível, aos personagens que são, incontornáveis, solitários. E Belmonte mostra que pra amadurecer é preciso sofrimento, talvez por isso o filme converta-se numa visão pessimista da realidade brasileira. Decerto, é um trabalho para acordar a sociedade. Eminentemente político por abarcar uma visão crítica — inclusive, na polêmica seqüência, que o trio decide praticar um assalto e se disfarça atrás de máscaras que reproduzem as feições de Collor, FHC e Sarney. E a trilha de Os Saltimbancos promove uma ponte com a politicagem pós-ditadura e hino das ações criminosas do trio. É possível abdicar dos princípios morais e afrouxar os valores próprios apenas para tentar vencer? Ainda que exista uma linha tênue entre o caminho da lei e da criminalidade, deve-se pensar na manutenção da ética incorporada à identidade, pois essa jamais deve ser extraída. Pequena obra-prima do cinema nacional. "Todos juntos somos fortes, não há nada a temer".
Um relacionamento desgastado, prestes a explodir de tanto ódio, amor e desejo. Nem sempre há sentido dentro de quatro paredes, visto que na teoria sentimental não há a existência do acordo da razão com a lógica — e se não há emoção, não pode haver uma relação viabilizada com o senso da intensidade. Muito menos o desejo transcorre já que é um elemento de impulso carnal humano. E é justamente esse ponto que o orgasmático Eu sei que vou te amar coloca em questão. Ao tratar de temas tão íntimos, dolorosos e ousados como o sexo em combustão com o sentimento ardente, Arnaldo Jabor retrata em seu filme as vicissitudes de um casal em plena crise da própria existência. Adotando um roteiro que prioriza o tom verborrágico-monólogo, Jabor expõe uma jornada psicossexual sobre um homem e uma mulher. A projeção tem o timing da narrativa vivenciada pelos personagens, em apenas duas horas se dispõe um completo jogo da verdade; o casal em diálogos febris sobre tudo que viveram, com questionamentos sobre próprias atitudes e vômitos sobre indagações sexuais. Qual conceito da fidelidade? Como acreditar no amor eterno? O que motiva o desejo? O filme propõe a realidade dos erros e acertos do amor, coloca em questão as fraquezas humanas bem como os vícios do caráter, eis a psicanálise do ser humano em plenitude cinematográfica. É muita intimidade, overdose de sensualidade a dois, repleto de sincronismo e cinismo sentimental. O que pode ser mais polêmico que os vícios e problemas sobre a esfera da paixão? O sexo é o ápice de um relacionamento? E o amor? O que conceitua um relacionamento intenso?
Com um estilo que mistura o tom teatral com a linguagem dinâmica de cenas que se assemelham ao videoclipe, o filme é todo centrado dentro do apartamento onde o casal não se inibe em providenciar diálogos ora desconexos, ora beirando às incitações filosóficas. Arnaldo Jabor impele seu texto com monólogos próprios de cada um — há seqüências inteiras em que Fernanda Torres exibe-se em indagações sobre o sentimento; perguntas sobre sexualidade ou demonstra fragilidade ao concentrar suas dúvidas sobre infidelidade. A atriz empresta à personagem uma personificação que se mistura em diversos tons; por vezes conduz uma enérgica presença feminista repleta de pontuações sobre questões comportamentais e situações sobre orgasmo feminino; sentimento ou desejos. Em outros momentos, há um tom frágil que mostra uma nova modulação de voz e modo interpretativo, é quando sua voz interpretativa mostra o medo, a agonia e os distúrbios de amar um homem que não te valoriza. Thales Pan Chacon também transforma seu homem; do másculo exibicionista que não teme ser rejeitado ao romântico inveterado que não desiste em conquistar a mulher de sua vida. Os atores, assim como os personagens, enfrentam as oscilações de seus personagens numa rapidez admirável.
A tensão sexual é nítida em muitas cenas. Situações onde o casal rememora transas, beijos ou mesmo nas seqüências em que Fernanda Torres exibe seus seios na presença de um descamisado Pan Chacon. Ainda que inúmeros diálogos concentrem o tom libidinoso da trama — O filme é um singelo estudo sobre os vícios, prazeres e discórdias sentimentalistas de um relacionamento fundamentado no tédio, na dor e na insegurança. Ora o casal permeia entre o amor lúcido repleto de declarações nostálgicas de desejos, ora comunga o ódio em discussões intensificadas de ira. Jabor consegue recriar uma atmosfera lúdica, íntima e com teor de paixão diante da concepção de seus diálogos ácidos e passionais: seria o casal um reflexo de nós mesmos? Até que ponto um relacionamento se condiciona na integridade da fidelidade? Ou está fadado ao término ou transforma-se após uma reflexão a dois. É necessário ter esperança no desejo de amar o outro? Como perdurar o sentimento vibrante? A organização das cenas alia-se do tom teatral, mais ainda pela forma como os diálogos são proferidos, porém a técnica de misturar a trilha sonora, a fotografia com filtros de azul e vermelho, e as narrações em off que pontuam o pensamento dos personagens evidenciam o apuro cinematográfico de Arnaldo Jabor. O diretor também concentra incansáveis closes nos atores para captar a emoção.
Mais que um discurso sobre as esferas da intimidade relacional humana, é um exemplo de acerto de dois atores numa combustão sexual em cena. Fernanda Torres ao lado de Thales Pan Chacon proporcionam um misto de amorosidade e sexo.Talentosos e concentrados, ambos têm uma química interpretativa que determina todo o melodrama verborrágico exponencial de Jabor. Se há um intelectualismo nos diálogos, o tom sexual é muito mais crível por conta do embalo físico-emocional dos dois atores. As cenas que o casal expõe seus fetiches, segredos e obscuridades sobre luxúria/infidelidade é um dos pontos mais hipnóticos do filme. E o diretor sabe explorar a virilidade necessária de Pan Chacon com a sensualidade feminina de Torres para realizar essas pontuações bem provocantes, ousadas e ferinas. Da perversão ao sentimento mais conservador, o filme é uma espécie de celebração sobre o amor e sexo. O casal extravasa seus ressentimentos, mágoas e ofensas sobre as próprias dores. O foco é no delírio da intimidade, no conflito de um para o outro. Altamente intenso e poético, uma espécie de playground psicológico. Um cult-movie feito para reflexão sobre os laços de amor e desejo. A proximidade com a realidade e o monólogo dos personagens proporcionam uma identificação gostosa com o filme. E nada mais prazeroso que constatar que este representante do Cinema Nacional jamais envelhece. Incondicionalmente, excitante.
Como fazer com que não prevaleça a impunidade no sistema judicial? O filme Acusados provocou polêmica quando lançado no final da década de 1980, por promover uma importante discussão sobre os ditames da lei perante uma vítima de estupro. É um emocional recorte de uma problemática real. Dirigido por Jonathan Kaplan, a película teve o roteiro baseado numa dolorosa história real — um caso de estupro ocorrido em março de 1983 no estado de Massachusetts. A trama mostra o drama vivido por Sarah Tobias (Jodie Foster), estuprada por 3 homens em um bar, na presença de outros que incentivaram o ato de agressividade. Ao ver que seus agressores obtiveram penas leves, Sarah luta desesperada por uma punição adequada para estes, ao lado da defensora pública Kathryn Murphy (Kelly McGillis). Além do desejo de justiça imediata, ambas querem também a condenação dos incitadores da violência sexual que contribuíram para o acontecimento do estupro. Como acordar um sistema penal que parece tão arbitrário e injusto? O filme recobre uma realidade que ainda se mantém presente: vítimas de violência sexual não conseguem condenar os agressores. O roteiro polemiza esse senso, inclusive ao colocar a condição de Sarah dúbia, como ocorre em muitos casos, onde a vítima é suspeita em seu próprio caso. Quais são os limites da justiça? O da responsabilidade social?
O filme alerta que nos Estados Unidos, seis mulheres são estupradas a cada hora. E pelo menos quatro delas são atacadas por mais de um homem. Nada justifica crime tão imperdoável, irracionalmente humano. E o esforço do roteiro trata justamente de desvendar esse sistema penal que acaba por manter impune pessoas que cometem crimes deste sentido. Sarah representa uma vítima sexual — além de vivenciar toda a dor do estupro, tem sua moral questionada e colocada à prova. O trâmite processual não é fácil, ainda mais que, freqüentemente, vítimas de agressões sexuais são questionadas de todas as formas nos Tribunais. E o roteiro demonstra essa vivência dolorosa de Sarah enquanto vítima; além de seu anseio de punir as pessoas que a macularam. A única disposta a entender um pouco de seu universo traumático é Kathryn, com quem concebe um forte elo de amizade e compartilhamento de confidências. O diretor Kaplan divide o filme em momentos onde compreendemos a personalidade de Sarah, seu trauma insuperável e sua maneira de lidar com os problemas. A superação é um difícil caminho a ser percorrido por vítimas de agressões sexuais. A outra linha narrativa mostra o julgamento que segue, enquanto a promotora tenta provar que, independentemente do fato de que a vítima estava flertando com os acusados, eles deveriam ser condenados.
O tom realista do roteiro evidencia a sexualidade forte na personagem Sarah — é exatamente essa dualidade que ela exerce, faz com que a dúvida seja consequente. Será que ela contribuiu de alguma forma para a violência sexual? O que esconde perante a lei? A representação feminina de Sarah é nítida: altamente sexualizada, rebelde e impulsiva, exerce um comportamento transgressor. Típica mulher de classe baixa que trabalha como garçonete, é onde o desrespeito parece prevalecer, num ambiente onde tem que conviver com vários homens machistas. Sarah tem sua reputação questionada, inclusive pela sua advogada que, às vezes, parece duvidar de que ela fora realmente vítima de uma agressão sexual. Será que a moça usou de sua feminilidade libidinosa para conseguir algo? O que houve naquela noite, afinal? Sarah não se conforma com essas dúvidas e tenta atenuar sua aparência física — corta os cabelos, muda a forma de se vestir — numa tentativa de adquirir respeito da sociedade que tanto julga. E o trauma faz com que a vítima não tenha vontade de transar mais, tendo que se recuperar internamente de todas suas dores. Eis a polêmica proposta pelo filme: Só por ser sensual a mulher deve ser estuprada? O absurdo é questionado por Sarah, mas serve de alerta a todos.
A incessante cena completa — terrivelmente visceral — do estupro só é revelada perto do final, durante o julgamento dos três homens que incitaram a agressão. É justamente a punição a casos de estupro que a premissa do roteiro se baseia. Tanto Sarah quanto a sua advogada querem a condenação dos estupradores além dos incentivadores. A composição de Jodie Foster é determinante para o tom realista do filme, visto que ela lida com dores reais tão densas que é difícil não evidenciar a interpretação emocional nesses momentos (a atriz levou seu primeiro Oscar por essa personificação dolorosa). Kelly McGillis é o contraponto, atua brilhantemente como uma advogada determinada. Instigante o posicionamento polêmico do filme — ainda que sob efeito do álcool, mesmo que tenha flertado com algum dos homens, Sarah não deveria ser punida por isso. Afinal, o que caracteriza o estupro é justamente alguém ser forçado a manter relações sexuais; é isso que reside o argumento do filme. Ela não quis fazer sexo com os homens, foi coagida a isso, ainda que tenha dançado anteriormente com um e ter trocado beijos. Um trabalho que serve de alerta, denúncia e reflexão para uma sociedade que não condena. E nem o roteiro, nem a direção atenta de Jonathan Kaplan, acentua o tom melodramático; não há exageros. As cenas de tribunal, bem como a dor da vítima Sarah, conservam traços reais em seus diálogos, na sua maneira de se expor. Um filme que estuda a tecnicalidade da lei, das barreiras do preconceito, da forma de assegurar a toda mulher o direito do seu corpo.
Não é um filme que escancara tão facilmente os sentimentos. É um filme reflexivo, intimista, que precisa de certa paciência, afinal Nicolas Winding Refn conduz seus atores com uma precisão delicada, minuciosa, sem pressa alguma, respeitando cada vivência/evolução de seus personagens. DRIVE pode-se dizer que seja um típico filme da humanidade solitária, carente, sem perspectivas maiores, a não ser predestinada ao lado mais obscuro de mundo, permissiva aos caminhos tortuosos da linha tênue entre moralidade e ilegalidade.
Afinal o que torna alguém submerso nos caminhos perigosos da maldade? Ryan Gosling aqui concebe uma atuação inspirada - é interessante ver como ele nos brinda com um ser tão misterioso, perspicaz, totalmente dentro de seu mundo, onde conhecemos tão pouco dele, a não ser pequenos gestos e olhares. Como entender alguém tão monossilábica? E se o ator surpreende ao mostrar uma faceta interpretativa de alguém tão "pra dentro de si", são nos momentos que ele torna-se violento, dinâmico e agressivo é que percebemos um tom ameaçador de sua personalidade. Não sabemos seu nome, apenas procuramos entender como alguém pode parecer tão sutil num momento e no outro pura combustão. Gosling mantém seu personagem sob nossa visão, sem que se apague, ainda que Carey Mulligan demonstra segurança numa mulher frágil, ansiosa por um homem que modifique seus rumos tão tediosos.
A trilha sonora de Cliff Martinez faz esse mundo tão noturno, onde a noite parece interminável e os mistérios indissolúveis desse brilhante roteiro, ganhar tons e emoções. Muito tenso, repleto de uma ironia até, esse é um filme que vai perdurar e tem tudo pra ser um ícone-vivo da ultraviolência e significado existencial daqui a uns anos. Planos estéticos, closes, prologamentos em situações onde a câmera quase para, tudo isso reforça que o filme foi feito com um cálculo completo. Cenas densas, íntimas, se misturam à outras que não tem receio de arder na adrenalina. Diria que é um modelo de drama-ação bem torneado, muitos diretores bem que poderiam entender que há narrativas que funcionam dessa maneira, preservando os momentos dos personagens, dando espaço para aprofundamentos, mas tornando-os mais vivos em determinadas sequências mais eufóricas. Filmaço, definitivamente!
Muito foi falado sobre a adaptação do livro de David Nicholls. Segundo os fãs fervorosos e críticos diversos, o próprio autor não soube explorar o caráter humanístico dos seus personagens, tornando o roteiro de Um Dia bastante fragmentado, superficial. A verdade é que Lone Scherfig, diretora dinamarquesa que tem o dom de explorar os sensos femininos com um cuidado extremo e delicadeza conseqüente de sua sensibilidade artística — quem viu o excepcional “Educação” sabe muito bem esse sentido explorado — preferiu tornar evidente aqui uma leve noção da relação afetiva contemporânea. Em nenhum momento houve a intenção de promover um filme apelativo, concentrado de sexualidade, nem mesmo no livro existe essa atmosfera. Engana-se que esta fita teria também um apelo mais sensual, tão recorrente em filmes recentes de comédia romântica que adota a malícia da libido dos amantes protagonistas em tramas semelhantes que discutem o sexo casual. A proposta é mostrar, num panorama de vinte anos, a trajetória de encontros e desencontros de Emma (Anne Hathaway) e Dexter (Jim Sturgess), dois amigos que se conhecem na faculdade e efetuam uma relação bastante intensa, permeada de situações de carinho, aproximações, confidências, separações e exponencial sentimentalidade. Duas pessoas com personalidades distintas, mas com alta sintonia. Qual a problemática evidente? Tanto um quanto o outro demoram a perceber que são feitos um para o outro, que há um amor mais profundo que uma leve atração — numa narrativa linear, acompanhamos as vivências desses dois, bem como as evoluções/degradações pessoais, encontros e desencontros, afetividades afins.
Interessante que, ainda que não seja uma atuação excelente, Anne Hathaway conduz sua personagem de acordo com a essência do livro — sua Emma é o grande centro do filme, já que é a grande representação feminina tão adorada pela cineasta Lone Scherfig que tem a preferência por personagens fortes, mulheres frágeis, mas com atitudes próprias. Porém, inevitavelmente, o charme desta película é um nome somente: Jim Sturgess. Surpreendente a atuação deste ator que já contribuiu com filmes de grande apelo do público — “A Outra” ou o musical beatlemaníaco “Across the universe” são exemplos de suas atuações notáveis. Sturgess empresta aqui uma atuação convidativa não só ao público feminino, instiga o espectador diante de um personagem que vai do imaturo adolescente ao quarentão centrado. A expressiva química dele com Hathaway faz com que o filme torne-se melhor, atenua as fragilidades, pois os dois demonstram uma segurança evidente em cenas que vão do leve humor ao melodrama. Muito do romantismo deste filme concentra-se mais nos diálogos desses dois personagens, talvez por isso pouca gente tenha se identificado, já que esperava um apelo mais carnal ou mesmo seqüências de envolvimentos afetivos tão comuns em filmes de mesma abordagem. E não adianta comparar ao livro, obviamente quem leu vai se sentir incomodado, já que o roteiro evita maiores detalhamentos das vivências íntimas dos personagens, numa clara síntese dos fatos, caso que ocorre com diversas adaptações para o cinema. O livro é extremamente mais rico que o filme, mas é bom não tecer comparações, pois prejudica na apreciação da fita.
E se Hathaway se despe de uma caracterização mais sensual, já que sua Emma é uma inglesa contida, não propensa ao sexo — por sinal, a atriz foi criticada, muitos atribuíram sua apatia em alguns momentos na tela por conta de forçar um sotaque que não é natural —, Sturgess eleva um tom mais malicioso de acordo com a personalidade do mulherengo Dexter que é o típico homem levado pelos instintos carnais, mas que depois tem o sentimento despertado pela amiga presente. Sob as atuações dos dois, encontra-se a melódica trilha sonora de Rachel Portman que é carregada de uma intenção melancólica, ainda que conceba um tom adocicado à trama que vai do 15 de julho de 1988 até o presente momento. A canção-tema “We had today” transporta bem o tom nostálgico e o verniz romântico que a trama viabiliza. Bem verdade, o segundo ato do filme demonstra um melhor envolvimento problemático e os personagens atingem um melhor grau de emoção, talvez o público venha a se sentir mais confortável com os acontecimentos ali. Pode não ser um grande roteiro que providencie um estudo mais eficaz sobre sentimento, relação de descoberta do sexo e amor amadurecido, mas aqui se encontra um bom representante filme que satisfaz pela proposta típica comédia-romântica-dramática.
O que fazer quando o amor é o único exercício de desejo humano? O estado de apaixonar-se possibilita inúmeros devaneios, sentidos e delírios totais. Ao amar uma pessoa, o ser humano, imediatamente e sem restrições, idealiza o outro à sua maneira; projeta seus sonhos e anseios no outro como uma forma de suprir toda a sua carência. Quando se ama alguém, entrega-se emocionalmente. E o estado de "platônico" define muito esse sentido, pois o apaixonado passa a ver o seu objeto de paixão como uma figura de extrema beleza e perfeição, fruto de sua imaginação que faz com que o outro seja intocável, fantasia absoluta. Amores Imaginários expressa esse sentido romântico ao conceber a história de amor idealizado: dois amigos inseparáveis, unha e carne, Marie e Francis (Monia Chokri e Xavier Dolan, por sinal diretor e roteirista do filme), vivem de transas furtivas e envolvimentos banais. Ela, a típica sonhadora, romântica, ainda que libertina. Ele, homossexual, à procura de um homem que preencha todas suas lacunas abertas pelas frustrações experimentadas em vida. O casal de amigos conhece Nicolas (Niels Schneider), um jovem de comportamento transgressor, mas de intelectual refinado, robusto e beleza desconcertante. Obviamente, este jovem loiro e de corpo escultural, mexe com os hormônios de ambos. A típica trajetória de desejo/cobiça e anseios libidinais já fora tratada em diversos filmes do gênero, mas aqui encontra uma nova vertente ao usar da beleza imagética, e, do estilo fotográfico aliado à trilha sonora, que proporciona uma vigorosa visão sobre as relações amorosas do mundo atual. Marie e Francis passam a disputar o objeto de beleza Nicolas, ao passo que uma amizade a três fomenta um perigoso relacionamento permeado de ciúme, sentimento e carência.
A sexualidade é forte no filme, pois caracteriza o tesão do casal de amigos pelo desconhecido Nicolas — cachos de anjo, loiro, com um charme que atrai todos os jovens a sua volta, é o centro de idealização. Ao colocar a convivência, a amizade e também a intimidade dele com Marie e Francis, o roteiro exprime a maneira como duas pessoas tendem a viver em função de uma atração. Os inseparáveis amigos passam a fazer de tudo para conquistar, cada um a seu modo próprio, a atenção do galante Nicolas. E o roteiro fomenta essa tensão sexual a todo custo, não inibe as cenas onde o desejo fica evidente — como na seqüência onde Francis se masturba ao sentir o cheiro do corpo do amigo Nicolas na camisa. A construção da figura sexy, hipnótica e sedutora de Nicolas é delineada com teor libidinal, mas fica evidente como ele mexe também com os sentimentos alheios. Marie e Francis apaixonam-se pelo mesmo homem, criam uma dependência afetiva e, inclusive, imaginam ser correspondidos pelo amigo. Existe algo mais doloroso e excitante que a possibilidade de ser correspondido? No jogo do amor, tudo é válido.
Usando-se de uma estética visual incrível, onde inúmeros closes e slow-motion são executados a favor da narrativa perspectiva dos dois amigos — o filme alia-se de cores, tons e texturas de azul, verde e vermelho que ajudam a criar uma atmosfera sensorial dos personagens; reforça a sensualidade e o espírito juvenil de desejo. Xavier Dolan preocupa-se em estabelecer, intercalando no desenvolvimento de sua narrativa, depoimentos de pessoas diversas que simulam uma espécie de documentário dentro do próprio filme. Como se cada um ali dialogasse com o público e também os próprios personagens, abordando situações de desejo, amor e frustrações amorosas. E é justamente esse senso primordial do cerne do roteiro: Como estar preparado para uma desilusão amorosa? Quando se está apaixonado, deve-se preparar-se para essa possibilidade também. Em suma, mostra como o amor platônico inibe até o senso de realidade num mundo tão controverso, afinal o romântico cria sua própria dimensão particular de mundo, abstendo-se da provável rejeição, mas por fim aprende que é preciso acordar para viver. Ora, afinal, amor imaginário não é saudável a ninguém. É importante um amor concreto, mútuo e que garanta retorno.
Este é um filme que pauta muito bem a realidade de paixão, de desejo e de dificuldades enfrentadas pelos apaixonados de plantão. Não só o gay aqui encontra seu medo em expor seu desejo e amor para o outro amigo — afinal, é um tormento muito comum: homem-homossexual que ama o amigo-hetero, mas teme pela dúvida e o receio de ser rejeitado por ele. Ademais, é o retrato de uma mulher que não encontra um amor verdadeiro e teme permanecer sozinha para o resto da vida — Marie representa muito do sexo feminino em sua personalidade. Claramente, Xavier Dolan articula um latente posicionamento sexual que afirma o tom homossexual do filme — gay assumido, ele personifica de maneira tangível as fragilidades e desejos das questões homoafetivas ao lidar com seu personagem Francis. Decerto, é um ator que pulsa em cena, latente, quente. Além de ótimo diretor, é visionário, pois, cuida de seu filme. Recebe o auxílio dos talentos de Monia Chokri que encarna a feminilidade com exatidão e de Niels Schneider que convence como o estereótipo masculino do desejo. Boa sacada ao colocar Francis com estilo de James Dean e Marie com o penteado de Audrey Hepburn para consquistar Nicolas — este com a imponência a lá Michelangelo de David. A trilha sonora é frenética, indispensável à narrativa — há uma versão italiana de “Bang Bang (My Baby Shot Me Down)” e canções de Fever Ray, The Knife, Comet Gain e até “Every Breath You Take” do The Police é cantada aos versos em dada seqüência. Poético, irresistível e realista retrato da juventude que quer apenas amar e ser amada.
atuou com bastante polêmica e força emocional quando foi lançado por expor a realidade humana como ela é — a trama dirigida e com roteiro de Xavier Dolan, que também protagoniza sua obra, é um filme expressivo que lida com a conturbada relação familiar. A história do jovem Hubert (Dolan) de 16 anos, homossexual convicto, angustiado com a dificuldade de lidar com sua mãe Chantale (Anne Dorval), inseriu reflexões/discussões em diversos países onde o filme foi lançado. Compreender esse universo familiar, a relação dialogal de ódio extremo e amor confuso, é o foco argumentativo do roteiro que assume contornos narrativos contundentes, até cruéis. Xavier Dolan escreveu o roteiro, baseado em vivências próprias de sua vida íntima, antes mesmo dos 20 anos de idade. Obviamente, o filme funciona como parâmetro para reflexões sobre as relações de jovens com os entes familiares, mas vai além ao colocar maiores problemáticas comportamentais como a diversidade da sexualidade. No filme, Hubert lida com sua puberdade de maneira tumultuada, pois não controla a rebeldia, nem mesmo a harmonia dentro de sua casa, ao se digladiar, constantemente, com sua mãe — como entender a puberdade, sob a ótica materna? E como um jovem não consegue manter um elo de união e cumplicidade com a única pessoa que esteve sempre ao seu lado? Existem maiores traumas, secretos, em torno disso? O filme foca nesse relacionamento histérico de filho com mãe, mas vai além.
A trama é articulada sob as perspectivas do personagem Hubert que assume a narrativa — os habituais "slow-motion" são colocados à favor da narrativa, já que o roteiro é o retrato do que o personagem sente e visualiza. Inúmeras tomadas em câmera lenta demonstram as sensações do protagonista, bem como os recortes na narrativa que aplicam depoimentos dele na câmera; como se Hubert comungasse com o público sobre suas fragilidades, temores e insatisfações em relação a sua mãe. A história toda se centra nessas constantes brigas e agressões de filho com a mãe, totalizando em momentos de grande tensão e alto teor dramático. A câmera centra-se nessa dimensão angustiante ao expressar a dificuldade de diálogo entre filho e mãe; duas pessoas que jamais entram em sintonia, perderam a proximidade. E o roteiro não torna nada maniqueísta, pelo contrário, as situações evidenciam muito bem os discursos de cada um. Entendem-se as dificuldades de Hubert, porém há uma profundidade na personalidade de sua mãe; cada psicológico é bem delineado.
A sexualidade ferve por questões óbvias. Há a homossexualidade notória de Hubert — fica evidente que o jovem tem um alto posicionamento libidinal, um comportamento transgressor, atitude sexualizada. O roteiro não o inibe ao construir cenas de homoafetividade, como quando Hubert aparece em momentos afetivos ou mesmo sexuais com seu namorado Antonin (François Arnaud) — cenas de sodomia, beijos gays e diálogos sensuais bem conceituados demonstram que a temática queer é priorizada aqui. A sensualidade é bem dosada dentro dessas sequências. Ademais, Xavier Dolan explora também questões que envolvem esse universo sexual, insere situações pequenas sobre traição — Hubert é mandando ao colégio interno pela mãe opressora e lá tem sua fidelidade testada ao ser seduzido por outro garoto. O espaço para a discussão sobre homofobia é também utilizada, além de todo o filme funcionar como um discurso sobre identidade homossexual; a busca pela auto-aceitação perante uma sociedade ainda preconceituosa. Há ainda pautado a dificuldade de um filho assumir sua opção sexual para sua mãe, e essa questão é bem pontuada ao longo do filme.
A caracterização das cores — a fotografia é um recurso imagético sempre priorizado por Xavier Dolan — é papel fundamental no desenvolvimento da narrativa. As cores avermelhadas, tons escuros de neon, toda a técnica das luzes em torno dos atores, fecunda um trabalho ainda mais luminoso. Os diálogos assumem força em momentos onde o elenco improvisa e expressa um tom ainda mais naturalizado, é como se a realidade ali fosse tangível. Esse é o papel fundamental da arte cinematográfica, convencer de que aquilo é uma realidade. Como fez no seu segundo filme, "Amores Imaginários", Xavier Dolan utiliza de sua escrita para fomentar momentos onde pode brilhar como ator — e é neste seu primeiro trabalho aqui que se pode observar como é talentoso, emocional e agressivo na interpretação. Suas cenas de ironia, acidez e malícia comprovam o quão promissor é. Os duelos verbais dele com a atriz Anne Dorval são provocativos, eufóricos e de grande intensidade histérica. O cuidado com a direção de arte e com a montagem é evidente também, assume um estilo próprio de Dolan como novo expoente da cinegrafia atual. Mais que um exercício dramático realista da existencialidade da juventude, é um filme que sensibiliza pelo tom sentimentalista. Belo début, ousado e trabalho inspirador.
Qual barreira define a relação de amizade com o desejo? Grande ícone da década de 1990, Três formas de amar, captou muito bem o caráter comportamental da juventude sexual, típico retrato da "geração x", jovens que romperam com os padrões conservadores e rigores de uma sociedade falsa puritana. Inúmeros filmes percorreram a espinha dorsal sobre a linha tênue de uma amizade que beira à dimensão sexual — Os Sonhadores de Bernardo Bertolucci; Amores Imaginários de Xavier Dolan ou mesmo Canções de Amor de Christophe Honoré souberam expor esse condicionamento: Afinal, existe amizade firmada com o sexo livre? Existe harmonia na amizade colorida? O diretor e também roteirista Andrew Fleming executou aqui um trabalho menos poético, como as obras citadas, por tratar de temas mais realistas, próximos e com certa urgência/objetividade. Ao invés de manter um verniz mais poético no seu texto, preferiu externar um conteúdo que centraliza mais o teor libidinal e muita malícia de um triângulo amoroso que se mistura em sentimentos controversos diante da sexualidade que explode. A trama foca em três jovens que têm que dividir um mesmo módulo dormitório universitário. A desinibida hiperativa Alex (Lara Flynn Boyle), o intelectual gay e tímido Eddy (Josh Charles) e o pervertido Stuart (Stephen Baldwin). Tão sensual, o filme até hoje é referência por ter desnudado questões sobre descobertas sexuais da juventude; desilusões amorosas e tornado evidente a discussão sobre a diversidade sexual.
O filme mostra esse inusitado triângulo amoroso onde a energia sexual se estabelece — Alex tem interesse em Eddy que não esconde sua libido por Stuart que, por sua vez, quer transar com Alex. A problemática sobre sexualidade é formada, e o diretor não esconde que a articulação de seu texto é justamente nesse condicionamento apontado. Ainda que com leve humor e rápida duração de projeção, o filme cria uma atmosfera de intimidade entre esses três personagens que, tão rapidamente, exibem suas questões pessoais relacionadas ao sexo, à amizade e ao sentimento. O ritmo ágil, os diálogos contextualizados com a juventude daquela época, e a trama em si expõem a testosterona dos dois personagens masculinos Eddy e Stuart, além de evidenciar a feminilidade de Alex — o tom malicioso destes três evidencia a propensão ao sexo. O triângulo amoroso lida com a relação íntima e também prejudicial que se acentua, no círculo viciante que se estabelece entre eles — pode uma amizade ser sustentada com a presença constante da libido?
Repleto de momentos de erotismo sutil, o filme explora a exímia libertinagem que os três se condicionam — a famosa sequência onde Alex tem um orgasmo ao ouvir Eddy recitando trechos de um livro é marcante; mostra bem a intenção maliciosa de Andrew Fleming brincar com seus personagens que servem como símbolos-fetiches humanos. E quando o clima esquenta e o envolvimento do trio passa a fomentar um sentido mais libidinal é que o filme indaga suas questões: Como uma mulher (Alex) pode lidar com seu interesse sexual por um homem gay (Eddy)?. A típica frustração de um homem (Eddy) ter tesão pelo amigo (Stuart) e não ser correspondido; a dificuldade dos relacionamentos a três que tanto provocam, e também estimulam, a turbulência de sentimentos conflitantes e apreço pelo ciúme. Não há rótulos, apenas desejos de cada um ali, todos os três em suas formas de amar o outro. Ainda que não explícita, a cena mais polêmica, quando o trio se permite à luxúria a três, ménage à trois, expressa uma sensualidade que é bem cuidada, nada vulgar.
Ao inserir a homossexualidade como ponto central de sua discussão — através do personagem Eddy em meio aos seus desejos e inseguranças de sua opção sexual — o diretor não esconde sua intenção: quer pautar, sem moralismo e julgamentos, os tons comportamentais de gays em seus caminhos de auto-aceitação. Como entendê-los? Por que são enrustidos? Há um olhar sem preconceito nesse sentido. Ademais, é um filme que representa bem a juventude pós anos 80, com seus discursos partidários de uma sexualidade mais livre, em busca de respeito e também satisfação. A direção firme de Andrew Fleming consegue criar uma alta química do seu elenco — Lara Flynn Boyle é o grande destaque como uma mulher vulnerável, sentimentalista, ainda que propensa ao sexo livre. A atriz tem uma forte presença em cena de acordo com a hiperativa personalidade de sua personagem. Josh Charles sabe representar o típico gay que tenta atenuar seus desejos por homens, e sofre por ser assediado pelo sexo feminino. E Stephen Baldwin exibe-se com o corporal sedutor, a masculinidade sexual, contornando também os momentos de humor do filme já que personifica um compulsivo-faminto-por-mulheres. O trio de atores está bem à vontade, principalmente nas cenas de nudez ou simulação de sexo/sensualidade. A trilha sonora de Thomas Newman é discreta, mas exibe acordes onde a sexualidade é mais nítida em cena. A overdose de músicas pop de New Order, Teenage FanClub, U2, Tears for fears, Duran Duran e Bruan Ferry são executadas como alicerce e sustento emotivo dessa juventude que só busca amar, transar e se divertir sem maiores compromissos.
A dolorosa realidade, o tormento de não poder expressar os sentimentos verdadeiros, o desejo que deve ser ocultado diante de uma sociedade que julga. Como lidar com uma vida firmada nas aparências, onde as vontades são substituídas por máscaras — afinal, ainda há preconceito social perante aos homossexuais, algo que ainda perdura e prevalece no terreno humano. Sob essa perspectiva, em Contra Corrente, o diretor Javier Fuentes-León, conduz sua delicada e sensível abordagem dentro de uma vila de pescadores no Peru. É lá, dentro deste meio rígido de tradições culturais e costumes que beiram ao conservadorismo, que se encontra Miguel (Cristian Mercado), à espera de seu primeiro filho, num casamento acomodado com Mariela (Tatiana Astengo). Secretamente, às escondidas de todos, o pescador mantém um tórrido caso de amor com um pintor forasteiro que se muda para o vilarejo, Santiago (Manolo Cardona). Como manter esse caso secreto, ainda que aceso, diante de uma paixão que teima não se calar? O que parecia um filme que explora um caso sexual de um homem com outro, em meio ao medo de ser descoberto por todos, ganha uma nova visão quando o elemento sobrenatural é inserido na trama — um grave acidente mata Santiago no mar. É então que Miguel, constantemente, passa a receber o espírito do seu amante Santiago que, de alguma maneira, não consegue se libertar do plano terreno.
O filme centraliza sua narrativa, inicialmente, no envolvimento amoroso-sexual de Miguel com seu amante Santiago — a disposição homoafetiva é bem delineada logo no início do filme, pois coloca o casal em constantes encontros casuais, como forma de apresentar o quão passional e intenso é essa relação. O diretor Fuentes Léon questiona a maneira como existe a dificuldade de um homem se aceitar, sexual e plenamente como é. Miguel é o indivíduo que vive um casamento de aparência; não consegue se livrar dos condicionamentos padrões de uma sociedade que costuma "punir" e não enxerga com bons olhos a relação de alguém com outro do mesmo sexo. Ainda mais numa vila de pescadores, como deixa claro o roteiro, onde o preconceito existe e não só os personagens masculinos — como as mulheres também — exibem-se em suas indisposições à homossexualidade. Após a morte por afogamento de Santiago, o filme exerce um tom mais romântico, e até lúdico, pois foca numa relação homoafetiva despropositada de estereótipos, quando os dois passam a conviver de maneira mais livre — já que Santiago é um espírito e não pode ser visto por ninguém.
A forte presença sexual dos dois atores em cena permite uma atmosfera sensual, mas o filme é, em seu objetivo central, uma trama de amor homossexual. Cristian Mercado eleva com precisão a sua confusão em não saber lidar com os ímpetos do desejo por outro homem, bem como em ver seus anseios enrustidos diante de uma sociedade que retrai tudo que ele quer ser. Há uma química bem convincente de Mercado com Manolo Cardona — evidente nas cenas de nudez; na sequência de sexo ou nos beijos afetivos. Por mais que o diretor invista nos momentos homoafetivos, na crescente ebulição carnal dos personagens, o filme não esconde seu verniz romântico — é uma trama que busca entender os caminhos tortuosos de dois homens que apenas querem se amar, sem esconder seus sentimentos. Não há erotismo barato, mas sim um roteiro que prioriza as essências de cada personagem, é tudo muito bem explorado. A atriz Tatiana Astengo também se destaca, pela força emotiva de sua personagem, como Mariela, que representa a mulher que tem que lidar com as descobertas da sexualidade do marido.
A força dos diálogos que propõe a reflexão sobre os sentidos humanos; das escolhas diante das opções sexuais e da necessidade de priorizar o sentimento — são pontuados pelos personagens. Mais ainda por Santiago, já que ele provoca, não só sexualmente, a necessidade em Miguel saber lidar com suas escolhas e reconhecer seus próprios sentidos. Saber o que deseja, conhecer o amor, escolher seu destino — jamais viver enrustido! O diretor valoriza esses sensos. A cena onde os dois amantes dialogam, na entrada de uma caverna na praia, para logo depois transarem na areia, é cuidadosa, de extrema beleza emocional. A transparência de sentimentos é priorizada neste filme, Javier Fuentes-León não esconde que lida com seus personagens com um olhar mais intimista, talvez por isso o filme seja construído com inúmeros closes-up que aproximam Miguel e Santiago do público. A fotografia exibe tons ensolarados que privilegia a exuberância da beleza natural da costa peruana onde as cenas foram rodadas. Boa trilha sonora também de Selma Mutal Vermeulen. Premiado em importantes festivais de cinema — ganhou o prêmio popular em Sundance —, inclusive o de Melhor Longa no "18º Festival Mix Brasil de Cinema da Diversidade Sexual" em São Paulo, é um trabalho atual representativo que deve ser apreciado.
Não existe uma vida satisfatória se há a ausência do prazer. Viver para amar, saborear as pequenas verdades do destino, de acordo com as vontades íntimas. Sem o prazer, o ser humano imerge numa jornada sem esperança, permanente na tristeza, na completa desilusão persistente. Sem prazer, não há gozo em vida. Sem vida, não existe o orgasmo vital. Filme que deu o primeiro e único Oscar de Melhor Atriz a Audrey Hepburn, com então 24 anos de idade, A Princesa e O Plebeu é um marco clássico de doçura, sentimental e romantismo. Dirigido por William Wyler, a produção exerceu um enorme sucesso em Hollywood na década de 1950. A entediada princesa Ann (Audrey Hepburn) está cansada de sua vida formal, repleta de compromissos e deveres sociais da realeza. Seu sonho é ter uma vida "normal", sem a rotina parlamentar que tanto condiciona sua vida e aprisiona seus sonhos juvenis. Após uma crise nervosa, Ann resolve burlar a segurança do palácio que habita e fugir, disposta a viver anonimamente nas ruas de Roma, sem se preocupar mais com nada que remeta à sua realidade de princesa. E, sob essa disposição, que o filme encontra seu melhor argumento: nas ruas romanas, o jornalista Joe Bradley (Gregory Peck), se esbarra, por acaso, com a única pessoa que conceberá a oportunidade única para sua profissão. Contudo, o que parecia apenas um "furo jornalístico", torna-se um envolvimento, quando Joe sente-se atraído pela misteriosa jovem que foge de sua vida de princesa.
Fundamentado na estrutura de uma história de amor, é óbvio que o roteiro tenta ao máximo articular a intimidade — e a atração, sentimento e admiração mútua — de Ann com Joe. Sob a estonteante beleza da cidade romana, bem mais de acordo com o título original do filme, o filme percorre as ânsias da princesa que não consegue se adequar a sua vida artificial, por isso busca na sua oposta realidade social, um conforto de espírito e prazer incondicional. Enquanto Ann sente-se como uma “garota da plebe”, sem preocupações e compromissos, busca vivenciar os pequenos prazeres que só uma vida comum pode oferecer: tomar um sorvete, dormir até tarde de pijamas, andar pelas ruas sem ser notada, não ter ninguém para regular seus passos. Em contrapartida, Joe Bradley torna-se seu companheiro nessa empreitada, inicialmente disposto a aproveitar-se da situação para sugar o seu objeto de reportagem, mas que se arrepende ao converter seu senso de oportunista num sentimento que nem ele previa.
A sexualidade sutil de William Wyler consegue ser expressiva, ainda que sob o verniz levemente adocicado e leve do filme. A aparência virginal de Ann, sua beleza delicada e carisma juvenil de mulher feminista que não se condiciona ao papel de mulher submissa imposto pela sociedade, tudo traz à tona os valores de uma sexualidade que necessita ser imposta. Audrey Hepburn figura seu talento em cena, em momentos que sua personagem sente-se atraída pelo novo amigo Joe — este, um homem confuso pela atração que sente pela princesa e a indecisão de usá-la ou não para seus propósitos profissionais. Bem verdade, Gregory Peck utiliza-se da posição máscula interpretativa que convence; há uma química gostosa dele com Hepburn que são reforçados em diálogos carinhosos à medida que seus personagens aproximam-se mais. Há cenas que evidenciam a tensão sexual entre os dois, mas, assim como os beijos rápidos, evitam externar uma malícia muito concentrada, afinal nada era "carregado" nos moldes do cinema clássico — troca de olhares de Ann com Joe; a intimidade crescente ou mesmo a breve sequência de Ann de toalha, após sair do banho, promovem a sensação de desejo carnal na narrativa. Interessante que, em tão pouco tempo, os dois vivem algo deveras intenso, fica evidente o quão passionais são. Em particular, a sequência do primeiro beijo de Ann com Joe, os corpos molhados, após um banho no rio, é a prova da magia da sedução clássica cinematográfica; eis a chama romântica atemporal deste filme.
E há possibilidade de amor entre duas pessoas de vidas tão opostas? O que fazer para o destino compreender e favorecer a união de classes tão antagônicas? O roteiro garante essas reflexões. A sintonia de Gregory Peck e Audrey Hepburn é bem auxiliada por uma fotografia que compreende a necessidade de intimidade dos dois personagens, em função disso o filme funcione melhor em closes diretos nas faces dos atores, como forma de captar a áurea romântica que a fita transparece, incessantemente. Quase 60 anos de lançamento, ainda permanece intacto por mostrar bem a necessidade do indivíduo encontrar-se em seus objetivos de vida e, acima de tudo, buscar o prazer como forma de existir plenamente como ser humano. Audrey Hepburn garante uma presença luminosa aqui, sem os vícios teatrais tão habituais na caracterização interpretativa daquele tempo. Suas cenas afetuosas com Gregory Peck reforçam o tom delicado e sensível da película, decerto um dos casais mais bonitos de se ver na tela, ainda mais sob os pontos turísticos de Roma. O final realista é prova de que a vida é um aprendizado, e que mesmo o amor não é capaz de mudar tudo, a não ser nós mesmos.
Somos atraídos por aquilo que desconhecemos. Às vezes, o que se fundamenta como mistério nos causa interesse, vontades, desejos ocultos. O ser humano é atraído pelo desconhecido, o que pode ser chamado de proibido, já que é mais gostoso. O doce sabor, a idéia em si, do mistério exerce um fascínio dentro das pessoas. Há indivíduos que precisa desse sentido para poder modificar sua vida, de alguma forma, visto que provoca um prazer a mais. A Pele utiliza-se de personagens reais para fundamentar uma trama irreal. O filme, dirigido por Steven Shainberg, mostra a vida de Diane Arbus (Nicole Kidman), fotógrafa expoente no terreno americano da década de 1950 por retratar o universo "bizarro e incomum"; pessoas consideradas à margem da sociedade eram objetos de seu trabalho. Diane ficou conhecida por trazer à tona uma sociedade sem máscaras, com seus vícios, dores e amarguras físicas — e também emocionais. Tudo que fotografava exercia um fascínio, inclusive a artista era vista como libertária e exemplo representativo de mulher que quebrou os tabus na esfera da fotografia. Este filme recria e ficciona o universo da artista. Aqui vemos Diane casada com o fotógrafo publicitário Allan Arbus (Ty Burell), num casamento formal, repleto de insegurança, sob os padrões do conservadorismo daquela época. Ela auxilia o marido cuidando da produção e dos figurinos, é mãe de duas filhas — a sua vida entediada firmada na tristeza, na rotina de dona-de-casa, se transforma quando conhece o misterioso vizinho; Lionel Sweeney (Robert Downey Jr.), um homem que sofre de uma doença rara: portador de tricotomia, uma disfunção caracterizada pelo excesso de pêlos em todo o corpo; impossibilitando de alguém enxergar suas feições. A gradual curiosidade de um para o outro é alimentada pela atração, a paixão que os acomete, inesperadamente. Eis que surge um jogo de sedução onde mistérios são articulados, e é justamente esse senso que o filme percorre.
O excêntrico roteiro condiciona essa forte atração sexual dos dois. De um lado, Diane, a reprimida mulher conformada numa vida sem maiores expectativas. Do outro, Lionel, o misterioso vizinho que se esconde da sociedade por ter o corpo oculto por conta de tantos pelos. Cria-se uma amizade intensa, um magnetismo, um tesão absurdo que nunca é atenuado pela roteirista — ainda que o "homem peludo" providencie um estranhamento, diante de sua incerta natureza humana, há uma cumplicidade perceptível à Diane. A típica relação "A Bela e A Fera", no qual a jovem se apaixona por um ser transfigurado, porém de coração brando. O filme articula esse envolvimento, aparente fraterno, entre ambos, mas de relação sexualizada, que assume uma dependência de um para o outro. Ademais, mostra também a insegurança de Allan, o esposo de Diane, que tem sua virilidade posta em dúvida ao ver sua amada interessada pelo vizinho.
Diálogos ditos, trocas de olhares e a maneira como nasce — e também se fundamenta — o interesse de Diane para com o "homem peludo" demonstra que existe algo que vai além do físico, visto que ela não sente-se atraída, inicialmente, pelos atributos de seu corpo. Diane enxerga ali um homem que eleva sua feminilidade, que potencializa sua criatividade e expande seus horizontes. Eis a dona-de-casa que aprende que a vida pode ser mais vívida; com escolhas e posições — Lionel apresenta um novo "mundo", com mais prazer, sensibilidade. Nicole Kidman sabe muito bem personificar uma mulher que vai da introspecção aos delírios da carne. Exibe seu corpo, seu tom de voz e olhares quando quer posicionar uma libido feminina em cena — particularmente, nas cenas onde é crescente seu interesse, e também disposição, ao misterioso-másculo-vizinho, interpretado com urgência de sedução por Robert Downey Jr. Os dois atores experimentam a saborosa libido, o aprendizado-existencial, o sentimento que une seus personagens estranhos. Atuações concentradas, cuidadosas.
O grande trunfo do filme é mostrar a relação bizarra e incomum de duas pessoas de universos tão distintos, mas unidas. A estranha doença de Lionel é apenas uma metáfora para mostrar como o ser humano enfrenta preconceitos e estigmas ao ser colocado à margem por conta de uma "deformação" — Diane é a única que enxerga, por trás do monte de pelos no corpo, um homem frágil e de personalidade rara. Através dele, ela encontra-se no seu próprio mundo feminino. Descobre-se mulher, aprende que a beleza é um conceito relativo e leva isso para suas fotografias, captando um “mundo peculiar” nunca mostrado antes. E esta é a grande lição deste belo trabalho cinematográfico: a beleza pode vir, sim, do que é considerado “anormal” ou “destoante”.
Talvez, Jane Austen tenha sido a escritora mais sentimentalista que mais se aproximou da alma feminina. Escritora admirada, principalmente, no terreno inglês onde crescera, seus romances são, até hoje, expressões de uma sociedade que colocava o amor à frente do tempo; e onde também as diferenças sociais e o conservadorismo sustentavam as teias relacionais de homem e mulher. Em seus livros, a escritora desnudava, com profundidade, os sentires, anseios e também os sonhos das mulheres inocentes daquele tempo, com suas fragilidades bem contornadas. Amor e Inocência ficciona a biografia da escritora nos anos de 1795, quando Jane Austen (Anne Hathaway) era uma jovem sonhadora, frágil e de personalidade forte. Nesse período, sob o teto rigoroso dos pais, ela se apaixona pelo atraente, arrogante e pobre irlandês advogado Tom Lefroy (James McAvoy) — obviamente, é com esse senso romântico e relação carnal de desejo dos dois, que se compreende como a escritora se inspirou para escrever sua obra mais famosa, “Orgulho e Preconceito”, através de suas próprias experiências afetivas. É o amor tornando a inspiração um elemento do coração, sempre!
Como manter o desejo e o sentimento com esperança diante de tamanha opressão familiar? E é possível se desvencilhar do preconceito social? Jane reluta, não aceita o casamento por conveniência, nem a pressão de casar por dinheiro, visto que é uma mulher passional que prefere sugar o amor como forma de combustão existencial. Inicia-se, aí, uma aproximação — as vivências pessoais da jovem escritora, que no filme mesmo é demonstrado, são transportadas para seus escritos. Jane escreve suas personagens de acordo com o que vive, porém em suas obras as heroínas parecem predestinadas a finais mais felizes, visto que sua realidade sentimental é permeada de dificuldades. O roteiro foca justamente nessa iniciação da jovem no desenvolvimento de sua escrita de acordo com a experimentação da paixão.
Por ser baseado em cartas de Jane Austen, antes mesmo de ser a famosa escritora, o filme percorre a relação de desejo, aproximação sentimental e intimidade dela com Tom Lefroy — por sinal, fica subtendido, através dele, que ela criou o seu personagem masculino mais famoso, Mr Darcy de “Orgulho e Preconceito”. E é nesse sentido que a película dirigida por Julian Jarrod prefere centralizar: na tensão amorosa do casal. O que fazer para viver essa paixão que parece avassaladora? De onde vem forças para não desistir dos empecilhos do destino e da sociedade que parece ir contra? Apaixonados, passionais, o jovem casal não esconde a vontade de lutar por um amor que parece esquecer as regras de uma sociedade que pune quem ama livremente, pois acredita que o que mais importa é o casamento firmado nos laços financeiros e nos padrões de status tão habituais naquele período. Jane e Tom querem se casar por amor e, assim, ofendem, indubitavelmente, a razão e sensibilidade da época.
O mais gostoso no roteiro é que ele acentua a personalidade fora dos padrões de Jane que se opõe às mulheres que apenas acatavam viver sob o comando masculino, numa vida de submissão, sem maiores prazeres ou pretensões. O típico charme narrativo inglês, a fotografia cuidadosa, a direção de arte ou mesmo a bela trilha sonora de Adrian Johnston são auxílios para montar a emulação de amor clássico. A química de Anne Hathaway com James McAvoy, decerto, eleva a potência romântica do filme, visto que os atores concentram suas energias interpretativas em olhares demorados e diálogos apaixonados; acentuando o teor carismático e adocicado do filme. Não existe uma preocupação em delinear as cenas dos dois com direcionamentos sexuais, transas ou apelos carnais. Porém, a força do sentimento provém desses diálogos sensíveis ou mesmo da angústia caracterizada pela personagem de Jane ao perceber que, para amar, precisa enfrentar não só barreiras impostas pela sociedade, mas as próprias limitações de seu interior. Ademais, bem pontuada também a posição de inicial arrogante a apaixonado de Tom Lefroy. E o senso de “romance impossível” torna essa obra interessante, ainda mais quando os conflitos são apresentados e o casal demonstra o gradual desespero para permanecerem juntos. “Às vezes, o amor é uma flor tímida que leva tempo a desabrochar” — porém, quando isso acontece, deve-se viver tudo de uma só vez. Afinal, não existe sentido mais precioso na vida que isso...
É possível alguém apenas querer viver do lucro que seu corpo possibilita? O que motiva uma mulher a optar por esse “caminho de vida fácil”? Compreensível que o filme Bruna Surfistinha, baseado no livro O Doce Veneno do Escorpião, tivesse o mesmo sucesso exorbitante. A história já é conhecida por todos, não é segredo algum. Marcus Baldini aqui estreia na direção, demonstrando claramente sua intenção: tornar nítido a sexualidade dessa figura que causou tanta atração na sociedade — querendo ou não, até para os puritanos-de-plantão, Rachel Pacheco, nome de batismo, conseguiu usar da mídia para provocar/direcionar os refletores para sua decisão de vida. E conseguiu deixar todo mundo interessado. Tornou-se prostituta porque quis. Escolheu ganhar dinheiro através do sexo por vontade própria. Tornou-se a Bruna Surfistinha famosa. Novidade o argumento não é, existem tantas histórias semelhantes, reais e ficcionais, a grande sacada em questão é uma: nenhuma outra prostituta havia usado de um blog para mostrar com detalhes suas experiências sexuais; seus fetiches, seus desejos, seus programas tão expostos. E é exatamente esse sentido que o filme decide tornar explícito. Sem se preocupar muito em aprofundar as motivações psicológicas e motivacionais, a película apenas retrata a decisão da garota que abandona uma vida de classe-média para emergir no mundo da prostituição, do limbo ao topo.
O longa não detalha muito da vida familiar de Rachel Pacheco, apenas preocupa-se em contornar sua mudança para Bruna Surfistinha — da quase tímida-virginal, introspectiva e inocente do começo, à posição catártica de determinismo e fulgor libidinal ao fim. É interessante a maneira como o roteiro peca por não explorar as motivações da personagem-real — por que uma moça procura se prostituir apenas para “não querer depender de ninguém”? -, porém, consegue instigar por mostrar a dualidade e processo de transformação de uma garota que, inicialmente, demonstrava apatia, desconforyo e insegurança no sexo, mas que depois explode como um furacão sexual, repleta de malícia e determinação. O filme experimenta a trajetória de Bruna que, com seus 18 anos de idade, vivencia a natureza da prostituição por livre-arbítrio.
A ousadia da direção de Marcus Baldini apenas foca nas inúmeras transas sexuais da prostituta — ainda que não seja explícito, o sexo é muito bem fundamentado na trama, porém menos agressivo/cru que no livro que fora adaptado. O resultado são sequências de cenas de sexo oral, sodomia e simulações de penetração que são intercaladas com a narrativa em off da protagonista. A segurança da direção não vulgariza, mas as cenas atingem boa sensualidade e são fortes. De trajetória publicitária, Baldini acentua sua segurança no visual ao articular mais a provocação libidinal nas imagens do que nos diálogos. Relevante a cena do primeiro programa feito por Bruna no bordel, onde a câmera foca apenas no seu rosto e, ao fundo, seu primeiro cliente, interpretado por Cássio Gabus Mendes, executa sua penetração anal selvagem sem muita afetividade — a cena mostra bem o desconforto da mulher que, dali pra frente, teria toda sua vida modificada por conta de sua decisão. Sem levantar uma bandeira de que a prostituição é algo pecaminoso ou prejudicial, ainda assim o filme mostra que é uma vida que conserva inúmeras dificuldades, percalços.
A interpretação concentrada de Deborah Secco é capaz de humanizar, torna tudo envolvente. A atriz sabe muito bem explorar suas nuances ao personificar a inocência e fragilidade do primeiro ato do filme, bem como ao elevar a sensualidade que sua personagem pede. Secco empresta seu corpo, sua voz e malícia até com o olhar — há uma entrega total, principalmente, nas cenas que são impregnadas de sexo, muitas por sinal, que o filme procura explicitar. Há nudez frontal e de diversos ângulos, apelo sensual e boa condução interpretativa nos momentos de transas sexuais. Ainda que não seja forte o erotismo, convence! E o tom emocional torna-se evidente quando Bruna passa a viciar-se em drogas, a cocaína — é quando a atriz se mostra ainda mais competente com os momentos de sofrimento e auto-flagelação. A ótima trilha sonora de Tejo Damasceno e André Lucarelli é sensual, ágil e ajuda na narrativa orgástica da protagonista. Contudo, ainda que explícita sexualmente na mídia, Bruna ainda é um mistério. E pelo filme, jamais dá pra entender o porquê de uma garota, que poderia ter tudo, não se ajustar tanto a sua vida comum a ponto de se realizar na prostituição. É perceptível que houvesse o gosto pelo sexo, o prazer, a satisfação em ser garota de programa. Talvez, até fosse ninfomaníaca. Porém, o roteiro não dá margem a maiores discussões sobre isso. Apenas mostra uma mulher que queria quebrar as amarras do tradicionalismo, viver sem preconceitos, no gosto pela liberdade e libertinagem sexual...
Sentimentalismo é afrodisíaco. Talvez por isso seja tão prazeroso experimentar ou conviver com pessoas que são propensas ao romantismo — para quem duvida, não existe nada mais gostoso que o desejo aliado do sentimento. Nada mais excitante que as descobertas do sentimento, das buscas pela paixão que tanto mexe com os ímpetos humanos, ou mesmo as sensações vivenciadas pelo coração do apaixonado. Nada melhor que desejar alguém que se ama. Audrey Hepburn foi uma bela representante da mulher que ama. Suas interpretações no cinema comprovaram o quão sentimentalista era, seus personagens mantêm essa aura romântica, a sensibilidade feminina que jamais seca, pois é imortal. Sabrina, filme dirigido por Billy Wilder, sob roteiro baseado na adaptação famosa de Samuel A. Taylor, é uma produção que reflete bem essa disposição “amorosa” da atriz quanto à personificação. Audrey é a personagem-título, uma jovem pobre, sonhadora, filha do chofer de uma importante e bilionária família de Nova York. Sabrina cresceu no meio dessa família de poder, riqueza e muitas festas. Desde pequena, apaixonada por um dos filhos da família Larrabee, David (William Holden), que nem a percebe — como ser notada por alguém que parece só enxergar a condição social? O que fazer para conquistar o homem dos sonhos? Quando a jovem parte para Paris, e retorna dois anos depois, é que o destino traça novos contornos. Sabrina volta com atitude, charme, sofisticada e com muito glamour. É então que não só David, mas também seu oposto irmão, Linus (Humphrey Bogart), tratam de conquistar o coração da graciosa mulher.
A grande tensão no filme é justamente na questão do desejo e sentimento vivenciado pela personagem. Sabrina nutre uma admiração, quase um tesão incondicional, pelo rapaz que sempre sonhou, desde pequena — é a típica história romântica da mulher que não esquece o primeiro amor, por não consegue conquistá-lo, nem mesmo dar voz ao seu sentimento. O filme coloca a dimensão dessa paixão forte vivenciada pela moça que até tenta se matar por conta de não conseguir expressar seus desejos a um homem de condição oposta, típica situação da rejeição tão comum entre adolescentes. Após voltar de Paris, Sabrina torna-se o centro de disputa e desejo não só de David, mas pelo irmão mais velho Linus, que não esconde suas intenções maliciosas e afetivas por ela.
A questão do desejo e do sentimento são traços que causam confusões na trama: em dado momento, indaga-se se os dois irmãos nutrem algum sentimento real por Sabrina ou apenas a beleza dela, a feminilidade que fomenta o desejo, é capaz de atrair os dois sujeitos. E existe também uma indisposição frequente que acomete e fragiliza a personagem principal: Sabrina passa a duvidar do que sentia por David quando seus sentidos são direcionados mais à companhia de Linus. O filme evidencia esse triângulo, com muito charme, romance e diálogos melosos que tanto dignificaram a obra de Billy Wilder, que hoje é sinônimo de delicadeza cinematográfica. Interessante que o roteiro coloca a relação de Sabrina com David como sendo mais carnal, de acordo com o posicionamento comportamental do personagem bem interpretado por William Holden — seu David é paquerador, mulherengo, imaturo e machista. Já Humphrey Bogart personifica um Linus mais carinhoso, cavalheiro, sério, que estabelece as cenas de gentilezas mais amorosas com Audrey Hepburn. Qual caminho Sabrina tomará? Qual dos dois homens ferve e aquecerá seu coração carente?
Sem ter envelhecido, a fita ainda mantém o senso charmoso e tão romântico que é abordagem necessária a todos. Audrey Hepburn, com seu talento tão preciso e incontestável, aqui neste filme consegue ser ainda mais graciosa — e até sensual, como na cena em que sua Sabrina lava o carro do pai de shortinho ou quando ela empresta sua voz nervosa às frases passionais de sua personagem apaixonada, que não vive sem a paixão. A dupla Bogart e Holden são exemplos de interpretações masculinas de encanto e beleza; ambos concentram todo o desejo em Hepburn. Talvez, o filme fosse mais ousado caso fosse produzido no senso atual, porém ainda não perdeu seu valor após tantos anos de lançamento. Destaque para os tons da fotografia que se auxilia do belo figurino, vencedor do Oscar nessa categoria, e para a trilha sonora que usufrui da música La Vi En Rose como pano de fundo musical para essa inebriante história de amor e sedução clássica. É puro fascínio, altamente recomendável!
Eis a juventude que parece predestinada ao ócio — ou seria a própria conformidade de não querer nada para vida? A única perspectiva aparente, seja no prazer ou na motivação, relaciona-se à auto-destruição, a possibilidade de caminhos tortuosos, ao excesso de tudo que agride o bom-senso. E o que dizer sobre o vício da droga? Jovens que se aventuram na opção de viver uma realidade paralela proveniente do consumo das drogas; do contato com os entorpecentes que concebem uma falsa ilusão de êxtase, nada mais que efêmero. A realidade é bem mais dolorosa, visto que a dependência acaba por dilacerar qualquer senso de moralidade, de amor próprio, não existe nem mesmo a consciência. Em Candy, nada parece ser belo, nem perfeito, não existe sonhos, a realidade é muito dolorosa. Dan (Heath Ledger) é um poeta, desempregado, apaixonado pela namorada pintora Candice "Candy" (Abbie Cornish). Eufóricos, hiperativos, dinâmicos. O casal vive um tórrido romance, uma sintonia perfeita, fazem sexo todo dia. Porém, o melhor orgasmo é quando se viciam, ainda mais, em heroína e cocaína. A partir desse sentido, o filme, dirigido pelo australiano Neil Armfield, surpreende ao percorrer o entusiasmo inicial a decadência física-emocional de duas pessoas que imergem num destino de grande aflição.
Só existe dois protagonistas nessa obra. Só convêm duas coisas para eles: sexo e drogas. Candy, a moça-título, com seu Dan. Boêmios, imaturos e indisciplinados. O casal explode com a sexualidade em cena. O roteiro aproveita-se da própria combustão dos personagens para acentuar uma perspectiva sensual: compreende-se que o casal tem muito amor, desejo e paixão. Tudo misturado, típicos valores de uma relação idealizada. Acompanha-se os dois em transas constantes, beijos e exploração libidinal que recria o universo íntimo da sexualidade presente. E o diretor aproveita-se para conceber inúmeros takes de beleza fotográfica, diálogos poéticos, tudo narrado pelo personagem Dan em tom de reflexão. Porém, não só de sexo se concentra a narrativa. Acompanha-se também a via-crucis dos amantes quando mergulham mais ainda no vício das drogas. E o tom de inocência transforma-se no inferno total.
Dividido em três capítulos — intitulados de "paraíso", "terra" e "céu" —, cada segmento, mais denso que o outro, explora o uso imoderado das drogas e a degradação do casal que transforma o sonho da felicidade inicial em desespero imoderado. A dependência, o vício incontrolável, a progressão da desarmonia conjugal: torna-se contextos da vida dos amantes. Eles passam a roubar para obter dinheiro para sustentar o uso; a prostituição torna-se uma condição vital para Candy que aceita vender seu corpo ou submete-se a sexo oral em desconhecidos para capitar uns míseros trocados; a triste servidão de duas pessoas por substâncias químicas que, se deveria trazer uma suposta "libertação", tornam-se marionetes do próprio vício. "Quando você pode parar, não quer; quando quer parar, não pode..." — é dito pelo personagem de Geoffrey Rush, o amigo homossexual do casal protagonista, tão viciado quanto eles.
O filme é denso em diversas cenas que externam as degradações psicológicas do casal, ao passo que a tensão torna-se gradual mais e mais. O roteiro funciona como um bom estudo sobre a compulsão juvenil — como segurar o que parece ser sempre imoderado? Para um junkie nada mais importa que não seja uma agulha na veia, isso basta. A enérgica atuação de Heath Ledger se converge na entrega interpretativa de Abbie Cornish — é perceptível a química dos dois em cena, tanto nas sequências sexuais quanto nos momentos de maior direcionamento dramático. Ledger é explorado ao máximo aqui, principalmente nos momentos de maior desespero de seu personagem. Cornish vai do corpo desnudo à transformação comportamental vivida pela sua Candy. A delirante cena de mais de 5 minutos de convulsões, vomitação e calafrios, quando o casal vivencia a intolerável crise de abstinência, é um dos momentos mais hipnóticos deste filme que emoldura a realidade das drogas numa triste história de amor. Como traço fiel ao universo da sexualidade que ferve, é eficiente. Mas, é quanto discurso sobre as mazelas das drogas e dos sonhos juvenis destruídos por esses abalos que este produto cinematográfico torna-se imperecível.
Como confiar que uma mulher promíscua possa ter sentimentos como qualquer outra pessoa? A grande polêmica colocada em Disque Butterfield 8 é justamente na ironia do destino enfrentado pela protagonista. Gloria Wondrous é uma prostituta de luxo que adquire fama pelo comportamento libidinal e a personalidade forte que condiciona os homens aos seus pés. A mulher que vive de tórridos romances com homens casados, mas que no fundo mantém a consciência pesada por nunca ter conseguido amar alguém de verdade. Vítima de uma traumática experiência ainda na adolescência, a jovem tem que lidar com a relação de conflito com sua mãe bem como com o preconceito de uma sociedade que não tolera uma transgressão tão sexual quanto esta. Quando Gloria apaixona-se por um de seus clientes, o empresário Weston Liggett (Laurence Harvey), é que o filme dirigido por Daniel Mann, baseado no romance de John O'Hara, encontra seu melhor trunfo: como arrepender-se de uma vida firmada em falsas idealizações? O conflito da prostituta que cansa de viver imersa em prazer, sexo com desconhecidos e sustentada por dinheiros/jóias de seus clientes, rende uma trama bastante provocante.
É alarmante a maneira como o filme mostra a sexualidade presente em Gloria e propõe questionamentos morais da época. E é através dessa personagem que todos os outros adquirem contornos, desenvolvem-se. A prostituta mexe com os homens, com a estrutura familiar e percepções de cada um. E isso é muito bem delineado. Ainda que ela se relacione com sexualmente com diversos homens, seu elo de confiança centra-se no seu amigo de infância, Steve Carpenter (Eddie Fisher), pessoa que Gloria mantém uma amizade permeada de sinceridade, amor platônico e muita malícia na intimidade — inclusive, a prostituta causa desconforto e ciúmes na namorada do amigo a ponto da relação dele ser prejudicada por conta de sua presença. A trama procura acentuar esse magnetismo sexual de uma mulher que hipnotiza, conduz e comanda o sexo masculino de acordo com seus anseios. Mas, o tormento é maior para Gloria que acaba tendo que confrontar-se com seus sentimentos quando passa a viver, afetivo e intimamente, com Steve, este um homem casado que ainda tem que esconder da esposa suas traições incessantes. As cenas de romance dos dois, emoldurados pela bela trilha sonora de Bronislau Kaper, fornecem a sedução em cena.
Repleto de diálogos ferinos, intensos e emocionais — obviamente, um filme melodramático —, eis a grande chance de observarmos uma estonteante Elizabeth Taylor que brilha em cena. O Oscar de Melhor Atriz foi merecido a uma interpretação cheia de nuances. A atriz sabe muito bem expor uma feminilidade visceral, toda sedutora e também centrada em seus conflitos psicológicos. A sua personagem oscila o caráter, tem uma certa dualidade presente. Nunca se sabe se ela brinca com os homens ou se é apenas uma mulher libidinal que aprendeu que não pode viver sem amar. E talvez esse seja o elemento mais saboroso: a maneira como ela aprende que precisa ser mais digna, afinal uma vida pautada na promiscuidade e na prostituição torna-se nada mais que um mero sinônimo de fraqueza de alma. E o roteiro não amenizada o lado nada puritano dessa jovem que tem a consciência de sua vida mesquinha, até então sem muitas pretensões de vida, quando ocorre a transformação psicológica por conta de um sentimento que nunca havia descoberto. Ironicamente, a mulher que escolhia uma vida libertina, no vício do sexo e dinheiro fácil, aprende que não existe orgasmo mais intenso que a própria experiência de viver ao lado de um único homem por quem devota um sentimento puro. E é doloroso como o filme, ora eleva a dimensão sensual dessa personagem, ora a coloca em fragmentos por perceber o quão difícil é retomar uma vida que já parece predestinada à perdição. Por fim, é mais uma história de alguém que buscava mais o amor-próprio...
A superficialidade ou mesmo estereotipação do universo homossexual são habituais em diversos discursos cinematográficos da esfera LGBT. O cinema queer opta por escrever linhas narrativas onde homens apenas executem sua libido, reflexo da testosterona irrefreável. As lentes recorrem aos ângulos que traçam tramas onde o sexo parece ser a única preocupação no território gay — mas o que falar da afetividade que é uma característica sempre a ser discutida? O que torna De Repente, Califórnia um filme único é justamente no seu contorno mais visível: a homoafetividade sem nenhuma afetação. Eleito o melhor filme pelo público no Festival Mix Brasil de Cinema da Diversidade Sexual de 2007, a película apenas quer ser natural, pois centraliza a problemática que acaba por ser a mais tenebrosa da humanidade: a dificuldade em viver um amor de verdade, neste caso o romance se restringe ao senso homossexual. Jonah Markowitz dirige e roteiriza sua idealização de “amor impossível” entre dois homens, como poucos filmes já mostraram. A trama oculta todos os clichês comuns de filmes gays, ausenta-se os comportamentos afetados ao colocar o confronto amoroso — e também sexual — de dois homens que apenas sentem-se atraídos.
A exploração afetiva é um critério primordial neste filme. Mas não deixa de ser explorada também a dimensão libidinosa, pois os dois homens envolvem-se nesse senso de atração. Existe a tensão do desejo da carne, existe o afeto íntimo. E Markowitz prefere tratar seus dois amantes como homens-másculos, sem as máscaras de estereótipos que condicionam gays a apenas representações afetadas — aqui vemos gays que praticam esportes habituais ao “universo hetero”, o surf. Aqui há homens que são enérgicos, de comportamento que expressa bem o grau de virilidade. Zach (Trevor Wright) é um garoto que tem que cuidar de uma família problemática. Administra as ausências maternas da irmã Jeanne (Tina Holmes), jovem negligente que prefere priorizar seus casos amorosos a cuidar do filho, e cuida do sobrinho Cody que o enxerga como um pai verdadeiro. Em toda sua vida, sempre se relacionou com garotas, sendo o último namoro ainda bastante marcante. Quando conhece Shaun (Brad Rowe), um escritor que volta para casa dos pais para escrever o próximo livro, é que seu destino sofre a catarse. Ambos tornam-se companheiros de surf, amizade crescente e um envolvimento revelador. Como conter os desejos que uma vida nunca apresentou? A amizade de Zach com Shaun gradua-se numa intimidade que nem mesmo eles entendem, é quando a libido é despertada por algo maior: um sentimento capaz de mudar tudo e a todos. A expressão de sua homossexualidade se torna o catalisador de todas as suas transformações. Zach percebe que o universo masculino é atraente e provoca variantes desejos.
O titulo original do filme tem muito mais sentido — “Shelter” significa abrigo. E é justamente esse sentido: Zach encontra em Shaun um conforto, um alicerce, um suporte. O amor é um abrigo que o acolhe, a proteção para todas suas dores humanas. É possível conter um desejo que parece transbordar de puro sentimento? Quando as sensações se confundem é que o ser humano mais vive em conflito — como representante militante sobre universo homossexual, é óbvio que este filme trata também das dificuldades de um homem aceitar-se na condição de homossexual, sem afetação alguma. Zach tem que enfrentar não só sua família, mas seu próprio interior que despreza esse sentimento que nunca havia explorado. Interessante que o roteiro é cuidadoso em mostrar como se fundamenta, e até inevitável é, a atração entre os dois — sequências de diálogos íntimos que contornam os olhares, a exploração da convivência, para depois externar a libido que é incontrolável. A primeira vez que ambos se beijam é natural, pura ternura, mas demonstra bem a química de desejo que esses dois homens vivenciam. A partir disso, inicia-se um discurso onde Zach tem que lutar contra privações, visto que há não só um desejo, mas um amor que é capaz de elevar suas percepções para um novo mundo. E o filme pontua a maneira como, quase sempre, o homossexual acaba por se auto-flagelar; a se punir por algo que sente, à beira do medo de ser descoberto pela sociedade predatória. Mas, como reprimir um tesão que nunca atenua? E como não se anular pelos preconceitos externos?
Ao contrário do que se espera, o filme não se concentra em diversas sequências de sexo. Porém, as que existem provocam, por conta do realismo e da forte propulsão maliciosa dois atores em cena. Tanto Trevor Wright como Brad Rowe não parecem tímidos nos diálogos íntimos, em beijos emotivos ou mesmo na cena onde transam pela primeira vez, momento que evidencia bem a tensão selvagem orgástica dos dois. Não é apelativo, mas é sensual. O que torna esse filme ainda mais justo com o universo homossexual é que ele lida bem com as dores, mas também com os prazeres adquiridos por essa sociedade homossexual que enfrenta o preconceito social, a aceitação íntima também. A direção de Jonah Markowitz prefere que os atores direcionem suas cenas, sem nenhuma ousadia estética, somente a da excelente harmonia interpretativa. Tanto os dois protagonistas como o restante do elenco pontuam muito bem as sensações, percepções e contextos humanos da diversidade sexual. A questão da homofobia é apresentada também aqui. Mais que uma discussão sobre problemáticas da opção sexual, é uma trama que aponta como é necessário escolhas — afinal, através delas, que destinos podem ser transformados a todo instante. Eis um exercício cinematográfico que desmistifica a concepção de homossexualidade como algo só trágico, afetado ou depressivo. Um filme sensível, íntegro e autêntico.
Conta Comigo
4.3 1,9K Assista AgoraHá filmes que falam sobre o coração, quando não há nada que os cale: eles falam por si. Qual sentido da amizade? Deliberado, o filme Conta Comigo revela-se inevitavelmente um estudo pleno, singelo e incondicional sobre a amizade. Pois, quatro diferentes amigos descobrem o próprio significado de existência rumo à compreensão humana - diante de uma jornada que trilham em busca de um corpo de um adolescente desaparecido. Os quatro são amplamente divergentes: há o sensível Gordie (Wil Wheaton), o medroso Vern (Jerry O'Connell), o destemido Teddy (Corey Feldman) e o maduro valente Chris (River Phoenix). O roteiro, genuína adaptação sentimental do conto "O Corpo" de Stephen King, revela-se um estudo discreto sobre a autodescoberta, amizade ocasional que perdura, manifestações da pré-adolescência sexual e boa dose de psicologia de transgressões familiares. Os quatro garotos lidam com o desapego familiar, a necessidade de questionarem os próprios problemas. O enredo é narrado pelo ponto de vista do personagem Gordie, já homem, escritor, e personificado por Richard Dreyfuss: eis que sua percepção já madura e um tanto nostálgica condiciona o espectador avaliar, junto com ele, toda sua vivência no verão de 1959. E o roteiro de Raynold Gideon evidencia essa busca sentimental sobre jovens em constante sede de amizade, doce partilha de companheirismo e fidelidade conjunta. Como deve prevalecer a mais pura amizade?
Os diálogos sensíveis, as brincadeiras, as travessuras, em meio ao leve humor e densa dose emocional - conduz um roteiro muito primoroso, de pura ternura e realista. Quem não teve amigos pra toda vida em tão curto espaço de tempo? Quem não recorda momentos da infância ou pré-adolescência? Mais que um condicionamento narrativo sobre amizade: é um exercício quase literário cinematográfico de lealdade - deve ser, portanto, classificado como um melodrama pautado na reflexão de temas como crescimento pessoal, maturidade e perda. Os garotos traçam a própria perda da infância pra maturidade, no decorrer da jornada. Com o fim da inocência: o ganho da vida? O diretor Rob Reiner é perspicaz em conduzir cenas com emoção à flor da pele, preenchendo com fidelidade a aura dos anos 60 - repleta de hits sonoros, roupas, hábitos e costumes - para dar vazão a um sentimento único: o valor da amizade, jamais deve ser dissipado. O que fazer quando uma amizade é abalada? O que define o sustento desse sentimento? O que deve prevalecer?
A música Stand by me, de John Lennon, aqui é performado com êxtase imortal por Ben E. King e dá tom à atmosfera juvenil do filme, deliciosamente transmitido com ternura. Jornada de aprendizado? O que se configura mais tocante no filme: a importância da amizade só é exercida quando essa deixa de existir. De fato, encontrar amizades sinceras é algo bastante improvável. Nem toda amizade é eterna, principalmente as de infância que cicatrizam, mas são difíceis de serem cultivadas até a fase adulta. Há situações, constantemente, que coloca tudo a prova. O risco é pouco? No filme, há uma humanização dos personagens. River Phoenix, morto poucos anos depois do filme, interpretava magistralmente com misto de emoção e sinceridade. Há um Corey Feldman cativante, John Cusack como o irmão falecido de Gordie e até uma participação de Kierfer Sutherland como um bad boy antagonista da trama.
O roteiro expressa as diferenças psicológicas entre os garotos: enquanto Vern e Teddy mantinham papos desconexos, brincadeiras infantis e certa imaturidade - Chris e Gordie tinham sintonia pra papos mais existenciais, reflexivos e demonstravam maior sexualidade pela maturidade mais evidente. Tanto Chris e Gordie servem de catalisadores para a motivação reflexiva sobre abordagens íntimas de melancolia, insatisfação de vida e meditação sobre problemas pessoais. Eis uma lição de vida bem concebida, película poética. "Amigos nas nossas vidas são como garçons em restaurantes. Sempre passam, porém, alguns demoram mais do que outros".
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Último Tango em Paris
3.5 570O mundo contemporâneo se embruteceu tanto devido à agressões sexuais, violências pervertidas, estupros desmedidos que o senso de escândalo parece ter se esvaído. Talvez, seja um dos motivos pelos quais consideram o filme O Último Tango em Paris menos forte que no período de lançamento. Contudo, o trabalho concebido pelo diretor Bernardo Bertolucci não deve ser esquecido: trata-se de um grande filme erótico-reflexivo, denso pela carga libidinosa que externa com grande maestria. Um belo representante cinematográfico da depravação exposta. Penetrante, sensual e orgástico filme mais controverso. O foco centra-se em duas pessoas que se esbarram pelo acaso do destino: Paul (Marlon Brando) é um empresário americano quarentão que vive em Paris, marcado pelo recente suicídio da esposa, jamais consegue se desvencilhar da dor que o consome diariamente. Como esquecer as dores que atormentam a alma? Ele se vê sem chão, sua alma devastada amargurada. Como se recuperar do choque? Casualmente, conhece Jeanne (Maria Schneider), uma parisiense de apenas 20 anos. O acaso trata de providenciar o impulso: ambos procuravam um apartamento para alugar - por destino, o mesmo. Imediatamente, ambos desconhecidos e de vidas tão opostas, permitem-se a um desejo irrefreável. A trama ferve com o erotismo idealizado pelas próprias fantasias secretas de Bertolucci: o casal passa a ter um caso segredado com muita libido, paixão tortuosa por uma súbita necessidade de prazer a dois. Sexo por sexo, fervura erótica.
John e Jeanne evitam os nomes, preferem se predestinar ao contato sexual e as peripécias do gozo incondicional - mas, evitam dizer os nomes de cada um, bem como não conversam sobre suas vidas individuais. Dentro do quarto, tudo é permissível, os desejos são expostos com muita fúria - perdem a identidade e renascem? A fúria carnal com laivos de sadomasoquismo caracteriza a animalesca relação. De fato, nas transas diárias eles mantêm um forte elo. Química sexual, práticas de orgasmos e penetrações tornam-se a própria fuga da realidade. Eis que transformam o acaso em destino sexual. É um homem e uma mulher, é macho e fêmea, unidos para a satisfação da carne que pede o prazer - gemidos, seduções e brincadeiras perversas que tanto evocam o orgasmo. Imersos no apartamento, as fantasias são reais - o mundo torna-se menos vazio? Talvez, o sexo atenue as dores individuais de ambos. Incapazes de romper o forte laço sexualizado, arrebatados pela dança carnal frenética, esses dois amantes representam a busca pela satisfação carnal e o senso libertário tão ansiado pelo ser humano. Nota-se que a paixão nasce, ainda que ambos tentem se desvencilhar, inicialmente. Porém, tudo foge do controle de ambos.
Jeanne é a típica mulher liberal, espécie de ninfeta sensual que se permite aos comandos libidinosos de um homem mais amadurecido pela vida. Ela se comporta com uma malícia quase pueril. Excita ser direcionada por alguém que a comande sexualmente? Ela anseia o homem misterioso que dialoga - ainda que pouco - com ela sobre a vida, que a ensina a prática do sexo ousado e que a conduz num tórrido romance de tesão. A teia do jogo sexual pode ser perigosa? Dentro do apartamento, ela renasce uma nova mulher - esquece-se das preocupações do mundo, das responsabilidades e trai o marido (Jean-Pierre Léaud) que não parece adequar-se a sua realidade. O sexo funciona como uma válvula de escape, um impulso contra a mesmice, uma transgressão gostosa a ser exercida. Afinal, o que é proibido é mais prazeroso. Paul, ao contrário da verve comportamental passional da amante, utiliza de seus dons pervertidos para satisfazer sua necessidade de prazer - há também nele uma busca pela fuga, quer atenuar sua dor visto que sofre com a perda da esposa. Evita saber o nome de Jeanne, pois acredita que o conhecimento do nome traga maior envolvimento com a trajetória da garota. Afinal, um nome traz toda uma carga histórica sobre o indivíduo, agrega valores pessoais sobre a pessoa com a qual se relaciona. Pois, então, esses dois transam e são consumidos pela vocação da libertinagem entre quatro paredes. Estes dois indivíduos são artificios de um roteiro que prioriza uma análise sobre os anseios, contradições e perversões humanas sexuais. Duas pessoas, sem reminiscências, apenas o sexo como força provocadora. É nítido que ambos recebem e concebem o prazer que servem de sinônimo de aprendizado - a vida torna-se menos dolorosa, há esperança. Fora o sexo que serve de pauta para o mote do filme, há embutido um olhar melancólico sobre duas pessoas desesperadas pela salvação. O sexo pode levar à plenitude da felicidade? Profundamente triste, do encontro vazio de dois seres humanos em desespero, o sexo como uma tentativa inútil de lidar com o passado.
O frisson deste cult íntimo thriller erótico evidencia-se nas cenas de sexo de ambos. Há nudez sensual de Schneider, constante. Insinuações de frases perversas proferidas por Brando, como cenas de penetração ardente, ainda que cuidadosa (a primeira transa dos dois é intensa, crua). Há a imortal sequência onde Paul usa a manteiga para lubrificar e praticar o sexo anal (sodomia) violentamente com Jeanne - inclusive, há versões do filme que esta cena teve que ser censurada tamanha polêmica. A cena assemelha-se a um estupro, torna-se mais tensa pela maneira como é expressa - Paul, enquanto penetra o ânus da garota, pede que ela o deixe mais excitado, profanando palavrões e repetindo mensagens religiosas que ele a direciona. Seria um fetiche? Havia uma relação de dor, prazer, sentimento e até ódio neste casal que desmistifica o senso de privações da libido, servem de expressão para a quebra dos tabus sociais. O senso de instituição moral é colocado à prova, talvez ridicularizada e tudo é questionado. O sexo seria criador de vínculos entre eles e estabelecimento contra a convenção social? E também um movimento contra à rigidez da sociedade contra os indivíduos? O cuidado da direção de Bertolucci centra-se nesses questionamentos, ainda que as cenas sejam realistas e ousadas, não há conceito de vulgaridade - tudo é bem pensado, plástico. O diretor versa sobre a dor, sobre o peso da existência e sobre a sexualidade acima das relações. Aonde ninguém se conhece, ninguém tem obrigações. Há diálogos existenciais, profundos, que exercem tons carnais tangíveis. A trilha sonora caliente de Gato Barbieri tonifica-se como uma moldura emocional, maestria sofisticada do erotismo melodramático em acordes do tango-jazz estilizado. O recurso técnico encontra cores, contornos e adornos precisos pela alaranjada fotografia excepcional de Vittorio Storaro que revigoriza o filme - cores quentes denunciam o teores orgásticos que simbolizam os amantes em cena. O dom subversivo imagético proposto por Bertolucci destina-se ao misto da elegância, da obscenidade estrutural, explora bem a sensualidade corporal dos atores em cena na composição dos planos objetivos. Puro charme cinematográfico que atua como crítica à humanidade. Eis uma tragédia erótica que deve ser vivenciada, uma obra de arte que é capaz de tirar qualquer um do estado catatônico.
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Clamor do Sexo
4.2 92 Assista AgoraElia Kazan já tinha a consciência que falar de sexo não é simples, ainda mais quando o senso volta-se ao universo da juventude — com toda sua ebulição carnal, desejos imoderados, explosão hormonal que caracteriza tão bem esse período. Abordar a sexualidade juvenil é também estar ciente que esse processo é resultado de diversos fatores, um deles é o sentimento. Pois sexo, além de algo carnal, é também algo intrínseco a alma humana. E talvez por ter isso em mente, o diretor promoveu um dos filmes mais contundentes e polêmicos da história da cinematografia americana. Diferente do seu “Uma Rua Chamada Pecado”, Kazan conseguiu efetuar uma produção sem uma censura forte, já que o Código Hays não atuava mais como elemento de mutilação nas estruturas dos roteiros de filmes, digamos, “mais maliciosos”. Clamor do Sexo atuou como um retrato de uma sociedade puritana, moralista e altamente repressora contra uma juventude prestes a explodir pelos direitos do sexo. O filme foca no período dos anos 1920 em Kansas, um ano antes da Grande Depressão: conhecemos a virginal Wilma Dean 'Deanie' (Natalie Wood), uma jovem cheia de sonhos e com o sonho de entregar-se ao seu amado Bud Stamper (Warren Beatty), este sofre por ter que reprimir seus instintos libinais já que, naquela época, transar antes do casamento estava fora de qualquer cogitação. Como fazer para conter dois jovens em processo de tesão absurdo, visto que a sociedade condenava a liberdade sexual numa relação de namoro? É justamente esta problemática apresentada no filme que, até hoje, é um exemplo dramático sobre escolhas que envolvem os sentidos de desejo, sentimento e anseios da humanidade. A linha do sexo é algo sempre delicado a ser discutido, mas aqui ganha força.
Como alerta, é provocante a maneira como o filme, produzido no princípio da década de 1960, consegue sustentar sua narrativa com bastante ousadia. A malícia, o jogo romântico, a forma como o casal protagonista dialoga com seus anseios carnais, são pontos bem pungentes aqui. Obviamente, Elia Kazan sabe expressar a dolorosa problemática vivenciada por Bud ou a angústia sentida por Deani com cuidado, mas ainda assim tudo é bem expresso, sem medo das reações do público que, surpreendentemente, aceitou o filme sem medo. Até a censura foi liberal, um feito bem notável, visto que até nas cenas de beijo são calorosas, até ardentes. A provocação se sustenta na maneira como Bud precisa lidar com sua vontade de fazer sexo com a namorada, impossibilitado por conta de uma família com rigores paternais, acaba por sofrer por ter que atenuar sua libido.
Para Deani é até pior e o roteiro acentua muito bem: qualquer garota que transasse com o namorado, antes do casamento, era considerada promíscua. Deani sofre por ter que reprimir sua feminilidade natural, todos seus desejos abismais, tendo que controlar suas emoções mais libidinosas já que seria condenada por todos. Ser virgem era um fator primordial, então. Por que ter que frear os desejos por um grande amor? Como provar para a sociedade que o sexo age com importância num relacionamento? E como fazer valer a sexualidade num terreno tão repressor? Inúmeras perguntas são feitas a partir do casal, tamanha a reflexão. Tanto o homem quanto a mulher aqui retratados acabam por reprimir-se sexualmente a ponto da relação torna-se abalada. É a maneira de Kazan expor que nenhum romance dura sem o clamor do sexo, sem a energia do tesão que alimenta a juventude insaciável. A ausência do sexo enfraquece, faz com que qualquer ser humano acabe por repensar a relação, é algo frustrante.
Warren Beatty com sua beleza, masculinidade e impulsos sexuais, teve a chance de brilhar com seu personagem. O ator sustenta muito bem a emulsão emotiva de seu Bud que sofre de desejo, suas cenas de dramaticidade são extremas, porém as mais memoráveis são as protagonizadas com apelos românticos de uma Natalie Wood totalmente entregue à sua Deani — a atriz fez aqui a grande atuação de sua breve carreira. É perceptível a bela química interpretativa dos dois em cena, ainda mais quando o roteirista William Inge insere obstáculos na vida do casal apaixonado, quando Bud e Deani acabam por se afastar e outras situações dramáticas são exercidas, como os conflitos vividos pela irmã de Bud, Ginny (Barbara Loden), uma espécia de ovelha-negra da família que afronta a todos com seu comportamento transgressor libidinoso.
Nunca foi tão sensual e até doloroso colocar o tema do sexo num filme, e aqui este sentido ganha uma força bem realista, já que o espectador tende a se identificar com os amantes juvenis. Inesperado ver algumas sequências de nudez de Wood que sabe verbalizar na sensualidade corporal e verbal, como na cena da banheira onde presenciamos — seu talento aqui atinge o ápice — uma discussão da sua personagem com a mãe, quando ela questiona suas posições femininas acerca de desejos. Um filme que sabe provocar por escancarar os segredos da juventude que não queria permanecer conformada no America way of life, um exemplo nítido de como a sexualidade fervente da juventude serviu como quebra dos tabus num período onde a opressão parecia ser o único senso da sociedade preconceituosa. Elia Kazan trouxe à tona uma problemática sexual que ainda se mantém pertinente. Sedutor incontestável, este é um marco que jamais envelhece.
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Bicho de Sete Cabeças
4.0 1,1K Assista AgoraPois todo filme nacional pode atingir o ápice, é o que ocorre com o intenso Bicho de sete cabeças: definitivamente, uma abordagem contundente e violenta do âmbito brazuca, efeito cinematográfico de pura realidade. Dirigido com talento pela criativa Laís Bodanzky, o filme captura a crueldade humana no mais profundo absurdo. Rodrigo Santoro é Neto, um jovem enviado ao manicômio pelos pais por não se enquadrar nos padrões sociais. Qual a condição da loucura? O que determina ser ou não sensato? Neto suporta a crueldade e agrura de um sistema que, condicionalmente, devora suas presas com maldade. Othon Bastos e Cássia Kiss personificam a estrutura familia que adotam a internação do filho, pura medida impulsiva. O filme propõe alfinetar a alma, o coração e a sociedade: como abrir os olhos diante de jovens transviados? Neto peca em viver imerso nas drogas e à condição de subversivo, porém tem sua vida revirada pela ignorância da família. Como um adolescente de classe média se predestina ao esquecimento? É no manicômio que o jovem encontra a amargura: é obrigado a usar fortes medicamentos, recebe maus-tratos e tem um violento tratamento - inclusos eletrochoques de 460 volts e encarceramento! É com muita emoção que vivenciamos a dor: ele sente o próprio inferno de perto, junto com suas constantes convulsões provocadas pelas descargas elétricas. Já imaginou ter os neurônios queimados e se observar próximo da morte?
O filme é contundente, selvagem, impactante. Como se livrar do abismo? A história é baseada no material autobiográfico de Austregésilo Carrano Bueno, no seu livro Canto dos malditos - internado entre 1974 e 1977, num hospital de Curitiba. A película é um sôco no estômago, contextualiza um período de pura crueldade social e pra compreender é necessário refletir. Existem, ainda, jovens condenados ao manicômio? Como se configura a atualidade neste sentido? Como se deparar com o uso das drogas na juventude? O filme propõe ainda mais: é importante uma relação de pais com filhos, um ajuda o outro, a compreensão mútua. A ausência de diálogos e afetuosidade tende à alienação familiar.
O sistema manicomial do Brasil se predestina ao tabu total, nada é muito questionado. O cinema exerce essa importância de questionamentos. É interessante observar a atuação emocional de Rodrigo Santoro: a degradação mental e física de Neto é violenta, sofre na própria carne a violência dos abusos e métodos dos medicamentos inseridos na veia. A ironia é constatar que o manicômio não cura os pacientes, mas os condiciona, ainda mais, à loucura e alienação - sem nenhum estímulo de recuperação ou intelecto.
O filme tem uma estética documental com planos modernos, acelerados, de acordo com o ritmo narrativo e do embalo psicológico dos personagens. A trilha sonora tem letras compostas pelo músico Arnaldo Antunes e André Abujamra concebem o tom conceitual da temática: as músicas determinam pensamentos e sentimentos do protagonista. Eis que o cinema nacional denuncia com lucidez o sofrimento, as atrocidades de um sistema psiquiátrico e desmascara uma sociedade diante do consumo de drogas.
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Histórias de Amor Duram Apenas 90 Minutos
3.4 632Como entender o comprometimento com a infidelidade na própria vida? O ser humano, ainda que imerso em princípios da moralidade, pode se permitir aos anseios de um súbito desejo? Qual sentido de um relacionamento se não há a euforia do amor e paixão? Interessante abordagem proposta pelo diretor e roteirista Paulo Halm no seu instigante filme Histórias de amor duram apenas 90 minutos. A película é uma discussão sobre as inconstâncias do sentimento juvenil, a relação da sexualidade e um pequeno recorte sobre os sentidos dos relacionamentos abertos e bígamos que se intensificam na esfera da sociedade. O foco narrativo centra-se em Zeca (Caio Blat), um homem à beira do colapso existencial, um escritor que não consegue finalizar seu livro e sente-se frustrado por isso. Reside num morno apartamento em companhia de sua esposa, Júlia (Maria Ribeiro). No completo ócio constante, eis que a infelicidade persiste nos laços conjugais ao ponto de Zeca não conseguir mais manter uma boa sintonia sexual com sua mulher. Seria um casamento já firmado com ausência de libido? Mas, o destino providencia a catarse: Zeca flagra Júlia em um quarto com sua melhor amiga Carol (Luz Cipriota) e crê que ambas têm um caso secreto. A desconfiança passa a ser gradual, o rapaz sustenta nas suas dúvidas e sua mente, a partir disso, garante todo um tormento particular. Todo o filme mantém a percepção centralizada no olhar do próprio narrador, Zeca - assim, todas suas fragilidades são expostas ao público concebendo uma intimidade identificável, crível. Será que ele estava sendo traído há muito tempo? Como entender essa descoberta que o corrói? Ou seria apenas um ciúme que estabeleceu a cegueira em sua vida?
Interessante que todo o mote do sexo paira no esqueleto argumentativo bastante delineado por Paulo Ham. Todos os diálogos não escondem o quão passional, intenso e sexual é seu personagem Zeca. É o típico homem que vive imerso nos próprios problemas das dúvidas existenciais - o que fazer para sustentar uma vida que quer? como ter inspiração para finalizar o livro que pretende terminar? a vida há de ser mais prazerosa? - e que não consegue conceber um rumo evidente aos anseios. Sua relação com sua mulher firma-se no condicionamento na teia tediosa da rotina - até as transas de ambos tendem a ser conformadas em padrões. Praticamente, Zeca tende a estimular a esposa a ter relações sexuais com ele, visto que se mostra um homem dotado de libido constante. É como se o orgasmo estimulasse uma energia já dispersa em sua vida, pois Zeca não consegue dar melhores contornos a sua vida senão ao vazio que o confunde. E ele se submete ao ostracismo social, vive no seu mundo de imaginações e sonhos - mas, sua realidade é ser sustentado pelo dinheiro da mãe falecida sob a administração do pai Humberto (Daniel Dantas), por quem nutre uma relação firmada em mágoas e frieza.
O destino de Zeca, em meio as suas turbulências internas de sonhos não realizados, passa a ter novos contornos: ao passo que desconfia que Júlia o esteja traindo com Carol - essa passa a viabilizar um novo sentido orgástico em sua vida. É o tesão expressando novos horizontes? Do desejo nada se sabe? Não há maneiras de internalizar a compreensão das funções libidinosas que se apoderam da carne. Eis que Zeca passa a desejar ardentemente a amiga de Júlia (ainda que ela possa ser amante de sua mulher), não consegue conter a sua libido que se torna mais nítida quando ele se masturba toda noite ao pensar no corpo da garota que causa um irremediável tesão dentro de si. Nota-se que Zeca transa com Júlia mais pela sua necessidade fisiológica, visto que é um homem com uma forte tendência aos anseios libidinosos. Então, Carol torna-se de amiga e amante de sua esposa para seu objeto de maior desejo: ele projeta nessa mulher, dançarina argentina, um modelo sexual de satisfação para todas suas aspirações de prazer. Enquanto erotiza suas visões ao imaginar um romance lésbico de sua esposa com ela, arde nele uma vontade de possuir essa misteriosa garota que domina todos os sentidos do seu dia a dia. É necessário trair? Há na mente de Zeca o fetiche da tentação de dividir-se sexualmente, como prato degustável do orgasmo, entre duas mulheres?
É um filme que aborda os percalços dos desejos que podem afligir a carne, a alma. Mas, o retrato de Paulo Ham vai além aos mostrar questões contemporâneas como sensos de moralidade, dúvidas existenciais de jovens que não insistem em amadurecer, inconstâncias do sentimento, ciúmes que se manifestam e inquietações da alma. A maneira como as ótimas atuações de Caio Blat (que sustenta a narração em off de seu personagem), Maria Ribeiro e uma enérgica Luz Cipriota se completam em cena, concebem uma atmosfera tangível - personificações da realidade de mundo? São questionamentos, sexualidade e anseios muito bem delineados. E o misto do drama com toques de humor tornam os diálogos coloquiais verossímeis. É interessante como o cinema nacional alia-se do vigor e da mudança nos paradigmas para estruturar um bom conto de sexo e reflexão. Seria também um retrato sobre a geração - humana - perdida em depressões? Dúvidas? Ou é apenas uma maneira de mostrar como todo ser humano, ainda que não demonstre, tende a ser infinitamente inseguro? Pelo menos Zeca não é representante do sexo frustrado. Belíssimo filme provocador, crônica cinematográfica realística.
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Se Nada Mais Der Certo
3.6 114 Assista AgoraComo se expressa a juventude sem sucesso? O que torna um homem inseguro? A falta de perspectiva pode corrompê-lo? Se nada mais der certo representa a crua e contundente realidade do cenário brasileiro — é um estudo humanístico sobre as mazelas sociais, a desesperança pessoal e os conflitos dos incontornáveis distúrbios políticos. Decisivo filme que recobre a juventude sem perspectiva, com suas inseguranças e dificuldades para se vencer numa metrópole predatória. Dirigido com cuidado por José Eduardo Belmonte, é um filme que costura as dores de personagens solitários, onde o tom da perseverança se ausenta para dar vazão a um universo que reina a criminalidade paulistana. O filme centra-se no submundo humano, é através de pequenos, mas não menos profundos, personagens que a trama se evidencia. Léo (Cauã Reymond) é o jornalista que enfrenta problemas financeiros, sem emprego definido e uma vida insatisfeita devido às dívidas exorbitantes; Ângela (Luíza Mariani) divide o apartamento com Léo por quem é sustentada, tem um filho de seis anos e não consegue definir sua vida: depressiva, viciada em drogas e com tendências evidentes de imaturidade; a andrógena Marcin (Caroline Abras) que se veste como homem, lésbica assumida, trafica drogas e mantém uma conturbada relação filial com a travesti Sybelle (Milhem Cortaz); e há o taxista Wilson (João Miguel) que acredita precisar de um psiquiatra para dar sentido a sua vida insípida. O que une esses personagens? Belmonte, com texto co-escrito com Breno Alex e Luis Carlos Pacc, constrói seu recorte de realidade brasileira, através de cada personagem, para promover sua crítica: desprovidos de oportunidades, chances e realizações, esses humanos se unem para praticar golpes. E o perigo é gradual, é quando os delitos tornam-se perigosos. A cinematografia nacional encontra-se na sua melhor atmosfera, esse filme reflete bem o momento deste brilhantismo; no exercício da pós-modernidade que toma novo fôlego através de produção viabilizada por um talentoso diretor.
Como se libertar das armadilhas do destino que pode ser cruel? Como vencer numa cidade que não é fácil e tudo é um redemoinho de vícios, frustrações e agruras? O filme critica a realidade brasileira. Sob a caótica São Paulo, vista com um olhar amargo por Belmonte, é que seus personagens ganham sustância. Se nada mais na vida der certo? Há a chance de burlar o sistema através da criminalidade? Da perda da paciência por um mundo melhor e justo? Belmonte coloca seus personagens aflitos, pois culpam o sistema que limita seus universos sem oportunidades. Com a falta de dinheiro, os males são reforçados. Léo, Marcin e Wilson permitem-se aos golpes às instituições; gradualmente imersos numa teia onde não há escapatória. Roubam pessoas, infiltram-se em meios arriscados para obter grana para uma ilusão de mundo? E como acordar dessa realidade? Belmonte atiça sua câmera na percepção desses personagens que contestam a política; questionam suas fraquezas e envolve-se mais no submundo do crime. Abandonados, descrentes, vivem neste limbo brasileiro onde não há regalias às classes desfavorecidas. O tom frenético da montagem; dos diálogos naturais e do elenco talentoso evidenciam a ousadia deste trabalho cinematográfico. Determinam o grande impacto que causa. A fotografia de André Lavenere captura os tons avermelhados dos ambientes soturnos dos bordéis paulistanos; os close-ups investidos em cenas emocionais e as narrações em off dos personagens principais são pontos positivos.
O tom sexual permeia a trama, através da construção das personalidades e do comportamento provocante dos personagens. A representação da homossexualidade é centrada na figura masculinizada de Marcin, uma garota que expressa sua fisionomia dúbia por ser andrógena; imersa em cenários de uma vida frágil dentro de bares e cabarés onde se alimenta do consumo de drogas e de uma vida precária. O roteiro contorna a maneira como uma garota se adequa ao meio masculino, através de uma postura transgressora e sem trejeitos femininos. E há também a dimensão do aspecto do travesti Sybelle, um homem que mantém seu corpo de mulher, ainda que sua voz seja grave — as representações da androgenia e do transexualismo são aspectos da realidade, universo queer, e é a forma como o filme investe na sua provocação. O submundo é controverso, é sexualmente transgressor. Ora, a ebulição sexual também é característica da juventude indagadora? E Belmonte jamais julga seus personagens subversivos, somente evidencia que todos são humanos e não devem sofrer preconceito. Porém, ainda que os contornos da diversidade sexual sejam evidentes, o filme não se aprofunda neste condicionamento. Ademais, as interpretações surpreendentes de Cauã Reymond e de Caroline Abras produzem momentos emotivos que prefiguram o efeito dramático da narrativa.
É um trabalho que expressa a crise da juventude, ao se desdobrar nas questões das identidades problemáticas e na criminalidade, assim Belmonte ajuda a criar seu filme conscientizador. É interessante como os personagens são ambivalentes, afinal a moralidade é um questionamento bastante relativo. O que torna alguém ruim? Qual o sentido de maldade? Todo ladrão, só por roubar e cometer crimes, deve ser taxado como perverso? A trama envolve ao intensificar um olhar humano, sensível, aos personagens que são, incontornáveis, solitários. E Belmonte mostra que pra amadurecer é preciso sofrimento, talvez por isso o filme converta-se numa visão pessimista da realidade brasileira. Decerto, é um trabalho para acordar a sociedade. Eminentemente político por abarcar uma visão crítica — inclusive, na polêmica seqüência, que o trio decide praticar um assalto e se disfarça atrás de máscaras que reproduzem as feições de Collor, FHC e Sarney. E a trilha de Os Saltimbancos promove uma ponte com a politicagem pós-ditadura e hino das ações criminosas do trio. É possível abdicar dos princípios morais e afrouxar os valores próprios apenas para tentar vencer? Ainda que exista uma linha tênue entre o caminho da lei e da criminalidade, deve-se pensar na manutenção da ética incorporada à identidade, pois essa jamais deve ser extraída. Pequena obra-prima do cinema nacional. "Todos juntos somos fortes, não há nada a temer".
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Eu Sei Que Vou Te Amar
3.6 140Um relacionamento desgastado, prestes a explodir de tanto ódio, amor e desejo. Nem sempre há sentido dentro de quatro paredes, visto que na teoria sentimental não há a existência do acordo da razão com a lógica — e se não há emoção, não pode haver uma relação viabilizada com o senso da intensidade. Muito menos o desejo transcorre já que é um elemento de impulso carnal humano. E é justamente esse ponto que o orgasmático Eu sei que vou te amar coloca em questão. Ao tratar de temas tão íntimos, dolorosos e ousados como o sexo em combustão com o sentimento ardente, Arnaldo Jabor retrata em seu filme as vicissitudes de um casal em plena crise da própria existência. Adotando um roteiro que prioriza o tom verborrágico-monólogo, Jabor expõe uma jornada psicossexual sobre um homem e uma mulher. A projeção tem o timing da narrativa vivenciada pelos personagens, em apenas duas horas se dispõe um completo jogo da verdade; o casal em diálogos febris sobre tudo que viveram, com questionamentos sobre próprias atitudes e vômitos sobre indagações sexuais. Qual conceito da fidelidade? Como acreditar no amor eterno? O que motiva o desejo? O filme propõe a realidade dos erros e acertos do amor, coloca em questão as fraquezas humanas bem como os vícios do caráter, eis a psicanálise do ser humano em plenitude cinematográfica. É muita intimidade, overdose de sensualidade a dois, repleto de sincronismo e cinismo sentimental. O que pode ser mais polêmico que os vícios e problemas sobre a esfera da paixão? O sexo é o ápice de um relacionamento? E o amor? O que conceitua um relacionamento intenso?
Com um estilo que mistura o tom teatral com a linguagem dinâmica de cenas que se assemelham ao videoclipe, o filme é todo centrado dentro do apartamento onde o casal não se inibe em providenciar diálogos ora desconexos, ora beirando às incitações filosóficas. Arnaldo Jabor impele seu texto com monólogos próprios de cada um — há seqüências inteiras em que Fernanda Torres exibe-se em indagações sobre o sentimento; perguntas sobre sexualidade ou demonstra fragilidade ao concentrar suas dúvidas sobre infidelidade. A atriz empresta à personagem uma personificação que se mistura em diversos tons; por vezes conduz uma enérgica presença feminista repleta de pontuações sobre questões comportamentais e situações sobre orgasmo feminino; sentimento ou desejos. Em outros momentos, há um tom frágil que mostra uma nova modulação de voz e modo interpretativo, é quando sua voz interpretativa mostra o medo, a agonia e os distúrbios de amar um homem que não te valoriza. Thales Pan Chacon também transforma seu homem; do másculo exibicionista que não teme ser rejeitado ao romântico inveterado que não desiste em conquistar a mulher de sua vida. Os atores, assim como os personagens, enfrentam as oscilações de seus personagens numa rapidez admirável.
A tensão sexual é nítida em muitas cenas. Situações onde o casal rememora transas, beijos ou mesmo nas seqüências em que Fernanda Torres exibe seus seios na presença de um descamisado Pan Chacon. Ainda que inúmeros diálogos concentrem o tom libidinoso da trama — O filme é um singelo estudo sobre os vícios, prazeres e discórdias sentimentalistas de um relacionamento fundamentado no tédio, na dor e na insegurança. Ora o casal permeia entre o amor lúcido repleto de declarações nostálgicas de desejos, ora comunga o ódio em discussões intensificadas de ira. Jabor consegue recriar uma atmosfera lúdica, íntima e com teor de paixão diante da concepção de seus diálogos ácidos e passionais: seria o casal um reflexo de nós mesmos? Até que ponto um relacionamento se condiciona na integridade da fidelidade? Ou está fadado ao término ou transforma-se após uma reflexão a dois. É necessário ter esperança no desejo de amar o outro? Como perdurar o sentimento vibrante? A organização das cenas alia-se do tom teatral, mais ainda pela forma como os diálogos são proferidos, porém a técnica de misturar a trilha sonora, a fotografia com filtros de azul e vermelho, e as narrações em off que pontuam o pensamento dos personagens evidenciam o apuro cinematográfico de Arnaldo Jabor. O diretor também concentra incansáveis closes nos atores para captar a emoção.
Mais que um discurso sobre as esferas da intimidade relacional humana, é um exemplo de acerto de dois atores numa combustão sexual em cena. Fernanda Torres ao lado de Thales Pan Chacon proporcionam um misto de amorosidade e sexo.Talentosos e concentrados, ambos têm uma química interpretativa que determina todo o melodrama verborrágico exponencial de Jabor. Se há um intelectualismo nos diálogos, o tom sexual é muito mais crível por conta do embalo físico-emocional dos dois atores. As cenas que o casal expõe seus fetiches, segredos e obscuridades sobre luxúria/infidelidade é um dos pontos mais hipnóticos do filme. E o diretor sabe explorar a virilidade necessária de Pan Chacon com a sensualidade feminina de Torres para realizar essas pontuações bem provocantes, ousadas e ferinas. Da perversão ao sentimento mais conservador, o filme é uma espécie de celebração sobre o amor e sexo. O casal extravasa seus ressentimentos, mágoas e ofensas sobre as próprias dores. O foco é no delírio da intimidade, no conflito de um para o outro. Altamente intenso e poético, uma espécie de playground psicológico. Um cult-movie feito para reflexão sobre os laços de amor e desejo. A proximidade com a realidade e o monólogo dos personagens proporcionam uma identificação gostosa com o filme. E nada mais prazeroso que constatar que este representante do Cinema Nacional jamais envelhece. Incondicionalmente, excitante.
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Você Não Conhece o Jack
4.1 414 Assista AgoraAl Pacino é vida!
Acusados
3.9 202 Assista AgoraComo fazer com que não prevaleça a impunidade no sistema judicial? O filme Acusados provocou polêmica quando lançado no final da década de 1980, por promover uma importante discussão sobre os ditames da lei perante uma vítima de estupro. É um emocional recorte de uma problemática real. Dirigido por Jonathan Kaplan, a película teve o roteiro baseado numa dolorosa história real — um caso de estupro ocorrido em março de 1983 no estado de Massachusetts. A trama mostra o drama vivido por Sarah Tobias (Jodie Foster), estuprada por 3 homens em um bar, na presença de outros que incentivaram o ato de agressividade. Ao ver que seus agressores obtiveram penas leves, Sarah luta desesperada por uma punição adequada para estes, ao lado da defensora pública Kathryn Murphy (Kelly McGillis). Além do desejo de justiça imediata, ambas querem também a condenação dos incitadores da violência sexual que contribuíram para o acontecimento do estupro. Como acordar um sistema penal que parece tão arbitrário e injusto? O filme recobre uma realidade que ainda se mantém presente: vítimas de violência sexual não conseguem condenar os agressores. O roteiro polemiza esse senso, inclusive ao colocar a condição de Sarah dúbia, como ocorre em muitos casos, onde a vítima é suspeita em seu próprio caso. Quais são os limites da justiça? O da responsabilidade social?
O filme alerta que nos Estados Unidos, seis mulheres são estupradas a cada hora. E pelo menos quatro delas são atacadas por mais de um homem. Nada justifica crime tão imperdoável, irracionalmente humano. E o esforço do roteiro trata justamente de desvendar esse sistema penal que acaba por manter impune pessoas que cometem crimes deste sentido. Sarah representa uma vítima sexual — além de vivenciar toda a dor do estupro, tem sua moral questionada e colocada à prova. O trâmite processual não é fácil, ainda mais que, freqüentemente, vítimas de agressões sexuais são questionadas de todas as formas nos Tribunais. E o roteiro demonstra essa vivência dolorosa de Sarah enquanto vítima; além de seu anseio de punir as pessoas que a macularam. A única disposta a entender um pouco de seu universo traumático é Kathryn, com quem concebe um forte elo de amizade e compartilhamento de confidências. O diretor Kaplan divide o filme em momentos onde compreendemos a personalidade de Sarah, seu trauma insuperável e sua maneira de lidar com os problemas. A superação é um difícil caminho a ser percorrido por vítimas de agressões sexuais. A outra linha narrativa mostra o julgamento que segue, enquanto a promotora tenta provar que, independentemente do fato de que a vítima estava flertando com os acusados, eles deveriam ser condenados.
O tom realista do roteiro evidencia a sexualidade forte na personagem Sarah — é exatamente essa dualidade que ela exerce, faz com que a dúvida seja consequente. Será que ela contribuiu de alguma forma para a violência sexual? O que esconde perante a lei? A representação feminina de Sarah é nítida: altamente sexualizada, rebelde e impulsiva, exerce um comportamento transgressor. Típica mulher de classe baixa que trabalha como garçonete, é onde o desrespeito parece prevalecer, num ambiente onde tem que conviver com vários homens machistas. Sarah tem sua reputação questionada, inclusive pela sua advogada que, às vezes, parece duvidar de que ela fora realmente vítima de uma agressão sexual. Será que a moça usou de sua feminilidade libidinosa para conseguir algo? O que houve naquela noite, afinal? Sarah não se conforma com essas dúvidas e tenta atenuar sua aparência física — corta os cabelos, muda a forma de se vestir — numa tentativa de adquirir respeito da sociedade que tanto julga. E o trauma faz com que a vítima não tenha vontade de transar mais, tendo que se recuperar internamente de todas suas dores. Eis a polêmica proposta pelo filme: Só por ser sensual a mulher deve ser estuprada? O absurdo é questionado por Sarah, mas serve de alerta a todos.
A incessante cena completa — terrivelmente visceral — do estupro só é revelada perto do final, durante o julgamento dos três homens que incitaram a agressão. É justamente a punição a casos de estupro que a premissa do roteiro se baseia. Tanto Sarah quanto a sua advogada querem a condenação dos estupradores além dos incentivadores. A composição de Jodie Foster é determinante para o tom realista do filme, visto que ela lida com dores reais tão densas que é difícil não evidenciar a interpretação emocional nesses momentos (a atriz levou seu primeiro Oscar por essa personificação dolorosa). Kelly McGillis é o contraponto, atua brilhantemente como uma advogada determinada. Instigante o posicionamento polêmico do filme — ainda que sob efeito do álcool, mesmo que tenha flertado com algum dos homens, Sarah não deveria ser punida por isso. Afinal, o que caracteriza o estupro é justamente alguém ser forçado a manter relações sexuais; é isso que reside o argumento do filme. Ela não quis fazer sexo com os homens, foi coagida a isso, ainda que tenha dançado anteriormente com um e ter trocado beijos. Um trabalho que serve de alerta, denúncia e reflexão para uma sociedade que não condena. E nem o roteiro, nem a direção atenta de Jonathan Kaplan, acentua o tom melodramático; não há exageros. As cenas de tribunal, bem como a dor da vítima Sarah, conservam traços reais em seus diálogos, na sua maneira de se expor. Um filme que estuda a tecnicalidade da lei, das barreiras do preconceito, da forma de assegurar a toda mulher o direito do seu corpo.
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Drive
3.9 3,5K Assista AgoraNão é um filme que escancara tão facilmente os sentimentos. É um filme reflexivo, intimista, que precisa de certa paciência, afinal Nicolas Winding Refn conduz seus atores com uma precisão delicada, minuciosa, sem pressa alguma, respeitando cada vivência/evolução de seus personagens. DRIVE pode-se dizer que seja um típico filme da humanidade solitária, carente, sem perspectivas maiores, a não ser predestinada ao lado mais obscuro de mundo, permissiva aos caminhos tortuosos da linha tênue entre moralidade e ilegalidade.
Afinal o que torna alguém submerso nos caminhos perigosos da maldade? Ryan Gosling aqui concebe uma atuação inspirada - é interessante ver como ele nos brinda com um ser tão misterioso, perspicaz, totalmente dentro de seu mundo, onde conhecemos tão pouco dele, a não ser pequenos gestos e olhares. Como entender alguém tão monossilábica? E se o ator surpreende ao mostrar uma faceta interpretativa de alguém tão "pra dentro de si", são nos momentos que ele torna-se violento, dinâmico e agressivo é que percebemos um tom ameaçador de sua personalidade. Não sabemos seu nome, apenas procuramos entender como alguém pode parecer tão sutil num momento e no outro pura combustão. Gosling mantém seu personagem sob nossa visão, sem que se apague, ainda que Carey Mulligan demonstra segurança numa mulher frágil, ansiosa por um homem que modifique seus rumos tão tediosos.
A trilha sonora de Cliff Martinez faz esse mundo tão noturno, onde a noite parece interminável e os mistérios indissolúveis desse brilhante roteiro, ganhar tons e emoções. Muito tenso, repleto de uma ironia até, esse é um filme que vai perdurar e tem tudo pra ser um ícone-vivo da ultraviolência e significado existencial daqui a uns anos. Planos estéticos, closes, prologamentos em situações onde a câmera quase para, tudo isso reforça que o filme foi feito com um cálculo completo. Cenas densas, íntimas, se misturam à outras que não tem receio de arder na adrenalina. Diria que é um modelo de drama-ação bem torneado, muitos diretores bem que poderiam entender que há narrativas que funcionam dessa maneira, preservando os momentos dos personagens, dando espaço para aprofundamentos, mas tornando-os mais vivos em determinadas sequências mais eufóricas. Filmaço, definitivamente!
Um Dia
3.9 3,5K Assista AgoraMuito foi falado sobre a adaptação do livro de David Nicholls. Segundo os fãs fervorosos e críticos diversos, o próprio autor não soube explorar o caráter humanístico dos seus personagens, tornando o roteiro de Um Dia bastante fragmentado, superficial. A verdade é que Lone Scherfig, diretora dinamarquesa que tem o dom de explorar os sensos femininos com um cuidado extremo e delicadeza conseqüente de sua sensibilidade artística — quem viu o excepcional “Educação” sabe muito bem esse sentido explorado — preferiu tornar evidente aqui uma leve noção da relação afetiva contemporânea. Em nenhum momento houve a intenção de promover um filme apelativo, concentrado de sexualidade, nem mesmo no livro existe essa atmosfera. Engana-se que esta fita teria também um apelo mais sensual, tão recorrente em filmes recentes de comédia romântica que adota a malícia da libido dos amantes protagonistas em tramas semelhantes que discutem o sexo casual. A proposta é mostrar, num panorama de vinte anos, a trajetória de encontros e desencontros de Emma (Anne Hathaway) e Dexter (Jim Sturgess), dois amigos que se conhecem na faculdade e efetuam uma relação bastante intensa, permeada de situações de carinho, aproximações, confidências, separações e exponencial sentimentalidade. Duas pessoas com personalidades distintas, mas com alta sintonia. Qual a problemática evidente? Tanto um quanto o outro demoram a perceber que são feitos um para o outro, que há um amor mais profundo que uma leve atração — numa narrativa linear, acompanhamos as vivências desses dois, bem como as evoluções/degradações pessoais, encontros e desencontros, afetividades afins.
Interessante que, ainda que não seja uma atuação excelente, Anne Hathaway conduz sua personagem de acordo com a essência do livro — sua Emma é o grande centro do filme, já que é a grande representação feminina tão adorada pela cineasta Lone Scherfig que tem a preferência por personagens fortes, mulheres frágeis, mas com atitudes próprias. Porém, inevitavelmente, o charme desta película é um nome somente: Jim Sturgess. Surpreendente a atuação deste ator que já contribuiu com filmes de grande apelo do público — “A Outra” ou o musical beatlemaníaco “Across the universe” são exemplos de suas atuações notáveis. Sturgess empresta aqui uma atuação convidativa não só ao público feminino, instiga o espectador diante de um personagem que vai do imaturo adolescente ao quarentão centrado. A expressiva química dele com Hathaway faz com que o filme torne-se melhor, atenua as fragilidades, pois os dois demonstram uma segurança evidente em cenas que vão do leve humor ao melodrama. Muito do romantismo deste filme concentra-se mais nos diálogos desses dois personagens, talvez por isso pouca gente tenha se identificado, já que esperava um apelo mais carnal ou mesmo seqüências de envolvimentos afetivos tão comuns em filmes de mesma abordagem. E não adianta comparar ao livro, obviamente quem leu vai se sentir incomodado, já que o roteiro evita maiores detalhamentos das vivências íntimas dos personagens, numa clara síntese dos fatos, caso que ocorre com diversas adaptações para o cinema. O livro é extremamente mais rico que o filme, mas é bom não tecer comparações, pois prejudica na apreciação da fita.
E se Hathaway se despe de uma caracterização mais sensual, já que sua Emma é uma inglesa contida, não propensa ao sexo — por sinal, a atriz foi criticada, muitos atribuíram sua apatia em alguns momentos na tela por conta de forçar um sotaque que não é natural —, Sturgess eleva um tom mais malicioso de acordo com a personalidade do mulherengo Dexter que é o típico homem levado pelos instintos carnais, mas que depois tem o sentimento despertado pela amiga presente. Sob as atuações dos dois, encontra-se a melódica trilha sonora de Rachel Portman que é carregada de uma intenção melancólica, ainda que conceba um tom adocicado à trama que vai do 15 de julho de 1988 até o presente momento. A canção-tema “We had today” transporta bem o tom nostálgico e o verniz romântico que a trama viabiliza. Bem verdade, o segundo ato do filme demonstra um melhor envolvimento problemático e os personagens atingem um melhor grau de emoção, talvez o público venha a se sentir mais confortável com os acontecimentos ali. Pode não ser um grande roteiro que providencie um estudo mais eficaz sobre sentimento, relação de descoberta do sexo e amor amadurecido, mas aqui se encontra um bom representante filme que satisfaz pela proposta típica comédia-romântica-dramática.
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A História Sem Fim
3.8 973 Assista Agoraainda tenho o VHS. HAHA = 2
Amores Imaginários
3.8 1,5KO que fazer quando o amor é o único exercício de desejo humano? O estado de apaixonar-se possibilita inúmeros devaneios, sentidos e delírios totais. Ao amar uma pessoa, o ser humano, imediatamente e sem restrições, idealiza o outro à sua maneira; projeta seus sonhos e anseios no outro como uma forma de suprir toda a sua carência. Quando se ama alguém, entrega-se emocionalmente. E o estado de "platônico" define muito esse sentido, pois o apaixonado passa a ver o seu objeto de paixão como uma figura de extrema beleza e perfeição, fruto de sua imaginação que faz com que o outro seja intocável, fantasia absoluta. Amores Imaginários expressa esse sentido romântico ao conceber a história de amor idealizado: dois amigos inseparáveis, unha e carne, Marie e Francis (Monia Chokri e Xavier Dolan, por sinal diretor e roteirista do filme), vivem de transas furtivas e envolvimentos banais. Ela, a típica sonhadora, romântica, ainda que libertina. Ele, homossexual, à procura de um homem que preencha todas suas lacunas abertas pelas frustrações experimentadas em vida. O casal de amigos conhece Nicolas (Niels Schneider), um jovem de comportamento transgressor, mas de intelectual refinado, robusto e beleza desconcertante. Obviamente, este jovem loiro e de corpo escultural, mexe com os hormônios de ambos. A típica trajetória de desejo/cobiça e anseios libidinais já fora tratada em diversos filmes do gênero, mas aqui encontra uma nova vertente ao usar da beleza imagética, e, do estilo fotográfico aliado à trilha sonora, que proporciona uma vigorosa visão sobre as relações amorosas do mundo atual. Marie e Francis passam a disputar o objeto de beleza Nicolas, ao passo que uma amizade a três fomenta um perigoso relacionamento permeado de ciúme, sentimento e carência.
A sexualidade é forte no filme, pois caracteriza o tesão do casal de amigos pelo desconhecido Nicolas — cachos de anjo, loiro, com um charme que atrai todos os jovens a sua volta, é o centro de idealização. Ao colocar a convivência, a amizade e também a intimidade dele com Marie e Francis, o roteiro exprime a maneira como duas pessoas tendem a viver em função de uma atração. Os inseparáveis amigos passam a fazer de tudo para conquistar, cada um a seu modo próprio, a atenção do galante Nicolas. E o roteiro fomenta essa tensão sexual a todo custo, não inibe as cenas onde o desejo fica evidente — como na seqüência onde Francis se masturba ao sentir o cheiro do corpo do amigo Nicolas na camisa. A construção da figura sexy, hipnótica e sedutora de Nicolas é delineada com teor libidinal, mas fica evidente como ele mexe também com os sentimentos alheios. Marie e Francis apaixonam-se pelo mesmo homem, criam uma dependência afetiva e, inclusive, imaginam ser correspondidos pelo amigo. Existe algo mais doloroso e excitante que a possibilidade de ser correspondido? No jogo do amor, tudo é válido.
Usando-se de uma estética visual incrível, onde inúmeros closes e slow-motion são executados a favor da narrativa perspectiva dos dois amigos — o filme alia-se de cores, tons e texturas de azul, verde e vermelho que ajudam a criar uma atmosfera sensorial dos personagens; reforça a sensualidade e o espírito juvenil de desejo. Xavier Dolan preocupa-se em estabelecer, intercalando no desenvolvimento de sua narrativa, depoimentos de pessoas diversas que simulam uma espécie de documentário dentro do próprio filme. Como se cada um ali dialogasse com o público e também os próprios personagens, abordando situações de desejo, amor e frustrações amorosas. E é justamente esse senso primordial do cerne do roteiro: Como estar preparado para uma desilusão amorosa? Quando se está apaixonado, deve-se preparar-se para essa possibilidade também. Em suma, mostra como o amor platônico inibe até o senso de realidade num mundo tão controverso, afinal o romântico cria sua própria dimensão particular de mundo, abstendo-se da provável rejeição, mas por fim aprende que é preciso acordar para viver. Ora, afinal, amor imaginário não é saudável a ninguém. É importante um amor concreto, mútuo e que garanta retorno.
Este é um filme que pauta muito bem a realidade de paixão, de desejo e de dificuldades enfrentadas pelos apaixonados de plantão. Não só o gay aqui encontra seu medo em expor seu desejo e amor para o outro amigo — afinal, é um tormento muito comum: homem-homossexual que ama o amigo-hetero, mas teme pela dúvida e o receio de ser rejeitado por ele. Ademais, é o retrato de uma mulher que não encontra um amor verdadeiro e teme permanecer sozinha para o resto da vida — Marie representa muito do sexo feminino em sua personalidade. Claramente, Xavier Dolan articula um latente posicionamento sexual que afirma o tom homossexual do filme — gay assumido, ele personifica de maneira tangível as fragilidades e desejos das questões homoafetivas ao lidar com seu personagem Francis. Decerto, é um ator que pulsa em cena, latente, quente. Além de ótimo diretor, é visionário, pois, cuida de seu filme. Recebe o auxílio dos talentos de Monia Chokri que encarna a feminilidade com exatidão e de Niels Schneider que convence como o estereótipo masculino do desejo. Boa sacada ao colocar Francis com estilo de James Dean e Marie com o penteado de Audrey Hepburn para consquistar Nicolas — este com a imponência a lá Michelangelo de David. A trilha sonora é frenética, indispensável à narrativa — há uma versão italiana de “Bang Bang (My Baby Shot Me Down)” e canções de Fever Ray, The Knife, Comet Gain e até “Every Breath You Take” do The Police é cantada aos versos em dada seqüência. Poético, irresistível e realista retrato da juventude que quer apenas amar e ser amada.
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Eu Matei Minha Mãe
3.9 1,3Katuou com bastante polêmica e força emocional quando foi lançado por expor a realidade humana como ela é — a trama dirigida e com roteiro de Xavier Dolan, que também protagoniza sua obra, é um filme expressivo que lida com a conturbada relação familiar. A história do jovem Hubert (Dolan) de 16 anos, homossexual convicto, angustiado com a dificuldade de lidar com sua mãe Chantale (Anne Dorval), inseriu reflexões/discussões em diversos países onde o filme foi lançado. Compreender esse universo familiar, a relação dialogal de ódio extremo e amor confuso, é o foco argumentativo do roteiro que assume contornos narrativos contundentes, até cruéis. Xavier Dolan escreveu o roteiro, baseado em vivências próprias de sua vida íntima, antes mesmo dos 20 anos de idade. Obviamente, o filme funciona como parâmetro para reflexões sobre as relações de jovens com os entes familiares, mas vai além ao colocar maiores problemáticas comportamentais como a diversidade da sexualidade. No filme, Hubert lida com sua puberdade de maneira tumultuada, pois não controla a rebeldia, nem mesmo a harmonia dentro de sua casa, ao se digladiar, constantemente, com sua mãe — como entender a puberdade, sob a ótica materna? E como um jovem não consegue manter um elo de união e cumplicidade com a única pessoa que esteve sempre ao seu lado? Existem maiores traumas, secretos, em torno disso? O filme foca nesse relacionamento histérico de filho com mãe, mas vai além.
A trama é articulada sob as perspectivas do personagem Hubert que assume a narrativa — os habituais "slow-motion" são colocados à favor da narrativa, já que o roteiro é o retrato do que o personagem sente e visualiza. Inúmeras tomadas em câmera lenta demonstram as sensações do protagonista, bem como os recortes na narrativa que aplicam depoimentos dele na câmera; como se Hubert comungasse com o público sobre suas fragilidades, temores e insatisfações em relação a sua mãe. A história toda se centra nessas constantes brigas e agressões de filho com a mãe, totalizando em momentos de grande tensão e alto teor dramático. A câmera centra-se nessa dimensão angustiante ao expressar a dificuldade de diálogo entre filho e mãe; duas pessoas que jamais entram em sintonia, perderam a proximidade. E o roteiro não torna nada maniqueísta, pelo contrário, as situações evidenciam muito bem os discursos de cada um. Entendem-se as dificuldades de Hubert, porém há uma profundidade na personalidade de sua mãe; cada psicológico é bem delineado.
A sexualidade ferve por questões óbvias. Há a homossexualidade notória de Hubert — fica evidente que o jovem tem um alto posicionamento libidinal, um comportamento transgressor, atitude sexualizada. O roteiro não o inibe ao construir cenas de homoafetividade, como quando Hubert aparece em momentos afetivos ou mesmo sexuais com seu namorado Antonin (François Arnaud) — cenas de sodomia, beijos gays e diálogos sensuais bem conceituados demonstram que a temática queer é priorizada aqui. A sensualidade é bem dosada dentro dessas sequências. Ademais, Xavier Dolan explora também questões que envolvem esse universo sexual, insere situações pequenas sobre traição — Hubert é mandando ao colégio interno pela mãe opressora e lá tem sua fidelidade testada ao ser seduzido por outro garoto. O espaço para a discussão sobre homofobia é também utilizada, além de todo o filme funcionar como um discurso sobre identidade homossexual; a busca pela auto-aceitação perante uma sociedade ainda preconceituosa. Há ainda pautado a dificuldade de um filho assumir sua opção sexual para sua mãe, e essa questão é bem pontuada ao longo do filme.
A caracterização das cores — a fotografia é um recurso imagético sempre priorizado por Xavier Dolan — é papel fundamental no desenvolvimento da narrativa. As cores avermelhadas, tons escuros de neon, toda a técnica das luzes em torno dos atores, fecunda um trabalho ainda mais luminoso. Os diálogos assumem força em momentos onde o elenco improvisa e expressa um tom ainda mais naturalizado, é como se a realidade ali fosse tangível. Esse é o papel fundamental da arte cinematográfica, convencer de que aquilo é uma realidade. Como fez no seu segundo filme, "Amores Imaginários", Xavier Dolan utiliza de sua escrita para fomentar momentos onde pode brilhar como ator — e é neste seu primeiro trabalho aqui que se pode observar como é talentoso, emocional e agressivo na interpretação. Suas cenas de ironia, acidez e malícia comprovam o quão promissor é. Os duelos verbais dele com a atriz Anne Dorval são provocativos, eufóricos e de grande intensidade histérica. O cuidado com a direção de arte e com a montagem é evidente também, assume um estilo próprio de Dolan como novo expoente da cinegrafia atual. Mais que um exercício dramático realista da existencialidade da juventude, é um filme que sensibiliza pelo tom sentimentalista. Belo début, ousado e trabalho inspirador.
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Três Formas de Amar
3.8 272 Assista AgoraQual barreira define a relação de amizade com o desejo? Grande ícone da década de 1990, Três formas de amar, captou muito bem o caráter comportamental da juventude sexual, típico retrato da "geração x", jovens que romperam com os padrões conservadores e rigores de uma sociedade falsa puritana. Inúmeros filmes percorreram a espinha dorsal sobre a linha tênue de uma amizade que beira à dimensão sexual — Os Sonhadores de Bernardo Bertolucci; Amores Imaginários de Xavier Dolan ou mesmo Canções de Amor de Christophe Honoré souberam expor esse condicionamento: Afinal, existe amizade firmada com o sexo livre? Existe harmonia na amizade colorida? O diretor e também roteirista Andrew Fleming executou aqui um trabalho menos poético, como as obras citadas, por tratar de temas mais realistas, próximos e com certa urgência/objetividade. Ao invés de manter um verniz mais poético no seu texto, preferiu externar um conteúdo que centraliza mais o teor libidinal e muita malícia de um triângulo amoroso que se mistura em sentimentos controversos diante da sexualidade que explode. A trama foca em três jovens que têm que dividir um mesmo módulo dormitório universitário. A desinibida hiperativa Alex (Lara Flynn Boyle), o intelectual gay e tímido Eddy (Josh Charles) e o pervertido Stuart (Stephen Baldwin). Tão sensual, o filme até hoje é referência por ter desnudado questões sobre descobertas sexuais da juventude; desilusões amorosas e tornado evidente a discussão sobre a diversidade sexual.
O filme mostra esse inusitado triângulo amoroso onde a energia sexual se estabelece — Alex tem interesse em Eddy que não esconde sua libido por Stuart que, por sua vez, quer transar com Alex. A problemática sobre sexualidade é formada, e o diretor não esconde que a articulação de seu texto é justamente nesse condicionamento apontado. Ainda que com leve humor e rápida duração de projeção, o filme cria uma atmosfera de intimidade entre esses três personagens que, tão rapidamente, exibem suas questões pessoais relacionadas ao sexo, à amizade e ao sentimento. O ritmo ágil, os diálogos contextualizados com a juventude daquela época, e a trama em si expõem a testosterona dos dois personagens masculinos Eddy e Stuart, além de evidenciar a feminilidade de Alex — o tom malicioso destes três evidencia a propensão ao sexo. O triângulo amoroso lida com a relação íntima e também prejudicial que se acentua, no círculo viciante que se estabelece entre eles — pode uma amizade ser sustentada com a presença constante da libido?
Repleto de momentos de erotismo sutil, o filme explora a exímia libertinagem que os três se condicionam — a famosa sequência onde Alex tem um orgasmo ao ouvir Eddy recitando trechos de um livro é marcante; mostra bem a intenção maliciosa de Andrew Fleming brincar com seus personagens que servem como símbolos-fetiches humanos. E quando o clima esquenta e o envolvimento do trio passa a fomentar um sentido mais libidinal é que o filme indaga suas questões: Como uma mulher (Alex) pode lidar com seu interesse sexual por um homem gay (Eddy)?. A típica frustração de um homem (Eddy) ter tesão pelo amigo (Stuart) e não ser correspondido; a dificuldade dos relacionamentos a três que tanto provocam, e também estimulam, a turbulência de sentimentos conflitantes e apreço pelo ciúme. Não há rótulos, apenas desejos de cada um ali, todos os três em suas formas de amar o outro. Ainda que não explícita, a cena mais polêmica, quando o trio se permite à luxúria a três, ménage à trois, expressa uma sensualidade que é bem cuidada, nada vulgar.
Ao inserir a homossexualidade como ponto central de sua discussão — através do personagem Eddy em meio aos seus desejos e inseguranças de sua opção sexual — o diretor não esconde sua intenção: quer pautar, sem moralismo e julgamentos, os tons comportamentais de gays em seus caminhos de auto-aceitação. Como entendê-los? Por que são enrustidos? Há um olhar sem preconceito nesse sentido. Ademais, é um filme que representa bem a juventude pós anos 80, com seus discursos partidários de uma sexualidade mais livre, em busca de respeito e também satisfação. A direção firme de Andrew Fleming consegue criar uma alta química do seu elenco — Lara Flynn Boyle é o grande destaque como uma mulher vulnerável, sentimentalista, ainda que propensa ao sexo livre. A atriz tem uma forte presença em cena de acordo com a hiperativa personalidade de sua personagem. Josh Charles sabe representar o típico gay que tenta atenuar seus desejos por homens, e sofre por ser assediado pelo sexo feminino. E Stephen Baldwin exibe-se com o corporal sedutor, a masculinidade sexual, contornando também os momentos de humor do filme já que personifica um compulsivo-faminto-por-mulheres. O trio de atores está bem à vontade, principalmente nas cenas de nudez ou simulação de sexo/sensualidade. A trilha sonora de Thomas Newman é discreta, mas exibe acordes onde a sexualidade é mais nítida em cena. A overdose de músicas pop de New Order, Teenage FanClub, U2, Tears for fears, Duran Duran e Bruan Ferry são executadas como alicerce e sustento emotivo dessa juventude que só busca amar, transar e se divertir sem maiores compromissos.
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Contra Corrente
4.0 408A dolorosa realidade, o tormento de não poder expressar os sentimentos verdadeiros, o desejo que deve ser ocultado diante de uma sociedade que julga. Como lidar com uma vida firmada nas aparências, onde as vontades são substituídas por máscaras — afinal, ainda há preconceito social perante aos homossexuais, algo que ainda perdura e prevalece no terreno humano. Sob essa perspectiva, em Contra Corrente, o diretor Javier Fuentes-León, conduz sua delicada e sensível abordagem dentro de uma vila de pescadores no Peru. É lá, dentro deste meio rígido de tradições culturais e costumes que beiram ao conservadorismo, que se encontra Miguel (Cristian Mercado), à espera de seu primeiro filho, num casamento acomodado com Mariela (Tatiana Astengo). Secretamente, às escondidas de todos, o pescador mantém um tórrido caso de amor com um pintor forasteiro que se muda para o vilarejo, Santiago (Manolo Cardona). Como manter esse caso secreto, ainda que aceso, diante de uma paixão que teima não se calar? O que parecia um filme que explora um caso sexual de um homem com outro, em meio ao medo de ser descoberto por todos, ganha uma nova visão quando o elemento sobrenatural é inserido na trama — um grave acidente mata Santiago no mar. É então que Miguel, constantemente, passa a receber o espírito do seu amante Santiago que, de alguma maneira, não consegue se libertar do plano terreno.
O filme centraliza sua narrativa, inicialmente, no envolvimento amoroso-sexual de Miguel com seu amante Santiago — a disposição homoafetiva é bem delineada logo no início do filme, pois coloca o casal em constantes encontros casuais, como forma de apresentar o quão passional e intenso é essa relação. O diretor Fuentes Léon questiona a maneira como existe a dificuldade de um homem se aceitar, sexual e plenamente como é. Miguel é o indivíduo que vive um casamento de aparência; não consegue se livrar dos condicionamentos padrões de uma sociedade que costuma "punir" e não enxerga com bons olhos a relação de alguém com outro do mesmo sexo. Ainda mais numa vila de pescadores, como deixa claro o roteiro, onde o preconceito existe e não só os personagens masculinos — como as mulheres também — exibem-se em suas indisposições à homossexualidade. Após a morte por afogamento de Santiago, o filme exerce um tom mais romântico, e até lúdico, pois foca numa relação homoafetiva despropositada de estereótipos, quando os dois passam a conviver de maneira mais livre — já que Santiago é um espírito e não pode ser visto por ninguém.
A forte presença sexual dos dois atores em cena permite uma atmosfera sensual, mas o filme é, em seu objetivo central, uma trama de amor homossexual. Cristian Mercado eleva com precisão a sua confusão em não saber lidar com os ímpetos do desejo por outro homem, bem como em ver seus anseios enrustidos diante de uma sociedade que retrai tudo que ele quer ser. Há uma química bem convincente de Mercado com Manolo Cardona — evidente nas cenas de nudez; na sequência de sexo ou nos beijos afetivos. Por mais que o diretor invista nos momentos homoafetivos, na crescente ebulição carnal dos personagens, o filme não esconde seu verniz romântico — é uma trama que busca entender os caminhos tortuosos de dois homens que apenas querem se amar, sem esconder seus sentimentos. Não há erotismo barato, mas sim um roteiro que prioriza as essências de cada personagem, é tudo muito bem explorado. A atriz Tatiana Astengo também se destaca, pela força emotiva de sua personagem, como Mariela, que representa a mulher que tem que lidar com as descobertas da sexualidade do marido.
A força dos diálogos que propõe a reflexão sobre os sentidos humanos; das escolhas diante das opções sexuais e da necessidade de priorizar o sentimento — são pontuados pelos personagens. Mais ainda por Santiago, já que ele provoca, não só sexualmente, a necessidade em Miguel saber lidar com suas escolhas e reconhecer seus próprios sentidos. Saber o que deseja, conhecer o amor, escolher seu destino — jamais viver enrustido! O diretor valoriza esses sensos. A cena onde os dois amantes dialogam, na entrada de uma caverna na praia, para logo depois transarem na areia, é cuidadosa, de extrema beleza emocional. A transparência de sentimentos é priorizada neste filme, Javier Fuentes-León não esconde que lida com seus personagens com um olhar mais intimista, talvez por isso o filme seja construído com inúmeros closes-up que aproximam Miguel e Santiago do público. A fotografia exibe tons ensolarados que privilegia a exuberância da beleza natural da costa peruana onde as cenas foram rodadas. Boa trilha sonora também de Selma Mutal Vermeulen. Premiado em importantes festivais de cinema — ganhou o prêmio popular em Sundance —, inclusive o de Melhor Longa no "18º Festival Mix Brasil de Cinema da Diversidade Sexual" em São Paulo, é um trabalho atual representativo que deve ser apreciado.
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A Princesa e o Plebeu
4.3 417 Assista AgoraNão existe uma vida satisfatória se há a ausência do prazer. Viver para amar, saborear as pequenas verdades do destino, de acordo com as vontades íntimas. Sem o prazer, o ser humano imerge numa jornada sem esperança, permanente na tristeza, na completa desilusão persistente. Sem prazer, não há gozo em vida. Sem vida, não existe o orgasmo vital. Filme que deu o primeiro e único Oscar de Melhor Atriz a Audrey Hepburn, com então 24 anos de idade, A Princesa e O Plebeu é um marco clássico de doçura, sentimental e romantismo. Dirigido por William Wyler, a produção exerceu um enorme sucesso em Hollywood na década de 1950. A entediada princesa Ann (Audrey Hepburn) está cansada de sua vida formal, repleta de compromissos e deveres sociais da realeza. Seu sonho é ter uma vida "normal", sem a rotina parlamentar que tanto condiciona sua vida e aprisiona seus sonhos juvenis. Após uma crise nervosa, Ann resolve burlar a segurança do palácio que habita e fugir, disposta a viver anonimamente nas ruas de Roma, sem se preocupar mais com nada que remeta à sua realidade de princesa. E, sob essa disposição, que o filme encontra seu melhor argumento: nas ruas romanas, o jornalista Joe Bradley (Gregory Peck), se esbarra, por acaso, com a única pessoa que conceberá a oportunidade única para sua profissão. Contudo, o que parecia apenas um "furo jornalístico", torna-se um envolvimento, quando Joe sente-se atraído pela misteriosa jovem que foge de sua vida de princesa.
Fundamentado na estrutura de uma história de amor, é óbvio que o roteiro tenta ao máximo articular a intimidade — e a atração, sentimento e admiração mútua — de Ann com Joe. Sob a estonteante beleza da cidade romana, bem mais de acordo com o título original do filme, o filme percorre as ânsias da princesa que não consegue se adequar a sua vida artificial, por isso busca na sua oposta realidade social, um conforto de espírito e prazer incondicional. Enquanto Ann sente-se como uma “garota da plebe”, sem preocupações e compromissos, busca vivenciar os pequenos prazeres que só uma vida comum pode oferecer: tomar um sorvete, dormir até tarde de pijamas, andar pelas ruas sem ser notada, não ter ninguém para regular seus passos. Em contrapartida, Joe Bradley torna-se seu companheiro nessa empreitada, inicialmente disposto a aproveitar-se da situação para sugar o seu objeto de reportagem, mas que se arrepende ao converter seu senso de oportunista num sentimento que nem ele previa.
A sexualidade sutil de William Wyler consegue ser expressiva, ainda que sob o verniz levemente adocicado e leve do filme. A aparência virginal de Ann, sua beleza delicada e carisma juvenil de mulher feminista que não se condiciona ao papel de mulher submissa imposto pela sociedade, tudo traz à tona os valores de uma sexualidade que necessita ser imposta. Audrey Hepburn figura seu talento em cena, em momentos que sua personagem sente-se atraída pelo novo amigo Joe — este, um homem confuso pela atração que sente pela princesa e a indecisão de usá-la ou não para seus propósitos profissionais. Bem verdade, Gregory Peck utiliza-se da posição máscula interpretativa que convence; há uma química gostosa dele com Hepburn que são reforçados em diálogos carinhosos à medida que seus personagens aproximam-se mais. Há cenas que evidenciam a tensão sexual entre os dois, mas, assim como os beijos rápidos, evitam externar uma malícia muito concentrada, afinal nada era "carregado" nos moldes do cinema clássico — troca de olhares de Ann com Joe; a intimidade crescente ou mesmo a breve sequência de Ann de toalha, após sair do banho, promovem a sensação de desejo carnal na narrativa. Interessante que, em tão pouco tempo, os dois vivem algo deveras intenso, fica evidente o quão passionais são. Em particular, a sequência do primeiro beijo de Ann com Joe, os corpos molhados, após um banho no rio, é a prova da magia da sedução clássica cinematográfica; eis a chama romântica atemporal deste filme.
E há possibilidade de amor entre duas pessoas de vidas tão opostas? O que fazer para o destino compreender e favorecer a união de classes tão antagônicas? O roteiro garante essas reflexões. A sintonia de Gregory Peck e Audrey Hepburn é bem auxiliada por uma fotografia que compreende a necessidade de intimidade dos dois personagens, em função disso o filme funcione melhor em closes diretos nas faces dos atores, como forma de captar a áurea romântica que a fita transparece, incessantemente. Quase 60 anos de lançamento, ainda permanece intacto por mostrar bem a necessidade do indivíduo encontrar-se em seus objetivos de vida e, acima de tudo, buscar o prazer como forma de existir plenamente como ser humano. Audrey Hepburn garante uma presença luminosa aqui, sem os vícios teatrais tão habituais na caracterização interpretativa daquele tempo. Suas cenas afetuosas com Gregory Peck reforçam o tom delicado e sensível da película, decerto um dos casais mais bonitos de se ver na tela, ainda mais sob os pontos turísticos de Roma. O final realista é prova de que a vida é um aprendizado, e que mesmo o amor não é capaz de mudar tudo, a não ser nós mesmos.
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A Pele
3.6 264Somos atraídos por aquilo que desconhecemos. Às vezes, o que se fundamenta como mistério nos causa interesse, vontades, desejos ocultos. O ser humano é atraído pelo desconhecido, o que pode ser chamado de proibido, já que é mais gostoso. O doce sabor, a idéia em si, do mistério exerce um fascínio dentro das pessoas. Há indivíduos que precisa desse sentido para poder modificar sua vida, de alguma forma, visto que provoca um prazer a mais. A Pele utiliza-se de personagens reais para fundamentar uma trama irreal. O filme, dirigido por Steven Shainberg, mostra a vida de Diane Arbus (Nicole Kidman), fotógrafa expoente no terreno americano da década de 1950 por retratar o universo "bizarro e incomum"; pessoas consideradas à margem da sociedade eram objetos de seu trabalho. Diane ficou conhecida por trazer à tona uma sociedade sem máscaras, com seus vícios, dores e amarguras físicas — e também emocionais. Tudo que fotografava exercia um fascínio, inclusive a artista era vista como libertária e exemplo representativo de mulher que quebrou os tabus na esfera da fotografia. Este filme recria e ficciona o universo da artista. Aqui vemos Diane casada com o fotógrafo publicitário Allan Arbus (Ty Burell), num casamento formal, repleto de insegurança, sob os padrões do conservadorismo daquela época. Ela auxilia o marido cuidando da produção e dos figurinos, é mãe de duas filhas — a sua vida entediada firmada na tristeza, na rotina de dona-de-casa, se transforma quando conhece o misterioso vizinho; Lionel Sweeney (Robert Downey Jr.), um homem que sofre de uma doença rara: portador de tricotomia, uma disfunção caracterizada pelo excesso de pêlos em todo o corpo; impossibilitando de alguém enxergar suas feições. A gradual curiosidade de um para o outro é alimentada pela atração, a paixão que os acomete, inesperadamente. Eis que surge um jogo de sedução onde mistérios são articulados, e é justamente esse senso que o filme percorre.
O excêntrico roteiro condiciona essa forte atração sexual dos dois. De um lado, Diane, a reprimida mulher conformada numa vida sem maiores expectativas. Do outro, Lionel, o misterioso vizinho que se esconde da sociedade por ter o corpo oculto por conta de tantos pelos. Cria-se uma amizade intensa, um magnetismo, um tesão absurdo que nunca é atenuado pela roteirista — ainda que o "homem peludo" providencie um estranhamento, diante de sua incerta natureza humana, há uma cumplicidade perceptível à Diane. A típica relação "A Bela e A Fera", no qual a jovem se apaixona por um ser transfigurado, porém de coração brando. O filme articula esse envolvimento, aparente fraterno, entre ambos, mas de relação sexualizada, que assume uma dependência de um para o outro. Ademais, mostra também a insegurança de Allan, o esposo de Diane, que tem sua virilidade posta em dúvida ao ver sua amada interessada pelo vizinho.
Diálogos ditos, trocas de olhares e a maneira como nasce — e também se fundamenta — o interesse de Diane para com o "homem peludo" demonstra que existe algo que vai além do físico, visto que ela não sente-se atraída, inicialmente, pelos atributos de seu corpo. Diane enxerga ali um homem que eleva sua feminilidade, que potencializa sua criatividade e expande seus horizontes. Eis a dona-de-casa que aprende que a vida pode ser mais vívida; com escolhas e posições — Lionel apresenta um novo "mundo", com mais prazer, sensibilidade. Nicole Kidman sabe muito bem personificar uma mulher que vai da introspecção aos delírios da carne. Exibe seu corpo, seu tom de voz e olhares quando quer posicionar uma libido feminina em cena — particularmente, nas cenas onde é crescente seu interesse, e também disposição, ao misterioso-másculo-vizinho, interpretado com urgência de sedução por Robert Downey Jr. Os dois atores experimentam a saborosa libido, o aprendizado-existencial, o sentimento que une seus personagens estranhos. Atuações concentradas, cuidadosas.
O grande trunfo do filme é mostrar a relação bizarra e incomum de duas pessoas de universos tão distintos, mas unidas. A estranha doença de Lionel é apenas uma metáfora para mostrar como o ser humano enfrenta preconceitos e estigmas ao ser colocado à margem por conta de uma "deformação" — Diane é a única que enxerga, por trás do monte de pelos no corpo, um homem frágil e de personalidade rara. Através dele, ela encontra-se no seu próprio mundo feminino. Descobre-se mulher, aprende que a beleza é um conceito relativo e leva isso para suas fotografias, captando um “mundo peculiar” nunca mostrado antes. E esta é a grande lição deste belo trabalho cinematográfico: a beleza pode vir, sim, do que é considerado “anormal” ou “destoante”.
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Amor e Inocência
4.0 726Talvez, Jane Austen tenha sido a escritora mais sentimentalista que mais se aproximou da alma feminina. Escritora admirada, principalmente, no terreno inglês onde crescera, seus romances são, até hoje, expressões de uma sociedade que colocava o amor à frente do tempo; e onde também as diferenças sociais e o conservadorismo sustentavam as teias relacionais de homem e mulher. Em seus livros, a escritora desnudava, com profundidade, os sentires, anseios e também os sonhos das mulheres inocentes daquele tempo, com suas fragilidades bem contornadas. Amor e Inocência ficciona a biografia da escritora nos anos de 1795, quando Jane Austen (Anne Hathaway) era uma jovem sonhadora, frágil e de personalidade forte. Nesse período, sob o teto rigoroso dos pais, ela se apaixona pelo atraente, arrogante e pobre irlandês advogado Tom Lefroy (James McAvoy) — obviamente, é com esse senso romântico e relação carnal de desejo dos dois, que se compreende como a escritora se inspirou para escrever sua obra mais famosa, “Orgulho e Preconceito”, através de suas próprias experiências afetivas. É o amor tornando a inspiração um elemento do coração, sempre!
Como manter o desejo e o sentimento com esperança diante de tamanha opressão familiar? E é possível se desvencilhar do preconceito social? Jane reluta, não aceita o casamento por conveniência, nem a pressão de casar por dinheiro, visto que é uma mulher passional que prefere sugar o amor como forma de combustão existencial. Inicia-se, aí, uma aproximação — as vivências pessoais da jovem escritora, que no filme mesmo é demonstrado, são transportadas para seus escritos. Jane escreve suas personagens de acordo com o que vive, porém em suas obras as heroínas parecem predestinadas a finais mais felizes, visto que sua realidade sentimental é permeada de dificuldades. O roteiro foca justamente nessa iniciação da jovem no desenvolvimento de sua escrita de acordo com a experimentação da paixão.
Por ser baseado em cartas de Jane Austen, antes mesmo de ser a famosa escritora, o filme percorre a relação de desejo, aproximação sentimental e intimidade dela com Tom Lefroy — por sinal, fica subtendido, através dele, que ela criou o seu personagem masculino mais famoso, Mr Darcy de “Orgulho e Preconceito”. E é nesse sentido que a película dirigida por Julian Jarrod prefere centralizar: na tensão amorosa do casal. O que fazer para viver essa paixão que parece avassaladora? De onde vem forças para não desistir dos empecilhos do destino e da sociedade que parece ir contra? Apaixonados, passionais, o jovem casal não esconde a vontade de lutar por um amor que parece esquecer as regras de uma sociedade que pune quem ama livremente, pois acredita que o que mais importa é o casamento firmado nos laços financeiros e nos padrões de status tão habituais naquele período. Jane e Tom querem se casar por amor e, assim, ofendem, indubitavelmente, a razão e sensibilidade da época.
O mais gostoso no roteiro é que ele acentua a personalidade fora dos padrões de Jane que se opõe às mulheres que apenas acatavam viver sob o comando masculino, numa vida de submissão, sem maiores prazeres ou pretensões. O típico charme narrativo inglês, a fotografia cuidadosa, a direção de arte ou mesmo a bela trilha sonora de Adrian Johnston são auxílios para montar a emulação de amor clássico. A química de Anne Hathaway com James McAvoy, decerto, eleva a potência romântica do filme, visto que os atores concentram suas energias interpretativas em olhares demorados e diálogos apaixonados; acentuando o teor carismático e adocicado do filme. Não existe uma preocupação em delinear as cenas dos dois com direcionamentos sexuais, transas ou apelos carnais. Porém, a força do sentimento provém desses diálogos sensíveis ou mesmo da angústia caracterizada pela personagem de Jane ao perceber que, para amar, precisa enfrentar não só barreiras impostas pela sociedade, mas as próprias limitações de seu interior. Ademais, bem pontuada também a posição de inicial arrogante a apaixonado de Tom Lefroy. E o senso de “romance impossível” torna essa obra interessante, ainda mais quando os conflitos são apresentados e o casal demonstra o gradual desespero para permanecerem juntos. “Às vezes, o amor é uma flor tímida que leva tempo a desabrochar” — porém, quando isso acontece, deve-se viver tudo de uma só vez. Afinal, não existe sentido mais precioso na vida que isso...
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Bruna Surfistinha
2.9 3,0K Assista AgoraÉ possível alguém apenas querer viver do lucro que seu corpo possibilita? O que motiva uma mulher a optar por esse “caminho de vida fácil”? Compreensível que o filme Bruna Surfistinha, baseado no livro O Doce Veneno do Escorpião, tivesse o mesmo sucesso exorbitante. A história já é conhecida por todos, não é segredo algum. Marcus Baldini aqui estreia na direção, demonstrando claramente sua intenção: tornar nítido a sexualidade dessa figura que causou tanta atração na sociedade — querendo ou não, até para os puritanos-de-plantão, Rachel Pacheco, nome de batismo, conseguiu usar da mídia para provocar/direcionar os refletores para sua decisão de vida. E conseguiu deixar todo mundo interessado. Tornou-se prostituta porque quis. Escolheu ganhar dinheiro através do sexo por vontade própria. Tornou-se a Bruna Surfistinha famosa. Novidade o argumento não é, existem tantas histórias semelhantes, reais e ficcionais, a grande sacada em questão é uma: nenhuma outra prostituta havia usado de um blog para mostrar com detalhes suas experiências sexuais; seus fetiches, seus desejos, seus programas tão expostos. E é exatamente esse sentido que o filme decide tornar explícito. Sem se preocupar muito em aprofundar as motivações psicológicas e motivacionais, a película apenas retrata a decisão da garota que abandona uma vida de classe-média para emergir no mundo da prostituição, do limbo ao topo.
O longa não detalha muito da vida familiar de Rachel Pacheco, apenas preocupa-se em contornar sua mudança para Bruna Surfistinha — da quase tímida-virginal, introspectiva e inocente do começo, à posição catártica de determinismo e fulgor libidinal ao fim. É interessante a maneira como o roteiro peca por não explorar as motivações da personagem-real — por que uma moça procura se prostituir apenas para “não querer depender de ninguém”? -, porém, consegue instigar por mostrar a dualidade e processo de transformação de uma garota que, inicialmente, demonstrava apatia, desconforyo e insegurança no sexo, mas que depois explode como um furacão sexual, repleta de malícia e determinação. O filme experimenta a trajetória de Bruna que, com seus 18 anos de idade, vivencia a natureza da prostituição por livre-arbítrio.
A ousadia da direção de Marcus Baldini apenas foca nas inúmeras transas sexuais da prostituta — ainda que não seja explícito, o sexo é muito bem fundamentado na trama, porém menos agressivo/cru que no livro que fora adaptado. O resultado são sequências de cenas de sexo oral, sodomia e simulações de penetração que são intercaladas com a narrativa em off da protagonista. A segurança da direção não vulgariza, mas as cenas atingem boa sensualidade e são fortes. De trajetória publicitária, Baldini acentua sua segurança no visual ao articular mais a provocação libidinal nas imagens do que nos diálogos. Relevante a cena do primeiro programa feito por Bruna no bordel, onde a câmera foca apenas no seu rosto e, ao fundo, seu primeiro cliente, interpretado por Cássio Gabus Mendes, executa sua penetração anal selvagem sem muita afetividade — a cena mostra bem o desconforto da mulher que, dali pra frente, teria toda sua vida modificada por conta de sua decisão. Sem levantar uma bandeira de que a prostituição é algo pecaminoso ou prejudicial, ainda assim o filme mostra que é uma vida que conserva inúmeras dificuldades, percalços.
A interpretação concentrada de Deborah Secco é capaz de humanizar, torna tudo envolvente. A atriz sabe muito bem explorar suas nuances ao personificar a inocência e fragilidade do primeiro ato do filme, bem como ao elevar a sensualidade que sua personagem pede. Secco empresta seu corpo, sua voz e malícia até com o olhar — há uma entrega total, principalmente, nas cenas que são impregnadas de sexo, muitas por sinal, que o filme procura explicitar. Há nudez frontal e de diversos ângulos, apelo sensual e boa condução interpretativa nos momentos de transas sexuais. Ainda que não seja forte o erotismo, convence! E o tom emocional torna-se evidente quando Bruna passa a viciar-se em drogas, a cocaína — é quando a atriz se mostra ainda mais competente com os momentos de sofrimento e auto-flagelação. A ótima trilha sonora de Tejo Damasceno e André Lucarelli é sensual, ágil e ajuda na narrativa orgástica da protagonista. Contudo, ainda que explícita sexualmente na mídia, Bruna ainda é um mistério. E pelo filme, jamais dá pra entender o porquê de uma garota, que poderia ter tudo, não se ajustar tanto a sua vida comum a ponto de se realizar na prostituição. É perceptível que houvesse o gosto pelo sexo, o prazer, a satisfação em ser garota de programa. Talvez, até fosse ninfomaníaca. Porém, o roteiro não dá margem a maiores discussões sobre isso. Apenas mostra uma mulher que queria quebrar as amarras do tradicionalismo, viver sem preconceitos, no gosto pela liberdade e libertinagem sexual...
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Sabrina
4.1 332 Assista AgoraSentimentalismo é afrodisíaco. Talvez por isso seja tão prazeroso experimentar ou conviver com pessoas que são propensas ao romantismo — para quem duvida, não existe nada mais gostoso que o desejo aliado do sentimento. Nada mais excitante que as descobertas do sentimento, das buscas pela paixão que tanto mexe com os ímpetos humanos, ou mesmo as sensações vivenciadas pelo coração do apaixonado. Nada melhor que desejar alguém que se ama. Audrey Hepburn foi uma bela representante da mulher que ama. Suas interpretações no cinema comprovaram o quão sentimentalista era, seus personagens mantêm essa aura romântica, a sensibilidade feminina que jamais seca, pois é imortal. Sabrina, filme dirigido por Billy Wilder, sob roteiro baseado na adaptação famosa de Samuel A. Taylor, é uma produção que reflete bem essa disposição “amorosa” da atriz quanto à personificação. Audrey é a personagem-título, uma jovem pobre, sonhadora, filha do chofer de uma importante e bilionária família de Nova York. Sabrina cresceu no meio dessa família de poder, riqueza e muitas festas. Desde pequena, apaixonada por um dos filhos da família Larrabee, David (William Holden), que nem a percebe — como ser notada por alguém que parece só enxergar a condição social? O que fazer para conquistar o homem dos sonhos? Quando a jovem parte para Paris, e retorna dois anos depois, é que o destino traça novos contornos. Sabrina volta com atitude, charme, sofisticada e com muito glamour. É então que não só David, mas também seu oposto irmão, Linus (Humphrey Bogart), tratam de conquistar o coração da graciosa mulher.
A grande tensão no filme é justamente na questão do desejo e sentimento vivenciado pela personagem. Sabrina nutre uma admiração, quase um tesão incondicional, pelo rapaz que sempre sonhou, desde pequena — é a típica história romântica da mulher que não esquece o primeiro amor, por não consegue conquistá-lo, nem mesmo dar voz ao seu sentimento. O filme coloca a dimensão dessa paixão forte vivenciada pela moça que até tenta se matar por conta de não conseguir expressar seus desejos a um homem de condição oposta, típica situação da rejeição tão comum entre adolescentes. Após voltar de Paris, Sabrina torna-se o centro de disputa e desejo não só de David, mas pelo irmão mais velho Linus, que não esconde suas intenções maliciosas e afetivas por ela.
A questão do desejo e do sentimento são traços que causam confusões na trama: em dado momento, indaga-se se os dois irmãos nutrem algum sentimento real por Sabrina ou apenas a beleza dela, a feminilidade que fomenta o desejo, é capaz de atrair os dois sujeitos. E existe também uma indisposição frequente que acomete e fragiliza a personagem principal: Sabrina passa a duvidar do que sentia por David quando seus sentidos são direcionados mais à companhia de Linus. O filme evidencia esse triângulo, com muito charme, romance e diálogos melosos que tanto dignificaram a obra de Billy Wilder, que hoje é sinônimo de delicadeza cinematográfica. Interessante que o roteiro coloca a relação de Sabrina com David como sendo mais carnal, de acordo com o posicionamento comportamental do personagem bem interpretado por William Holden — seu David é paquerador, mulherengo, imaturo e machista. Já Humphrey Bogart personifica um Linus mais carinhoso, cavalheiro, sério, que estabelece as cenas de gentilezas mais amorosas com Audrey Hepburn. Qual caminho Sabrina tomará? Qual dos dois homens ferve e aquecerá seu coração carente?
Sem ter envelhecido, a fita ainda mantém o senso charmoso e tão romântico que é abordagem necessária a todos. Audrey Hepburn, com seu talento tão preciso e incontestável, aqui neste filme consegue ser ainda mais graciosa — e até sensual, como na cena em que sua Sabrina lava o carro do pai de shortinho ou quando ela empresta sua voz nervosa às frases passionais de sua personagem apaixonada, que não vive sem a paixão. A dupla Bogart e Holden são exemplos de interpretações masculinas de encanto e beleza; ambos concentram todo o desejo em Hepburn. Talvez, o filme fosse mais ousado caso fosse produzido no senso atual, porém ainda não perdeu seu valor após tantos anos de lançamento. Destaque para os tons da fotografia que se auxilia do belo figurino, vencedor do Oscar nessa categoria, e para a trilha sonora que usufrui da música La Vi En Rose como pano de fundo musical para essa inebriante história de amor e sedução clássica. É puro fascínio, altamente recomendável!
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Candy
4.0 601Eis a juventude que parece predestinada ao ócio — ou seria a própria conformidade de não querer nada para vida? A única perspectiva aparente, seja no prazer ou na motivação, relaciona-se à auto-destruição, a possibilidade de caminhos tortuosos, ao excesso de tudo que agride o bom-senso. E o que dizer sobre o vício da droga? Jovens que se aventuram na opção de viver uma realidade paralela proveniente do consumo das drogas; do contato com os entorpecentes que concebem uma falsa ilusão de êxtase, nada mais que efêmero. A realidade é bem mais dolorosa, visto que a dependência acaba por dilacerar qualquer senso de moralidade, de amor próprio, não existe nem mesmo a consciência. Em Candy, nada parece ser belo, nem perfeito, não existe sonhos, a realidade é muito dolorosa. Dan (Heath Ledger) é um poeta, desempregado, apaixonado pela namorada pintora Candice "Candy" (Abbie Cornish). Eufóricos, hiperativos, dinâmicos. O casal vive um tórrido romance, uma sintonia perfeita, fazem sexo todo dia. Porém, o melhor orgasmo é quando se viciam, ainda mais, em heroína e cocaína. A partir desse sentido, o filme, dirigido pelo australiano Neil Armfield, surpreende ao percorrer o entusiasmo inicial a decadência física-emocional de duas pessoas que imergem num destino de grande aflição.
Só existe dois protagonistas nessa obra. Só convêm duas coisas para eles: sexo e drogas. Candy, a moça-título, com seu Dan. Boêmios, imaturos e indisciplinados. O casal explode com a sexualidade em cena. O roteiro aproveita-se da própria combustão dos personagens para acentuar uma perspectiva sensual: compreende-se que o casal tem muito amor, desejo e paixão. Tudo misturado, típicos valores de uma relação idealizada. Acompanha-se os dois em transas constantes, beijos e exploração libidinal que recria o universo íntimo da sexualidade presente. E o diretor aproveita-se para conceber inúmeros takes de beleza fotográfica, diálogos poéticos, tudo narrado pelo personagem Dan em tom de reflexão. Porém, não só de sexo se concentra a narrativa. Acompanha-se também a via-crucis dos amantes quando mergulham mais ainda no vício das drogas. E o tom de inocência transforma-se no inferno total.
Dividido em três capítulos — intitulados de "paraíso", "terra" e "céu" —, cada segmento, mais denso que o outro, explora o uso imoderado das drogas e a degradação do casal que transforma o sonho da felicidade inicial em desespero imoderado. A dependência, o vício incontrolável, a progressão da desarmonia conjugal: torna-se contextos da vida dos amantes. Eles passam a roubar para obter dinheiro para sustentar o uso; a prostituição torna-se uma condição vital para Candy que aceita vender seu corpo ou submete-se a sexo oral em desconhecidos para capitar uns míseros trocados; a triste servidão de duas pessoas por substâncias químicas que, se deveria trazer uma suposta "libertação", tornam-se marionetes do próprio vício. "Quando você pode parar, não quer; quando quer parar, não pode..." — é dito pelo personagem de Geoffrey Rush, o amigo homossexual do casal protagonista, tão viciado quanto eles.
O filme é denso em diversas cenas que externam as degradações psicológicas do casal, ao passo que a tensão torna-se gradual mais e mais. O roteiro funciona como um bom estudo sobre a compulsão juvenil — como segurar o que parece ser sempre imoderado? Para um junkie nada mais importa que não seja uma agulha na veia, isso basta. A enérgica atuação de Heath Ledger se converge na entrega interpretativa de Abbie Cornish — é perceptível a química dos dois em cena, tanto nas sequências sexuais quanto nos momentos de maior direcionamento dramático. Ledger é explorado ao máximo aqui, principalmente nos momentos de maior desespero de seu personagem. Cornish vai do corpo desnudo à transformação comportamental vivida pela sua Candy. A delirante cena de mais de 5 minutos de convulsões, vomitação e calafrios, quando o casal vivencia a intolerável crise de abstinência, é um dos momentos mais hipnóticos deste filme que emoldura a realidade das drogas numa triste história de amor. Como traço fiel ao universo da sexualidade que ferve, é eficiente. Mas, é quanto discurso sobre as mazelas das drogas e dos sonhos juvenis destruídos por esses abalos que este produto cinematográfico torna-se imperecível.
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Disque Butterfield 8
3.5 53 Assista AgoraComo confiar que uma mulher promíscua possa ter sentimentos como qualquer outra pessoa? A grande polêmica colocada em Disque Butterfield 8 é justamente na ironia do destino enfrentado pela protagonista. Gloria Wondrous é uma prostituta de luxo que adquire fama pelo comportamento libidinal e a personalidade forte que condiciona os homens aos seus pés. A mulher que vive de tórridos romances com homens casados, mas que no fundo mantém a consciência pesada por nunca ter conseguido amar alguém de verdade. Vítima de uma traumática experiência ainda na adolescência, a jovem tem que lidar com a relação de conflito com sua mãe bem como com o preconceito de uma sociedade que não tolera uma transgressão tão sexual quanto esta. Quando Gloria apaixona-se por um de seus clientes, o empresário Weston Liggett (Laurence Harvey), é que o filme dirigido por Daniel Mann, baseado no romance de John O'Hara, encontra seu melhor trunfo: como arrepender-se de uma vida firmada em falsas idealizações? O conflito da prostituta que cansa de viver imersa em prazer, sexo com desconhecidos e sustentada por dinheiros/jóias de seus clientes, rende uma trama bastante provocante.
É alarmante a maneira como o filme mostra a sexualidade presente em Gloria e propõe questionamentos morais da época. E é através dessa personagem que todos os outros adquirem contornos, desenvolvem-se. A prostituta mexe com os homens, com a estrutura familiar e percepções de cada um. E isso é muito bem delineado. Ainda que ela se relacione com sexualmente com diversos homens, seu elo de confiança centra-se no seu amigo de infância, Steve Carpenter (Eddie Fisher), pessoa que Gloria mantém uma amizade permeada de sinceridade, amor platônico e muita malícia na intimidade — inclusive, a prostituta causa desconforto e ciúmes na namorada do amigo a ponto da relação dele ser prejudicada por conta de sua presença. A trama procura acentuar esse magnetismo sexual de uma mulher que hipnotiza, conduz e comanda o sexo masculino de acordo com seus anseios. Mas, o tormento é maior para Gloria que acaba tendo que confrontar-se com seus sentimentos quando passa a viver, afetivo e intimamente, com Steve, este um homem casado que ainda tem que esconder da esposa suas traições incessantes. As cenas de romance dos dois, emoldurados pela bela trilha sonora de Bronislau Kaper, fornecem a sedução em cena.
Repleto de diálogos ferinos, intensos e emocionais — obviamente, um filme melodramático —, eis a grande chance de observarmos uma estonteante Elizabeth Taylor que brilha em cena. O Oscar de Melhor Atriz foi merecido a uma interpretação cheia de nuances. A atriz sabe muito bem expor uma feminilidade visceral, toda sedutora e também centrada em seus conflitos psicológicos. A sua personagem oscila o caráter, tem uma certa dualidade presente. Nunca se sabe se ela brinca com os homens ou se é apenas uma mulher libidinal que aprendeu que não pode viver sem amar. E talvez esse seja o elemento mais saboroso: a maneira como ela aprende que precisa ser mais digna, afinal uma vida pautada na promiscuidade e na prostituição torna-se nada mais que um mero sinônimo de fraqueza de alma. E o roteiro não amenizada o lado nada puritano dessa jovem que tem a consciência de sua vida mesquinha, até então sem muitas pretensões de vida, quando ocorre a transformação psicológica por conta de um sentimento que nunca havia descoberto. Ironicamente, a mulher que escolhia uma vida libertina, no vício do sexo e dinheiro fácil, aprende que não existe orgasmo mais intenso que a própria experiência de viver ao lado de um único homem por quem devota um sentimento puro. E é doloroso como o filme, ora eleva a dimensão sensual dessa personagem, ora a coloca em fragmentos por perceber o quão difícil é retomar uma vida que já parece predestinada à perdição. Por fim, é mais uma história de alguém que buscava mais o amor-próprio...
De Repente, Califórnia
4.0 823 Assista AgoraA superficialidade ou mesmo estereotipação do universo homossexual são habituais em diversos discursos cinematográficos da esfera LGBT. O cinema queer opta por escrever linhas narrativas onde homens apenas executem sua libido, reflexo da testosterona irrefreável. As lentes recorrem aos ângulos que traçam tramas onde o sexo parece ser a única preocupação no território gay — mas o que falar da afetividade que é uma característica sempre a ser discutida? O que torna De Repente, Califórnia um filme único é justamente no seu contorno mais visível: a homoafetividade sem nenhuma afetação. Eleito o melhor filme pelo público no Festival Mix Brasil de Cinema da Diversidade Sexual de 2007, a película apenas quer ser natural, pois centraliza a problemática que acaba por ser a mais tenebrosa da humanidade: a dificuldade em viver um amor de verdade, neste caso o romance se restringe ao senso homossexual. Jonah Markowitz dirige e roteiriza sua idealização de “amor impossível” entre dois homens, como poucos filmes já mostraram. A trama oculta todos os clichês comuns de filmes gays, ausenta-se os comportamentos afetados ao colocar o confronto amoroso — e também sexual — de dois homens que apenas sentem-se atraídos.
A exploração afetiva é um critério primordial neste filme. Mas não deixa de ser explorada também a dimensão libidinosa, pois os dois homens envolvem-se nesse senso de atração. Existe a tensão do desejo da carne, existe o afeto íntimo. E Markowitz prefere tratar seus dois amantes como homens-másculos, sem as máscaras de estereótipos que condicionam gays a apenas representações afetadas — aqui vemos gays que praticam esportes habituais ao “universo hetero”, o surf. Aqui há homens que são enérgicos, de comportamento que expressa bem o grau de virilidade. Zach (Trevor Wright) é um garoto que tem que cuidar de uma família problemática. Administra as ausências maternas da irmã Jeanne (Tina Holmes), jovem negligente que prefere priorizar seus casos amorosos a cuidar do filho, e cuida do sobrinho Cody que o enxerga como um pai verdadeiro. Em toda sua vida, sempre se relacionou com garotas, sendo o último namoro ainda bastante marcante. Quando conhece Shaun (Brad Rowe), um escritor que volta para casa dos pais para escrever o próximo livro, é que seu destino sofre a catarse. Ambos tornam-se companheiros de surf, amizade crescente e um envolvimento revelador. Como conter os desejos que uma vida nunca apresentou? A amizade de Zach com Shaun gradua-se numa intimidade que nem mesmo eles entendem, é quando a libido é despertada por algo maior: um sentimento capaz de mudar tudo e a todos. A expressão de sua homossexualidade se torna o catalisador de todas as suas transformações. Zach percebe que o universo masculino é atraente e provoca variantes desejos.
O titulo original do filme tem muito mais sentido — “Shelter” significa abrigo. E é justamente esse sentido: Zach encontra em Shaun um conforto, um alicerce, um suporte. O amor é um abrigo que o acolhe, a proteção para todas suas dores humanas. É possível conter um desejo que parece transbordar de puro sentimento? Quando as sensações se confundem é que o ser humano mais vive em conflito — como representante militante sobre universo homossexual, é óbvio que este filme trata também das dificuldades de um homem aceitar-se na condição de homossexual, sem afetação alguma. Zach tem que enfrentar não só sua família, mas seu próprio interior que despreza esse sentimento que nunca havia explorado. Interessante que o roteiro é cuidadoso em mostrar como se fundamenta, e até inevitável é, a atração entre os dois — sequências de diálogos íntimos que contornam os olhares, a exploração da convivência, para depois externar a libido que é incontrolável. A primeira vez que ambos se beijam é natural, pura ternura, mas demonstra bem a química de desejo que esses dois homens vivenciam. A partir disso, inicia-se um discurso onde Zach tem que lutar contra privações, visto que há não só um desejo, mas um amor que é capaz de elevar suas percepções para um novo mundo. E o filme pontua a maneira como, quase sempre, o homossexual acaba por se auto-flagelar; a se punir por algo que sente, à beira do medo de ser descoberto pela sociedade predatória. Mas, como reprimir um tesão que nunca atenua? E como não se anular pelos preconceitos externos?
Ao contrário do que se espera, o filme não se concentra em diversas sequências de sexo. Porém, as que existem provocam, por conta do realismo e da forte propulsão maliciosa dois atores em cena. Tanto Trevor Wright como Brad Rowe não parecem tímidos nos diálogos íntimos, em beijos emotivos ou mesmo na cena onde transam pela primeira vez, momento que evidencia bem a tensão selvagem orgástica dos dois. Não é apelativo, mas é sensual. O que torna esse filme ainda mais justo com o universo homossexual é que ele lida bem com as dores, mas também com os prazeres adquiridos por essa sociedade homossexual que enfrenta o preconceito social, a aceitação íntima também. A direção de Jonah Markowitz prefere que os atores direcionem suas cenas, sem nenhuma ousadia estética, somente a da excelente harmonia interpretativa. Tanto os dois protagonistas como o restante do elenco pontuam muito bem as sensações, percepções e contextos humanos da diversidade sexual. A questão da homofobia é apresentada também aqui. Mais que uma discussão sobre problemáticas da opção sexual, é uma trama que aponta como é necessário escolhas — afinal, através delas, que destinos podem ser transformados a todo instante. Eis um exercício cinematográfico que desmistifica a concepção de homossexualidade como algo só trágico, afetado ou depressivo. Um filme sensível, íntegro e autêntico.
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